Deparamo-nos, hoje, com movimentos conduzidos por ativistas em nome da “democracia”, dos quais não se pode dissentir, sob o risco de ser alcunhado de reacionário ou de receber ameaças à integridade pessoal. Assim, não é estranho o cidadão comum se deparar com situações ultrajantes, protagonizadas por esses ativistas. Os exemplos são múltiplos, e cobrem a vasta gama das relações sociais, no nível interno dos países, ou no terreno internacional. Mencionemos alguns desses casos: piquetes “democráticos” nas portas das fábricas, em períodos de greve, para amedrontar aos que furem a decisão das massas; ativistas “democráticos” que utilizam métodos fascistas (incêndio de escritórios, por exemplo), para insuflar pânico entre jovens que não tenham se curvado à tendência dos DCEs oficiais (como aconteceu, no decorrer dos primeiros meses de 2010, no Rio Grande do Sul). Invasões de propriedades produtivas em nome de uma vaporosa “via campesina”, com a finalidade de amedrontar pequenos e médios produtores rurais e obrigá-los a ceder às desapropriações propostas pelos “movimentos sociais”. Governantes, como Chávez, por exemplo, na Venezuela, ou os irmãos Castro, em Cuba, que ostensivamente perseguem grupos de oposicionistas, inclusive praticando assassinatos que ficam impunes, cometidos com a finalidade de manter a fraudulenta propriedade do poder pessoal sem qualquer crítica; teólogos ou comunidades eclesiais, que assumem como missão evangelizadora a defesa de uma versão de democracia, que faz da cinzenta massa dos “oprimidos” o sujeito de direitos políticos, com exclusão de quaisquer outros grupos; líderes populistas que em período de palanque, centram os seus discursos na ameaça das “elites” contra o povão, para se apresentarem como os salvadores da pátria, e que, em virtude dessa vocação “democrática” da qual eles são os exclusivos portadores, passam por cima da legislação eleitoral vigente, pressupondo que tudo é válido para eleger a sua candidata..., etc.
Pretendo, neste texto, ilustrar acerca das origens, no pensamento de Jean-Jacques Rousseau, dessa vertente do pensamento moderno, que passou a ser conhecida pelos estudiosos como “democracia totalitária”. O nome é paradoxal. Mas o paradoxo é, justamente, o elemento básico da retórica democrática. Porque, se bem é certo que se apresenta como defensora da democracia, ela esconde a sua própria negação, para utilizar uma expressão bem ao gosto de uma parcela dos que a professam.
Falemos um pouco da vida de Rousseau. Nasceu em Genebra, em 28 de Junho de 1712. Teve uma infância infeliz. A mãe, a bela Suzanne Bernard, filha de um pastor calvinista, morreu de parto quando do nascimento do nosso autor. Jean-Jacques ficou aos cuidados do pai, Isaac, homem profundamente indisciplinado, que tinha abandonado a sua esposa em Genebra para tentar a profissão familiar de relojoeiro, num harém em Constantinopla. Em 1722, o nosso autor passou a estudar na casa do ministro protestante Lambercier, em Bossey, na Alta Sabóia (sudeste da França, limitando com a Suíça e a Itália). Voltou a Genebra e, em 1728, encaminhou-se para a França, conheceu a senhora de Warens e converteu-se ao catolicismo, passando a residir na casa dela, em Annecy (na Alta Sabóia, perto da Suíça). Foi encaminhado pela sua protetora ao Seminário em Turim, onde passou a estudar latim. Em 1740 tornou-se preceptor, na França, mas não conseguiu bons resultados nessa profissão. Em 1742, Rousseau chegou a Paris, em busca de sucesso pessoal e profissional. Em 1745, ligou-se a uma humilde mulher, Thérèse Levasseur, lavadeira de profissão, com quem passa toda a sua vida, numa relação bastante tempestuosa da qual nasceram cinco filhos, por ele abandonados em orfanatos, alegando falta de recursos para sustentá-los. Este fato o atormentaria pelo resto da vida. Em sonhos, o nosso autor via a mulher e os cinco filhos perseguindo-o. Em 1749, Rousseau redigiu o seu Discurso sobre as ciências e as artes. Em 1752, compôs o “intermezzo” operístico intitulado “O adivinho da aldeia”, que foi encenado no palácio de Fontainebleau. Em 1754, o nosso autor visitou a sua cidade natal, Genebra, e voltou ao seio do protestantismo, sua religião de infância. Em 1755, publicou os discursos Sobre a origem da desigualdade entre os homens e Sobre a economia política. Em 1756, Rousseau passou a viver no castelo do Ermitage, pertencente à sua amiga e protetora Madame d´Epinay; esse castelo estava localizado perto de Montmorency, nos arredores de Paris (onde se encontra importante museu em memória do pensador genebrino). Ali o nosso autor começou a escrita do seu romance A Nova Heloísa. Em 1757 escreveu o seu tratado pedagógico Emílio ou da educação, bem como o Contrato social. Rousseau começou, nessa época, a revelar os sintomas da mania de perseguição. Esta última obra, bem como Emílio foram