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quarta-feira, 25 de julho de 2012

A TRADIÇÃO DO LIBERALISMO DOUTRINÁRIO NO CONTEXTO IBERO-AMERICANO


François Guizot, o líder dos Doutrinários (Wikipedia)
Nós, ibero-americanos, entramos ao mundo das idéias liberais por uma dupla via: pelo caminho que tenho denominado de liberalismo telúrico ibérico proveniente do feudalismo, que deu ensejo à concepção contratualista do poder externada nos “fueros aragoneses” vigentes em plena Idade Média [cf. Vélez, 1978]. Essa concepção protoliberal deu ensejo, no início da Modernidade, às teorias da soberania popular dos filósofos ibéricos (Suárez, Vitória, Molina, etc.) e, na contemporaneidade, eclodiu no liberalismo de corte libertário dos pensadores da escola austríaca (Hayek, Von Mises, etc.). Em segundo lugar, e já nos campos mais específicos do constitucionalismo e da fundação da moderna historiografia, o liberalismo se sedimentou, na cultura ibérica, pela mão dos pensadores franceses na corrente denominada de liberalismo doutrinário, ainda nos tempos das revoltas que varreram o continente na última parcela do século XVIII, mas especialmente nas primeiras décadas do século XIX.
A primeira via, do liberalismo telúrico, foi aprofundada por mim no meu livro intitulado: Estado, cultura y sociedad en la América Latina [Vélez, 2000]. A segunda, identificada com a influência do liberalismo doutrinário, foi estudada na obra que escrevi ao ensejo da minha pesquisa de pós-doutorado na França e que se intitula: O liberalismo francês: a tradição doutrinária e a sua influência no Brasil [Vélez, 2012]. Tratarei, no presente comentário, acerca desta vertente.
Uma vez consolidadas as instituições independentes das metrópoles espanhola e portuguesa, amadurecemos no reformismo de inspiração liberal pela mão dos doutrinários franceses e dos precursores deles, como Benjamin Constant de Rebecque.  Mas, por outro lado, inspiramo-nos, também, no republicanismo revolucionário de feição rousseauniana e, nos momentos de antítese autoritária, no bonapartismo ou no tradicionalismo à la Joseph de Maistre ou Luís de Bonald. Síntese paradoxal da dupla inspiração em Rousseau e Bonaparte foi, por exemplo, Simón Bolívar, embora ele pretendesse ser mais discípulo do filósofo de Genebra do que encarnação de Napoleão Bonaparte, Imperador dos Franceses. As mudanças sociais foram pensadas, outrossim, à luz dos socialistas utópicos seguidores de Augusto Comte e de Henri-Claude de Saint-Simon, bem como nos escritores que, no final do século XIX, vulgarizaram os ideais socialistas, como Émile Zola.
Esta tese da inspiração estrangeira (ibérica e ibero-americana, especialmente) nos autores franceses, aliás, não é nova. É do próprio François Guizot, que na sua Histoire de la civilisation en Europe (capítulo 14), ao fazer o balanço do que a França significou no contexto da civilização ocidental, afirma que a marca registrada dessa influência consistiu em ter realizado, de maneira superlativa, todas as grandes mudanças que foram concretizadas de forma moderada pela Inglaterra. A França, efetivamente, viu derrubar-se o mundo feudal muito cedo sob o tacão de Ferro de Filipe o Belo, deu ensejo ao mais radical dos absolutismos monárquicos que possibilitou a Luís XIV afirmar "L'État c'est moi", efetivou de maneira cruenta a revolução burguesa descabeçando literalmente o Ancien Régime, consolidou um modelo jacobino de República alicerçado no democratismo rousseauniano, que passou a ser o arquétipo pelo qual se pautaram as novas Repúblicas surgidas na América Espanhola e Portuguesa, ao longo do século XIX, etc.
A respeito desse caráter superlativo das realidades e das idéias políticas na França - e no continente europeu, em contraposição à Inglaterra -, escreveu Guizot: "Ao contrário, nos Estados do continente, cada sistema, cada princípio, tendo desfrutado do seu momento e dominado da maneira mais completa, mais exclusiva, o seu desenvolvimento produziu-se em muita maior escala, com mais grandeza e brilho. A realeza e a aristocracia feudal, por exemplo, comportaram-se na cena continental com mais audácia, amplitude e liberdade. Todos os experimentos políticos, chamemo-los assim, foram mais exteriores e mais acabados. Daí resultou que as idéias políticas  - falo das idéias gerais e não do bom senso aplicado à direção dos negócios  -  elevaram-se a maior altura e desenvolveram-se com mais vigor racional. Cada sistema, pelo fato de ter-se apresentado, de certa forma, sozinho e de ter permanecido durante muito tempo em cena, pôde ser considerado no seu conjunto, pôde-se remontar aos princípios, descer até as suas últimas conseqüências e estabelecer plenamente a sua teoria" [Guizot,  1864: 383-384].
No que tange ao liberalismo, a experiência dos doutrinários está bem mais próxima de nós, ibero-americanos, do que as lições que nos poderiam dar os ingleses ou os norte-americanos. Isso porque a França do século XIX reproduzia com grande fidelidade as contradições que vivemos, nos nossos países, nessa centúria e ao longo do século XX, como também neste paradoxal início de milênio. A evolução política contemporânea, na Espanha, em Portugal, na América espanhola ou no Brasil, processou-se de forma muito mais parecida à França do século XIX, do que aos Estados Unidos ou à Inglaterra.
As idas e vindas da nossa política têm oscilado entre os extremos do mais feroz caudilhismo (e da sua variante contemporânea de desavergonhado populismo) e do anárquico democratismo. As lutas dos liberais ibero-americanos, em defesa da liberdade e do governo representativo, têm se aproximado muito mais dos ingentes esforços feitos por Guizot e pelos demais doutrinários para dotar a França de instituições que garantissem a frágil planta da democracia, do que das reformas racionais efetivadas por Pitt ou Gladstone, na Inglaterra, a fim de ver triunfante o Império britânico, um empreendimento alicerçado na livre iniciativa e na tranqüila e rotineira representação de interesses, sistematizada por Locke nos seus Dois tratados sobre o governo (1690). A idéia é de José Ortega y Gasset, que concluía em 1937: "este grupo de doutrinários, de quem todo mundo riu e fez troça, é, no meu entender, o mais valioso que houve na política do Continente ao longo do século XIX" [apud Díez, 1984: 19].

La Sorbonne nos tempos de Guizot (Diamond Guide, 1872)
A repercussão das idéias dos doutrinários no mundo ibérico e ibero-americano começou, aliás, já no século XIX. Os liberais espanhóis, liderados por Cánovas del Castillo, e que integraram a denominada Geração dos Doutrinários de 1845, inspiraram-se diretamente nos seus homólogos franceses, notadamente em Guizot [cf. Díez, 1984: 25]. A influência deste fez-se sentir, em Portugal, já no pensamento de Alexandre Herculano. Algo semelhante ocorreu no Brasil entre os denominados por Oliveira Vianna de Homens de Mil, que constituíram a geração de estadistas formados por dom Pedro II e que foram os responsáveis pela estabilidade política do Segundo Reinado. Um desses Homens de Mil foi o visconde de Uruguai, Paulino Soares de Sousa, que fundamentou boa parte do seu Tratado de Direito Administrativo nas idéias e nas propostas reformistas de Guizot [cf. Sousa, 1960]. Outros estadistas como o Conselheiro José Tomás Nabuco de Araújo e o seu filho, Joaquim Nabuco, confessavam-se seguidores de outro doutrinário, o mestre de Guizot e seu padrinho político, Pierre-Paul Royer-Collard [cf. Chacon, 2002: 229]. Vale a pena lembrar, aqui, que as idéias dos precursores do liberalismo doutrinário, Benjamin Constant e Madame de Staël, já estavam presentes no pensamento da geração anterior, quando da vinda da corte portuguesa para o Brasil. Dois ministros de dom João VI acusaram essa influência: Silvestre Pinheiro Ferreira e dom Pedro de Souza Holstein, conde e duque de Palmela.
Entre os argentinos, para citar apenas um nome, encontramos importante tributário da dinâmica histórica idealizada por Guizot em Domingo Faustino Sarmiento, que foi presidente do seu país e que escreveu essa magnífica obra que conta a história das origens do patrimonialismo platino intitulada: Facundo, civilización o barbarie, publicada em 1846.  Efetivamente, Sarmiento, como já o fizera Guizot em relação à Europa, considerava a formação argentina como fruto dialético da contraposição de dois princípios: a liberdade bárbara do gaúcho (encarnado em Facundo Quiroga e em Rosas) e o princípio centralizador da ordem, que faz uso do direito, construindo o Estado sobre as leis (papel civilizador que pretendia desempenhar o próprio Sarmiento e a elite de educadores-políticos por ele inspirada) [cf. Sarmiento, 1996].
Os traços marcantes dos doutrinários são os seguintes, segundo François Guizot: 1) Eles foram eminentemente homens de ação moderados, que pretenderam defender as conquistas da Revolução de 1789, notadamente os ideais de liberdade e de democracia, bem como o ideal de progresso da sociedade humana. Prevaleceu neles, no entanto, mais o primeiro aspecto do que o segundo. Mas, ao analisarmos a sua obra, vemos que ela se encaminhava no sentido de alargar o voto paulatinamente, embora se contrapusessem à retórica democrática, polarizada muitas vezes ao redor dos republicanos. Achemos muito conservador ou não o primeiro ministro de Luís Filipe, Guizot foi, afinal de contas, quem destacou, em alto e bom som, que no mundo moderno iniciou-se uma caminhada irreversível rumo à democracia. 2) Os doutrinários eram, ao mesmo tempo, homens de estudo, que tinham uma dupla finalidade: de um lado, identificar as raízes históricas da civilização ocidental e, no contexto dela, da cultura francesa, a fim de pensar as novas instituições em consonância com as próprias tradições; de outro lado, substituir a filosofia sensualista dos ideólogos por um ecletismo espiritualista compatível com a prática religiosa. Alguns doutrinários, como Royer Collard, eram católicos de origem jansenista, outros protestantes, como François Guizot. Mas todos eles se caracterizavam pela moderação em matéria religiosa, e por defenderem a separação das igrejas em face do Estado. 3) Do ângulo filosófico, os doutrinários professavam um espiritualismo contrário ao sensualismo de Condillac e ao excessivo materialismo dos ideólogos. Dois autores deitaram as bases, na França, para os fundamentos filosóficos dos doutrinários, no seio da corrente denominada de ecletismo espiritualista: Royer-Collard (que se inspirou fundamentalmente na filosofia escocesa do senso comum de Reid) e Victor Cousin (que alargou os fundamentos doutrinários do ecletismo incorporando a filosofia alemã, notadamente o hegelianismo e que, junto com Maine de Biran, tributário de Kant, deu carta de cidadania filosófica ao espiritualismo) [cf. Paim, 1997: 371-386; Díez, 1984: 34-42]. Na reação espiritualista apontada deitam raízes, aliás, os pressupostos humanísticos de Tocqueville e Aron. 4) Ao juntarem a dimensão prática à teórica, os doutrinários encarnaram um tipo especial de ética pública, a do intelectual-homem de ação, que se contrapõe paradoxalmente à proposta dicotômica de Max Weber, que distinguia de forma radical entre ética dos intelectuais e ética dos políticos. Os doutrinários não tinham dificuldade em admitir que o intelectual deve iluminar o político e que o político deveria fazer pousar na terra o intelectual. 5) Quanto ao modelo político defendido, os doutrinários eram partidários da monarquia constitucional com parlamento bicameral, sendo tributários, neste aspecto, dos autores ingleses.

