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quinta-feira, 23 de março de 2017

DESVIO DE FUNÇÃO: POLICIALIZAÇÃO DA ECONOMIA E JUDICIALIZAÇÃO DA POLÍTICA

Aurora Boreal (NASA)
As reviravoltas causadas pela operação "Carne Fraca" da Polícia Federal, a começar pelo golpe desfechado contra a economia do Brasil que já se contabiliza em 90 e tantos milhões de dólares por dia, mostra a seriedade que assumiu a bagunça administrativa do alto escalão do governo nestes tempos tormentosos. É certo que o governo tem de combater a corrupção. É verdade que a lei é para todos. Mas também é certo que cada ramo da administração pública tem os seus limites claramente traçados pela legislação. E também é verdade que os poderes públicos devem preservar a sua independência e igualdade. 

Duvido de que as atuais agruras pelas que passa a nossa economia, em decorrência dos solavancos causados pela última operação policial, acontecessem num país como a Grã Bretanha. Ali, quem dá as cartas é o Parlamento. Não há repartição que se sobreponha a ele. A própria decisão do Brexit precisou ser aprovada também pelas duas casas do Parlamento Britânico para que se tornasse efetiva. Será que em meio à bagunça que se instalou em Brasília não haveria um pequeno núcleo de legisladores patriotas, que pudessem costurar um mínimo de clima de administração, para fazer frente às necessidades do país? 

As reformas estão andando. Isso prova que é possível um mínimo de consenso e de senso de responsabilidade administrativa. Torço para que a reforma política avance e possa emergir daí um Parlamento com maior credibilidade. Porque, na falta dele, o que resta é a imposição monocrática do Executivo ou do Supremo. E a isso podemos chamar de qualquer coisa menos de democracia representativa.

Duas coisas me impressionaram nestes dias: em primeiro lugar, como já frisei, a repercussão negativa ensejada pela operação "Carne Fraca". Não se trata de dar mole aos culpados. Não se trata de admitir fiscais corruptos. Não se trata de canonizar a indicação política dos técnicos do Ministério da Agricultura nos Estados. A exigência de que tais nomeações sejam rigorosamente técnicas deve ser preservada. Mas a forma em que aconteceu a operação parece que não foi suficientemente pesada pelas instâncias da magistratura e da própria polícia. Não se pode dar divulgação do tamanho que se deu a uma operação que não abarca o grosso do sistema produtivo no ramo que foi investigado. Os culpados pelos maus procedimentos e pela prática de corrupção não são a maioria dos produtores, mas uma minoria de 21 empresas, para início de conversa, sem que tenham sido efetivadas as investigações em toda a sua plenitude. Houve falha de estratégia na comunicação da operação. Não seria possível esperar um pouco, a Polícia Federal se ilustrar mais com quem de direito, os técnicos do Ministério, o próprio Ministro, o Presidente da República?

A segunda coisa que me impressionou foi o bate-boca indireto entre o Ministro Gilmar Mendes, do Supremo e o Procurador Geral da República. O confronto entre o magistrado e o cabeça da Procuradoria assumiu ares parlamentares. Não haveria outra forma de limar as asperezas? O clima de judicialização da política que  se apossou do ambiente por conta da esbórnia parlamentar não é bom para o país. Ao que parece, a mosca azul mordeu o Procurador que teria pretensões políticas. Se for assim, o melhor que poderia fazer o senhor Janot seria largar imediatamente o cargo e se candidatar para a indicação dos seus sonhos nas próximas eleições, seja a presidência da República, seja a a governança de Minas Gerais. 

E a ABIN? O Presidente da República não conta mais com um sistema eficiente de informações que lhe permitam se adiantar a disparatados passos em falso do aparelho do Estado? Parece que com o fim do regime militar, já se vão mais de trinta anos, foi sepultado também o nosso sistema de informações. Que não deve ser de arapongagem. Mas que deve ser eficiente ao ponto de poder se antecipar aos fatos para evitar problemas maiores para o país.

Parece que ficamos entregues à improvisação dos tempos populistas ensejados pelos governos petistas. Ruim para o país e ruim para todos nós. Um país do tamanho do Brasil, com uma economia que não é brincadeira e que ocupou com sacrifício um lugar de destaque no mundo, está a exigir mecanismos de informação e de previsão estratégica muito mais eficazes daqueles de que o Estado brasileiro dispõe hoje.

