Retrato de John Locke por Kneller (Galeria Nacional de Retratos, Londres) |
Retrato de Anthony Ashley Cooper, 1º conde de Shaftesbury - 1673 |
Na retomada da tradição lockeana
de lutar contra o absolutismo, pensadores posteriores partiram para efetivar a
tarefa de desenhar, alicerçar teoricamente e pôr em funcionamento instituições
liberais, num meio ameaçado pelo despotismo como era a França de início do
século XIX. Tal foi o caso, certamente, de Benjamin Constant de Rebecque
(1767-1830), de Madame de Staël (1766-1817), mas especialmente de estadistas do
cunho de François Guizot (1787-1846) e Alexis de Tocqueville (1805-1859). Essa
saga foi retomada, no contexto luso-brasileiro, por homens como Silvestre
Pinheiro Ferreira (1769-1846), dom Pedro de Souza Holstein, duque de Palmela
(1781-1850), Domingos Gonçalves de Magalhães (1811-1882), Hipólito da Costa
(1774-1823), Paulino Soares de Sousa (1807-1866), etc.
Isso sem esquecer, claro, a
influência decisiva de Locke no pensamento libertário dos “Patriarcas”
construtores da independência americana, George Washington (1732-1799), Thomas
Jefferson (1743-1826), James Madison (1751-1836), Alexander Hamilton
(1755-1804), John Jay (1745-1829), Benjamin Franklin (1706-1790), Thomas Paine
(1737-1809), etc. No terreno da filosofia política e do incipiente pensamento
sociológico, a geração dos Iluministas franceses como Voltaire (1694-1778),
Montesquieu (1689-1755) e Rousseau (1712-1778) encontrou, na obra de Locke,
farto material de inspiração. Algo semelhante aconteceu no seio do Iluminismo
alemão, sendo Immanuel Kant (1724-1804) a figura cimeira.
No contexto do pensamento político inglês que adotou o ideário liberal, Locke, certamente, foi a fonte de inspiração para filósofos como Jeremy Bentham (1748-1832) e John Stuart Mill
(1806-1873). A luz libertária de Locke ins pirou, também, a ação reformista de
William Gladstone (1809-1898) que garantiu a democratização do sufrágio.
A opção intelectual e
existencial em prol da liberdade contra o despotismo teve, para Locke, um alto
preço: o julgamento dos acadêmicos do seu tempo, que na trilha do culto ao
absolutismo de Jaime II (1633-1701) o excluíram da Universidade. Mas a opção doutrinária produziu, na crítica à
filosofia lockeana, um efeito curioso: passou a exigir uma hermenêutica não
apenas do discurso teórico, mas pressupôs, também, uma interpretação deste a
partir da dinâmica histórica de construção das instituições. Isto colocou o
pensamento de Locke muito mais na trilha dos juízos dialéticos que Aristóteles (384-322 a.C.) considerava os
únicos aptos a exprimir o comportamento humano no terreno político, bem como no
caminho da realpolitik aberto por
Maquiavel (1469-1527), no contexto do realismo aristotélico. Esse realismo,
efetivamente, parte da necessidade de pensar as instituições possíveis do
Estado e o seu funcionamento para garantir os direitos dos cidadãos. Locke, por
sua vez, afastou-se, com essa posição, de Thomas Hobbes (1588-1679) e da sua
teoria da lei natural, que imaginava
não a política possível, mas a ideal.
Ilustrando essa feição
teórico-prática do pensamento lockeano, frisou um dos seus mais importantes
biógrafos contemporâneos, Peter Laslett (1915-2001): “(...) Locke não era um
homem capaz de perder-se no ato dos feitos políticos ou mesmo da criação
intelectual. Sua eficácia situava-se em outro patamar, num poder de fascinar os
homens de ação; em seus últimos anos, ele usufruiu plenamente a influência
diretora que tal eficiência lhe conferira” [1].
Nesta exposição, serão
desenvolvidos nove itens: 1 – Origens familiares. 2 – Estudos e vida acadêmica
em Oxford. 3 – Personalidade. 4 – Vida pública como assessor do 1º conde de
Shaftesbury. 5 – Vida pública sob a proteção do conde de Pembroke. 6 – Vida
pública como assessor de lorde Somers. 7 – Posição sócio-econômica. 8 – Últimos
anos. 9 – Escritos de Locke.
1 – Origens familiares.
O nosso autor nasceu em Wrington
(Somerset, perto de Bristol), em 1632 e faleceu em Otes (na região de Essex),
em seu gabinete de trabalho, em 1704. Os seus ancestrais, radicados no distrito
de Somerset, no oeste da Inglaterra, filiavam-se a uma rede puritana de
famílias vinculadas à tradição legalista que defendia a realeza. John Locke
pai, cavalheiro de Belluton, advogado e escrivão do Tribunal de Justiça de
Somerset, pertencia à pequena nobreza; tinha sido capitão das forças do
Parlamento, alinhadas com os denominados “Cabeças Redondas”, seguidores de
Oliver Cromwell (1599-1658) contra as tendências absolutistas do monarca Carlos
I (1600-1649), de formação católica e pertencente à dinastia dos Estuardos.
John Locke pai era, portanto, um defensor dos representantes dos proprietários
no Parlamento, ao mesmo tempo em que reconhecia a tradição real inglesa. Essa
tradição teria sido deformada por Carlos I e os seus cortesãos ou Cavaliers. Em 1661, o nosso autor herdou
do pai a condição de fidalgo de Somerset, se tornando, por direito próprio,
proprietário de terras, casas de fazenda e até mesmo de uma pequena mina em
Mendip. Peter Laslett escreve a respeito da posição sócio-econômica do
filósofo: “Embora jamais abandonasse a sua condição de acadêmico e homem
independente, é muito importante o fato de John Locke ter sido sempre o
representante titular de uma família inglesa terratenente” [2].
Mais adiante ampliaremos este aspecto.
2 - Estudos e vida acadêmica em Oxford.
Seguindo o costume das famílias
fidalgas da época, o nosso autor ingressou, inicialmente, na Westminster School, onde passou seis
anos e, depois, no Christ Church College
da Universidade de Oxford, cujo diretor era John Owen (1616-1683), puritano
independente à maneira de Cromwell que, ao contestar o stablishment anglicano, também se negava a endossar o autoritarismo
presbiteriano, adotando, em matéria religiosa, uma atitude de tolerância para
com as denominadas seitas. O nosso
autor recebeu formação eclética, com destaque para a tendência empirista,
característica da tradição filosófica inglesa.
Em Oxford, Locke galgou as
etapas acadêmicas com desempenho satisfatório. Foi, nessa Universidade,
sucessivamente, scholar (aluno
subvencionado), student (aluno
não-subvencionado), fellow (graduado
que recebe subvenção para o desenvolvimento de estudos e pesquisas) e titular dos cargos docentes habituais.