La Sorbonne atualmente.
Existe, pois, uma tradição doutrinária, que foi preparada pela ação e o pensamento de três importantes precursores: Jacques Necker, a sua filha Germaine Necker de Staël-Holstein (a conhecida Madame de Staël) e Benjamin Constant de Rebecque. A hipótese dos precursores do liberalismo doutrinário não é nova: foi levantada no século XIX por Sainte-Beuve e adotada presentemente por Lucien Jaume, sendo que este último autor considera que há em Madame de Staël e em Constant mais um perfil libertário, enquanto que em Necker e Guizot prevalece um ponto de vista centrado nas instituições governamentais, que confere ao seu liberalismo um caráter mais conservador. Tocqueville, no sentir de Jaume, teria resgatado a ênfase libertária de Madame de Staël e Benjamin Constant [cf. Jaume, 1997: 14-21]. Observa-se, na ação precursora de Madame de Staël, a sua inspiração na filosofia kantiana, no esforço empreendido por ela para dotar ao liberalismo de uma base filosófica sólida (de inspiração transcendental), contraposta ao utilitarismo.
A tradição doutrinária, encarnada pela geração de Guizot, prolonga-se na obra e no pensamento de dois importantes autores: Alexis de Tocqueville e Raymond Aron. O primeiro, apesar de crítico das reformas conservadoras de Guizot, manteve-se fiel aos seus ensinamentos no que tange aos pressupostos espiritualistas na concepção do homem, bem como no que diz respeito aos rumos da historiografia e à defesa das instituições liberais do governo representativo e da monarquia (embora, como também fez o próprio Guizot, tivesse admitido para a França - de forma passageira, é verdade - uma República liberal). Aron, filho do século XX, ampliou o estudo sobre os fundamentos filosóficos da historiografia no contexto do neokantismo e se engajou corajosamente, ao mesmo tempo, na defesa da liberdade e da democracia representativa num contexto republicano. Ambos, Tocqueville e Aron, conservaram o traço marcante dos doutrinários, ao terem sido pensadores e homens de ação. Tocqueville, como parlamentar, ensaísta, ministro de Estado, jornalista e estudioso dos assuntos da administração pública e do governo; Aron, fundamentalmente como jornalista combativo e estudioso sistemático das grandes questões suscitadas pela democracia contemporânea.  Ambos, Tocqueville e Aron, contrapõem-se aos doutrinários na questão da democracia. Não que estes a negassem frontalmente: as reformas por eles realizadas a prepararam. Mas Tocqueville e Aron defendem de maneira explícita o ideal democrático, coisa que os tradicionais doutrinários não chegaram a fazer. Ambos, Tocqueville e Aron, finalmente, pensaram de maneira sistemática a problemática internacional do seu tempo. Ora, neste ponto eles superam os seus mestres doutrinários, que não chegaram a formular uma teoria das relações internacionais.
Os estudos sobre os doutrinários percorreram uma tripla etapa: em primeiro lugar, entre 1857 e 1900 prevaleceram, na França, as aproximações de tipo biográfico (como, por exemplo, os estudos realizados por Faguet sobre Royer-Collard e Guizot, ou os de Thureau-Dangin sobre o regime orleanista). Em segundo lugar, na primeira metade do século XX, nas décadas de 20 e 30, o interesse pelas idéias dos doutrinários foi aumentando progressivamente, destacando-se os estudos realizados por Charles Pouthas e Pierre de la Gorge. Em terceiro lugar, a fase contemporânea de interesse pelos doutrinários parece que tem uma dupla fonte: a divulgação, na França, das obras de Tocqueville por Raymond Aron, a partir dos seminários oferecidos na Sorbonne nos anos 50 (trata-se, aqui, de uma fonte indireta, pois o interesse por Tocqueville vai conduzir aos doutrinários); de outro lado, a valorização que Ortega y Gasset fez do pensamento doutrinário nos seus ensaios e nas conferências universitárias, ao longo dos anos 40 e 50 do século passado.
Nas últimas décadas, duas iniciativas vieram acelerar o interesse pelos doutrinários: de um lado, os estudos sistemáticos dedicados por Pierre Rosanvallon à obra de Guizot e, de outro, os ciclos de debates e os seminários promovidos pelo Centre de Recherches Politiques Raymond Aron, sob a iniciativa de François Furet, Françoise Mélonio, Pierre Manent e do próprio Rosanvallon. A estas realizações soma-se o trabalho incentivado por entidades de cultura como a Associação Benjamin Constant (de Lausanne, Suíça), a Sociedade de Estudos Staëlianos (presidida por Simone Balayé), a Sociedade Tocqueville (presidida por Daniel Bell e que publica La Revue Tocqueville junto com a Universidade de Toronto) o Castelo de Coppet (à cuja frente está o conde d'Haussonville) e a Fundação Guizot-Val Richer [cf. Jaume, 1997: 21; Díez, 1984:  20-25].
Os meus estudos sobre o liberalismo doutrinário foram sintetizados na obra, de minha autoria, já citada: O liberalismo francês: a tradição doutrinária e a sua influência no Brasil (que aparece em edição digital de 2012, no Centro de Documentação do Pensamento Brasileiro). Nessa obra, dei continuidade aos estudos já realizados, na década anterior, na França, sobre o pensamento de Alexis de Tocqueville, que deram ensejo ao livro, publicado em 1998, sob o título de: A democracia liberal segundo Alexis de Tocqueville. Antônio Paim e José Osvaldo de Meira Penna (fundadores da Sociedade Tocqueville, no Rio de Janeiro, em 1986) leram pacientemente a versão original dos meus trabalhos, anotando as gralhas de digitação e fazendo sugestões. Eles deram-me, outrossim, muitos subsídios teóricos a partir de 1993, quando lhes apresentei o projeto inicial para estudar a obra de Tocqueville. Os colegas do Círculo de Estudos do Liberalismo, no Rio de Janeiro, também contribuíram para o meu trabalho, com oportunas observações acerca dos fundamentos teóricos do pensamento dos doutrinários; menciono com especial destaque os nomes de dois deles: os saudosos amigos Ubiratan Macedo, coordenador do Círculo e Ítalo da Costa Jóia.  A consulta às fontes francesas acerca dos doutrinários e os seus precursores, bem como sobre a obra de Tocqueville e Aron, contou com a generosa e eficaz orientação de Françoise Mélonio do Centre de Recherches Politiques Raymond Aron em Paris. Graças à sua indicação pude entrar em contato com pesquisadores do pensamento tocquevilliano e aroniano como Seymour Drescher, Pierre Manent, Reiji Matsumoto e Elisabeth Dutartre. Jean-Pierre Perchellet, da Société des études staëliennes, teve a gentileza de me enviar os Cahiers staëliennes, fonte valiosíssima para o estudo dos ideais doutrinários. André Bueno (doutorando em Filosofia da Universidade Gama Filho) forneceu-me os belos exemplares da obra de Necker intitulada: Dernières vues de politique et de finance - 1802. Anna Maria Moog Rodrigues, da Academia Brasileira de Filosofia, presenteou-me com os dois volumes do Cours de Politique Constitutionnelle - 1872 de Benjamin Constant. Recebi valiosas indicações bibliográficas acerca da influência dos doutrinários na América Espanhola, de Otto Morales Benítez, da Academia Colombiana de História.
Foi de grande valor para o meu trabalho o diálogo com pesquisadores americanos (especialmente Daniel Mahoney e Robert Royal), sobre a atualidade de Tocqueville e Aron em face da problemática latino-americana contemporânea, no IX Encontro de Estudos Políticos promovido por João Carlos Espada, na Universidade Católica Portuguesa em novembro de 2001. Ao ensejo deste evento pude discutir, outrossim, as teses centrais da sociologia de Aron com os alunos da pós-graduação em ciências políticas dessa Universidade. Foram muito valiosas as indicações bibliográficas fornecidas pelo embaixador Carlos Henrique Cardim, diretor do Instituto de Relações Internacionais em Brasília. Os seminários sobre o liberalismo, promovidos ao longo da década de 90 pelo saudoso Og Leme (do Instituto Liberal do Rio de Janeiro) e Emílio Pacheco (do Liberty Fund), e continuados, na década seguinte, sob a coordenação de Roberto Fendt, foram de grande utilidade para analisar o pensamento dos doutrinários em confronto com outras manifestações do pensamento liberal. Recebi orientações precisas acerca da influência dos liberais franceses do século XIX sobre o pensamento político em Portugal, de José Esteves Pereira (da Universidade Nova de Lisboa), Eduardo Soveral (da Universidade do Porto), António Braz Teixeira (da Universidade Autônoma de Lisboa) e José Pereira Bairrada (da Universidade Católica Portuguesa). Nos Congressos Brasileiros de Filosofia promovidos por Miguel Reale, em 1999 e 2002, pude discutir com pesquisadores brasileiros e estrangeiros alguns pontos do Liberalismo Doutrinário. Oportunidade semelhante foi-me oferecida por Leonardo Prota, nos Colóquios bianuais de Filosofia Brasileira realizados em Londrina a partir de 1989.  Os vários Ciclos de Debates acerca do Liberalismo Clássico, coordenados, ao longo dos anos 90 do século passado, por Alex Catharino de Souza no Rio de Janeiro, representaram, para mim, foro privilegiado para discutir as idéias básicas dos doutrinários e dos seus precursores.
BIBLIOGRAFIA
CHACON, Vamireh [2002]. "Royer-Collard e Destutt de Tracy: liberais quase esquecidos". In: Revista Brasileira de Filosofia. São Paulo, vol. 52, no. 206 (abril - junho de 2002): pgs. 229-236.
CONSTANT de Rebecque, Henri-Benjamin [1872]. Cours de Politique Constitutionnelle. (Introdução e notas a cargo de Édouard Laboulaye). 2ª Edição. Paris: Guillaumin, 2 vol.
DÍEZ del Corral, Luis [1984]. El Liberalismo Doctrinario. 4ª Edição. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales.
GUIZOT, François [1864]. Histoire de la Civilisation en Europe depuis la chute de l'Empire Romain jusqu'a la Révolution française 8ª Edição. Paris: Didier.
JAUME, Lucien [1997]. L'Individu effacé, ou le paradoxe du libéralisme français.  Paris: Fayard.
              LOCKE, John. Dois tratados sobre o governo. (Tradução de Julio Fischer; “Prefácio” e “Introdução” de Peter LASLETT). São Paulo: Martins Fontes, 1998.
NECKER, Jacques [1802]. Dernières vues de politique et de finance, offertes à la Nation Française. Paris: Bibliothèque Nationale, 2 vol.
ORTEGA y Gasset, José [2002]. A rebelião das massas. (Tradução de Marylene Pinto Michael). 2a. Edição. São Paulo: Martins Fontes.
PAIM, Antônio [1997]. História das Idéias Filosóficas no Brasil. 5ª Edição revisada. Londrina: Editora da Universidade Estadual de Londrina.
SARMIENTO, Domingo Faustino [1996]. Facundo: civilização e barbárie no pampa argentino. (Tradução de Aldyr García Schlee). Porto Alegre: Editora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul / Editora da Universidade Católica do Rio Grande do Sul.
SOUZA, Paulino Soares de, visconde de Uruguai [1960]. Ensaio sobre o Direito Administrativo. (Apresentação de Themístocles Brandão Cavalcanti).  Rio de Janeiro: Imprensa Nacional.
VÉLEZ Rodríguez, Ricardo. A democracia liberal segundo Alexis de Tocqueville. São Paulo: Mandarim, 1998.
VÉLEZ Rodríguez, Ricardo. Estado, cultura e sociedade na América Latina. Bogotá: Universidad Central, 2000.
VÉLEZ Rodríguez, Ricardo. Liberalismo y conservatismo en la América Latina. Bogotá: Edições Tercer Mundo / Universidad y Pueblo, 1978.
VÉLEZ Rodríguez, Ricardo. O liberalismo francês: a tradição doutrinária e a sua influência no Brasil. (Apresentação de Antônio Paim). Salvador-Bahia: Centro de Documentação do Pensamento Brasileiro, 2012 (edição digital).