condenados pelas autoridades francesas; para fugir à perseguição policial, o nosso autor refugiou-se na Suíça, em Neuchâtel. Em 1764, redigiu um Projeto de constituição para a Córsega, bem como as suas Confissões. Em 1765, perseguido pelas autoridades suíças, deixou Neuchâtel e refugiou-se na Inglaterra, onde passou a morar, em Londres, na casa do amigo David Hume. Em decorrência das suas suspeitas em relação a Hume, movidas pela mania persecutória, brigou com o seu protetor, voltando para a França; em 1767 formalizou a união com a mãe dos seus filhos, Thérèse. Nesse mesmo ano publicou o seu Dicionário de Música. No ano de 1771, Rousseau escreveu as suas Considerações sobre o governo da Polônia e compôs os Diálogos: Rousseau, juiz de Jean-Jacques para supostamente se defender dos ataques dos seus adversários. Em 1776 escreveu Devaneios de um caminhante solitário. O nosso autor faleceu em 2 de Julho de 1778, no castelo de Ermenonville (perto de Paris), propriedade de seu amigo o marquês Louis de Girardin (que desenhou os jardins, inspirado na obra novelística de Rousseau). O seu corpo foi enterrado na Ilha dos Choupos, em Ermenonville. Os restos mortais do filósofo foram transferidos para o Panteão, em Paris, durante a Revolução Francesa.
O pensamento de Jean-Jacques Rousseau pode ser sintetizado nos seguintes oito pontos:
1 – Tentativa de superar o conflito entre a obediência à própria vontade e o impulso a adaptar-se a algum critério objetivo. No fundo da reflexão rousseauniana encontramos esse conflito, decorrente da sua irregular infância. A propósito dessa situação, escreve Talmon: “Rousseau fala de sua própria condição quando descreve, no Emílio, e em algum outro lugar, a infelicidade do homem que, depois de deixar o estado de natureza, é prisioneiro do conflito entre os seus impulsos e os deveres para com a sociedade civilizada, sempre oscilando entre as suas inclinações e os seus deveres, nem inteiramente homem nem inteiramente cidadão, nem bom com ele mesmo nem bom com os demais, porque nunca está de acordo consigo mesmo” [Talmon, Los Orígenes de la democracia totalitária, tradução espanhola de M. Cardenal Iracheta, México: Aguilar, 1969, p. 271].
2 – Solução para o problema: desnaturalizar esse homem assim confuso, substituindo uma existência relativa e transformando a própria consciência em consciência social. Em relação a este ponto, Talmon escreve: “Impôs-se um modelo fixo, austero, universal, dos sentimentos e da conduta, com o objeto de criar o homem de uma só peça, sem contradições, sem força centrífuga nem desejos anti-sociais. O objetivo era criar cidadãos que quisessem somente a vontade geral e que, desse modo, fossem livres, em lugar de que cada homem constituísse uma entidade em si mesmo, atormentado por paixões egoístas e, portanto, escravizado” [Talmon, Los Orígenes de la democracia totalitária, ob cit., p. 42].
3 – O indivíduo, conseqüentemente, só pode resolver as suas contradições íntimas num projetar-se para fora de si mesmo, tratando de se identificar com o pólo objetivo da existência, constituída pela realidade social, identificada com a vontade geral. Quem se submete a esta, mesmo que se obrigue a obedecê-la em tudo, não perde a liberdade; muito pelo contrário, realiza-la-á em plena medida, pois se liberta da contradição original, que o dissocia entre o dever objetivo e as inclinações subjetivas. Considerando a solução dada por Rousseau ao problema da liberdade humana, podemos frisar que ele envereda por caminho totalmente contrário ao seguido por Immanuel Kant, pois enquanto o filósofo de Königsberg tenta encontrar um fundamento transcendental, ligado à consciência do homem, para o agir ético, o pensador genebrino renuncia à subjetividade, num projetar-se total na realidade extra-subjetiva da vontade geral.
4 - A vontade geral assume, para Rousseau o caráter de uma verdade matemática ou uma idéia platônica, com existência objetiva, mesmo que não a compreendessem os homens. Seria necessário um forte exercício pedagógico sobre os indivíduos, para que eles descobrissem a vontade geral. Uma vez descoberta, os homens não poderiam honestamente deixar de aceitá-la. A problemática da liberdade fica reduzida à identificação do eu com a vontade geral. Como diria Espinosa, esta consiste no “reconhecimento da necessidade”. Talmon frisa que, para Rousseau, “a liberdade é a capacidade para se libertar a si mesmo das considerações, interesses, preferências e prejuízos, tanto pessoais quanto coletivos, que obscurecem a verdade e o bem objetivos, os quais, se eu for sincero com a minha verdadeira natureza, estou forçado a querer. O que se aplica ao indivíduo poderia aplicar-se, igualmente, ao povo. O homem e o povo foram feitos para eleger a liberdade e, se necessário, para serem forçados a serem livres” [Talmon, ob. cit., ibid.].