No final dos estudos humanísticos no College,
apresentava-se ao jovem professor a possibilidade de optar pela função
eclesiástica, a fim de permanecer na Universidade; no entanto, Locke não optou
por essa alternativa, tendo escolhido a carreira de Medicina. Plenamente
dedicado à vida acadêmica, às pesquisas e aos compromissos das funções
públicas, o nosso autor permaneceu solteiro.
Nos seus estudos universitários,
Locke recebeu várias influências doutrinárias, sendo as mais importantes: A - de John Owen que, como foi frisado,
defendia a idéia da tolerância religiosa; B
- de Descartes (1569-1650), que lhe abriu as portas da filosofia moderna na
versão dominante no Continente Europeu; C
- de Robert Boyle (1627-1691), que propunha o moderno conceito de elementos
químicos, criticando a tradicional teoria dos quatro elementos; D - de Richard Hooker (1554-1600), cuja
obra intitulada: The Laws of Ecclesiastical Polity (As Leis da Política Eclesiástica)
sintetizava a tradição medieval inglesa ao redor da idéia de “controle moral ao
poder”; E - de Thomas Hobbes, autor
do clássico livro Leviatã, ou matéria, forma e poder de uma República eclesiástica e
civil (1661) que o familiarizou com o conceito de “estado de natureza”
e F - de Thomas Sydenham
(1624-1689), que revolucionou o método de estudo da medicina, alicerçando-o na
observação empírica dos pacientes, abandonando os dogmas de Galeno (130-200).
Ao ensejo das pesquisas em
Oxford (ligadas ao estudo do que se denominava, então, de “filosofia natural”),
Locke associou-se a Robert Boyle, tendo-se dedicado à botânica, o lado herbóreo
dos estudos médicos, até obter o grau de Bacharel em Medicina. O nosso autor,
no entanto, nunca chegou a se tornar doutor nessa especialidade. Mas continuou,
dentro e fora da Universidade, dedicado às suas pesquisas em botânica médica.
Em 1668 recebeu uma bolsa da Royal
Society e trabalhou, em Londres, com Thomas Sydenham no estudo da varíola.
Locke permaneceu vinculado à
Universidade de Oxford entre 1652 e 1684, ao longo de 32 anos. A vida
acadêmica, enquadrada na velha tradição escolástica, frustrou-o. A respeito,
frisa Peter Laslett: “Ele dava um nome aos debates nas escolas, o método então
estabelecido de instrução e sabatinagem: chamava-o interrogatório de porcos, o corte laborioso de minúsculos pêlos da
pele de animais vociferantes, que aparentemente não eram suínos, mas pequenos
cordeiros. Locke odiava aquilo e fazia-o de mau grau; em certo sentido, todo o
trabalho que desenvolveu na sua vida constituiu um protesto contra aquilo.
Esta, afirmaria mais tarde, foi outra razão para se lançar ao estudo da
medicina, que lhe facultava ficar à distância das escolas, e o mais longe
possível de qualquer questão pública. (...)” [3].
O nosso autor relativizava,
portanto, o tédio escolástico com as suas pesquisas médicas e com algumas
incursões, também, no terreno da política, discutindo questões relativas à lei
natural (nos primeiros escritos deixa transparecer a influência de Hobbes). Mas
os seus interesses intelectuais eram bem mais amplos e o jovem professor
ocupou-se, também, de estudos clássicos e refinados, incluindo a literatura
francesa da época e as questões ligadas à política internacional. Neste
terreno, teve algum sucesso. Foi convidado para participar de uma missão
diplomática do governo britânico em Cleves, capital de Brandenburgo, em 1665. O
sucesso que teve como secretário da missão, fez com que o ministério das
relações exteriores lhe oferecesse missão semelhante em Madri. Mas o nosso
autor declinou o convite e preferiu voltar às suas atividades acadêmicas. A
respeito, escreve Peter Laslett: “(...) Aquele seria um bafejo do mundo de
Maquiavel e poderia tê-lo convencido de ser dotado dos talentos e personalidade
para outras atividades além do ensino, a prensagem de flores do Jardim Botânico
da Universidade e o sistemático preenchimento de uma longa série de cadernos de
anotações” [4].
Duas circunstâncias influíram
definitivamente nos rumos da vida acadêmica de Locke: de um lado, o absolutismo
de Jaime II (1633-1701) que passou a perseguir todos aqueles que apresentassem
independência de pensamento na Universidade, por sentir que daí poderia provir
um ataque ao poder pessoal; de outro lado, a antiquada burocracia que tomara
conta dos destinos da Universidade e que se sentia ameaçada diante dos vôos
intelectuais do ousado professor.
A respeito da perseguição real,
que conduziu dramaticamente ao afastamento do nosso autor da Universidade,
Peter Laslett descreve, da seguinte forma, o tenso ambiente inquisitorial que
se apossou dos claustros acadêmicos: “A ordem régia para afastar Locke de sua
carreira acadêmica, expedida em 1684, foi o primeiro passo contra as
universidades no lance final dos Stuart em favor do governo pessoal (...). É
terrível ver aqueles que se sentavam com ele à mesa agirem como agents provocateurs, mas é típico de
Locke que nem sequer um piscar de olho pudesse ser usado contra ele. Meia
geração mais tarde, os professores de Oxford causariam dano ainda maior à sua
universidade ao recusarem admitir os livros de Locke em seu programa de ensino.
Bem pouco podem Oxford e Christ Church
reivindicá-lo com justiça como um dos seus, pois Locke já era uma autoridade em
todo o mundo erudito quando essas instituições o reconheceram. Os últimos dias
que passou entre eles ilustram, de forma dramática, o seu modo de portar-se. Em
21 de julho de 1683, a Universidade de Oxford ordenou, através de Convocação, a
realização, no Pátio das Escolas, atualmente o Quadrilátero Bodleiano, da
última queima de livros na história da Inglaterra. O decreto, afixado nas salas
e bibliotecas das faculdades, anatematizava doutrina após doutrina já escrita
nos Dois
Tratados. Entre os autores condenados à fogueira estavam alguns cujos
livros tinham lugar então nas prateleiras do aposento de Locke em Christ Church. Aparentemente, ele
compareceu ao ato em pessoa, para assistir à acre fumaça elevando-se entre as
torres, calado como sempre, e ocupado em despachar sua biblioteca para o campo.
Algumas semanas mais tarde, com certeza havia partido de Oxford para a região
campestre em que nascera, e no outono estava exilado na Holanda. Locke jamais
pisaria novamente em Oxford” [5].
