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Eugênio Gudin (1886-1986) o maior pensador liberal da economia brasileira. (Foto: Divulgação) |
A tresloucada marcha do Estado brasileiro como gestor da
economia ao longo das últimas décadas, notadamente durante os governos
petistas, colocou sobre o tapete a atualidade do pensamento de Eugênio Gudin
(1886-1986), que muita gente achava coisa do passado. As ideias liberais
passaram a ser alcunhadas de “Neoliberalismo” tout-court, abusando de um termo que virou xingamento da esquerda
patrimonialista.
Gudin renasce, no 130º aniversário do seu nascimento, nesta
quadra confusa da história brasileira. E renasce justamente ao ensejo das
desgraças protagonizadas pelos que tentaram censurá-lo. Este artigo visa a
destacar algumas das teses do grande professor, mostrando como elas iluminam a
atual quadra da nossa vida política.
Serão desenvolvidos os seguintes itens: 1 - O Capitalismo
Naturalista. 2 – A racionalidade social e o livre mercado. 3 – A
irracionalidade social decorrente da interferência do fator político na
economia. A guerra. 4 – A irracionalidade social e o planejamento estatal no
Brasil. 5 – Capitalismo e democracia no Brasil: perspectivas.
1 - O Capitalismo
Naturalista
O surgimento do Capitalismo, para Gudin, não tem nada de
abstrato nem de acidental. É tão verificável quanto o aparecimento da máquina a
vapor da era Industrial. O nascimento desta era da economia, bem como seus
passos, são realidades perfeitamente cognoscíveis. Constituem fatos concretos
da História humana.
O “Capitalismo Naturalista” estudado por Gudin se caracteriza
porque é a etapa da História da economia em que o Capital, aliado ao Trabalho e
à Criatividade dos agentes econômicos, dá ensejo à era da industrialização que
produz a satisfação das necessidades humanas básicas numa escala planetária,
fazendo com que todas as Nações se inter-relacionem com equilíbrio e constituam,
assim, a máxima manifestação da racionalidade humana.
O começo da sua etapa decisiva, segundo o economista, “(...) pode
ser referido ao ano de 1772 em que, pela primeira vez, se operou a redução do
minério de ferro pelo coque metalúrgico. As suas grandes etapas foram a da
navegação a vapor no princípio do século, a da locomotiva de 1827, a do
Conversor Bassemer em 1856, a da eletricidade industrial e da hulha branca no
último quartel do século, a do motor de explosão, do automóvel e da indústria
do petróleo em seu último decênio e, por fim, a do cinematógrafo e da aviação
no limiar do século XX” [GUDIN, Aspecto econômico do corporatismo brasileiro,
1938, pg. 7].
Poderíamos adicionar um fato relevante, na área da educação e
da pesquisa, que acompanha a Revolução Industrial: a criação, na França, em
1794, após a Revolução Francesa, da Escola Politécnica, que passou a tratar, ao
lado da tradicional Universidade nascida na Idade Média, do ensino das ciências
e da tecnologia.
Ora, esse ensino, até finais do século XVIII, tinha ficado relegado às
Academias, que surgiram fora das instituições universitárias na Europa, como
ocorreu na Itália de Galileu Galilei (1564-1642) e de Leonardo da Vinci
(1542-1519), na Inglaterra de Robert Boyle (1627-1691) e de Isaac Newton
(1643-1727) e na França dos marqueses Pierre Simon de Laplace (1749-1827) e Nicolas
de Condorcet (1743-1794).
Immanuel Kant (1724-1804) saudou o novo momento econômico da
industrialização, nos estudos dedicados à Antropologia (entendida como saber
pragmático acerca do homem), caracterizando-o como uma Criação Cosmopolita.
A respeito dessa característica globalizante e integradora da nova economia,
frisava Gudin: “As estradas de ferro, os motores de explosão, a navegação a
vapor arrancaram os povos do isolamento em que viviam, ligando-os pelos laços
de uma sociedade econômica em que a produção do planeta se espalha e distribui
pelo mundo inteiro. O transporte industrial, permitindo a organização de
socorros em grande escala, acabou com os quadros tétricos, que tanto registra a
história, de populações dizimadas pela fome, pela seca e pelas epidemias” [GUDIN,
Capitalismo
e sua evolução, 1936, pg. 27].
Essa etapa de evolução da economia mundial sob a égide da
industrialização já vinha sendo preparada desde o período renascentista, que
sacudiu a pesada estrutura do saber medieval centrado na Teologia Escolástica,
a fim de abri-lo às ciências e às técnicas. A respeito escreve Gudin: “A
evolução social e econômica retoma o seu curso com o Renascimento, em ritmo de
progresso acentuado desde o século XVI até o último quartel do século XVIII,
que registra o maior acontecimento da história econômica da humanidade: o
advento da civilização industrial”[GUDIN, Para um mundo melhor, 1943, pg. 99-100].
O equilíbrio “estático” medieval é sacudido, após o
Renascimento, pelo florescimento da economia, das técnicas e da cultura nas
cidades italianas. “A história – frisa Gudin - nos revela períodos, por vezes
longos, como o da fase negra da Idade Média, em que o mundo se apresentava em
estado de estagnação econômica e social correspondente a um equilíbrio
estático. São períodos de exceção” [GUDIN, Para um mundo melhor, 1943, pg. 99].