terça-feira, 24 de julho de 2012

ANOTAÇÕES ACERCA DA VIDA E OBRA DE JOHN LOCKE (1632-1704)


Retrato de John Locke por Kneller (Galeria Nacional de Retratos, Londres)


Retrato de Anthony Ashley Cooper, 1º conde de Shaftesbury - 1673
A filosofia de Locke é, indiscutivelmente, ponto importante na sistematização do empirismo, bem como do nexo dessa corrente com o liberalismo, do qual é a figura mais importante, tanto no pensamento inglês quanto em nível mundial. O nosso autor sistematizou os princípios básicos do que passaria a ser denominado de “filosofia liberal”. Fê-lo não como teórico distante do acontecer histórico, mas como ator que tomou parte decisiva na “Revolução Gloriosa” (1688) que, na Inglaterra, derrubou o absolutismo e deu ensejo às instituições do governo representativo e da monarquia parlamentar. Não é de estranhar que gerações de filósofos e políticos engajados na construção das instituições da democracia representativa passaram a se inspirar, doravante, em Locke. Ele próprio, como mostraremos nestas páginas, foi um doutrinário, no sentido conferido mais tarde por Royer-Collard (1763-1845) a esta expressão. Alguém que, com um pé na filosofia, encarou o compromisso histórico de pensar as instituições que garantiram, à Nação Inglesa, o exercício da liberdade.

Na retomada da tradição lockeana de lutar contra o absolutismo, pensadores posteriores partiram para efetivar a tarefa de desenhar, alicerçar teoricamente e pôr em funcionamento instituições liberais, num meio ameaçado pelo despotismo como era a França de início do século XIX. Tal foi o caso, certamente, de Benjamin Constant de Rebecque (1767-1830), de Madame de Staël (1766-1817), mas especialmente de estadistas do cunho de François Guizot (1787-1846) e Alexis de Tocqueville (1805-1859). Essa saga foi retomada, no contexto luso-brasileiro, por homens como Silvestre Pinheiro Ferreira (1769-1846), dom Pedro de Souza Holstein, duque de Palmela (1781-1850), Domingos Gonçalves de Magalhães (1811-1882), Hipólito da Costa (1774-1823), Paulino Soares de Sousa (1807-1866), etc.

Isso sem esquecer, claro, a influência decisiva de Locke no pensamento libertário dos “Patriarcas” construtores da independência americana, George Washington (1732-1799), Thomas Jefferson (1743-1826), James Madison (1751-1836), Alexander Hamilton (1755-1804), John Jay (1745-1829), Benjamin Franklin (1706-1790), Thomas Paine (1737-1809), etc. No terreno da filosofia política e do incipiente pensamento sociológico, a geração dos Iluministas franceses como Voltaire (1694-1778), Montesquieu (1689-1755) e Rousseau (1712-1778) encontrou, na obra de Locke, farto material de inspiração. Algo semelhante aconteceu no seio do Iluminismo alemão, sendo Immanuel Kant (1724-1804) a figura cimeira.

No contexto do pensamento político inglês que adotou o ideário liberal, Locke, certamente, foi a fonte de inspiração para filósofos como Jeremy Bentham (1748-1832) e John Stuart Mill (1806-1873). A luz libertária de Locke ins pirou, também, a ação reformista de William Gladstone (1809-1898) que garantiu a democratização do sufrágio.

A opção intelectual e existencial em prol da liberdade contra o despotismo teve, para Locke, um alto preço: o julgamento dos acadêmicos do seu tempo, que na trilha do culto ao absolutismo de Jaime II (1633-1701) o excluíram da Universidade. Mas a opção doutrinária produziu, na crítica à filosofia lockeana, um efeito curioso: passou a exigir uma hermenêutica não apenas do discurso teórico, mas pressupôs, também, uma interpretação deste a partir da dinâmica histórica de construção das instituições. Isto colocou o pensamento de Locke muito mais na trilha dos juízos dialéticos que Aristóteles (384-322 a.C.) considerava os únicos aptos a exprimir o comportamento humano no terreno político, bem como no caminho da realpolitik aberto por Maquiavel (1469-1527), no contexto do realismo aristotélico. Esse realismo, efetivamente, parte da necessidade de pensar as instituições possíveis do Estado e o seu funcionamento para garantir os direitos dos cidadãos. Locke, por sua vez, afastou-se, com essa posição, de Thomas Hobbes (1588-1679) e da sua teoria da lei natural, que imaginava não a política possível, mas a ideal.

Ilustrando essa feição teórico-prática do pensamento lockeano, frisou um dos seus mais importantes biógrafos contemporâneos, Peter Laslett (1915-2001): “(...) Locke não era um homem capaz de perder-se no ato dos feitos políticos ou mesmo da criação intelectual. Sua eficácia situava-se em outro patamar, num poder de fascinar os homens de ação; em seus últimos anos, ele usufruiu plenamente a influência diretora que tal eficiência lhe conferira” [1].