Quanto à perseguição de que
Locke foi vítima por parte da própria burocracia universitária, Laslett frisa:
“(...) Oxford o rejeitou. Na qualidade de instituição tradicionalista, desconfiava
das posições políticas de Locke, e a originalidade que este imprimira a seu
pensamento passou a ameaçar o currículo universitário. (...) Mas embora a
pequena e fechada sociedade dos clérigos de Christ
Church da década de 1680 não tenha sido efetivamente responsável pela
expulsão da mais respeitada figura de seu seio, tampouco foi isenta de culpa na
questão. O bom e erudito Dr. Fell [6],
diretor da casa desde 1660 e alguém em quem Locke confiava, escreveu o seguinte
para o Secretário de Estado: Sendo o dr.
Locke um estudante desta casa (...) e suspeito de más intenções para com o
governo, tenho-o, há vários anos, mantido sob vigilância (...)” [7].
3 - Personalidade.
Longe estava o nosso autor de
ser uma personalidade exclusivamente acadêmica. De outro lado, distava muito,
também, do puro ativista político. Tímido por natureza e hipocondríaco, Locke
estava possuído por uma ansiedade interior constante que o levara à convicção
de que não chegaria à velhice. Quando partiu para a França em 1675, em missão
oficial do Parlamento, tinha a certeza de que morreria de tuberculose pulmonar.
Essa sua fraqueza interior, no entanto, não lhe impedia de descortinar novos
caminhos, tanto no campo do conhecimento, quanto no terreno da ação, quando
julgasse que isso seria necessário. A sua inteligência, aberta para a
compreensão do mundo e das instituições políticas, pulsava mais alto que as
limitações psicológicas e temperamentais.
Os traços pessoais apontados
manifestaram-se, nos seus escritos, no seio de uma constante busca da
perfeição. Estes deveriam, no sentir do nosso pensador, se ajustar completamente
à realidade por ele experimentada e, no terreno político, às instituições por
ele concebidas. Jamais estava contente com a última versão da sua obra,
buscando, sempre, uma feição mais completa e alimentando, em relação aos
livreiros e editores, uma costumeira animosidade. Completa-se este quadro com a
tendência do nosso autor a manter anônima a parte central da sua produção, O
Ensaio sobre o entendimento humano (1690) e os Dois tratados sobre o governo
(1689-1690). Essa tendência enquadrava-se dentro dos traços de ansiedade
que acabamos de mencionar: Locke temia, por motivos válidos, uma volta do
absolutismo de Jaime II. Mas, de outro lado, buscava, como foi destacado, uma
expressão o mais perfeita possível do seu pensamento.
Peter Laslett escreve a respeito
das idas e vindas dos editores para atender às exigências do autor dos Dois
tratados sobre o governo: “A segunda edição, de 1694, de fato um
livrinho barato e grosseiro, vendido a um preço mínimo, resistiu por quatro
anos, quando também se esgotou. Foi lançada então a reimpressão de qualidade
superior, tal como exigira Locke, a terceira edição, de 1698. (...) Mas nem
isso satisfez Locke, cujo padrão de perfeição aparentemente se situava acima
dos recursos dos impressores de sua época. Essa terceira edição, de 1698, tinha
seus defeitos, mas é difícil não perceber que o desespero manifestado em seu
testamento acerca de todas as edições dessa obra se originava, na verdade, numa
ansiedade interior acerca do que ele escrevera, ao se evidenciar que nenhuma
versão correta o bastante para satisfazer sua meticulosidade seria impressa
durante sua vida. Locke fez planos no sentido de garanti-lo para depois de sua
morte. Corrigiu um exemplar da versão impressa nos mínimos detalhes,
verificando minuciosamente palavra por palavra (...)” [8].
Timidez, ansiedades
hipocondríacas, busca neurótica pela perfeição na obra escrita, nada disso, no
entanto, fez do nosso autor uma personalidade agressiva ou alheia aos seus
semelhantes. Numa feliz mistura de todas essas características, prevaleceu, no
filósofo, o amor apaixonado pela verdade e a atitude de homem afável. Como
frisa o crítico espanhol Luis Rodríguez Aranda, “(...) John Locke fué un hombre
dulce, modesto y de buen sentido, cualidad esta última que, según algunos de
sus contemporáneos, ganaba la simpatia de las personas a quienes trataba. En el
retrato que hay de él en Christ Church,
uno de los colegios más venerables de Oxford, aparece con un rostro enfermizo y
delicado. Y, en efecto, su salud no fué nunca buena a lo largo de su vida” [9].
4 - Vida pública de Locke como assessor do
primeiro conde de Shaftesbury (1666 a 1683).
Como personalidade pública, o
nosso autor percorreu três etapas: de um lado, entre 1666 e 1683, como assessor
e amigo de Anthony Ashley Cooper (1621-1683), primeiro conde de Shaftesbury. Em
segundo lugar, entre 1683 e 1688, durante o exílio na Holanda, sob a proteção
do conde Thomas Herbert Pembroke (1656-1733). Em terceiro lugar, entre 1694 e
1700, como confidente e assessor de John Somers (1651-1716), Lorde Chanceler e
principal figura do governo.
Ilustremos, por enquanto, a
relação entre Locke e Shaftesbury. A dedicação de Locke à medicina experimental
colocou-o em contato com importante figura política, Anthony Ashley Cooper,
lorde e primeiro conde de Shaftesbury que chefiava a reação parlamentar do
Partido Whig contra o absolutismo de
Jaime II. Em 1666, o conde, doente do fígado, procurou tratamento com ervas
medicinais na Universidade de Oxford e Locke foi indicado para acompanhá-lo
pelo médico do ilustre enfermo, o doutor David Thomas. Shaftesbury já tinha
notícias do jovem professor de Oxford através de Bennet de Shaftesbury
(representante do burgo no Parlamento e administrador dos bens do conde) e
buscava entrar em contato com ele, pois precisava da ajuda de alguém
familiarizado com o meio acadêmico. O tratamento herbóreo foi, a bem da
verdade, o pretexto para efetivar o contato com o tímido professor, através do
Doutor Thomas. Os cuidados do jovem praticante aliviaram o mal-estar do
paciente. Numa recaída quase fatal, ele teve a presença de espírito de orientar
uma cirurgia que salvou, de forma considerada miraculosa, a vida do conde. A
partir daí, Locke passou a residir na residência oficial daquele em Londres, em
Exeter House, mantendo, no entanto, o
seu vínculo com a Universidade de Oxford.