Em estudo que fiz há algum tempo atrás sobre os BRICs investiguei a quantas andavam os nossos centros de pesquisas estratégicas à disposição do Estado para nortear o seu plano de voo. Não encontrei praticamente nenhum, afora os que tinham vindo do regime militar, notadamente a Escola Superior de Guerra e o centro de informações estratégicas do Exército vinculado ao programa de Altos Estudos de Política e Estratégia da ECEME. 

A única diretriz estratégica eficaz dos governos petistas foram os quadros ideológicos do PT, interessados em tudo menos em levar adiante um projeto de país moderno, livre, democrático e dinâmico na sua economia. O PT veio para roubar. E ficou por isso mesmo!

Contrastando com o quadro anterior vi, segundo análises de cientistas alemães, que a China conta hoje com 1.400 centros de estudos estratégicos distribuídos em Universidades e unidades de pesquisa, com amplo financiamento recebido do Estado. O paralelismo dá conta da nossa tremenda improvisação. Tivéssemos um mecanismo técnico de informações confiáveis que desse suporte à Presidência da República, ao Parlamento e à Magistratura, possivelmente não estaríamos passando as agruras que a "Carne Fraca" está causando na nossa economia.

terça-feira, 21 de março de 2017

A CARNE FRACA E A MORAL SOCIAL BRASILEIRA


Tudo parecia ir nos conformes após as sessões de privatização de aeroportos que abriram as comportas da infraestrutura aérea às empresas internacionais, deixando para lá o faz-de-conta de privatizações alicerçadas em fundos estatais de pensão, tão comuns em anos anteriores. 

Mas não é que os vícios do patrimonialismo voltam a aflorar, desta vez de mãos dadas com a operação "Carne Fraca" deslanchada pela polícia federal? Com tudo a que tem direito: dúvidas, tensão, reações enérgicas dos nossos compradores de carne lá fora, respostas ríspidas do ministro da Agricultura do Brasil, reuniões aflitas do alto escalão do governo para ver como se apaga o novo incêndio, queda nas bolsas dos grandes do setor da agroindústria, etc., etc. Tudo dentro do figurino perverso do clima de patrimonialismo, com os efeitos deletérios das manobras mágicas do Leviatã que cria "campeões de bilheteria" (Friboi e quejandos, nas épocas áureas do lulismo). E com a lógica angústia que acomete com particular crueldade aos pequenos e médios produtores que no nosso país investiram tempo, vida e dinheiro na melhora dos seus negócios na agroindústria, para se integrarem às grandes cadeias exportadoras, a fim de se afinarem com as exigências internacionais. Que o digam os produtores de Santa Catarina e do Paraná.

São as ondas de choque que ainda se levantam no mar da economia, promovidas pela atuação descarada do Estado patrimonial na seara econômica, com a criação dos tais "campeões de bilheteria" de que seriam exemplos exponenciais o encanado Eike Batista, bem como a megaempresa Friboi que contou com generosos créditos do BNDES para dobrar concorrentes e vingar como gigante do setor. 

Mas não é só isso: o aspecto principal do problema focado na operação "Carne Fraca" é a manipulação, por políticos e partidos, na nomeação de técnicos e fiscais do Ministério da Agricultura e das respectivas secretarias estaduais, que aplainariam o caminho a empresários corruptos que, por sua vez, dariam a sua cotinha aos respectivos partidos...Novos desdobramentos da Operação Lava-Jato.

O que deve ficar claro para a opinião pública é que: 

1 - O governo brasileiro, neste momento, deve estar decidido a combater com denodo a intervenção indevida do fator político na economia, parando de vez com a criação dos tais "campeões de bilheteria". Ao que tudo indica, o atual governo está engajado nisso. 

2 - O governo da União e os dos estados devem se comprometer, de forma clara, a acabar com as indicações políticas para os organismos de fiscalização e controle, vício que assumiu características catastróficas durante os governos petistas. Quer seja na área da Agricultura, da Saúde Pública, das Telecomunicações, da Educação Fundamental, Média  e Superior, da Aviação Civil, etc., etc., devem acabar as indicações políticas para cargos de fiscalização e controle. As Agências Reguladoras dos diversos setores da economia devem ser preenchidas com critério técnico e com transparência. Não se pode aceitar que ainda ministros do atual governo apareçam vinculados a essas práticas, com relações de amizade com elementos suspeitos nas atuais operações policiais. Transparência total: essa é a expectativa da opinião pública brasileira. 