Nesta exposição, serão desenvolvidos nove itens: 1 – Origens familiares. 2 – Estudos e vida acadêmica em Oxford. 3 – Personalidade. 4 – Vida pública como assessor do 1º conde de Shaftesbury. 5 – Vida pública sob a proteção do conde de Pembroke. 6 – Vida pública como assessor de lorde Somers. 7 – Posição sócio-econômica. 8 – Últimos anos. 9 – Escritos de Locke.
Wrington - Somerset. A cidade onde nasceu John Locke

1 – Origens familiares.

O nosso autor nasceu em Wrington (Somerset, perto de Bristol), em 1632 e faleceu em Otes (na região de Essex), em seu gabinete de trabalho, em 1704. Os seus ancestrais, radicados no distrito de Somerset, no oeste da Inglaterra, filiavam-se a uma rede puritana de famílias vinculadas à tradição legalista que defendia a realeza. John Locke pai, cavalheiro de Belluton, advogado e escrivão do Tribunal de Justiça de Somerset, pertencia à pequena nobreza; tinha sido capitão das forças do Parlamento, alinhadas com os denominados “Cabeças Redondas”, seguidores de Oliver Cromwell (1599-1658) contra as tendências absolutistas do monarca Carlos I (1600-1649), de formação católica e pertencente à dinastia dos Estuardos. John Locke pai era, portanto, um defensor dos representantes dos proprietários no Parlamento, ao mesmo tempo em que reconhecia a tradição real inglesa. Essa tradição teria sido deformada por Carlos I e os seus cortesãos ou Cavaliers. Em 1661, o nosso autor herdou do pai a condição de fidalgo de Somerset, se tornando, por direito próprio, proprietário de terras, casas de fazenda e até mesmo de uma pequena mina em Mendip. Peter Laslett escreve a respeito da posição sócio-econômica do filósofo: “Embora jamais abandonasse a sua condição de acadêmico e homem independente, é muito importante o fato de John Locke ter sido sempre o representante titular de uma família inglesa terratenente” [2]. Mais adiante ampliaremos este aspecto.

2 - Estudos e vida acadêmica em Oxford.

Seguindo o costume das famílias fidalgas da época, o nosso autor ingressou, inicialmente, na Westminster School, onde passou seis anos e, depois, no Christ Church College da Universidade de Oxford, cujo diretor era John Owen (1616-1683), puritano independente à maneira de Cromwell que, ao contestar o stablishment anglicano, também se negava a endossar o autoritarismo presbiteriano, adotando, em matéria religiosa, uma atitude de tolerância para com as denominadas seitas. O nosso autor recebeu formação eclética, com destaque para a tendência empirista, característica da tradição filosófica inglesa.

Em Oxford, Locke galgou as etapas acadêmicas com desempenho satisfatório. Foi, nessa Universidade, sucessivamente, scholar (aluno subvencionado), student (aluno não-subvencionado), fellow (graduado que recebe subvenção para o desenvolvimento de estudos e pesquisas) e titular dos cargos docentes habituais. No final dos estudos humanísticos no College, apresentava-se ao jovem professor a possibilidade de optar pela função eclesiástica, a fim de permanecer na Universidade; no entanto, Locke não optou por essa alternativa, tendo escolhido a carreira de Medicina. Plenamente dedicado à vida acadêmica, às pesquisas e aos compromissos das funções públicas, o nosso autor permaneceu solteiro.

Nos seus estudos universitários, Locke recebeu várias influências doutrinárias, sendo as mais importantes: A - de John Owen que, como foi frisado, defendia a idéia da tolerância religiosa; B - de Descartes (1569-1650), que lhe abriu as portas da filosofia moderna na versão dominante no Continente Europeu; C - de Robert Boyle (1627-1691), que propunha o moderno conceito de elementos químicos, criticando a tradicional teoria dos quatro elementos; D - de Richard Hooker (1554-1600), cuja obra intitulada: The Laws of Ecclesiastical Polity (As Leis da Política Eclesiástica) sintetizava a tradição medieval inglesa ao redor da idéia de “controle moral ao poder”; E - de Thomas Hobbes, autor do clássico livro Leviatã, ou matéria, forma e poder de uma República eclesiástica e civil (1661) que o familiarizou com o conceito de “estado de natureza” e F - de Thomas Sydenham (1624-1689), que revolucionou o método de estudo da medicina, alicerçando-o na observação empírica dos pacientes, abandonando os dogmas de Galeno (130-200).

Ao ensejo das pesquisas em Oxford (ligadas ao estudo do que se denominava, então, de “filosofia natural”), Locke associou-se a Robert Boyle, tendo-se dedicado à botânica, o lado herbóreo dos estudos médicos, até obter o grau de Bacharel em Medicina. O nosso autor, no entanto, nunca chegou a se tornar doutor nessa especialidade. Mas continuou, dentro e fora da Universidade, dedicado às suas pesquisas em botânica médica. Em 1668 recebeu uma bolsa da Royal Society e trabalhou, em Londres, com Thomas Sydenham no estudo da varíola.

Locke permaneceu vinculado à Universidade de Oxford entre 1652 e 1684, ao longo de 32 anos. A vida acadêmica, enquadrada na velha tradição escolástica, frustrou-o. A respeito, frisa Peter Laslett: “Ele dava um nome aos debates nas escolas, o método então estabelecido de instrução e sabatinagem: chamava-o interrogatório de porcos, o corte laborioso de minúsculos pêlos da pele de animais vociferantes, que aparentemente não eram suínos, mas pequenos cordeiros. Locke odiava aquilo e fazia-o de mau grau; em certo sentido, todo o trabalho que desenvolveu na sua vida constituiu um protesto contra aquilo. Esta, afirmaria mais tarde, foi outra razão para se lançar ao estudo da medicina, que lhe facultava ficar à distância das escolas, e o mais longe possível de qualquer questão pública. (...)” [3].

O nosso autor relativizava, portanto, o tédio escolástico com as suas pesquisas médicas e com algumas incursões, também, no terreno da política, discutindo questões relativas à lei natural (nos primeiros escritos deixa transparecer a influência de Hobbes). Mas os seus interesses intelectuais eram bem mais amplos e o jovem professor ocupou-se, também, de estudos clássicos e refinados, incluindo a literatura francesa da época e as questões ligadas à política internacional. Neste terreno, teve algum sucesso. Foi convidado para participar de uma missão diplomática do governo britânico em Cleves, capital de Brandenburgo, em 1665. O sucesso que teve como secretário da missão, fez com que o ministério das relações exteriores lhe oferecesse missão semelhante em Madri. Mas o nosso autor declinou o convite e preferiu voltar às suas atividades acadêmicas. A respeito, escreve Peter Laslett: “(...) Aquele seria um bafejo do mundo de Maquiavel e poderia tê-lo convencido de ser dotado dos talentos e personalidade para outras atividades além do ensino, a prensagem de flores do Jardim Botânico da Universidade e o sistemático preenchimento de uma longa série de cadernos de anotações” [4].

Duas circunstâncias influíram definitivamente nos rumos da vida acadêmica de Locke: de um lado, o absolutismo de Jaime II (1633-1701) que passou a perseguir todos aqueles que apresentassem independência de pensamento na Universidade, por sentir que daí poderia provir um ataque ao poder pessoal; de outro lado, a antiquada burocracia que tomara conta dos destinos da Universidade e que se sentia ameaçada diante dos vôos intelectuais do ousado professor.

A respeito da perseguição real, que conduziu dramaticamente ao afastamento do nosso autor da Universidade, Peter Laslett descreve, da seguinte forma, o tenso ambiente inquisitorial que se apossou dos claustros acadêmicos: “A ordem régia para afastar Locke de sua carreira acadêmica, expedida em 1684, foi o primeiro passo contra as universidades no lance final dos Stuart em favor do governo pessoal (...). É terrível ver aqueles que se sentavam com ele à mesa agirem como agents provocateurs, mas é típico de Locke que nem sequer um piscar de olho pudesse ser usado contra ele. Meia geração mais tarde, os professores de Oxford causariam dano ainda maior à sua universidade ao recusarem admitir os livros de Locke em seu programa de ensino. Bem pouco podem Oxford e Christ Church reivindicá-lo com justiça como um dos seus, pois Locke já era uma autoridade em todo o mundo erudito quando essas instituições o reconheceram. Os últimos dias que passou entre eles ilustram, de forma dramática, o seu modo de portar-se. Em 21 de julho de 1683, a Universidade de Oxford ordenou, através de Convocação, a realização, no Pátio das Escolas, atualmente o Quadrilátero Bodleiano, da última queima de livros na história da Inglaterra. O decreto, afixado nas salas e bibliotecas das faculdades, anatematizava doutrina após doutrina já escrita nos Dois Tratados. Entre os autores condenados à fogueira estavam alguns cujos livros tinham lugar então nas prateleiras do aposento de Locke em Christ Church. Aparentemente, ele compareceu ao ato em pessoa, para assistir à acre fumaça elevando-se entre as torres, calado como sempre, e ocupado em despachar sua biblioteca para o campo. Algumas semanas mais tarde, com certeza havia partido de Oxford para a região campestre em que nascera, e no outono estava exilado na Holanda. Locke jamais pisaria novamente em Oxford” [5].

Quanto à perseguição de que Locke foi vítima por parte da própria burocracia universitária, Laslett frisa: “(...) Oxford o rejeitou. Na qualidade de instituição tradicionalista, desconfiava das posições políticas de Locke, e a originalidade que este imprimira a seu pensamento passou a ameaçar o currículo universitário. (...) Mas embora a pequena e fechada sociedade dos clérigos de Christ Church da década de 1680 não tenha sido efetivamente responsável pela expulsão da mais respeitada figura de seu seio, tampouco foi isenta de culpa na questão. O bom e erudito Dr. Fell [6], diretor da casa desde 1660 e alguém em quem Locke confiava, escreveu o seguinte para o Secretário de Estado: Sendo o dr. Locke um estudante desta casa (...) e suspeito de más intenções para com o governo, tenho-o, há vários anos, mantido sob vigilância (...)[7].