Como Ministro das Finanças do
Rei, o conde de Shaftesbury tornou Locke o seu secretário particular. Acerca
desses fatos, escreve Peter Laslett: “A operação granjeou fama a Locke e mudou
por completo o rumo de sua vida. Ashley estava convencido, e tinha boas razões
para tal, de que devia a vida a Locke. Uma ligação iniciada de maneira casual e
conduzida nos moldes convencionais da época - uma vez que não era incomum os
grandes homens introduzirem figuras do calibre de Locke em suas famílias -
converteu-se numa relação de trabalho que, para ambos os homens, englobava
todos os propósitos. Tudo quanto estava ao alcance da influência política foi
mobilizado para a promoção profissional de Locke no campo da medicina
acadêmica; também foi provido financeiramente, muito embora sua obstinada
independência obviamente impedisse Ashley de ir tão longe quanto desejaria.
Locke ocupou diversos cargos como o de secretário da associação dos
proprietários da colônia da Carolina, secretário da Junta comercial de Ashley,
secretário do padroado eclesiástico quando Ashley, agora conde de Shaftesbury,
tornou-se lorde chanceler, e nenhum deles conduziu à grande carreira política
que poderia ter resultado dessa ligação” [10].
Como assessor de Shaftesbury e
membro do Partido Whig o nosso autor
passou, no exterior, dois importantes períodos da sua vida: na França, entre
1675 e 1679 e na Holanda, entre 1683 e 1689. No primeiro dos períodos
mencionados, Locke teve oportunidade de se familiarizar com as linhas mestras
do absolutismo que, em opúsculo escrito na época, denominou de “mal francês” (De
morbo gallico, 1675), fazendo um irônico trocadilho, pois com essa
denominação era conhecida a sífilis, na literatura médica da época. No segundo
período, na Holanda, Locke acompanhou, no exílio, o seu mentor e protetor
político, Shaftesbury, que faleceu em 1683, após ser libertado da arbitrária
prisão a que Jaime II o condenara na Torre de Londres.
Locke, de fato, passou a desenvolver os
elementos teóricos que o seu protetor considerava necessários para o adequado
encaminhamento das reformas que poriam fim ao absolutismo na Inglaterra, tanto
no terreno do conhecimento, quanto no econômico, no educacional, no religioso e
no político. A obra de John Locke praticamente foi escrita ao ensejo dessa
parceria. As linhas mestras que compõem as duas principais obras do filósofo, o
Ensaio
sobre o entendimento humano e os Dois tratados sobre o governo, foram
escritas ao longo do período de convivência dele com Shaftesbury. Ambas as
obras seriam publicadas posteriormente, após a Gloriosa Revolução de 1688. Mas
os delineamentos básicos delas consolidaram-se anteriormente, como frisamos, ao
longo da década de 1670. A associação Shaftesbury-Locke constituiu uma dessas
circunstâncias extraordinárias da história da cultura em que um talento
teórico, de posse de sólida formação filosófica como Locke, foi motivado para
altos vôos intelectuais por alguém, como lorde Shaftesbury, que tinha a atenção
centrada na compreensão do processo histórico e na luta em prol de encetar na
tradicional política inglesa, reformas essenciais que abririam os horizontes da
sociedade britânica rumo à modernidade. Uma associação semelhante entre o gênio
teórico e o prático, em terreno diferente porquanto circunscrita à cosmologia,
encontramos na relação de Kepler (1571-1630) com Tycho Brahe (1546-1601).
Influiu Shaftesbury
intelectualmente no nosso pensador? – É evidente que sim. Laslett deixa claro
isso, mostrando a amplitude de horizontes de pensamento que se abriram para
Locke ao ensejo dessa convivência: “(...) O relacionamento intelectual entre
Locke e Shaftesbury na esfera da teoria política era, como se poderia esperar,
exatamente o mesmo que existia em questões como a economia, a tolerância e
assim por diante. O relacionamento com o conde voltou a atenção de Locke para
as obras de Milton, Campanella, Adam Contzen, bem como para os defensores
ingleses da não-resistência, como Heilen, Dudley Digges e Filmer. Alguns desses
autores já eram de seu conhecimento e podemos acreditar que tenha lido, e
louvado, a obra de Filmer já em 1659, embora fosse esta a primeira ocasião em
que lhe informaram ser Filmer o autor. É patente que a companhia de Shaftesbury
o levava a defrontar-se com questões que havia deliberadamente deixado de lado
em Oxford. Quais eram as origens do poder político? Como deve ser analisado?
Quais os seus limites? Quais são os direitos do povo?” [11].
Testemunho elucidativo da
estreita colaboração entre Locke e Shaftesbury foi dado por um criado do
segundo: “Sua Senhoria confiava-lhe regularmente todas as questões mais
secretas que então se agitavam e, por meio dos freqüentes discursos de Sua
Senhoria acerca de questões de Estado, religião, tolerância e comércio, o Sr.
Locke adquiriu um prodigioso conhecimento dessas matérias. (...) Escreveu o seu
Livro
sobre o Entendimento Humano enquanto vivia com Sua Senhoria. (...)” [12].
Depoimento semelhante foi dado pelo neto de Shaftesbury, cuja educação foi
confiada ao filósofo: “(...) O Sr. Locke cresceu de tal forma na estima do meu
avô que, por mais apreço que lhe tivesse em medicina, não enxergava ele nisso
senão a menor de suas habilidades. Encorajou-o, assim, a voltar suas faculdades
intelectuais em outra direção. (...) Fez com que se dedicasse ao estudo das
questões religiosas e civis do país em tudo o que se relacionasse às atividades
de um ministro de Estado, tarefa na qual logrou tanto êxito que meu avô não tardou
em empregá-lo como amigo ao qual consultava em todas as ocasiões dessa natureza
(...). Quando meu avô abandonou a Corte e passou a correr perigo por essa
razão, o Sr. Locke compartilhou com ele os riscos, tal como compartilhara antes
as honras e as vantagens. Confiou a ele suas negociações mais secretas” [13].
Em que pese a influência
recebida de Shaftesbury, Locke era perfeitamente consciente acerca da novidade
que representava a sua filosofia, tanto no seio da tradição inglesa como em
escala universal. Em carta escrita pouco antes de falecer, em 1703, dirigida a
um parente, o reverendo Richard King, o nosso autor frisava: “Em parte alguma
encontrei uma descrição mais clara da propriedade
do que em um livro intitulado Dois tratados sobre o governo” [14].
A respeito desta inusitada
referência feita pelo autor à sua própria obra, Laslett escreve: “Esta
observação foi feita por John Locke em 1703 (...). Deve ser raro um autor
recomendar uma de suas próprias obras a um jovem cavalheiro ávido por adquirir
um entendimento da constituição do governo e do real interesse do seu país.