3 -  Como frisou o ministro da Agricultura Blairo Maggi, quando o assunto é garantir a saúde da população, a atuação deve ser transparente, ágil e técnica, a fim de evitar males à integridade física dos cidadãos do país ou dos países que recebem os nossos produtos agropecuários.

Mas o que deve ficar claro para a sociedade brasileira é que sem uma moral social consensual claramente definida, que imponha de uma vez por todas a transparência e o respeito dos políticos aos interesses dos cidadãos, não haverá mais paz social. 

Ou cerramos fileiras em torno à magna tarefa de definirmos o que é a moral social que nos deve guiar como organização política nacional, ou o país se desfaz e ficaremos na mão das minorias armadas e assassinas, que ocupam o espaço quando sociedade e governo se afastam das suas responsabilidades, como nos assassinatos massivos de prisioneiros nas regiões do Norte e Nordeste, nos catastróficos acontecimentos registrados nos anos passados e no início deste ano, ou nos movimentos de "anarquia branca" de ativistas anárquicos na área da segurança pública, que deixaram desprotegidos milhões de cidadãos no Espírito Santo, nas irresponsáveis ocupações de quartéis da polícia militar, que escancararam as portas para os criminosos do varejo das disputas familiares e entre vizinhos, que causaram a morte de centos de cidadãos nos dias de desgoverno e soçobra que viveu a cidade de Vitória e outras urbes dessa importante região.

Moral social é o consenso dos cidadãos de um determinado país em torno ao mínimo a ser exigido, a título de compromisso moral, para que as Instituições funcionem e a sociedade não se esgarce na guerra civil e na criminalidade. Note-se que não falo de legislação, que vem depois e que não significa nada sem esse compromisso moral prévio. O risco que estamos correndo é esse:ou cuidamos de dar fundamentos éticos, numa moral social consensual, à nossa combalida sociedade, ou simplesmente entraremos em etapas agônicas de desmanche da sociedade, da família e e das instituições.

Com a palavra os governos da União e dos estados, as Igrejas, os educadores, os intelectuais, os pais de família, os partidos políticos, as associações de classe, a mídia, a TV, os magistrados, os procuradores do Ministério Público, as associações de Juízes e Magistrados, as academias, o STF.

Dizia o deputado Roberto Jefferson quando abriu a caixa de pandora do mensalão, ao acusar José Dirceu de ser o manipulador do esquema de corrupção: "Vossa Senhoria desperta em mim os mais primitivos instintos". Pois bem: o discurso pode ser colocado em boca da sociedade brasileira: Lula e patota conseguiram fazer renascer, do fundo da má consciência de séculos de patrimonialismo, o gosto pela sem-vergonhice da prática descarada de tratar público como privado, num carnaval de safadeza em que muita gente entrou, para se locupletar irresponsavelmente à margem das instituições e da lei, prejudicando a vida de milhões de compatriotas, "levando vantagem em tudo", como diz o princípio macunaímico. 

Só com uma reação moral enérgica será possível sacudir a poeira de tanta irresponsabilidade, a fim de que encaremos de cabeça erguida a árdua tarefa de reconstrução das nossas instituições. Por não termos equacionado a educação para a cidadania para as próximas gerações é que temos uma geração à beira da perda de identidade e manipulável pelos radicais de sempre, que a tornam massa de manobra para ocupação de escolas e sabotagem cívica.

Moralismo? Definitivamente não. Reação da razão premida pelos fatos e que tenta buscar uma réstia de luz em meio a tanta confusão. É o que nos resta.