3 - Personalidade.

Longe estava o nosso autor de ser uma personalidade exclusivamente acadêmica. De outro lado, distava muito, também, do puro ativista político. Tímido por natureza e hipocondríaco, Locke estava possuído por uma ansiedade interior constante que o levara à convicção de que não chegaria à velhice. Quando partiu para a França em 1675, em missão oficial do Parlamento, tinha a certeza de que morreria de tuberculose pulmonar. Essa sua fraqueza interior, no entanto, não lhe impedia de descortinar novos caminhos, tanto no campo do conhecimento, quanto no terreno da ação, quando julgasse que isso seria necessário. A sua inteligência, aberta para a compreensão do mundo e das instituições políticas, pulsava mais alto que as limitações psicológicas e temperamentais.

Os traços pessoais apontados manifestaram-se, nos seus escritos, no seio de uma constante busca da perfeição. Estes deveriam, no sentir do nosso pensador, se ajustar completamente à realidade por ele experimentada e, no terreno político, às instituições por ele concebidas. Jamais estava contente com a última versão da sua obra, buscando, sempre, uma feição mais completa e alimentando, em relação aos livreiros e editores, uma costumeira animosidade. Completa-se este quadro com a tendência do nosso autor a manter anônima a parte central da sua produção, O Ensaio sobre o entendimento humano (1690) e os Dois tratados sobre o governo (1689-1690). Essa tendência enquadrava-se dentro dos traços de ansiedade que acabamos de mencionar: Locke temia, por motivos válidos, uma volta do absolutismo de Jaime II. Mas, de outro lado, buscava, como foi destacado, uma expressão o mais perfeita possível do seu pensamento.

Peter Laslett escreve a respeito das idas e vindas dos editores para atender às exigências do autor dos Dois tratados sobre o governo: “A segunda edição, de 1694, de fato um livrinho barato e grosseiro, vendido a um preço mínimo, resistiu por quatro anos, quando também se esgotou. Foi lançada então a reimpressão de qualidade superior, tal como exigira Locke, a terceira edição, de 1698. (...) Mas nem isso satisfez Locke, cujo padrão de perfeição aparentemente se situava acima dos recursos dos impressores de sua época. Essa terceira edição, de 1698, tinha seus defeitos, mas é difícil não perceber que o desespero manifestado em seu testamento acerca de todas as edições dessa obra se originava, na verdade, numa ansiedade interior acerca do que ele escrevera, ao se evidenciar que nenhuma versão correta o bastante para satisfazer sua meticulosidade seria impressa durante sua vida. Locke fez planos no sentido de garanti-lo para depois de sua morte. Corrigiu um exemplar da versão impressa nos mínimos detalhes, verificando minuciosamente palavra por palavra (...)” [8].

Timidez, ansiedades hipocondríacas, busca neurótica pela perfeição na obra escrita, nada disso, no entanto, fez do nosso autor uma personalidade agressiva ou alheia aos seus semelhantes. Numa feliz mistura de todas essas características, prevaleceu, no filósofo, o amor apaixonado pela verdade e a atitude de homem afável. Como frisa o crítico espanhol Luis Rodríguez Aranda, “(...) John Locke fué un hombre dulce, modesto y de buen sentido, cualidad esta última que, según algunos de sus contemporáneos, ganaba la simpatia de las personas a quienes trataba. En el retrato que hay de él en Christ Church, uno de los colegios más venerables de Oxford, aparece con un rostro enfermizo y delicado. Y, en efecto, su salud no fué nunca buena a lo largo de su vida” [9]
    
4 - Vida pública de Locke como assessor do primeiro conde de Shaftesbury (1666 a 1683).

Como personalidade pública, o nosso autor percorreu três etapas: de um lado, entre 1666 e 1683, como assessor e amigo de Anthony Ashley Cooper (1621-1683), primeiro conde de Shaftesbury. Em segundo lugar, entre 1683 e 1688, durante o exílio na Holanda, sob a proteção do conde Thomas Herbert Pembroke (1656-1733). Em terceiro lugar, entre 1694 e 1700, como confidente e assessor de John Somers (1651-1716), Lorde Chanceler e principal figura do governo.

Ilustremos, por enquanto, a relação entre Locke e Shaftesbury. A dedicação de Locke à medicina experimental colocou-o em contato com importante figura política, Anthony Ashley Cooper, lorde e primeiro conde de Shaftesbury que chefiava a reação parlamentar do Partido Whig contra o absolutismo de Jaime II. Em 1666, o conde, doente do fígado, procurou tratamento com ervas medicinais na Universidade de Oxford e Locke foi indicado para acompanhá-lo pelo médico do ilustre enfermo, o doutor David Thomas. Shaftesbury já tinha notícias do jovem professor de Oxford através de Bennet de Shaftesbury (representante do burgo no Parlamento e administrador dos bens do conde) e buscava entrar em contato com ele, pois precisava da ajuda de alguém familiarizado com o meio acadêmico. O tratamento herbóreo foi, a bem da verdade, o pretexto para efetivar o contato com o tímido professor, através do Doutor Thomas. Os cuidados do jovem praticante aliviaram o mal-estar do paciente. Numa recaída quase fatal, ele teve a presença de espírito de orientar uma cirurgia que salvou, de forma considerada miraculosa, a vida do conde. A partir daí, Locke passou a residir na residência oficial daquele em Londres, em Exeter House, mantendo, no entanto, o seu vínculo com a Universidade de Oxford.

Como Ministro das Finanças do Rei, o conde de Shaftesbury tornou Locke o seu secretário particular. Acerca desses fatos, escreve Peter Laslett: “A operação granjeou fama a Locke e mudou por completo o rumo de sua vida. Ashley estava convencido, e tinha boas razões para tal, de que devia a vida a Locke. Uma ligação iniciada de maneira casual e conduzida nos moldes convencionais da época - uma vez que não era incomum os grandes homens introduzirem figuras do calibre de Locke em suas famílias - converteu-se numa relação de trabalho que, para ambos os homens, englobava todos os propósitos. Tudo quanto estava ao alcance da influência política foi mobilizado para a promoção profissional de Locke no campo da medicina acadêmica; também foi provido financeiramente, muito embora sua obstinada independência obviamente impedisse Ashley de ir tão longe quanto desejaria. Locke ocupou diversos cargos como o de secretário da associação dos proprietários da colônia da Carolina, secretário da Junta comercial de Ashley, secretário do padroado eclesiástico quando Ashley, agora conde de Shaftesbury, tornou-se lorde chanceler, e nenhum deles conduziu à grande carreira política que poderia ter resultado dessa ligação” [10].

Como assessor de Shaftesbury e membro do Partido Whig o nosso autor passou, no exterior, dois importantes períodos da sua vida: na França, entre 1675 e 1679 e na Holanda, entre 1683 e 1689. No primeiro dos períodos mencionados, Locke teve oportunidade de se familiarizar com as linhas mestras do absolutismo que, em opúsculo escrito na época, denominou de “mal francês” (De morbo gallico, 1675), fazendo um irônico trocadilho, pois com essa denominação era conhecida a sífilis, na literatura médica da época. No segundo período, na Holanda, Locke acompanhou, no exílio, o seu mentor e protetor político, Shaftesbury, que faleceu em 1683, após ser libertado da arbitrária prisão a que Jaime II o condenara na Torre de Londres.

 Locke, de fato, passou a desenvolver os elementos teóricos que o seu protetor considerava necessários para o adequado encaminhamento das reformas que poriam fim ao absolutismo na Inglaterra, tanto no terreno do conhecimento, quanto no econômico, no educacional, no religioso e no político. A obra de John Locke praticamente foi escrita ao ensejo dessa parceria. As linhas mestras que compõem as duas principais obras do filósofo, o Ensaio sobre o entendimento humano e os Dois tratados sobre o governo, foram escritas ao longo do período de convivência dele com Shaftesbury. Ambas as obras seriam publicadas posteriormente, após a Gloriosa Revolução de 1688. Mas os delineamentos básicos delas consolidaram-se anteriormente, como frisamos, ao longo da década de 1670. A associação Shaftesbury-Locke constituiu uma dessas circunstâncias extraordinárias da história da cultura em que um talento teórico, de posse de sólida formação filosófica como Locke, foi motivado para altos vôos intelectuais por alguém, como lorde Shaftesbury, que tinha a atenção centrada na compreensão do processo histórico e na luta em prol de encetar na tradicional política inglesa, reformas essenciais que abririam os horizontes da sociedade britânica rumo à modernidade. Uma associação semelhante entre o gênio teórico e o prático, em terreno diferente porquanto circunscrita à cosmologia, encontramos na relação de Kepler (1571-1630) com Tycho Brahe (1546-1601).