Ao ensejo das mudanças ocorridas na economia com o surgimento
do Capitalismo e da Revolução Industrial, frisa Gudin: “(...) puderam ser
montados no mundo inteiro os laboratórios de pesquisas científicas, com que a
humanidade, há quase um século, perscruta os segredos da Natureza. Graças ao
microscópio, produto da indústria, pôde Pasteur realizar a imensa obra de
benefício humano que o imortalizou. Graças ao aparelhamento industrial
atingimos um ‘standard’ de vida, que faz com que simples operários de hoje
tenham mais conforto do que príncipes de outros tempos ou do que Marx e Engels
há menos de um século. Não são sequer comparáveis os instrumentos com que a
humanidade de hoje se defende do frio, da fome, das intempéries, das infecções
e de todas as adversidades que a Natureza pôs no caminho penoso do ‘homo
sapiens’. Ninguém de boa fé negará esses truísmos” [GUDIN, Capitalismo e sua evolução,
1936, pg. 27-28].
O economista elenca os grandes avanços que, na área técnica e
no progresso econômico, a Humanidade experimentou com o surto do capitalismo na
era industrial, ao longo do século XIX. Não deixa de registrar o fato apontado
por Ortega y Gasset (1883-1955) em A rebelião das massas (1928),
do significativo aumento da população na Europa, em decorrência da melhora das
condições de higiene, saúde e produção de alimentos. Eis as palavras de Gudin: “À
redução do minério de ferro pelo coque metalúrgico e à máquina a vapor,
seguem-se, em rápida sucessão, na primeira metade do século XIX, a navegação a
vapor, a locomotiva e as estradas de ferro. A segunda metade desse século é
como uma feira de mágicas em que, juntamente com as descobertas de Pasteur,
aparecem o motor elétrico, o telefone, as turbinas hidráulicas e a vapor, a
lâmpada incandescente, o transporte de energia a distância. O último decênio do
século ainda assiste ao advento do motor a explosão, do veículo automóvel e à
infância da aviação. Foi um período de verdadeira exaltação do progresso, cujo
ritmo vertiginoso absorvia todas as energias humanas. Era como que uma fronteira, no sentido de progresso de
civilização que a essa palavra dão os americanos. O século XIX assistiu a um
crescimento da população da Europa, superior ao do conjunto dos quatro séculos
que o precederam. Mas toda essa população era rapidamente absorvida na febril
atividade da fronteira na própria
Europa ou na América. Não havia tempo para cuidar dos problemas de justiça
social nem de uma mais equitativa distribuição da riqueza entre os homens.
Tratava-se de conquistar a riqueza e haveria sempre tempo de cuidar, mais
tarde, de uma melhor repartição. Foi essa a conjuntura econômica e social que
Marx conheceu e profligou na incandescência de seu espírito revoltado” [GUDIN, Para
um mundo melhor, 1943, pg. 100-101].
O rápido crescimento da produção industrial levou à expansão
da fronteira econômica da Europa. Novos mercados iam-se, assim, abrindo. A
propósito, frisa o nosso autor: “Tão acelerado foi o ritmo de progresso da
produção industrial nos países do Ocidente europeu, que eles se acharam, ao
cabo de alguns decênios, na contingência de procurar, fora de suas fronteiras,
novos escoadouros para essa produção” [GUDIN, Aspecto econômico do corporatismo
brasileiro, 1938, pg. 7].
A ampliação da fronteira econômica levou a que os países
industrializados buscassem novos mercados para os seus produtos, nas nações
ainda circunscritas à economia agrícola. Os novos impérios coloniais tinham
como finalidade garantir matérias primas, mas também alargar o mercado
consumidor para os produtos das grandes indústrias. Sobre este ponto, o
economista frisa: “À medida que se ampliava o âmbito da civilização industrial
e que as demais nações da Europa e já também dos Estados Unidos da América do
Norte iniciavam, a seu turno, a construção de seus parques industriais, a
Inglaterra, a França e a Holanda tinham que procurar novos escoadouros para sua
exportação nas nações que ainda viviam em regime de economia agrícola, como nos
impérios coloniais que construíram com o duplo objetivo de angariar
matérias-primas e de assegurar consumidores para suas grandes indústrias” [GUDIN,
Aspecto
econômico do corporatismo brasileiro, 1938, pg. 8].
Gudin faz referência ao papel de dinamizadoras da produção
que passaram a exercer, na Europa, as Instituições de Crédito, bem como as
Sociedades Anônimas. De outro lado, fixa a atenção no equilíbrio a que chegaram
as economias europeias com aquelas dos países que recebiam os seus produtos
industrializados, em troca pelas commodities que os menos desenvolvidos
exportavam. A respeito escreve: “O vulto crescente da produção, o aumento
considerável da riqueza e da capacidade de consumo excederam, em breve tempo,
as possibilidades dos sistemas monetários e financeiros então existentes, dando
lugar à criação dos dois grandes fatores de propulsão da civilização
industrial, que foram o Crédito e as Sociedades Anônimas, um e outras tornados
já então possíveis de se organizar, sobre a base do acúmulo das economias privadas
nas instituições bancárias. Em dado momento, a Economia mundial parecia ter
chegado a um estado de equilíbrio estável, tendo, de um lado, as nações que
dispunham do capital acumulado, da técnica industrial, do combustível carvão e
da navegação a vapor e que constituíam o grupo das nações industriais e, de
outro lado, aquelas nações que não dispunham desses elementos, mas que podiam
oferecer seus produtos agrícolas e suas matérias primas em troca dos artigos
manufaturados” [GUDIN, Aspecto econômico do corporatismo brasileiro,
1938, pg. 8].
O aumento da venda de produtos industrializados por parte dos
países desenvolvidos se traduzia numa forma de equilíbrio, resultante do incremento
de commodities compradas dos menos desenvolvidos. Em relação a esse aspecto,
frisa Gudin: “Quanto mais o grupo de nações industriais vendia seus produtos ao
outro grupo, mais lhe compravam produtos agrícolas e matérias primas, e
vice-versa” [GUDIN, Aspecto econômico do corporatismo brasileiro, 1938, pg. 8].