Mais raro ainda deve ser que um homem disposto a tanto – a incluir o seu
próprio livro no panteão em que figuram a Política de Aristóteles e a Ecclesiastical
Polity de Hooker – escreva como se a obra fosse de autoria de outra
pessoa, de um desconhecido. Talvez seja algo ímpar na história, tratando-se de
uma carta a um parente. Qual poderia ser o propósito de mascarar esse fato para
um homem que provavelmente já o conhecia? Por estranho que possa parecer, tal
declaração de Locke antecipa o julgamento da posteridade. Pouco tardaria para o
reconhecimento universal de que os escritos de Locke acerca do Governo
de fato pertenciam à mesma categoria que a Política de Aristóteles, e ainda o
consideramos um livro que trata da propriedade, sobretudo nos últimos anos. Foi
impresso mais de cem vezes desde que apareceu sua primeira edição, que traz no
frontispício a data de 1690. Foi traduzido para o francês, alemão, italiano,
russo, espanhol, sueco, norueguês, hebraico, árabe, japonês, hindi e
provavelmente para outros idiomas também. É um clássico consagrado da teoria
política e social; talvez não figure entre os mais proeminentes de todos, mas
mostrou-se familiar a oito gerações de estudiosos da política no mundo todo e
foi objeto de um extenso cânone de literatura crítica” [15].
Uma última observação acerca da
relação Locke – Shaftesbury: ao ensejo do convívio com o seu protetor e amigo,
o filósofo terminou consolidando o que seria o conjunto de praxes do
gentil-homem na cultura britânica. Forma evidentemente nova de serem
consagradas essas práticas em relação a uma cultura diferente, como a francesa.
Ao passo que, no reino de Luís XIV, a liturgia do poder foi formatada no
convívio entre nobres dependentes do favor real e o centro do poder em
Versalhes, no caso inglês essas práticas foram consolidadas a partir da obra
política de um nobre forte contestador do absolutismo, como Shaftesbury, e de
um educador independente como Locke. Duas variantes bem diferentes da relação
entre a nobreza e o centro do poder, como muito bem teve oportunidade de
observar François Guizot na sua clássica obra História da civilização européia.[16]
5 - Vida pública de Locke sob a proteção do
conde Thomas Herbert Pembroke (1656-1733), entre 1683 e 1688.
Morto Shaftesbury em 1683, compelido
ao exílio na Holanda nesse mesmo ano e expulso da Universidade em 1684, o nosso
autor teve de procurar outro protetor que lhe garantisse a segurança pessoal e
a sobrevivência, ao longo desse incerto período que se estendeu até 1688. O seu
patrono passou a ser o conde de Pembroke. Expressão dos temores de Locke em
face da perseguição real e das acusações dos docentes de Oxford é a seguinte
carta que dirigiu ao seu novo protetor, em dezembro de 1684: “Jamais pratiquei
nenhum ato de insubordinação contra Sua Majestade ou o governo (...). Nunca
pertenci a nenhum grupo de conspiradores ou de cabala. Fiz poucos conhecidos e
com poucos convivi, numa residência a que tantos acorriam (...). Meu
temperamento reservado (...) sempre buscou a tranqüilidade e não inspirou em
mim outro desejo, outro anseio, que não o de passar silenciosamente por este
mundo na companhia de alguns bons amigos e livros (...). Muitas vezes me
espantei com o modo como vivi, e como, tendo eu a natureza que reconheço em
mim, cheguei a tornar-me o autor de tantos panfletos; a única explicação que
encontro é a de ter sido, entre toda a família de meu senhor, o que mais teve a
oportunidade de haver sido crescido entre os livros (...). Afirmo solenemente
aqui, na presença de Deus, que não sou o autor, não apenas de libelo algum,
como tampouco de absolutamente nenhum panfleto ou tratado impressos, sejam
estes bons, ruins ou indiferentes. A apreensão e as reservas que sempre nutri
quanto a ter meus escritos publicados, mesmo em questões muito distantes de
qualquer coisa difamatória ou sediciosa, é bastante conhecida por meus amigos” [17].
Ao amparo do conde Pembroke e
com o falso nome de dr. Van der Linden
o nosso autor passou, no seu exílio holandês, a tumultuada década de 1680. Foi
um período de reflexão, de intensa atividade como divulgador de idéias e
elaborador de esquemas governamentais, tudo feito à sombra do anonimato e em
evidente contraste com as declarações feitas ao seu protetor, que acabam de ser
citadas. As linhas mestras das suas duas principais obras, o Ensaio
sobre o entendimento humano e os Dois tratados sobre o governo, foram
ampliadas por Locke nesse período, tendo sido o esquema das mesmas traçado
ainda em vida de Shaftesbury, na década anterior, como já foi frisado. O nosso
autor redigiu no exílio, outrossim, no inverno de 1685-1686, a sua Carta
sobre a tolerância, como refugiado clandestino na casa do doutor Egbert
Veen [18].
A atitude aparentemente ambígua da carta citada do nosso pensador é explicável
pelo seu temperamento tímido e reservado, pelos temores que o perseguiam e pela
evidente agressividade do regime absolutista de Jaime II, que tinha posto a
polícia política no encalço dos dissidentes refugiados na Holanda. Qualquer cuidado
era pouco. Locke viveu, neste período, uma paradoxal vida pública clandestina.
Em que pese as dificuldades
impostas pelo anonimato forçado na Holanda, o nosso autor não deixou de entrar
em contato com os pensadores que, nesse país, tinham aprofundado acerca da
tolerância, tema que, nesse período de intolerância de parte do absolutismo
católico de Jaime II, lhe era caro demais. Na residência do doutor Veen o filósofo
relacionou-se com os erasmistas e com os judeus refugiados. Consta que Locke
leu as obras de Baruch Espinosa (1632-1706), em que pese as acusações de
ateísmo levantadas contra este pensador, o que mostra a sua grande abertura
mental. Entrou em contato, também, com os teólogos protestantes que
aprofundaram no tema da tolerância religiosa, notadamente com Philippe de
Limborch (1633-1712), professor de teologia no seminário dos Remonstrantes, que propugnavam, contra
os calvinistas, por uma concepção aberta e tolerante do cristianismo. O nosso
pensador já tinha, na França, conhecido o filósofo Pierre Bayle (1647-1706),
sistemático defensor da tolerância religiosa e em matéria de opiniões
científicas e filosóficas.
Locke terminou elaborando a sua
própria versão moderada de tolerância, que excluía quatro tipos de pessoas e
que respondia às necessidades de fundamentação das instituições inglesas. As
pessoas a serem excluídas seriam, segundo frisa Raymond Kilibansky: “1 – As que
professam um dogma oposto e contrário à
sociedade humana ou aos bons costumes necessários para conservar a sociedade
civil. 2 – As que atribuem aos fiéis,
aos religiosos, aos ortodoxos, isto é, a si próprias, nos assuntos civis, algum
privilégio e poder de que não goza o resto dos mortais, e que, por
conseqüência, se arrogam o direito de ser intolerantes para com os que não partilham
a sua fé. 3 – As que pertencem à igreja
em que cada um passa ipso facto ao serviço e à obediência de um soberano
estrangeiro; ao recusar-se assim a tolerar os católicos, Locke limita-se a
seguir um argumento defendido antes dele por muitos escritores ingleses, como
Milton[19]
e Marvel[20].