5 – A vontade geral consiste, para Rousseau, na unanimidade, origem da felicidade pública. Não sendo fato consumado, ela deve ser formada no seio do povo, por intermédio do seu partido da vanguarda revolucionária, integrado pelos “puros”, que renunciaram à defesa dos seus interesses particulares, em benefício do bem público. Esse partido da vanguarda revolucionária, transformado em Comitê Revolucionário, deve destruir toda a ordem política antiga, a fim de formatar a nação jovem, que é o povo organizado unanimemente ao redor da vontade geral. O chefe da vanguarda revolucionária, uma vez triunfe a insurreição contra a velha ordem, transforma-se no Legislador, verdadeiro déspota esclarecido que, com o seu conhecimento superior, prepara o povo para cerrar fileiras em torno à vontade geral, eliminando qualquer oposição, que deverá ser considerada como atentado contra a Humanidade, porquanto conspiradora contra a racionalidade social e a felicidade pública. Qualquer meio é válido para o Legislador e a sua Vanguarda Revolucionária conseguirem materializar a unanimidade no seio do povo.
6 – No fim de todo o processo de unificação totalitária, Rousseau enxergava o surgimento de um novo tipo de homem. Ele possuiria uma nova mentalidade (alheia à defesa dos interesses individuais), com novos valores, com nova sensibilidade, totalmente livre dos velhos instintos, maus hábitos e preconceitos. Trata-se de uma conversão de tipo religioso, que abarca a Humanidade por inteiro.
7 – Para facilitar o trabalho de conscientização política a ser efetivado pelo Legislador e o Comitê Revolucionário, Rousseau propunha uma Religião civil. Essa idéia inspirava-se na consideração da história do Império romano, no qual, segundo o pensador, tinha se consolidado a autoridade inquestionável dos Césares, ao redor da Religião do Estado. O nosso autor inspirou-se, também, na leitura do Leviatã, de Thomas Hobbes, que propunha a unificação dos poderes espiritual e temporal nas mãos da autoridade única e inquestionável do soberano absoluto. A índole da religião que Rousseau propunha, era assim explicada pelo filósofo: “Existe, pois, uma profissão de fé puramente civil, cujos artigos o soberano está incumbido de fixar, não precisamente como dogmas de religião, mas como sentimentos de sociabilidade, sem os quais seria impossível alguém se tornar bom cidadão ou sujeito fiel” [Rousseau, Du contrat social, Paris: Garnier/Flammarion, 1966, p. 179]. A nova religião deveria ter um conjunto de normas simples, que levassem a gerar, no seio do povo, a unanimidade necessária para a felicidade de todos. Quem não se ajustasse aos mandamentos apresentados pelo Legislador, deveria ser expulso do corpo social, como inimigo da felicidade pública. Inspiraram-se nesse modelo os “Comitês de Salvação Pública”, surgidos após a Revolução Francesa e que deram ensejo ao terror jacobino (entre 1789 e 1798), os “Comitês dos Sovietes” (na Revolução Comunista de 1917), os “Comitês para a Defesa da Revolução” (das revoluções castrista e chavista), a “Polícia para a Defesa do Islã” (da revolução iraniana de 1979), os “Comitês da Revolução Cultural” de Mao-Tse-Tung, na China, os “Conselhos Nacionais” do lulopetismo, etc.
8 – Há uma evidente contradição entre a filosofia política proposta por Rousseau no seu Contrato Social e as idéias educacionais presentes na Nova Heloísa e no Emílio ou da Educação. Ao passo que na parte pedagógica o filósofo de Genebra defendia a “educação para a liberdade”, superando a velha pedagogia de impor modelos comportamentais à criança e apregoando que a educação seria uma ação de estímulo às capacidades do educando, a fim de que estas desabrochassem nele, junto com o exercício da liberdade, considerada como o maior bem do homem, na parte política Rousseau defendia o contrário: a aniquilação da liberdade individual para se conseguir o maior bem almejado: a unanimidade do corpo social. O problema é de uma contradictio in terminis, como diziam os escolásticos. Problema de autêntica duplicação da personalidade, um caso mais de psiquiatria do que de filosofia. Afinal das contas, não é exagero se perguntar pela sanidade mental de alguém que escreve, na sua maturidade, uma obra com o seguinte título: Diálogos – Rousseau, juiz de Jean-Jacques.
Bacana!
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