A economia dos países submetidos a esse regime de trocas
gozava de um equilíbrio induzido pelo “gênio da civilização industrial”. Esse
harmônico processo é assim descrito pelo economista: “Se de um lado o progresso
industrial de alguns países novos fazia diminuir a importação de determinados
artigos, esta redução era logo compensada pelo aumento geral da capacidade de
consumo, como pela importação dos produtos de novas indústrias criadas pelo
gênio da civilização industrial. Se baixava a exportação de tecidos, aumentava
a de automóveis ou de novos produtos químicos” [GUDIN, Aspecto econômico do corporatismo
brasileiro, 1938, pg. 8].
Um desequilíbrio é apontado por Gudin nessa evolução
histórica do Capitalismo Naturalista: os trabalhadores terminaram sofrendo as consequências
das variações do mercado, ainda não suficientemente debeladas pela nova
legislação trabalhista. No entanto, com o correr do tempo, um novo equilíbrio
se anunciava, na trilha do aumento real da capacidade de compra por parte dos
trabalhadores, já no final do século XIX.
Eis a forma em que Gudin resume todo esse processo: “Do ponto
de vista social (...) é verdade que a liberdade de movimentos de que carecia o
capitalismo naturalista para sua plena expansão custou não poucos sacrifícios
às classes trabalhadoras, ainda desamparadas de legislação social adequada e de
união sindical (...). Não é menos verdade que, ao findar o século XIX, os
salários reais dos trabalhadores, isto é, o seu poder de compra, tinham
aumentado consideravelmente” [GUDIN, Aspecto econômico do corporatismo brasileiro,
1938, pg. 9].
2 – A racionalidade
social e o livre mercado.
Eugênio Gudin é tributário dos
teóricos escoceses que encararam a racionalidade social como proveniente da
empresa econômica. Para ele, onde se instalou o Capitalismo Naturalista
terminou vingando a racionalidade no plano mais largo das relações sociais.
Como a prática do livre mercado é que dá ensejo a essa modalidade de
Capitalismo, ali onde tal liberdade é suprimida, simplesmente desaparece a racionalidade
social. Pesou, certamente, nestas convicções de Gudin a sua condição de
executivo de alto nível de várias empresas multinacionais. Formado em
engenharia em 1905 pela Escola Politécnica do Rio de Janeiro, nas décadas
seguintes trabalhou em várias empresas estrangeiras presentes no Brasil como a
Ligth, a Pernambuco Tramway and Power Co., a Great Western of Brazil Railway
Co. e a Western Telegraph Co., da qual foi diretor até 1954.
A tendência ensejada
pelos teóricos escoceses, de que é tributário Gudin, como foi frisado, passou a
ser caracterizada como da “Economia Política” e se desenvolveu na trilha da
moral social do século XVIII que, com Hume (1711-1776), Adam Smith (1723-1790)
e outros autores, oferecia uma alternativa racional às teorias contratualistas.
Seria possível, como pensava Hume, reduzir a política a uma ciência referida à
economia e aos negócios públicos.
Essa temática foi retomada por ideólogos como Jean-Baptiste Say (1767-1832), que
no seu Tratado de economia política publicado em 1803, identificava a
nova ciência por ele proposta com um saber racional alicerçado na experiência,
irredutível à matemática, mas passível de ser resumido em poucos princípios
evidentes para todos.
A respeito escreve
Say: "Assim como as ciências exatas, a Economia Política se compõe de um
número reduzido de princípios fundamentais e de um grande número de corolários
ou deduções desses princípios. O importante para os progressos da ciência é que
os princípios decorram naturalmente da observação; em seguida, cada autor
multiplica ou reduz, de acordo com sua vontade, o número e consequências,
conforme o objetivo que se propõe. Aquele que desejasse mostrar todas as
consequências, fornecer todas as explicações, construiria uma obra colossal e
necessariamente incompleta. Inclusive, quanto mais essa ciência for
aperfeiçoada e difundida, menos consequências teremos de extrair, pois elas
saltarão aos olhos; todo mundo estará em condições de encontrá-las por si mesmo
e de aplicá-las. Um Tratado de Economia
Política reduzir-se-á, então, a um pequeno número de princípios que sequer
precisaremos basear em provas, pois eles serão apenas o enunciado daquilo que
todo mundo já saberá, disposto numa ordem apropriada a fim de se poder
apreender o seu conjunto e as suas relações".
O conde Antoine Destutt
de Tracy (1754-1836), no seu Tratado de Economia Política (que
constituía a quarta parte da obra intitulada Elementos de Ideologia),
definia mais claramente o fundamento da ciência em apreço, ao afirmar que "o
comércio é toda a sociedade".
O conde Pierre-Louis Roederer (1754-1835), por sua vez, considerava que
"as artes mecânicas, o fato de serem partilhadas por diferentes mãos, o
comércio e o intercâmbio de produtos por elas produzidos, são os únicos que
estabelecem entre os homens comunicações intimas, constantes e duráveis".
A política tenderia, destarte, a se confundir com a economia e a ciência das
riquezas seria a chave para encontrar a harmonia social. Para Gudin, como fica
claro do que levamos exposto, o equilíbrio social se estabelece pelo próprio
jogo das forças econômicas submetidas à lei do livre mercado.
Gudin, no entanto, não
acredita que a Economia possa encampar a Política. Para ele, essas duas
variáveis são complementares, não podendo ser reduzidas a uma. Seria uma
simplificação inaceitável. Considera que ambas as variáveis são essenciais,
assim como a relativa à Cultura. Embora admirasse a obra de Augusto Comte
(1798-1857) à maneira dos nossos positivistas ilustrados, pelo fato de o
pensador francês ter sistematizado a ideia de uma ciência social que
possibilitasse o estudo rigoroso dos fenômenos socioeconômicos, longe estava
Gudin, no entanto, de encampar a visão antidemocrática do comtismo com a sua
“ditadura científica”. A crítica que faz ao “despotismo ilustrado” getuliano,
de raízes castilhistas, é clara. A sua vinculação à UDN acompanhou, certamente,
esse viés de antiestatismo.