4 – Uma vez que a existência de Deus – verdade susceptível para ele de prova
rigorosa – se considera como fundamento de toda conduta moral, segue-se que os que negam a existência de um poder divino
não devem, de modo algum, ser tolerados; porque os ateus destroem
necessariamente a base da permanência da sociedade humana” [21].
6 - Vida pública de Locke, como assessor de
Lorde John Somers (1651-1716), no período compreendido entre 1688 e 1700.
Quanto em 1688 os Whigs conseguiram a almejada vitória
contra Jaime II, o nosso autor emergiu da penumbra. A coroação de Guilherme III
de Orange (1650-1702) e de sua esposa Maria (1662-1694), como monarcas
constitucionais, abriu perspectivas alvissareiras para os defensores da liberdade.
Aos poucos, a figura de Locke foi emergindo como a do filósofo da Gloriosa
Revolução e o seu pensamento foi sendo considerado como a luz que iluminava os
novos tempos. Locke assumiu o seu papel de animador da vida política inglesa
como assessor de Somers.
A respeito da mudança na vida de
Locke operada pela Revolução de 1688, escreve Laslett: “O ano de 1689
representou o grande climatério na vida de Locke. Em decorrência da Revolução,
o obscuro exilado tornou-se um homem de influência política, com amigos
poderosos em altas posições. A figura menor na República das Letras, espécie de
jornalista na comunidade intelectual da Holanda, onde vivera, o multiplicador
de notas e escritor de esboços, surgiu por fim como autor, inicialmente das Cartas
sobre a tolerância e, mais tarde, dos Dois tratados sobre o governo,
ambos impressos no outono daquele ano, porém ambos anônimos. Até que, em
dezembro, o John Locke que assinava o prefácio do Ensaio sobre o entendimento
humano se converteu, precisamente por aquele ato, no John Locke da
história intelectual. Tornou-se, com isso, uma instituição nacional e uma
influência internacional. Nos quinze anos que lhe restavam, tomou em suas mãos
o eixo da vida intelectual inglesa, e com tal firmeza que terminaria por
apontá-lo na direção por ele escolhida” [22].
Saído das sombras do anonimato,
Locke foi de novo guindado às alturas do poder como outrora fizera Shaftesbury,
agora pela mão de John Somers, Lorde Chanceler e a principal figura do governo
de Guilherme III. Ao longo do período compreendido entre 1688 e 1700, o nosso
autor ocupou altos cargos no governo britânico e se constituiu no eixo ao redor
do qual Somers construiu a estrutura parlamentar que tornaria possíveis as
amplas reformas empreendidas no interior do Estado.
Em 1689, Locke foi nomeado
Comissário de Apelos. Em 1696, passou a integrar a Junta Comercial; nela,
converteu-se no arquiteto do Sistema Colonial, bem como consultor em questões
monetárias e no relativo à regulamentação de atividades civis como o exercício da
imprensa livre. Mas a mais importante incumbência do nosso autor foi a de ter
sedimentado uma maioria parlamentar identificada com a modernização do Estado,
um grupo que, superando as conveniências puramente pessoais da política
partidária, efetivava um grande consenso ao redor de temas vitais para a vida
pública. Estudioso da vida parlamentar britânica do período, P. Kelly refere-se
assim a esse grupo parlamentar, chamado de “O Colégio”, um clube que orbitava
ao redor de Locke e de Somers e que se reunia regularmente em Londres: “O único
exemplo conhecido de uma união entre políticos em nome de um conjunto de
políticas racionalmente concebidas, um programa baseado não apenas no
sentimento comum, mas em informações de caráter superior e em pensamento abstrato”
[23].
Locke tinha conseguido a proeza de tornar realidade, pela primeira vez, um
Partido moderno que não era bloco parlamentar, mas que se identificava
programaticamente.
7 - Posição sócio-econômica de Locke.
Teria sido nosso autor um
simples porta-voz da burguesia? Certamente não. Locke canalizou os ideais pelos
quais lutava o Partido Whig, no
sentido de ver desmontado o esquema do absolutismo dos Estuardos. Mas o nosso
autor estava bem longe de ser um simples porta-voz dos burgueses. A sua atitude
existencial era, fundamentalmente, a de um pensador que apresentava novos
conceitos para compreender o processo histórico do seu tempo e que não se
furtava a colaborar, como vimos, com os homens públicos, na tarefa de criar as
instituições que garantissem o exercício da liberdade para os cidadãos.
Esclareçamos, contudo, que a sua
situação econômica, ao longo dos anos de colaboração com Shaftesbury, melhorou
significativamente. E que essa melhoria se deu sem que o nosso pensador abrisse
mão das suas convicções calvinistas, numa valorização do ethos do trabalho que hoje nos impressionaria pela sua frieza e
universalidade. Atitude que impressionou, de fato, aos detratores da pobreza
que sofria, nas primeiras décadas do século XIX, a sexta parte da população
britânica. Entre esses detratores encontravam-se, como é sabido, escritores
como Charles Dickens (1812-1870) e pensadores sociais como Karl Marx
(1818-1883). “(...) Quando se juntou a Shaftesbury - frisa Laslett -
poder-se-ia dizer que passara da petite
bourgeoisie para a haute bourgeoisie.
Acompanhou seu próspero patrono em seus investimentos - na Companhia da África,
na Companhia Lustring e, por fim, no Banco da Inglaterra -. Investia em
hipotecas, emprestou dinheiro a juros aos amigos, para a conveniência destes,
durante toda a sua vida, e, embora tenha declarado solenemente que nunca me atraiu a especulação na Bolsa, encontra-se,
em suas cartas de 1700-1, um claro exemplo de especulação no mercado de valores
da Antiga e da Nova Companhia das Índias Orientais. Em suas obras publicadas
mostra-se um resoluto inimigo dos mendigos
e dos indigentes ociosos, cuja existência se devia, considerava ele, ao
afrouxamento da disciplina e à corrupção dos bons modos. Chegou mesmo a
insinuar que uma família de trabalhadores não tinha o direito de admitir o ócio
dos filhos após os três anos de idade” [24].
Mas, ao mesmo tempo, Locke
professava uma acentuada desconfiança em face do comércio e dos comerciantes.