domingo, 19 de março de 2017

A REVOLUÇÃO BRASILEIRA E A OPERAÇÃO LAVA-JATO


Parece estranho se falar em "Revolução Brasileira". Sempre achei, aliás, que revolução para valer não haveria no Brasil. Isso, em virtude da experiência que vivi quando da minha vinda em 1973 para cursar o mestrado em Pensamento Brasileiro na PUC do Rio de Janeiro. Como já contei em algum outro lugar, desembarquei na "Cidade Maravilhosa" numa terça de Carnaval. Fui direto para o hotel, o antigo "Itajubá" que depois descobri ser reduto de "mineiros cariocas", aqueles que desciam da Montanha para estudar e fazer negócios na Planície. Pois bem: arrumei-me após descansar das seis horas de viagem de avião entre Bogotá e Rio, e sai flanar um pouco pelos arredores do hotel, na velha Cinelândia, reduto boêmio carioca. Levei um duplo choque: da onda quente de ar com os 40 graus centígrados do imperdoável verão carioca e da onda humana do bloco em que caí sem perceber, o "Bafo da Onça", que passava pela estreita rua Alvaro Alvim onde ainda fica o mencionado hotel. Fui levado pela maré humana de passistas seminuas, Clóvis com as suas enfadonhas bexigas, Colombinas super produzidas, palhaços, demônios de rabo e tridente, anginhos de asas brancas em peles escuras, tocadores de tamborins e a barulhenta batucada da bateria que, com surdos, ritmava os passos do samba-no-pé. Nunca me esquecerei desse duplo choque. Eu, trotskista impenitente até então, tive de chegar à óbvia conclusão: jamais haveria revolução no Brasil, Qualquer intento sedicioso seria dissolvido no seguinte Carnaval...

Cursei as disciplinas do mestrado sob a orientação do meu orientador, o mestre e amigo Antônio Paim. Ele obrigou-me a ler os clássicos do liberalismo: Locke, os Federalistas, os críticos franceses do democratismo rousseauniano a começar por Benjamin Constant e também Tocqueville, com a sua Democracia na América e O Antigo Regime e a Revolução. Li também os liberais brasileiros do ciclo imperial, notadamente Silvestre Pinheiro Ferreira com a sua teoria da dupla representação inspirada em Constant, o Visconde de Uruguai, Paulino Soares de Sousa (que no seu tratado de direito administrativo, de 1861, aplicou ao Brasil a teoria de François Guizot de formação de uma classe média que desse sustentação ao governo representativo) e o Rui Barbosa liberal do final do Império e do início da República, crítico do absolutismo e dos caudilhismos à luz do liberalismo anglo-saxão. Li também os heroicos liberais gaúchos que fizeram frente ao despotismo castilhista, o jornalista Carl von Koseritz perseguido e assassinado vilmente pelos militantes castilhistas, Gaspar da Silveira Martins o líder maragato e Joaquim Francisco de Assis Brasil que dedicou os seus estudos à análise da representação e ao seu aperfeiçoamento no contexto de um republicanismo moderado. A minha cabeça, no espaço de dois anos, mudou radicalmente. De trotskista virei liberal. Como dizia o filósofo francês Gilles Lipovetski, abandonei Marx e adotei Tocqueville. O mundo dos liberais era colorido pelo reconhecimento da liberdade individual, aquele pequeno detalhe que tanto incomoda a comunas, patrimonialistas e outros bichos estatizantes.

Pois bem: estudando a saga das "Revoluções" brasileiras, descobri que as que se desenvolveram neste quadrante da América Latina eram bem diferentes das que tinham vingado na América Espanhola. Estas, inspiradas no rousseaunianismo, deram ensejo a frágeis Repúblicas em que o normal era a agitação e a guerra e o excepcional o regular funcionamento das instituições republicanas. Como na Colômbia, a minha pátria de origem, que entre 1810, data do grito da independência, e 1899 sofreu 65 guerras civis. Uma a cada minuto no largo calendário que marca a evolução dos Estados nacionais. O Rousseaunianismo era o responsável pela interminável saga de assassinatos, deposições, imposições, golpes de estado, pronunciamentos, em que é rica, até os dias de hoje, a vida política das nações hispano-americanas. Esse modelo de despotismo ilustrado foi, aliás, belamente dissecado por García Márquez em dois dos seus escritos:  O outono do Patriarca (1975) e O General  no seu labirinto (1993).

Do lado brasileiro vingaram, no entanto, outras "Revoluções", aquelas inspiradas na lenta e segura evolução das instituições, à sombra da tradição do liberalismo inglês, para cá trazido pela geração de Silvestre Pinheiro Ferreira, de dom Pedro de Souza Holstein (conde de Palmela, o belo e jovem amante de Madame de Staël, que com apenas 21 anos de idade herdou do pai o cargo de embaixador de Portugal junto à Santa Sé)  e que se integrou ao governo de Dom João VI, no Rio de Janeiro, como ministro dos Negócios Estrangeiros em 1817, defensor do bicameralismo inglês, sendo depois agraciado com o título de Duque de Palmela em 1850, após ter lutado em prol do governo representativo nas revoluções portuguesas contra o democratismo. Ora, dessa tradição, alheia ao mundo de fala espanhola, é que surge a saga das "Revoluções Brasileiras", sendo a primeira delas a ensejada pelo "Fico" de Dom Pedro I em 1822 e as subsequentes reformas efetivadas pela elite liberal-conservadora do II Reinado, entre 1840 e 1889.