Nessa concepção da
sociedade como uma realidade a ser abordada a partir de múltiplas variáveis,
Gudin se inspira no sociólogo alemão Werner Sombart (1863-1941). Considera que
foi ele quem primeiro chamou a atenção para o caráter magnífico e complexo da
empresa capitalista e se refere a ele da seguinte forma, no ensaio, já citado, Aspecto
econômico do corporatismo brasileiro: “Foi dessa economia que o seu
maior comentador (...) dizia: ‘Estrutura tanto mais digna de admiração quanto
ela é o produto, não de uma vontade consciente e de uma deliberação refletida,
mas do funcionamento autônomo e por assim dizer automático de uma multidão
incomensurável de economias individuais, procurando cada uma o seu próprio
interesse’”.
Gudin adota o ponto de
vista de Sombart de que são múltiplas as variáveis que, além da economia, dão
conta da complexidade da vida social. É bem verdade que Sombart, ao lado de sua
admiração pela empresa capitalista, nutria desconfianças em relação à
predominância do espírito de lucro sobre a componente racional que garantiria a
perpetuação do processo (numa espécie de busca da “paz perpétua” almejada por Kant).
Os momentos de “guerra” (e, notadamente, as Guerras do século XX) poriam à
prova a subsistência do sistema. No entanto, Gudin é otimista quanto à
possibilidade de serem sorteadas as dificuldades. A “Guerra” é fruto da
predominância dos fatores políticos sobre os econômicos. O anseio de dominação
pode sufocar a produtividade.
A respeito da forma
como Gudin interpreta a obra do sociólogo alemão, Maria Angélica Borges frisa:
“No comentário à obra de Sombart aparece o desdobramento dos pressupostos da noção
de equilíbrio econômico presente na concepção econômica que Gudin abraça
(...)”.
O Capitalismo autorregulador era, para Gudin, “a maior obra civilizadora que o
espírito humano já concebeu e criou” [GUDIN, Aspecto econômico do corporatismo
brasileiro, 1938].
O Capitalismo,
acredita o mestre carioca, saberá superar as crises, retomando o processo de
criação de riquezas mediante a incorporação de novos avanços tecnológicos como
a automação, por exemplo, e preservando a livre iniciativa, para fazer frente
aos reptos de uma produção massiva, atendendo – de outro lado - às novas
exigências sociais. Diríamos que Gudin retoma o otimismo que inspirava à
primeira geração dos pensadores da economia política, nos tempos de Adam Smith,
mas ampliando o leque epistemológico para o estudo de várias variáveis.
3 – A irracionalidade
social decorrente da interferência do fator político na economia. A guerra.
Para Gudin, a Primeira Guerra Mundial veio quebrar o
desenvolvimento equilibrado do Capitalismo Naturalista, devido à interferência
irracional do fator político que destruiu o equilíbrio do sistema. Maria
Angélica Borges frisa a respeito: “Este paraíso durou, para nosso economista,
até 1914, quando se deflagrou a Primeira Grande Guerra. Para ele, esse fato sinaliza
o fim de uma época. O mundo capitalista, no plano do fator econômico, caminhava
de forma positiva. Mas, em virtude de acontecimentos decorrentes do fator
político, envolvendo paixões e ambições humanas, o equilíbrio econômico foi
interrompido. Deixado à mercê de sua própria lógica, o tecido social não
conhecia a crise. Porém, tal não ocorreu, porque o fator político quebrou a
dinâmica do fator econômico. Para o autor, o equilíbrio natural é da lógica
interna do fator econômico, assim como a possibilidade de quebra do equilíbrio
é exterior a ele”. A Primeira
Guerra Mundial explica, assim, o caos econômico que se seguiu ao processo de
desenvolvimento harmonioso do Capitalismo na “Belle Époque” (1875 / 1914).
Assim se refere Gudin a esses fatos: “(...) O enriquecimento
geral prosseguia seu ritmo natural e benéfico, a difusão de capitais se
processava com regularidade, o comércio internacional aumentava todos os anos.
E se guerra houve inteiramente gerada pela explosão de paixões e ambições
políticas e militares e em que os fatores econômicos menor papel representaram,
essa foi a guerra de 1914, que desencadeou sobre o mundo uma das maiores crises
econômicas da história” [GUDIN, Capitalismo e sua evolução, 1936,
pg. 9].
Como consequência do desarranjo produzido na economia mundial
pela Primeira Guerra, a Inglaterra perdeu o controle sobre as finanças
internacionais e os Estados Unidos, onde tinha se desenvolvido o processo
capitalista sem obstáculos, terminaram assumindo o controle das finanças
mundiais.
Gudin sintetiza da seguinte forma os aspectos fundamentais
dessa profunda mudança do Capitalismo Naturalista, destacando o papel que os
Estados Unidos passaram a desempenhar na economia: “Quando os Estados Unidos da
América do Norte, que já representavam antes da guerra função de relevo na
Economia Mundial [intervieram], a transformação foi ainda mais profunda. Com um
parque industrial que já era capaz de suprir os aliados de munições, canhões,
material de guerra e de transporte, o seu enriquecimento de 1914 a 1917 foi
vertiginoso, de sorte que, ao término das hostilidades, esse grande país
havia-se transformado de país devedor da Europa, que era até 1914, no maior
país credor do mundo, sem que, entretanto, tivesse a experiência e a sabedoria
exigidas por essa nova função. Aí está como se processou a desorganização da
Economia Mundial. O equilíbrio que se havia gradativamente formado até 1914,
sob o regime do Capitalismo apoiado na Economia Liberal, e que consistia na
conjugação harmônica das funções econômicas dos vários países que o
constituíam, foi gravemente perturbado pela inversão de valores de suas
unidades componentes. As peças do sistema, que d´antes se entrosavam
harmonicamente, já não mais se engrenavam, umas às outras” [ GUDIN, Aspecto econômico do corporatismo
brasileiro, 1938, pg. 12-13].