Apoiou decididamente a recusa de Somers a permitir o controle da política econômica
do país pelos comerciantes, quando estes fizeram a proposta de encetar nas mãos
da Junta Comercial, em 1695, a formulação das políticas públicas no campo da
economia. De outro lado, embora tivesse apoiado a criação do Banco da
Inglaterra, tinha sérias desconfianças em face dos capitalistas que o haviam
fundado. Embora fosse médico, não poderíamos identificar, nele, um
representante da classe, pois fazia sérias críticas aos médicos que utilizavam
a profissão como meio de enriquecimento. Compartilhava com Shaftesbury, de
outro lado, o desdém pelos advogados. Locke, portanto, embora apreciasse os
meios econômicos para viver com folga, estava muito distante de ser um membro
do stablishment burocrático a serviço
de mesquinhos interesses grupais. Agia, no espaço público, sem comprometer a
sua inspiração básica: ser um homem de pensamento, definitivamente comprometido
com a defesa da liberdade humana.
Talvez a melhor forma de situar
Locke no contexto sócio-econômico da época seja inserindo-o na nascente classe
média inglesa, não como representante político da mesma, mas como formulador
(na qualidade de livre-pensador) dos ideais de liberdade. É o que sugere
Laslett: “Pode-se dizer, todavia, que o Locke individualista era um indivíduo,
o que o coloca numa posição social mais excepcional do que parece à primeira
vista. A coisa notável nele era a sua liberdade em face dos compromissos:
família, igreja, sociedade política, localidades. A liberdade em todos esses
sentidos colocava-o diante de um dilema, o qual se pode observar em suas
relações com Oxford e mesmo com a família de Otes (...). Locke era tão livre,
no que se refere à solidariedade com o grupo governante, quanto um homem o
poderia ser na época e, no entanto, não pertencia ao grupo dos governados; esta
é a única definição inteligível de classe
média em que se pode enquadrá-lo, e deixa de fora vários aspectos que a
expressão parece implicar. Em última análise, a possibilidade de viver dessa
forma efetivamente surgiu em função de transformações econômicas, mas apenas se
pode atribuir a Locke o papel de porta-voz de tais transformações mediante o
uso de todo um aparato de motivações inconscientes e de racionalizações. Uma
ordem de indivíduos livres não é um grupo harmônico, não é um estrato coeso a
promover, de fato, alguma transformação; nenhuma concepção simples de ideologia conseguirá relacionar o
pensamento de Locke com a dinâmica social” [25].
Assim, a posição sócio-econômica
de Locke deve ser interpretada não como fator determinístico do seu pensamento
mas, apenas, como mais uma circunstância
do mesmo (no sentido orteguiano). Laslett traduziu muito bem essa feição do
pensamento lockeano nos seguintes termos: “Trata-se, tudo leva a crer, de um
espírito que se preparou de início na academia, depois no centro mesmo do poder
político e, ao fim de dois importantes períodos no exterior, na França e na
Holanda, finalmente respondeu à Revolução de 1688-9 com uma obra sobre o
governo” [26].
8 - Últimos anos de Locke.
Em meados de 1691, o nosso autor
estabeleceu-se nos domínios de Sir Francis Masham (1646-1723), no pequeno solar
deste em Otes, Essex, circundado de fossos e sob os delicados cuidados da
esposa de Masham, Damaris (1658-1708), a amiga mais próxima de Locke. Ela foi a
primeira mulher britânica a escrever sobre temas filosóficos (de inspiração
neoplatônica), sendo uma das correspondentes de Gottfired Leibniz (1646-1716).
É da autoria de Damaris a primeira biografia de Locke, escrita pouco depois da
morte do filósofo[27].
Damaris Masham era filha de Ralph Cudworth (1617-1688) de Somerset, pensador de
orientação neoplatônica, professor no Christ
Church College.
Em Otes, a vinte milhas de
Londres, o filósofo passou seus últimos e gloriosos anos, ao lado da sua
biblioteca, acompanhado do seu criado e com as comodidades básicas, sem luxos,
dispondo do seu próprio cavalo. Ocupava o tempo escrevendo e corrigindo as suas
obras, mas, sobretudo, escrevendo cartas aos intelectuais, aos editores, aos
especuladores da bolsa, aos políticos e aos funcionários da Coroa. Exercia, assim,
uma influência decisiva. Durante o verão, o nosso autor transladava-se a
Londres e continuava com os seus contatos no meio intelectual e político desde
a sua residência na capital, em Lincoln’s
Inn Fields.
Peter Laslett traçou o seguinte
quadro acerca da morte do filósofo: “Locke morreu em 29 de outubro de 1704, em
seu gabinete em Otes, um cômodo de paredes castanho-escuras gordurosas e de
melancólico branco, as cores dos livros que haviam sido parte tão grande de sua
vida. Está sepultado a grande distância de Oxford e de seus ancestrais em
Somerset, numa companhia um tanto estranha, pois os Masham, que jazem por toda
a sua volta em High Laver, foram tories e cortesãos na geração seguinte” [28].
Simbólica companhia que revela o quanto o pensamento lockeano contribuiu para
modernizar as estruturas do Estado inglês, convertido definitivamente em
instrumento da sociedade civil para garantir a “vida, honra e bens” de todos os
cidadãos, sem distinções de partidos políticos, religião ou classes sociais.
9 - Escritos de Locke.
As principais obras de Locke são
as seguintes: Constituições fundamentais da Carolina (1669), Quatro
cartas sobre a tolerância (1692), Ensaios sobre educação
(1693), Dois tratados sobre o governo civil (1689-1690), e Ensaio
sobre o entendimento humano (1690). O pensador, entretanto, legou à
posteridade inúmeras obras de menor fôlego, nos campos mais variados da
reflexão, o que manifesta a sua ampla curiosidade, bem como a seriedade com que
encarou as responsabilidades políticas como administrador público e conselheiro
dos líderes mais destacados na Inglaterra da sua época. Mencionemos algumas
delas: Ensaios sobre a Lei da Natureza (1664), Ensaio sobre a tolerância (1667),
De
Morbo Gallico (O Mal Francês, 1675), Lex
Naturae (Lei Natural, 1678), O crescimento das vinhas e dos olivais (1680),
Sobre
o dinheiro (1692 e 1695), Polêmica com Stillingfleet em defesa do
Ensaio sobre o entendimento humano (1697 e 1699), Racionalidade do Cristianismo (1695),
Defesas
(1697), etc.
BIBLIOGRAFIA
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Cambridge, 1969.
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Edições 70, 1996, p. 37-85.
SILVA, Saulo Henrique Souza. A
exterioridade do político e a interioridade da fé: Os fundamentos da tolerância
em John Locke. Salvador-Bahia: Universidade Federal da Bahia, 2008,
(dissertação de mestrado).
[1] LASLETT, Peter. “Introdução”. In: LOCKE, John.
Dois tratados sobre o
governo. (Tradução
de Julio Fischer). São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 60.