Pois bem: é nesse contexto em que se situam as "Revoluções" brasileiras do período republicano, notadamente a de 1930, empreendida por Getúlio Vargas e a segunda geração castilhista, bem como a que deu ensejo ao ciclo militar, entre 1964 e 1985. Embora pautadas pelo autoritarismo que vingou pelo mundo afora em meados do século passado, ambas as revoluções não eram de todo alheias à ideia liberal de representação. Getúlio cuidou de elaborar o "Código Eleitoral" de 1932 que pôs fim à prática abusiva das "degolas" (invalidação do mandato dos eleitos pela oposição à oligarquia do café com leite na República Velha) e os militares consideraram sempre que um dos objetivos nacionais permanentes era a manutenção das instituições democráticas, alçando ao nível daqueles o binômio "Democracia - Desenvolvimento".

O atual ciclo de luta contra os desmandos do Executivo hipertrofiado que deformou a prática republicana, durante o largo período dos governos civis que se seguiram aos governos militares (1985-2016) forma parte, certamente, desse contexto de "Revolução Soft". Ora, a crise atual que já avança na sua segunda etapa da "Operação Lava Jato", após o "Mensalão", insere-se numa reação democrática da sociedade brasileira contra a corrupção e o autoritarismo, puxada pelas massivas manifestações da classe média que ocuparam as ruas brasileiras entre 2013 e 2016, secundadas pela firme atuação da Magistratura e do Ministério Público (instituições que foram reforçadas pela Constituição de 1988 como garantidoras da ordem política e social). Da atual onda de acusações e processos sairá fortalecida, com certeza, a prática da representação política no Brasil, com um Congresso e com Partidos Políticos afinados com a defesa dos interesses dos cidadãos, dando fim ao velho patrimonialismo de Estado que tornou a República butim a ser distribuído entre patotas políticas, como se se tratasse de patrimônio familiar. Essa é a novidade que a sociedade brasileira vive nestes momentos tumultuados. Que desaguarão em Instituições Republicanas mais democráticas e modernas, que garantirão a segurança jurídica para a produção, para os negócios e o comércio, abrindo assim um horizonte de esperança para as próximas gerações.

sábado, 18 de março de 2017

JOSÉ OSVALDO DE MEIRA PENNA (1917): UM LIBERAL CENTENÁRIO


Amigos, comemorou-se no passado 14 de março o centésimo aniversário do embaixador e grande pensador liberal José Osvaldo de Meira Penna. Desde o início dos anos oitenta do século passado, quando o conheci em São Paulo, tenho tido o privilégio de desfrutar da sua amizade. 

Meira Penna é um desses raros membros da intelligentsia brasileira comprometido profundamente com a defesa da liberdade. Quando tive o primeiro contato com ele, em 1980, estava à frente da embaixada do Brasil na Polônia. Vivia-se, no país europeu, o clima de glassnost, com as acirradas lutas do velho stablishment comunista contra os que demandavam o fim da tutela soviética. Meira Penna conheceu por dentro as desgraças vividas pelos cidadãos comuns no regime comunista. Preocupado com os rumos da abertura brasileira, o nosso autor insistia na necessidade de que as novas gerações conhecessem em profundidade os pensadores liberais clássicos, a começar por John Locke, os pais fundadores americanos, Alexis de Tocqueville e os autores da Escola Austríaca, a começar por Hayek. 

O meu amigo propôs a mim e a outros intelectuais a criação da Sociedade Tocqueville com a finalidade de estimular o surgimento de uma tendência liberal-conservadora que inspirasse as novas gerações. Junto com Antônio Paim e Ubiratan Macedo, o ajudei a elaborar a Carta de Princípios da mencionada entidade, que foi criada em 1986, no Rio de Janeiro e em Brasília, onde ficava a sua residência. Ele foi o presidente-fundador da Sociedade e eu o primeiro secretário.