Influiu Shaftesbury intelectualmente no nosso pensador? – É evidente que sim. Laslett deixa claro isso, mostrando a amplitude de horizontes de pensamento que se abriram para Locke ao ensejo dessa convivência: “(...) O relacionamento intelectual entre Locke e Shaftesbury na esfera da teoria política era, como se poderia esperar, exatamente o mesmo que existia em questões como a economia, a tolerância e assim por diante. O relacionamento com o conde voltou a atenção de Locke para as obras de Milton, Campanella, Adam Contzen, bem como para os defensores ingleses da não-resistência, como Heilen, Dudley Digges e Filmer. Alguns desses autores já eram de seu conhecimento e podemos acreditar que tenha lido, e louvado, a obra de Filmer já em 1659, embora fosse esta a primeira ocasião em que lhe informaram ser Filmer o autor. É patente que a companhia de Shaftesbury o levava a defrontar-se com questões que havia deliberadamente deixado de lado em Oxford. Quais eram as origens do poder político? Como deve ser analisado? Quais os seus limites? Quais são os direitos do povo?” [11].

Testemunho elucidativo da estreita colaboração entre Locke e Shaftesbury foi dado por um criado do segundo: “Sua Senhoria confiava-lhe regularmente todas as questões mais secretas que então se agitavam e, por meio dos freqüentes discursos de Sua Senhoria acerca de questões de Estado, religião, tolerância e comércio, o Sr. Locke adquiriu um prodigioso conhecimento dessas matérias. (...) Escreveu o seu Livro sobre o Entendimento Humano enquanto vivia com Sua Senhoria. (...)” [12]. Depoimento semelhante foi dado pelo neto de Shaftesbury, cuja educação foi confiada ao filósofo: “(...) O Sr. Locke cresceu de tal forma na estima do meu avô que, por mais apreço que lhe tivesse em medicina, não enxergava ele nisso senão a menor de suas habilidades. Encorajou-o, assim, a voltar suas faculdades intelectuais em outra direção. (...) Fez com que se dedicasse ao estudo das questões religiosas e civis do país em tudo o que se relacionasse às atividades de um ministro de Estado, tarefa na qual logrou tanto êxito que meu avô não tardou em empregá-lo como amigo ao qual consultava em todas as ocasiões dessa natureza (...). Quando meu avô abandonou a Corte e passou a correr perigo por essa razão, o Sr. Locke compartilhou com ele os riscos, tal como compartilhara antes as honras e as vantagens. Confiou a ele suas negociações mais secretas” [13].

Em que pese a influência recebida de Shaftesbury, Locke era perfeitamente consciente acerca da novidade que representava a sua filosofia, tanto no seio da tradição inglesa como em escala universal. Em carta escrita pouco antes de falecer, em 1703, dirigida a um parente, o reverendo Richard King, o nosso autor frisava: “Em parte alguma encontrei uma descrição mais clara da propriedade do que em um livro intitulado Dois tratados sobre o governo[14].

A respeito desta inusitada referência feita pelo autor à sua própria obra, Laslett escreve: “Esta observação foi feita por John Locke em 1703 (...). Deve ser raro um autor recomendar uma de suas próprias obras a um jovem cavalheiro ávido por adquirir um entendimento da constituição do governo e do real interesse do seu país. Mais raro ainda deve ser que um homem disposto a tanto – a incluir o seu próprio livro no panteão em que figuram a Política de Aristóteles e a Ecclesiastical Polity de Hooker – escreva como se a obra fosse de autoria de outra pessoa, de um desconhecido. Talvez seja algo ímpar na história, tratando-se de uma carta a um parente. Qual poderia ser o propósito de mascarar esse fato para um homem que provavelmente já o conhecia? Por estranho que possa parecer, tal declaração de Locke antecipa o julgamento da posteridade. Pouco tardaria para o reconhecimento universal de que os escritos de Locke acerca do Governo de fato pertenciam à mesma categoria que a Política de Aristóteles, e ainda o consideramos um livro que trata da propriedade, sobretudo nos últimos anos. Foi impresso mais de cem vezes desde que apareceu sua primeira edição, que traz no frontispício a data de 1690. Foi traduzido para o francês, alemão, italiano, russo, espanhol, sueco, norueguês, hebraico, árabe, japonês, hindi e provavelmente para outros idiomas também. É um clássico consagrado da teoria política e social; talvez não figure entre os mais proeminentes de todos, mas mostrou-se familiar a oito gerações de estudiosos da política no mundo todo e foi objeto de um extenso cânone de literatura crítica” [15].

Uma última observação acerca da relação Locke – Shaftesbury: ao ensejo do convívio com o seu protetor e amigo, o filósofo terminou consolidando o que seria o conjunto de praxes do gentil-homem na cultura britânica. Forma evidentemente nova de serem consagradas essas práticas em relação a uma cultura diferente, como a francesa. Ao passo que, no reino de Luís XIV, a liturgia do poder foi formatada no convívio entre nobres dependentes do favor real e o centro do poder em Versalhes, no caso inglês essas práticas foram consolidadas a partir da obra política de um nobre forte contestador do absolutismo, como Shaftesbury, e de um educador independente como Locke. Duas variantes bem diferentes da relação entre a nobreza e o centro do poder, como muito bem teve oportunidade de observar François Guizot na sua clássica obra História da civilização européia.[16]

5 - Vida pública de Locke sob a proteção do conde Thomas Herbert Pembroke (1656-1733), entre 1683 e 1688.

Morto Shaftesbury em 1683, compelido ao exílio na Holanda nesse mesmo ano e expulso da Universidade em 1684, o nosso autor teve de procurar outro protetor que lhe garantisse a segurança pessoal e a sobrevivência, ao longo desse incerto período que se estendeu até 1688. O seu patrono passou a ser o conde de Pembroke. Expressão dos temores de Locke em face da perseguição real e das acusações dos docentes de Oxford é a seguinte carta que dirigiu ao seu novo protetor, em dezembro de 1684: “Jamais pratiquei nenhum ato de insubordinação contra Sua Majestade ou o governo (...). Nunca pertenci a nenhum grupo de conspiradores ou de cabala. Fiz poucos conhecidos e com poucos convivi, numa residência a que tantos acorriam (...). Meu temperamento reservado (...) sempre buscou a tranqüilidade e não inspirou em mim outro desejo, outro anseio, que não o de passar silenciosamente por este mundo na companhia de alguns bons amigos e livros (...). Muitas vezes me espantei com o modo como vivi, e como, tendo eu a natureza que reconheço em mim, cheguei a tornar-me o autor de tantos panfletos; a única explicação que encontro é a de ter sido, entre toda a família de meu senhor, o que mais teve a oportunidade de haver sido crescido entre os livros (...). Afirmo solenemente aqui, na presença de Deus, que não sou o autor, não apenas de libelo algum, como tampouco de absolutamente nenhum panfleto ou tratado impressos, sejam estes bons, ruins ou indiferentes. A apreensão e as reservas que sempre nutri quanto a ter meus escritos publicados, mesmo em questões muito distantes de qualquer coisa difamatória ou sediciosa, é bastante conhecida por meus amigos” [17].

Ao amparo do conde Pembroke e com o falso nome de dr. Van der Linden o nosso autor passou, no seu exílio holandês, a tumultuada década de 1680. Foi um período de reflexão, de intensa atividade como divulgador de idéias e elaborador de esquemas governamentais, tudo feito à sombra do anonimato e em evidente contraste com as declarações feitas ao seu protetor, que acabam de ser citadas. As linhas mestras das suas duas principais obras, o Ensaio sobre o entendimento humano e os Dois tratados sobre o governo, foram ampliadas por Locke nesse período, tendo sido o esquema das mesmas traçado ainda em vida de Shaftesbury, na década anterior, como já foi frisado. O nosso autor redigiu no exílio, outrossim, no inverno de 1685-1686, a sua Carta sobre a tolerância, como refugiado clandestino na casa do doutor Egbert Veen [18]. A atitude aparentemente ambígua da carta citada do nosso pensador é explicável pelo seu temperamento tímido e reservado, pelos temores que o perseguiam e pela evidente agressividade do regime absolutista de Jaime II, que tinha posto a polícia política no encalço dos dissidentes refugiados na Holanda. Qualquer cuidado era pouco. Locke viveu, neste período, uma paradoxal vida pública clandestina.
Em que pese as dificuldades impostas pelo anonimato forçado na Holanda, o nosso autor não deixou de entrar em contato com os pensadores que, nesse país, tinham aprofundado acerca da tolerância, tema que, nesse período de intolerância de parte do absolutismo católico de Jaime II, lhe era caro demais. Na residência do doutor Veen o filósofo relacionou-se com os erasmistas e com os judeus refugiados. Consta que Locke leu as obras de Baruch Espinosa (1632-1706), em que pese as acusações de ateísmo levantadas contra este pensador, o que mostra a sua grande abertura mental. Entrou em contato, também, com os teólogos protestantes que aprofundaram no tema da tolerância religiosa, notadamente com Philippe de Limborch (1633-1712), professor de teologia no seminário dos Remonstrantes, que propugnavam, contra os calvinistas, por uma concepção aberta e tolerante do cristianismo. O nosso pensador já tinha, na França, conhecido o filósofo Pierre Bayle (1647-1706), sistemático defensor da tolerância religiosa e em matéria de opiniões científicas e filosóficas.

Locke terminou elaborando a sua própria versão moderada de tolerância, que excluía quatro tipos de pessoas e que respondia às necessidades de fundamentação das instituições inglesas. As pessoas a serem excluídas seriam, segundo frisa Raymond Kilibansky: “1 – As que professam um dogma oposto e contrário à sociedade humana ou aos bons costumes necessários para conservar a sociedade civil. 2 – As que atribuem aos fiéis, aos religiosos, aos ortodoxos, isto é, a si próprias, nos assuntos civis, algum privilégio e poder de que não goza o resto dos mortais, e que, por conseqüência, se arrogam o direito de ser intolerantes para com os que não partilham a sua fé. 3 – As que pertencem à igreja em que cada um passa ipso facto ao serviço e à obediência de um soberano estrangeiro; ao recusar-se assim a tolerar os católicos, Locke limita-se a seguir um argumento defendido antes dele por muitos escritores ingleses, como Milton[19] e Marvel[20]. 4 – Uma vez que a existência de Deus – verdade susceptível para ele de prova rigorosa – se considera como fundamento de toda conduta moral, segue-se que os que negam a existência de um poder divino não devem, de modo algum, ser tolerados; porque os ateus destroem necessariamente a base da permanência da sociedade humana” [21].
   