Esse desarranjo revelou que, no ciclo anterior à guerra,
havia uma lacuna que não tinha sido preenchida: a ausência de policiamento
sobre o sistema de trocas, que terminou produzindo a falência do mesmo. Gudin
reconhece que, no seio do sistema Capitalista, encontram-se elementos que
podem, em determinado momento, colocar em risco a saúde econômica. No caso
concreto do desarranjo produzido pela Guerra no contexto do sistema econômico
mundial, esses elementos negativos situavam-se do lado do surgimento de
monopólios e de outras práticas irracionais.
A propósito, frisa Gudin: “A mais elementar lacuna do sistema
capitalista, tal como funcionava no primeiro decênio [do século XX] era a
ausência de policiamento. A livre disposição, pelos bancos, de depósitos das
economias privadas, sem a fiscalização do Estado, a ilimitada liberdade de
apelar para a Economia privada e para a subscrição de empréstimos de Estados,
de empresas de negócios de toda espécie, sem que primeiramente o Estado
certificasse que tais operações tinham de fato o destino e as possibilidades de
êxito anunciadas, estavam a exigir, com urgência, o policiamento do sistema
(...). Este simples policiamento, se adotado a tempo, teria poupado, ao
Capitalismo, algumas das mais violentas críticas que lhe foram assacadas” [GUDIN,
Aspecto econômico do corporatismo brasileiro, 1938, pg. 15].
O nosso autor lembra que essa crise do Capitalismo já tinha
sido prevista por um teórico da talha de David Ricardo (1772-1823). Eis a
apreciação do nosso autor a respeito: “Já Ricardo, talvez o maior economista do
seu século, dizia, referindo-se ao Sistema Capitalista, que o seu automatismo
exige um grande número de empresas de dimensões tais que nenhuma delas possa
agir diretamente sobre os preços. É que na luta da concorrência, quando levada
a seus limites extremos, chega o momento em que os contendores compreendem que
o seu prosseguimento importaria na ruína final de todos, como na perda e
destruição final do capital social invertido na indústria ou serviço em causa
(...). Nesta hipótese, dá-se, inevitavelmente, o entendimento entre os
produtores ou o amálgama e unificação de empresas, com a supressão da
concorrência, que era o próprio princípio vital do Capitalismo naturalista.
Outra modalidade do resultado final da luta é a do esmagamento sucessivo do
mais fraco pelo mais forte, ficando este só em campo, sem mais concorrentes e,
portanto, no regime de monopólio, que é justamente o oposto da essência do
Capitalismo” [GUDIN, Aspecto econômico do corporatismo brasileiro,
1938, pg. 16].
Gudin estudou com atenção a crise do laissez-ferismo de
início do século XX. Conhecia em detalhe a obra dos economistas de Cambridge
que, nas primeiras décadas do século, tinham-se debruçado sobre esse tema. Conhecia
bem o pensamento de John Maynard Keynes (1883-1946) e concordava com a sua
crítica ao capitalismo de final de século, que tinha deixado aberta a porta
para os desequilíbrios. Como o economista britânico, reconhecia a necessidade
de uma correção de rumo, mediante intervenções indiretas do Estado para
restabelecer o equilíbrio, sem que se chegasse ao extremo do Estado-empresário
tão do gosto do despotismo ilustrado. Mas considerava necessárias intervenções
pontuais que evitassem o risco de paralisia do Capitalismo Naturalista.
Em relação à proximidade de Gudin com o pensamento
keynesiano, escreve José Luis Oreiro: “Gudin (...) considerava corretas as
ideias de John Keynes para analisar períodos de depressão econômica. Foi,
inclusive, um dos primeiros a divulga-las em português, em seu livro Princípios
de economia monetária, lançado originalmente em 1943. A obra foi a
primeira sobre monetarismo publicada no País e se tornou chave para as gerações
de economistas. Sua trajetória foi também marcada pela autoria de artigos para
jornais e publicações técnicas e participação em importantes conferências no
Brasil e no exterior”.
Afinava-se Gudin com as propostas de intervenção moderada do
Estado na economia proposta por Keynes, para sanar os desequilíbrios causados
pelo laissez-ferismo. Tomou conhecimento da política intervencionista do New Deal, posta em marcha pelo
presidente Franklin Delano Roosevelt (entre 1933 e 1937), mas criticou, no
entanto, o que lhe parecia uma intervenção forte demais que seria repetida, no
Brasil, pelo presidente Getúlio Vargas (1883-1954). A criação de inúmeras
agências federais por Roosevelt parecia, ao nosso autor, uma indevida concessão
dos americanos ao estatismo.
Gudin criticava, de outro lado, a versão estatizante que, das
reformas keynesianas, foi elaborada pelo economista argentino Raul Prebisch
(1901-1986) e que terminou inspirando o pensamento da CEPAL, tendo-se
disseminado pela América Latina afora, dando ensejo a reformas estatizantes que
terminaram sendo postas a serviço dos diversos populismos que floresceram no
nosso continente ao longo do século XX e – como observamos na atual quadra -
que se manifestam, também, nos diversos modelos neopopulistas que azucrinam a
vida dos cidadãos desta parte do mundo.
A Segunda Guerra Mundial ensejou nova crise no seio do
Capitalismo, em decorrência do fato de que não foram solucionados a contento os
problemas que deram lugar à Primeira Grande Guerra. Os mecanismos para uma
economia internacional policiada ainda não tinham sido plenamente desenvolvidos,
em que pese a efetivação da política do New
Deal nos Estados Unidos para superar a crise de 29. O resultado de tudo
isso, na década de 30, foi o acirramento dos problemas e o surgimento de uma
proposta de economia planificada na Alemanha hitlerista, como decorrência da
bancarrota econômica que fez surgir a hiperinflação, em boa medida como efeito das
absurdas exigências do plano de paz ensejado pelo Tratado de Versalhes
(1919), que deixou abertas as feridas que conduziram à Segunda Guerra Mundial.