Ciente da minha responsabilidade na divulgação das ideias de Tocqueville, mergulhei no estudo de A democracia na América e O Antigo Regime e a Revolução, bem como na leitura da vasta correspondência de Tocqueville com Stuart Mill e dos seus estudos sobre a pobreza, publicados na edição clássica da editora Gallimard. Li o informe sobre a pesquisa que Tocqueville fez, em companhia do seu amigo Gustave de Beaumont, sobre o sistema penitenciário estadunidense, estudo que motivou, aliás, a sua viagem por nove meses aos Estados Unidos, entre 1832 e 1833, da qual emergiria a magna obra tocquevilliana sobre as instituições democráticas americanas, que seria publicada nos anos subsequentes, até 1840. 

Elaborei, então, projeto de pesquisa acerca das ideias liberais de Tocqueville, notadamente no que tangia à sua concepção republicana. Era meu interesse culminar esse estudo antes de 1989, a fim de publica-lo com motivo da celebração do centenário da República. Passei o meu projeto a Meira Penna. 

O meu amigo sugeriu-me que buscasse algum centro de estudos na França onde pudesse adiantar essa pesquisa e encaminhou o meu projeto a Jean-Claude Lamberti, de quem era amigo, autor do clássico livro intitulado: Tocqueville et les deux démocracies. O professor Lamberti faleceu, no entanto, algum tempo depois, sem que eu tivesse tido oportunidade de entrar em contato com ele. Mas a viúva entregou o meu projeto à assistente de Lamberti, a jovem professora Françoise Mélonio, que trabalhava no Centre de Recherches Politiques Raymond Aron, ligado à Haute École de Sciences Sociales de Paris. François Furet era, na época, diretor desse Centro. 

Em viagem que realizei à França em 1994 entrei em contato com a professora Mélonio, que se dispôs a me orientar na pesquisa almejada. Assim, entre 1994 e 1996, desenvolvi os estudos que deram ensejo a dois ensaios: Tocqueville au Brésil (publicado em 1999 pela Universidade de Toronto) e A democracia liberal segundo Alexis de Tocqueville (publicado em São Paulo, pela Editora Mandarim, em 1998).

Ainda sob orientação da professora Mélonio (em cuja obra: Tocqueville et les Français, de 1994, encontrei valiosos subsídios para o estudo do pensamento tocquevilliano), entre 1995 e 2000 ampliei as minhas pesquisas para o grupo dos doutrinários, a começar pelos seus precursores, Madame de Staël e Benjamin Constant e continuando com o estudo do pensamento do mais importante membro dessa corrente, François Guizot. Estudei, também, as repercussões do pensamento doutrinário nos teóricos liberais franceses do século XX, a começar por Raymond Aron. Dessa pesquisa surgiu a minha obra intitulada: O Liberalismo Francês: a tradição doutrinária e a sua influência no Brasil (2002). Na parte relacionada à influência dos doutrinários no Brasil, analisei como ela se deu em Silvestre Pinheiro Ferreira (a partir da ideia de poder neutro em Benjamin Constant) e no visconde de Uruguai, Paulino Soares de Sousa (no que tange à formação de uma classe média que deveria se engajar na defesa das instituições do governo representativo, no Segundo Reinado).

Não poderia deixar de falar aqui acerca de uma característica de Meira Penna: a sua generosidade intelectual, que o levou sempre a compartilhar os seus pontos de vista com as novas gerações, estimulando-as para o debate aberto e para a busca de soluções novas para a democracia brasileira. Pelo seu intermédio conheci figuras destacadas do liberal-conservadorismo francês como Henry de Lesquen (presidente do Clube de l´Horloge, em Paris) e o empresário Guy Plunier (fundador e presidente da Sociedade Tocqueville na França). Foi numa reunião da Sociedade Mont Pélérin, no Rio de Janeiro, em 1993, quando Meira Penna me apresentou a este último, tendo recebido dele, na sua casa na Bretanha, orientações de grande valor para o conhecimento do sitz-im-leben de Tocqueville, na vizinha região francesa da Normandia.