6 - Vida pública de Locke, como assessor de Lorde John Somers (1651-1716), no período compreendido entre 1688 e 1700.

Quanto em 1688 os Whigs conseguiram a almejada vitória contra Jaime II, o nosso autor emergiu da penumbra. A coroação de Guilherme III de Orange (1650-1702) e de sua esposa Maria (1662-1694), como monarcas constitucionais, abriu perspectivas alvissareiras para os defensores da liberdade. Aos poucos, a figura de Locke foi emergindo como a do filósofo da Gloriosa Revolução e o seu pensamento foi sendo considerado como a luz que iluminava os novos tempos. Locke assumiu o seu papel de animador da vida política inglesa como assessor de Somers.

A respeito da mudança na vida de Locke operada pela Revolução de 1688, escreve Laslett: “O ano de 1689 representou o grande climatério na vida de Locke. Em decorrência da Revolução, o obscuro exilado tornou-se um homem de influência política, com amigos poderosos em altas posições. A figura menor na República das Letras, espécie de jornalista na comunidade intelectual da Holanda, onde vivera, o multiplicador de notas e escritor de esboços, surgiu por fim como autor, inicialmente das Cartas sobre a tolerância e, mais tarde, dos Dois tratados sobre o governo, ambos impressos no outono daquele ano, porém ambos anônimos. Até que, em dezembro, o John Locke que assinava o prefácio do Ensaio sobre o entendimento humano se converteu, precisamente por aquele ato, no John Locke da história intelectual. Tornou-se, com isso, uma instituição nacional e uma influência internacional. Nos quinze anos que lhe restavam, tomou em suas mãos o eixo da vida intelectual inglesa, e com tal firmeza que terminaria por apontá-lo na direção por ele escolhida” [22].

Saído das sombras do anonimato, Locke foi de novo guindado às alturas do poder como outrora fizera Shaftesbury, agora pela mão de John Somers, Lorde Chanceler e a principal figura do governo de Guilherme III. Ao longo do período compreendido entre 1688 e 1700, o nosso autor ocupou altos cargos no governo britânico e se constituiu no eixo ao redor do qual Somers construiu a estrutura parlamentar que tornaria possíveis as amplas reformas empreendidas no interior do Estado.

Em 1689, Locke foi nomeado Comissário de Apelos. Em 1696, passou a integrar a Junta Comercial; nela, converteu-se no arquiteto do Sistema Colonial, bem como consultor em questões monetárias e no relativo à regulamentação de atividades civis como o exercício da imprensa livre. Mas a mais importante incumbência do nosso autor foi a de ter sedimentado uma maioria parlamentar identificada com a modernização do Estado, um grupo que, superando as conveniências puramente pessoais da política partidária, efetivava um grande consenso ao redor de temas vitais para a vida pública. Estudioso da vida parlamentar britânica do período, P. Kelly refere-se assim a esse grupo parlamentar, chamado de “O Colégio”, um clube que orbitava ao redor de Locke e de Somers e que se reunia regularmente em Londres: “O único exemplo conhecido de uma união entre políticos em nome de um conjunto de políticas racionalmente concebidas, um programa baseado não apenas no sentimento comum, mas em informações de caráter superior e em pensamento abstrato” [23]. Locke tinha conseguido a proeza de tornar realidade, pela primeira vez, um Partido moderno que não era bloco parlamentar, mas que se identificava programaticamente.

7 - Posição sócio-econômica de Locke.

Teria sido nosso autor um simples porta-voz da burguesia? Certamente não. Locke canalizou os ideais pelos quais lutava o Partido Whig, no sentido de ver desmontado o esquema do absolutismo dos Estuardos. Mas o nosso autor estava bem longe de ser um simples porta-voz dos burgueses. A sua atitude existencial era, fundamentalmente, a de um pensador que apresentava novos conceitos para compreender o processo histórico do seu tempo e que não se furtava a colaborar, como vimos, com os homens públicos, na tarefa de criar as instituições que garantissem o exercício da liberdade para os cidadãos.

Esclareçamos, contudo, que a sua situação econômica, ao longo dos anos de colaboração com Shaftesbury, melhorou significativamente. E que essa melhoria se deu sem que o nosso pensador abrisse mão das suas convicções calvinistas, numa valorização do ethos do trabalho que hoje nos impressionaria pela sua frieza e universalidade. Atitude que impressionou, de fato, aos detratores da pobreza que sofria, nas primeiras décadas do século XIX, a sexta parte da população britânica. Entre esses detratores encontravam-se, como é sabido, escritores como Charles Dickens (1812-1870) e pensadores sociais como Karl Marx (1818-1883). “(...) Quando se juntou a Shaftesbury - frisa Laslett - poder-se-ia dizer que passara da petite bourgeoisie para a haute bourgeoisie. Acompanhou seu próspero patrono em seus investimentos - na Companhia da África, na Companhia Lustring e, por fim, no Banco da Inglaterra -. Investia em hipotecas, emprestou dinheiro a juros aos amigos, para a conveniência destes, durante toda a sua vida, e, embora tenha declarado solenemente que nunca me atraiu a especulação na Bolsa, encontra-se, em suas cartas de 1700-1, um claro exemplo de especulação no mercado de valores da Antiga e da Nova Companhia das Índias Orientais. Em suas obras publicadas mostra-se um resoluto inimigo dos mendigos e dos indigentes ociosos, cuja existência se devia, considerava ele, ao afrouxamento da disciplina e à corrupção dos bons modos. Chegou mesmo a insinuar que uma família de trabalhadores não tinha o direito de admitir o ócio dos filhos após os três anos de idade” [24].

Mas, ao mesmo tempo, Locke professava uma acentuada desconfiança em face do comércio e dos comerciantes. Apoiou decididamente a recusa de Somers a permitir o controle da política econômica do país pelos comerciantes, quando estes fizeram a proposta de encetar nas mãos da Junta Comercial, em 1695, a formulação das políticas públicas no campo da economia. De outro lado, embora tivesse apoiado a criação do Banco da Inglaterra, tinha sérias desconfianças em face dos capitalistas que o haviam fundado. Embora fosse médico, não poderíamos identificar, nele, um representante da classe, pois fazia sérias críticas aos médicos que utilizavam a profissão como meio de enriquecimento. Compartilhava com Shaftesbury, de outro lado, o desdém pelos advogados. Locke, portanto, embora apreciasse os meios econômicos para viver com folga, estava muito distante de ser um membro do stablishment burocrático a serviço de mesquinhos interesses grupais. Agia, no espaço público, sem comprometer a sua inspiração básica: ser um homem de pensamento, definitivamente comprometido com a defesa da liberdade humana.

Talvez a melhor forma de situar Locke no contexto sócio-econômico da época seja inserindo-o na nascente classe média inglesa, não como representante político da mesma, mas como formulador (na qualidade de livre-pensador) dos ideais de liberdade. É o que sugere Laslett: “Pode-se dizer, todavia, que o Locke individualista era um indivíduo, o que o coloca numa posição social mais excepcional do que parece à primeira vista. A coisa notável nele era a sua liberdade em face dos compromissos: família, igreja, sociedade política, localidades. A liberdade em todos esses sentidos colocava-o diante de um dilema, o qual se pode observar em suas relações com Oxford e mesmo com a família de Otes (...). Locke era tão livre, no que se refere à solidariedade com o grupo governante, quanto um homem o poderia ser na época e, no entanto, não pertencia ao grupo dos governados; esta é a única definição inteligível de classe média em que se pode enquadrá-lo, e deixa de fora vários aspectos que a expressão parece implicar. Em última análise, a possibilidade de viver dessa forma efetivamente surgiu em função de transformações econômicas, mas apenas se pode atribuir a Locke o papel de porta-voz de tais transformações mediante o uso de todo um aparato de motivações inconscientes e de racionalizações. Uma ordem de indivíduos livres não é um grupo harmônico, não é um estrato coeso a promover, de fato, alguma transformação; nenhuma concepção simples de ideologia conseguirá relacionar o pensamento de Locke com a dinâmica social” [25].

Assim, a posição sócio-econômica de Locke deve ser interpretada não como fator determinístico do seu pensamento mas, apenas, como mais uma circunstância do mesmo (no sentido orteguiano). Laslett traduziu muito bem essa feição do pensamento lockeano nos seguintes termos: “Trata-se, tudo leva a crer, de um espírito que se preparou de início na academia, depois no centro mesmo do poder político e, ao fim de dois importantes períodos no exterior, na França e na Holanda, finalmente respondeu à Revolução de 1688-9 com uma obra sobre o governo” [26].

8 - Últimos anos de Locke.

Em meados de 1691, o nosso autor estabeleceu-se nos domínios de Sir Francis Masham (1646-1723), no pequeno solar deste em Otes, Essex, circundado de fossos e sob os delicados cuidados da esposa de Masham, Damaris (1658-1708), a amiga mais próxima de Locke. Ela foi a primeira mulher britânica a escrever sobre temas filosóficos (de inspiração neoplatônica), sendo uma das correspondentes de Gottfired Leibniz (1646-1716). É da autoria de Damaris a primeira biografia de Locke, escrita pouco depois da morte do filósofo[27]. Damaris Masham era filha de Ralph Cudworth (1617-1688) de Somerset, pensador de orientação neoplatônica, professor no Christ Church College.