Um clima de estatismo semelhante acompanhou a ascensão de Joseph Stalin
(1878-1953) ao comando da União Soviética. Keynes, em As consequências econômicas da
Paz,
deixou claras essas contradições (que ficaram explícitas na negociação do Tratado
de Versalhes) e que foram também registradas por Max Weber (1864-1920).
Gudin participou da Conferência de Bretton Woods (agosto de 1944),
que reorganizou a economia mundial. O nosso autor, conhecedor das propostas
feitas por Keynes nessa Conferência, saiu fortalecido como um economista
afinado com os novos tempos. Antes de regressar ao Brasil visitou, em companhia
de Otávio Gouveia de Bulhões (1906-1990), a prestigiosa Faculdade de Economia
da Universidade de Harvard. Ali teve oportunidade de discutir com os scholars
americanos “(...) o projeto da Faculdade de Economia do Rio de Janeiro (que se
transformaria na Universidade do Brasil, hoje Universidade Federal do Rio de
Janeiro). O resultado da visita é relatado em carta ao ministro, enviada de
Chicago: ‘Escrevi na pedra o programa e o
projeto de currículo que lhe recomendamos, para submetê-lo à crítica de todos e
para receber sugestões dos mestres. Tenho a satisfação de comunicar-lhe que
depois de fazerem várias perguntas e de pedirem esclarecimentos, todos os
professores de Harvard acharam o programa excelente dizendo que nada havia a
modificar’”.
4 – A irracionalidade
social e o planejamento estatal no Brasil.
Para Gudin, Getúlio Vargas pôs em funcionamento um sistema
econômico de intervenção direta e prolongada do Estado na economia. A adoção
das políticas intervencionistas, no Brasil, foi além do recomendado por Keynes
para sanear economias em depressão. Vargas avançou no terreno da estatização,
ao ensejo da adoção da ideia de planejamento. Na longa polêmica sustentada com
Roberto Simonsen (1889-1948) a respeito, Gudin deixou claro que o planejamento
deita raízes no intervencionismo monopolista do ciclo mercantilista. O Plano
contrapõe-se à livre iniciativa.
A respeito o nosso autor frisa: “No regime mercantilista do
século XVIII, os fatores de produção eram dirigidos para as atividades
econômicas ditadas pela política nacionalista do Estado; a formação do
artesanato orientada de acordo com o plano de produção formulado pelo Estado; o
comércio exterior controlado para assegurar o acúmulo do maior stock possível
de metais preciosos, velando-se por que o balanço de comércio fosse sempre
‘favorável’; o comércio com as colônias arregimentado pelo princípio exclusivo
da troca de produtos manufaturados por matérias-primas, etc. Esse tipo de economia exigia evidentemente
uma planificação detalhada da vida econômica do país e uma ininterrupta vigilância
do Estado sobre as atividades individuais” [GUDIN, Eugênio e SIMONSEN, Roberto.
A
controvérsia do planejamento na economia brasileira, 1977, pg. 61].
Segundo Gudin, com a adoção do planejamento o governo passou
a privilegiar aquilo que os burocratas achavam importante, passando por cima
das leis do mercado. Aconteceu isso no Estado Novo, no ciclo desenvolvimentista
marcado pela volta de Getúlio ao poder (1951-1954), na aceleração das obras
dirigidas pelo Estado ou por ele estimuladas ao ensejo do “plano de metas” de
Juscelino Kubitscheck (1902-1976) e nos rumos estatistas que inspiraram as
iniciativas das “grandes obras” dos governos militares, após 1964. Em todos
esses estágios a meta foi a introdução de uma visão industrialista, com
descuido para a modernização das atividades agrícolas, que teriam permitido um
desenvolvimento equilibrado e não inflacionário. O regime militar, pelo menos,
acordou para a importância da modernização da produção agrícola, tentando
resolver, em primeiro lugar, a espinhosa questão fundiária, com a formulação do
Estatuto
da Terra em 1964.
O que houve no Brasil foi um indevido crescimento do Estado à
sombra da ideia de planejamento, socavando a liberdade de iniciativa e
enterrando a produtividade na defesa de interesses cartoriais. Gudin criticava
essa feição estatizante. A respeito frisava: “No Brasil o Estado, sem qualquer
programação socialista de nacionalização, assenhoreou-se de muitos setores
econômicos que nas outras democracias incumbem à iniciativa e direção privadas.
Fica-se alarmado ao verificar como se tem estendido o domínio do Estado sobre
tantos setores da economia brasileira (...). O Estado tem, no Brasil, o controle
da enorme maioria da rede ferroviária e de quase toda a navegação mercante.
Estradas de ferro, navegação, portos, siderurgia, minério de ferro, petróleo,
fábrica de motores, são atividades hoje quase integralmente açambarcadas pelo
Estado. Essa ampliação da atividade do Estado não foi, como em outros países, o
resultado de um propósito, ou de um plano político. Foi, geralmente, o produto
da incapacidade política e administrativa do Estado, que acabou por tornar
inviável a direção privada das respectivas empresas e a força-las a entregar-se
ao Estado. A par dessas atividades erradamente transferidas do campo da
economia privada para o Estado, é de alarmar a manutenção, em tempo de paz, dos
controles estabelecidos pelo Estado durante a guerra mundial (...).” [GUDIN, Planejamento
econômico, 1951, pg.30].