Meira Penna teve a sua obra estudada no 6º Encontro Nacional de Professores e Pesquisadores da Filosofia  Brasileira, organizado em Londrina pelo saudoso amigo Leonardo Prota entre 13 e 15 de setembro de 1999. Apresentei, no evento, o estudo intitulado: "A crítica de Meira Penna ao Estado Patrimonial", que transcrevo na última parte deste post. Outros estudos apresentados no evento foram: Antônio Paim, "Meira Penna e a noção de interesse"; Ítalo da Costa Joia, "A concepção do capitalismo no pensamento de Meira Penna"; Mário Guerreiro, "A visão da economia na obra de Meira Penna"; Mariluze Ferreira de Andrade e Silva, "A ética em Meira Penna"; José Maurício de Carvalho, "A antropologia de base psicológica no pensamento de Meira Penna"; Selvino Antonio Malfatti, "A crítica de Meira Penna ao nacionalismo, ao socialismo e ao marxismo"; Maria Luíza Macedo de Araújo, "A revolução sexual e a moral social brasileira, segundo Meira Penna"; Jane Rangel Alves Barbosa, "Educação básica e cidadania no pensamento de Meira Penna"; Paulo Viana, "Os entraves à modernização na cultura brasileira, segundo Meira Penna"; Maria Lúcia Victor Barbosa, "O pensamento liberal de Meira Penna"; Olavo de Carvalho, "Meira Penna, psicólogo social"; Antônio Garcia, "Cristianismo e liberalismo em Meira Penna"; Cândido Mendes Prunes, "A criminologia no pensamento do embaixador Meira Penna"; José Osvaldo de Meira Penna, "Meira Penna por ele mesmo".


Como homenagem ao meu amigo Meira Penna no seu centenário, publico a seguir o ensaio que encaminhei ao Portal Ensayistas dirigido na Universidade de Georgia - EUA pelo professor doutor José Luis Gómez Martínez, edição digital: http://www.ensayistas.org/filosofos/brasil/meira/ - Esse ensaio foi publicado inicialmente nos Anais do 6º Encontro Nacional de Professores e Pesquisadores da Filosofia Brasileira (Leonardo Prota, organizador. Londrina: CEFIL / Editora da Universidade de Londrina, 2000, 557 pgs. - ISBN 85-87017-21-7).

MEIRA PENNA, O HOMEM E A OBRA

I - BREVE SÍNTESE BIOGRÁFICA

José Osvaldo de Meira Penna nasceu no Rio de Janeiro a 14 de março de 1917. Concluiu o Curso de Direito na Universidade dessa cidade, em 1939. Ingressou por concurso na carreira diplomática em 1938, tendo permanecido nela durante mais de quarenta anos, até sua aposentadoria, ocorrida em 1981. Cursou estudos complementares na Universidade de Columbia (New York), no Instituto Jung de Psicologia (Zurich) e na Escola Superior de Guerra (Rio de Janeiro).

Os primeiros anos de sua vida diplomática foram vividos em Calcutá, Xanghai, Ankara e Nandjing. Quando da sua primeira permanência na China foi surpreendido pela guerra (1942) e assistiu posteriormente ao colapso do regime nacionalista chinês. Desempenhou funções diplomáticas também em Costa Rica, no Canadá e na Missão Brasileira junto às Nações Unidas, de onde regressou ao Ministério das Relações Exteriores do Brasil, onde chefiou a Divisão Cultural, no período compreendido entre 1956 e 1959. Foi embaixador na Nigéria, Secretário-Geral Adjunto do Ministério das Relações Exteriores para a Europa Oriental e a Ásia e embaixador em Israel no período compreendido entre 1967 e 1970. Ocupou também o cargo de Assessor do Ministro da Educação e Cultura. Desempenhou as funções de embaixador na Noruega, no Equador e na Polônia, cargo com o qual encerrou a sua carreira diplomática. Depois de aposentado, Meira Penna ingressou no magistério, como professor vinculado ao Departamento de Relações Internacionais e Ciência Política da Universidade de Brasília. Desde fins da década de sessenta desenvolve ampla e combativa atividade jornalística, sendo colaborador de importantes diários brasileiros como O Estado de São PauloJornal da Tarde (São Paulo), Jornal do Brasil (Rio de Janeiro), e outros. Em 1986 criou, junto com alguns intelectuais de inspiração liberal, a Sociedade Tocqueville, entidade da qual ainda é o Presidente. Preside, também, o Instituto Liberal de Brasília e é membro ativo da Sociedade Mont Pélérin.

Meira Penna é um dos mais importantes e polêmicos ensaístas brasileiros. Os seus livros, ensaios e artigos cobrem ampla gama de assuntos. A sua produção intelectual pode ser aglutinada ao redor de três grandes centros de interesse: a história, a filosofia e a psicologia social (notadamente as obras dedicadas à reflexão sobre a política e a ética pública) e a sociologia. 