[2] LASLETT, Peter. “Introdução”. In: LOCKE, John. Dois
tratados sobre o governo. Ob. cit., p. 25.
[3] LASLETT, Peter. “Introdução”. In:
LOCKE, John. Dois tratados sobre o governo, ob. cit., p. 31.
[4] LASLETT, Peter. “Introdução”. In: LOCKE, John.
Dois tratados sobre o
governo, ob.
cit., p. 31-32.
[5] LASLETT, Peter. “Introdução”. In: LOCKE, John. Dois tratados sobre o governo, ob. cit., p. 33.
[6] John Fell (1625-1686), clérigo decano
do Christ Church College, na época em que Locke ali estudou. Posteriormente foi
sagrado bispo de Oxford.
[7] LASLETT, Peter. “Introdução”. In:
LOCKE, John. Dois tratados sobre o governo, ob. cit., p. 32.
[8] LASLETT, Peter. “Introdução”, in:
LOCKE, John, Dois tratados sobre o governo, ob. cit., p. 10.
[9] RODRÍGUEZ
Aranda, Luis. “Introducción”. In: LOCKE, John, Ensayo sobre el gobierno civil,
(tradução espanhola de Amando Lázaro Ros; introdução de Luis Rodríguez Aranda),
Madrid: Aguilar, 1973, p. XI.
[10] LASLETT, Peter. “Introdução”. In:
LOCKE, John. Dois tratados sobre o governo, ob. cit., p. 35-36.
[11] LASLETT,
Peter. “Introdução”, in: LOCKE, John. Dois tratados sobre o governo, ob.
cit., p. 47-48. Concluindo em relação à influência de Shaftesbury no pensamento
de Locke, Laslett frisa: “(...) Temos aqui os dois, o estadista e o seu íntimo
amigo médico e letrado, estimulando-se reciprocamente no tema mais abstrato de
todos. Não foi o Locke catedrático de Oxford que se converteu em filósofo, mas
o Locke confidente de um político eminente, mediante o contato com a vida
política, social e intelectual de Londres à época da restauração” [LASLETT,
Peter, “Introdução”, in: LOCKE, John, Dois tratados sobre o governo, ob.
cit., p. 38].
[12] Cit. por LASLETT, Peter.
“Introdução”, In: LOCKE, John. Dois tratados sobre o governo, ob.
cit., p. 36.
[13] Apud LASLETT, Peter. “Introdução”. In:
LOCKE, John, Dois tratados sobre o governo, ob. cit., p. 36-37. Destacando a
novidade que representou o pensamento lockeano, situado na crista da onda da
revolução burguesa inglesa, Laslett escreve: “No curso de seus setenta e dois
anos, Locke viu o mundo em que vivia, seu mundo intelectual e científico, o
mundo político e econômico se modificarem mais radical e velozmente do que
qualquer um dos seus antepassados jamais presenciara, e, na Inglaterra, de
forma mais marcante do que em qualquer outra parte” [LASLETT, “Introdução”, ob.
cit., p. 21].
[14] Apud LASLETT, Peter. “Introdução”. In: LOCKE,
John. Dois tratados sobre o
governo, ob.
cit., p. 1.
[15] LASLETT,
Peter. “Introdução”. In: LOCKE, John, Dois
tratados sobre o governo, ob. cit., p. 1-2.
[16] Cf. GUIZOT,
François. Histoire de la civilisation européenne. 8ª edição. Paris:
Didier, 1864, capítulos XIII e XIV. Em relação à forma concreta em que se deu a
consolidação das práticas do gentil-homem no contexto inglês, Peter Laslett
escreve: “Locke sentava-se à mesa do capelão no salão de jantar meticulosamente
regulamentado de Shaftesbury, lorde chanceler; era obrigado a caminhar
penosamente pela lama para segurar aquele megalomaníaco endiabrado, quando saía
de carruagem para alguma solenidade. Mas também tinha voz na decoração de suas
residências, no desenho de seus jardins; educava os netos de seu amo nos moldes
da aristocracia inglesa, aquela precisa e madura combinação do homem prático
com a virtude estóica, moderação no expressar-se e um profundo respeito pela
erudição. O ideal do gentil-homem inglês se mantém até hoje e é, em parte, uma
invenção de Locke. Medrou de sua afeição por Shaftesbury” [LASLETT, Peter,
“Introdução”, in: LOCKE, John, Dois tratados sobre o governo, ob.
cit., p. 54].
[17] Cit. por LASLETT, in: “Introdução”,
in: LOCKE, John, Dois tratados sobre o governo, ob. cit., p. 58-59.
[18] Cf. KLIBANSKY,
Raymond. “Prefácio”, in: LOCKE, John. Carta sobre a tolerância. (Tradução de João da Silva Gama;
prefácio de R. Klibansky; introdução de Raymond Polin; notas do Institut
International de Philosophie – Paris e PUF), Lisboa: Edições 70, 1996, p.
11-35. Cf. a dissertação de mestrado Saulo Henrique Souza Silva, intitulada: A
exterioridade do político e a interioridade da fé: os fundamentos da tolerância
em John Locke. Salvador-Bahia: Universidade Federal da Bahia, 2008;
trata-se de um dos estudos mais completos, feitos no Brasil, sobre o tema da
tolerância em Locke.
[19] John Milton (1608-1674), autor do
clássico Paraíso Perdido [edição eletrônica, em português, tradução de
António José de Lima Leitão, in: http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/paraisoperdido.html ].
[20] Andrew Marvell (1621-1678), poeta.
[21] KILIBANSKY, Raymond. “Prefácio”, in: LOCKE, John. Carta sobre a tolerância. Ob. cit., p. 33-34.
[22] LASLETT, Peter. “Introdução”, in: LOCKE, John,
Dois
tratados sobre o governo, ob. cit., p.53-53.
[23] KELLY, P. The Economic Writings of John Locke, Dissertação, University of
Cambridge, 1969, cit. por LASLETT, Peter, “Introdução”, in: LOCKE, John, Dois
tratados sobre o governo, ob. cit., p. 56.
[24] LASLETT, Peter. “Introdução”. In:
LOCKE, John, Dois tratados sobre o governo, ob. cit., p. 61-62.
[25] LASLETT, Peter. “Introdução”, in:
LOCKE, John, Dois tratados sobre o governo, ob. cit., p. 63.
[26] LASLETT,
Peter. “Introdução”, in: LOCKE, John, Dois tratados sobre o governo, ob.
cit., p. 54.
[27] Cf. MASHAM, Damaris. Memoir of Locke.
Amsterdam University Library, 1705.
[28] LASLETT, Peter. “Introdução”,
in: LOCKE, John, Dois tratados sobre o governo, ob. cit., p. 60.
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