Gudin era intransigente na crítica ao planejamento. Castigava
fortemente esse conceito. Um exemplo, em que o economista grifou todas as
palavras do texto: “A mística da planificação é, portanto, uma derivada
genética da experiência fracassada e abandonada do ‘New Deal’ americano, das
ditaduras italiana e alemã que levaram o mundo à catástrofe, e dos planos
quinquenais da Rússia, que nenhuma aplicação podem ter a outros países” [GUDIN,
Eugênio e SIMONSEN, Roberto. A controvérsia do planejamento na economia
brasileira, 1977, pg. 73].
Destaquei em páginas anteriores que Gudin foi escolhido, em
1944, como delegado brasileiro à Conferência Monetária Internacional de Bretton
Woods, que criou o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Internacional
para a Reconstrução e o Desenvolvimento (BIRD). Essa conferência
caracterizou-se pela sua inspiração nos postulados liberais caros a Gudin,
principalmente no que respeita ao comércio internacional, em contraste com as
políticas protecionistas que vigiam anteriormente. Entre 1951 e 1955 Gudin foi
o representante do Brasil perante o FMI e o BIRD.
No começo dos anos 50, o nosso autor formou parte da Comissão
de Anteprojeto da Legislação do Petróleo, tendo-se manifestado contra as
restrições colocadas à entrada de capital estrangeiro nessa área. Gudin foi contrário
à criação da Petrobrás e à instauração do monopólio estatal do petróleo. Apoiou
com determinação a política da UDN contra o estatismo varguista, de que decorreriam
o enfraquecimento do presidente e os trágicos acontecimentos que conduziram ao
suicídio de Vargas em 54. Na sua rápida passagem de oito meses à frente do
Ministério da Fazenda no governo Café Filho, entre 1954 e 1955, Gudin
desenvolveu uma política de estabilização econômica baseada no controle do
gasto público e na contenção da expansão monetária e do crédito. Foi marcante a
decretação da Instrução 113 da Superintendência da Moeda e do Crédito (SUMOC),
favorável à entrada de capitais estrangeiros no Brasil para financiar
investimentos.
5 – Capitalismo e
democracia no Brasil: perspectivas.
A posição de Gudin em face do movimento de 64 era clara: a
deposição de Goulart pelos militares tinha plena justificação, pois a República
Sindical pretendida irresponsavelmente desaguaria na bolchevização do País.
Tratava-se, também, de reagir contra a corrupção generalizada e a quebra de
hierarquia nas Forças Armadas, estimulada pelos apelos populistas do
presidente.
Toda essa movimentação contra as instituições republicanas
estava escondida sob o manto de uma série de “reformas” que visavam à
instauração do “poder popular”. A respeito dos motivos que inspiraram o
pronunciamento militar, frisava Gudin: “(...) O que a revolução visava não era
a reforma da Constituição, nem a reforma agrária, nem a reforma bancária, nem a
reforma eleitoral e ‘tutti quanti’. O objetivo da revolução era enxotar do
governo os maus brasileiros que estavam destruindo a civilização cristã, a
civilização ‘tout-court’, a cultura, o caráter e a prosperidade econômica do
País; era declarar guerra de morte à corrupção, à demagogia, à bolchevização e
ao primarismo. E tratar de restaurar o que se havia demolido” [GUDIN, Ilusão
gráfica, 1964, pg. 96-97].
Gudin saudou com alegria as primeiras medidas econômicas do
novo governo, que visavam a controlar a inflação e a por a casa em ordem no
terreno da contenção do gasto público. No entanto, para o nosso pensador, a
ação saneadora dos governos militares, ao abrir a porta para o desenvolvimento
capitalista libertando-o dos entraves socialistas, não conseguiu chegar à
finalidade almejada, pela presença perniciosa, na gestão econômica, da prática
do planejamento concretizada no correspondente ministério. Para Gudin, o
planejamento pode ser entendido em sentido lato ou em sentido estrito. Em
sentido lato, entende-se como programação de despesas e é válido. Em sentido
estrito, entende-se como meta definida politicamente e não é aceitável do
ângulo liberal [cf. GUDIN, Ministério do Planejamento ou Ministério da
Economia? 1966, pg. 124].
Referindo-se à prática histórica do “planejamento” como
rotineira programação de despesas ao longo da história republicana, o nosso
autor frisava: “O planejamento ou programação dos investimentos governamentais é diferente; sempre foi feito na
República Velha como na segunda. As ‘plataformas’ do governo eram estabelecidas
pela cúpula política, especialmente pelo candidato (de eleição assegurada) à
Presidência da República, e os respectivos projetos passavam a ser estudados e
organizados. Esse ‘programa’ de governo obedecia às necessidades consideradas
mais prementes da Nação. O caso do governo Rodrigues Alves e Afonso Pena é
típico a esse respeito. Mas esse ‘programa’ ou ‘plano’ ou ‘planejamento’, como
se queira chamar, limitava-se ao setor governamental, sem prejuízo das medidas
de estímulo que o governo adotasse para a expansão das atividades privadas. O que se receia do planejamento econômico
global, como agora se pretende consolidar, é que ele se torne um instrumento
que ainda mais venha a agravar o açambarcamento da economia do País pelo
governo, diretamente ou através de autarquias, empresas públicas ou empresas
mistas” [GUDIN, Ministério do Planejamento ou Ministério da Economia?, 1966,
pg. 124].