Em Otes, a vinte milhas de Londres, o filósofo passou seus últimos e gloriosos anos, ao lado da sua biblioteca, acompanhado do seu criado e com as comodidades básicas, sem luxos, dispondo do seu próprio cavalo. Ocupava o tempo escrevendo e corrigindo as suas obras, mas, sobretudo, escrevendo cartas aos intelectuais, aos editores, aos especuladores da bolsa, aos políticos e aos funcionários da Coroa. Exercia, assim, uma influência decisiva. Durante o verão, o nosso autor transladava-se a Londres e continuava com os seus contatos no meio intelectual e político desde a sua residência na capital, em Lincoln’s Inn Fields.
Peter Laslett traçou o seguinte quadro acerca da morte do filósofo: “Locke morreu em 29 de outubro de 1704, em seu gabinete em Otes, um cômodo de paredes castanho-escuras gordurosas e de melancólico branco, as cores dos livros que haviam sido parte tão grande de sua vida. Está sepultado a grande distância de Oxford e de seus ancestrais em Somerset, numa companhia um tanto estranha, pois os Masham, que jazem por toda a sua volta em High Laver, foram tories e cortesãos na geração seguinte” [28]. Simbólica companhia que revela o quanto o pensamento lockeano contribuiu para modernizar as estruturas do Estado inglês, convertido definitivamente em instrumento da sociedade civil para garantir a “vida, honra e bens” de todos os cidadãos, sem distinções de partidos políticos, religião ou classes sociais.  

9 - Escritos de Locke.

As principais obras de Locke são as seguintes: Constituições fundamentais da Carolina (1669), Quatro cartas sobre a tolerância (1692), Ensaios sobre educação (1693), Dois tratados sobre o governo civil (1689-1690), e Ensaio sobre o entendimento humano (1690). O pensador, entretanto, legou à posteridade inúmeras obras de menor fôlego, nos campos mais variados da reflexão, o que manifesta a sua ampla curiosidade, bem como a seriedade com que encarou as responsabilidades políticas como administrador público e conselheiro dos líderes mais destacados na Inglaterra da sua época. Mencionemos algumas delas: Ensaios sobre a Lei da Natureza (1664), Ensaio sobre a tolerância (1667), De Morbo Gallico (O Mal Francês, 1675), Lex Naturae (Lei Natural, 1678), O crescimento das vinhas e dos olivais (1680), Sobre o dinheiro (1692 e 1695), Polêmica com Stillingfleet em defesa do Ensaio sobre o entendimento humano (1697 e 1699), Racionalidade do Cristianismo (1695), Defesas (1697), etc.

BIBLIOGRAFIA

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SILVA, Saulo Henrique Souza. A exterioridade do político e a interioridade da fé: Os fundamentos da tolerância em John Locke. Salvador-Bahia: Universidade Federal da Bahia, 2008, (dissertação de mestrado).






[1] LASLETT, Peter. “Introdução”. In: LOCKE, John. Dois tratados sobre o governo. (Tradução de Julio Fischer). São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 60.
[2] LASLETT, Peter. “Introdução”. In: LOCKE, John. Dois tratados sobre o governo. Ob. cit., p. 25.
[3] LASLETT, Peter. “Introdução”. In: LOCKE, John. Dois tratados sobre o governo, ob. cit., p. 31.
[4] LASLETT, Peter. “Introdução”. In: LOCKE, John. Dois tratados sobre o governo, ob. cit., p. 31-32.
[5] LASLETT, Peter. “Introdução”. In: LOCKE, John. Dois tratados sobre o governo, ob. cit., p. 33.
[6] John Fell (1625-1686), clérigo decano do Christ Church College, na época em que Locke ali estudou. Posteriormente foi sagrado bispo de Oxford.
[7] LASLETT, Peter. “Introdução”. In: LOCKE, John. Dois tratados sobre o governo, ob. cit., p. 32.
[8] LASLETT, Peter. “Introdução”, in: LOCKE, John, Dois tratados sobre o governo, ob. cit., p. 10.
[9] RODRÍGUEZ Aranda, Luis. “Introducción”. In: LOCKE, John, Ensayo sobre el gobierno civil, (tradução espanhola de Amando Lázaro Ros; introdução de Luis Rodríguez Aranda), Madrid: Aguilar, 1973, p. XI.
[10] LASLETT, Peter. “Introdução”. In: LOCKE, John. Dois tratados sobre o governo, ob. cit., p. 35-36.
[11] LASLETT, Peter. “Introdução”, in: LOCKE, John. Dois tratados sobre o governo, ob. cit., p. 47-48. Concluindo em relação à influência de Shaftesbury no pensamento de Locke, Laslett frisa: “(...) Temos aqui os dois, o estadista e o seu íntimo amigo médico e letrado, estimulando-se reciprocamente no tema mais abstrato de todos. Não foi o Locke catedrático de Oxford que se converteu em filósofo, mas o Locke confidente de um político eminente, mediante o contato com a vida política, social e intelectual de Londres à época da restauração” [LASLETT, Peter, “Introdução”, in: LOCKE, John, Dois tratados sobre o governo, ob. cit., p. 38].
[12] Cit. por LASLETT, Peter. “Introdução”, In: LOCKE, John. Dois tratados sobre o governo, ob. cit., p. 36.
[13] Apud LASLETT, Peter. “Introdução”. In: LOCKE, John, Dois tratados sobre o governo, ob. cit., p. 36-37. Destacando a novidade que representou o pensamento lockeano, situado na crista da onda da revolução burguesa inglesa, Laslett escreve: “No curso de seus setenta e dois anos, Locke viu o mundo em que vivia, seu mundo intelectual e científico, o mundo político e econômico se modificarem mais radical e velozmente do que qualquer um dos seus antepassados jamais presenciara, e, na Inglaterra, de forma mais marcante do que em qualquer outra parte” [LASLETT, “Introdução”, ob. cit., p. 21].
[14] Apud LASLETT, Peter. “Introdução”. In: LOCKE, John. Dois tratados sobre o governo, ob. cit., p. 1.
[15] LASLETT, Peter.  “Introdução”. In: LOCKE, John, Dois tratados sobre o governo, ob. cit., p. 1-2.
[16] Cf. GUIZOT, François. Histoire de la civilisation européenne. 8ª edição. Paris: Didier, 1864, capítulos XIII e XIV. Em relação à forma concreta em que se deu a consolidação das práticas do gentil-homem no contexto inglês, Peter Laslett escreve: “Locke sentava-se à mesa do capelão no salão de jantar meticulosamente regulamentado de Shaftesbury, lorde chanceler; era obrigado a caminhar penosamente pela lama para segurar aquele megalomaníaco endiabrado, quando saía de carruagem para alguma solenidade. Mas também tinha voz na decoração de suas residências, no desenho de seus jardins; educava os netos de seu amo nos moldes da aristocracia inglesa, aquela precisa e madura combinação do homem prático com a virtude estóica, moderação no expressar-se e um profundo respeito pela erudição. O ideal do gentil-homem inglês se mantém até hoje e é, em parte, uma invenção de Locke. Medrou de sua afeição por Shaftesbury” [LASLETT, Peter, “Introdução”, in: LOCKE, John, Dois tratados sobre o governo, ob. cit., p. 54].
[17] Cit. por LASLETT, in: “Introdução”, in: LOCKE, John, Dois tratados sobre o governo, ob. cit., p. 58-59.
[18] Cf. KLIBANSKY, Raymond. “Prefácio”, in: LOCKE, John. Carta sobre a tolerância. (Tradução de João da Silva Gama; prefácio de R. Klibansky; introdução de Raymond Polin; notas do Institut International de Philosophie – Paris e PUF), Lisboa: Edições 70, 1996, p. 11-35. Cf. a dissertação de mestrado Saulo Henrique Souza Silva, intitulada: A exterioridade do político e a interioridade da fé: os fundamentos da tolerância em John Locke. Salvador-Bahia: Universidade Federal da Bahia, 2008; trata-se de um dos estudos mais completos, feitos no Brasil, sobre o tema da tolerância em Locke.
[19] John Milton (1608-1674), autor do clássico Paraíso Perdido [edição eletrônica, em português, tradução de António José de Lima Leitão, in: http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/paraisoperdido.html ].
[20] Andrew Marvell (1621-1678), poeta.
[21] KILIBANSKY, Raymond. “Prefácio”, in: LOCKE, John. Carta sobre a tolerância. Ob. cit., p. 33-34.
[22] LASLETT, Peter. “Introdução”, in: LOCKE, John, Dois tratados sobre o governo, ob. cit., p.53-53.
[23] KELLY, P. The Economic Writings of John Locke, Dissertação, University of Cambridge, 1969, cit. por LASLETT, Peter, “Introdução”, in: LOCKE, John, Dois tratados sobre o governo, ob. cit., p. 56.
[24] LASLETT, Peter. “Introdução”. In: LOCKE, John, Dois tratados sobre o governo, ob. cit., p. 61-62.
[25] LASLETT, Peter. “Introdução”, in: LOCKE, John, Dois tratados sobre o governo, ob. cit., p. 63.
[26] LASLETT, Peter. “Introdução”, in: LOCKE, John, Dois tratados sobre o governo, ob. cit., p. 54.
[27] Cf. MASHAM, Damaris. Memoir of Locke. Amsterdam University Library, 1705.
[28] LASLETT, Peter. “Introdução”, in: LOCKE, John, Dois tratados sobre o governo, ob. cit., p. 60.