A importância crescente que o Ministério de Planejamento
ganhou nos governos militares, essa foi a causa fundamental que levou a que se
perdesse a dinâmica econômica encetada pelo movimento de 64. Comentando as
reformas feitas em 1966 no terreno da política econômica, que colocavam o
Ministério do Planejamento como canal de intervenção política direta do Poder
Executivo na Economia, frisava o nosso autor: “(...) Não é aceitável que o ministro
da Fazenda se limite a dizer que ‘no seu setor’ a política certa está sendo executada,
lavando as mãos como Pilatos quanto aos demais (...). No projeto essa falta é
sugerida, em parte, pelo Ministério do Planejamento e Coordenação Econômica
(...). [O artigo 6º do decreto] confere ao ministro do Planejamento a
incumbência de ‘auxiliar diretamente o presidente da República’ na coordenação,
revisão e consideração dos programas setoriais. Mas isso é uma forma indireta,
imprecisa e um tanto sub-reptícia, inadmissível em matéria de capital
importância como é o da execução da política econômica do governo. (...) O
ministério do Planejamento deixa de ser um ‘ministério extraordinário’, como
até agora, para ser um ministério permanente encarregado de formular e
coordenar os planos e programas de ação governamental” [GUDIN, Ministério
do Planejamento ou Ministério da Economia?, 1966, pg. 122-123]. Para
Gudin ficava claro que as leis do mercado estavam sendo substituídas pelas
prioridades fixadas, do ângulo político, pelo General-Presidente da República.
Quais as perspectivas que, no sentir do velho economista
liberal, restariam ao Brasil, no decorrer do século que, com ele, se extinguia?
Para o nosso autor restaria, apenas, o programa de “voo de besouro” ou “de
galinha”, com decolagens mirabolantes e quedas crônicas, em decorrência dessa
presença tuteladora do poder político sobre as leis do mercado, que de forma
errada fixava metas parciais de desenvolvimento econômico no terreno da
indústria, sacrificando setores essenciais como o agrário.
Fiel ao seu liberalismo econômico ortodoxo escrevia Gudin: “Tanto
quanto eu tenha podido investigar, o homem comum só conseguiu uma melhoria
persistente em seu padrão de vida nos países que adotaram as técnicas do
mercado livre, como meio de organização de sua atividade econômica (...). Não
conheço um só exemplo de uma sociedade predominantemente coletivista ou de
planejamento central em que o cidadão comum tenha conseguido uma melhoria
substancial e persistente nas suas condições de vida (...). A sedução do
‘Plano’ está em que ele trata de investir e de gastar, o que é sumamente
agradável, muito mais do que administrar e consertar o que está errado. As
energias, a capacidade e o prestígio do governo não são ilimitados” [GUDIN, Ministério
do Planejamento ou Ministério da Economia?, 1966, pg. 125].
Conclusão.
Diante do quadro atual de crise profunda em que se encontra a
nossa economia, em decorrência da “contabilidade criativa” petista que ensejou
inúmeros rombos nas contas públicas, além das práticas de corrupção que afetam
a nossa credibilidade perante o mundo e a saúde das empresas, as palavras de
Gudin em prol da transparência na gestão da economia e da transferência, para o
setor privado, da tarefa de geração da riqueza sem espera-lo tudo do Estado,
soam tremendamente atuais. O Estatismo não é culpa dos marcianos, mas de todos
nós, inclusive das expectativas dos próprios empresários de encontrar, nas
benesses do poder, refúgio tranquilo para os riscos que enfrentam. Falando da
discussão que se travou em torno à presença tutelar do Estado na economia,
lembrava Gudin em 1979, no depoimento dado ao pesquisador da Fundação Getúlio
Vargas: “Se você me perguntar de onde brotou esse debate, qual foi o espírito
que o inspirou, eu lhe responderei sinteticamente: o protecionismo excessivo
que a indústria paulista exigia” [GUDIN, Depoimento. CPDOC/História Oral.
Fundação Getúlio Vargas, Rio de Janeiro, 1979, pg. 145].
Como lembrava com propriedade Roberto Campos: “Na grande
controvérsia brasileira, (Roberto) Simonsen triunfou no curto prazo. O Brasil
embarcou num processo de industrialização fechada, extremamente protecionista e
ineficiente. O resultado foram, como previra Gudin, inflação e crises cambiais
crônicas. No longo prazo, foi Gudin que tinha razão. O atual movimento mundial
de abertura econômica, integração de mercados e liberalização comercial na
América Latina teve nele um grande precursor”.
Talvez a melhor lição deixada por Eugênio Gudin foi a que
burilou no espírito dos seus alunos, ao longo das décadas dedicadas pelo mestre
ao ensino dos fundamentos da Economia, como espaço para o exercício da
liberdade. Poderia concluir com as palavras de Julian Chacel (1928), um dos
alunos do grande economista liberal: “Gudin como professor fez escola. Escola
que acredita na liberdade do homem, como condição essencial para o processo de
escolha e da decisão econômica. Que é reticente diante da proposta híbrida de
uma economia de mercado compatível com um planejamento fortemente centralizado
na ação do Estado. Nem todos, obviamente, seguem a sua doutrina e dão ao fenômeno
monetário o poder explicativo que Gudin lhe confere. Mas todos, sem exceção,
que conviveram e convivem com Gudin, dentro e fora de uma sala de aula,
retiraram e retiram do seu convívio uma grande lição. Lição de vida”.
Gudin, enquanto pensador econômico e mestre,
se definia a si mesmo como aquele que deita alicerces, repetindo as palavras de
conhecido escritor gaúcho: como aquele que “bate estacas”. Eis as palavras do
nosso autor a respeito: “Roberto Campos, economista provecto, analista
percuciente, escritor primoroso, tem uma especial vocação para o pensamento
categorizado. Dizia-me João Neves da Fontoura (1887-1963), de uma feita, que o
meu raciocínio se parecia com uma construção sobre estacas; uma estaca batida e
bem firmada, depois uma segunda, enfim um conjunto de sólidas estacas sobre as
quais – dizia o grande escritor – eu assentava o edifício do meu raciocínio e
das minhas conclusões. Roberto Campos não é como eu um batedor de estacas. É um
criador de categorias (...). Campos considera impossível conceber-se o Universo
senão sob as categorias da inteligência”.
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