No campo da história, sobressaem as seguintes obras: ShangaiO sonho de Sarumoto e Quando mudam as capitais

No terreno da filosofia e da psicologia social, pode-se mencionar vários títulos como por exemplo: Elogio do burroO Evangelho segundo MarxOpção preferencial pela riqueza, Decência jáO espírito das Revoluções, Em berço esplêndido A Ideologia do século XX

No campo sociológico, sobressaem: Segurança e DesenvolvimentoPsicologia do subdesenvolvimento,  O Brasil na idade da razãoO Dinossauro e Utopia brasileira.

Parte significativa da obra de Meira Penna insere-se, como já foi apontado, no terreno da filosofia e da psicologia social, com a discussão do problema das relações entre epistemologia e poder. Nesse contexto situam-se obras como O Evangelho segundo Marx, A Ideologia do século XX, Opção preferencial pela riqueza e O espírito das Revoluções

O autor tem adotado a defesa do ponto de vista neo-liberal, seguindo a tradição da escola austríaca de Hayek e von Mises. Tem participado ativamente do debate acerca da problemática do estatismo, defendendo a tese do "estado mínimo" e da máxima liberdade para a iniciativa privada e o mercado. Com a finalidade de analisar criticamente a realidade do Estado patrimonial brasileiro do ângulo neo-liberal, o autor escreveu vários artigos e ensaios em revistas especializadas, que foram compilados na sua obra intitulada O Dinossauro, que constitui, como destacarei no item seguinte, uma das mais importantes contribuições à análise crítica das relações de poder na sociedade brasileira.


II
A CRÍTICA DE MEIRA PENNA AO ESTADO PATRIMONIAL


O Brasil não chegou ainda à idade da razão. O cogito ergo sum cartesiano foi substituído, na nossa sociedade presidida pelas relações afetivas, pelo coito ergo sum macunaímico. Essa seria a primeira caracterização que Meira Penna formula em relação à nossa realidade. Não se trata, evidentemente, de atitude puramente negativista em face do país. A atitude do nosso autor é crítica, não perdoa as incoerências nem dá trégua ao bom-mocismo. Mas trata-se de uma atitude crítica construtiva. Se quisermos sair do marasmo secular em que estamos confinados, como eterno país do futuro, devemos olhar com claridade para dentro de nós mesmos, conhecermos a fundo as nossas potencialidades e mazelas, a fim de remediar as segundas e fazer crescer as primeiras. É nesse contexto de ética intelectual weberiana em que se situa a crítica de Meira Penna ao Patrimonialismo.

A análise de Meira Penna acerca do Estado patrimonial inspira-se, basicamente, na crítica de Tocqueville ao centralismo francês. Meira Penna, aliás, inicia o seu livro O Dinossauro [1988] com a seguinte paráfrase, tirada de A Democracia na América [cit. por Meira Penna, in 1988: II]: "Sobre essa raça de homens opera um poder imenso e tutelar que se atribui a obrigação exclusiva de gratificá-los e presidir sobre seu destino. Esse poder é absoluto, minucioso, regular, providente e suave. Seria como uma autoridade de pai se, como essa autoridade, fosse seu propósito preparar os homens para a idade adulta; mas ele procura, ao contrário, mantê-los em perpétua infância: contenta-se em que o povo se divirta, contanto que não pense em outra coisa senão divertimento. Para sua felicidade tal governo trabalha com prazer, mas deseja ser o agente único e árbitro exclusivo dessa felicidade... Assim cada dia torna menos útil e menos freqüente o exercício da livre capacidade do homem; circunscreve a vontade num âmbito cada vez mais estreito e gradualmente priva o homem de todos os usos que, de si mesmo, pode fazer. O princípio da igualdade preparou os homens para essas coisas, os predispôs para suportá-las e freqüentemente para considerá-las como bens".

Não podia ser outra a fonte de inspiração do nosso autor na sua crítica ao patrimonialismo, levando em consideração que o seu livro O Dinossauro constitui, no sentir dele, "(...) a minha primeira contribuição para a Coleção do pensamento neoliberal ou liberal-conservador, que a Sociedade Tocqueville pretende editar" [Meira Penna, 1988: III, nota]. 

Lembremos que a mencionada Sociedade tinha sido criada em 1986, sob a inspiração de Meira Penna, por alguns intelectuais (entre os quais eu próprio me encontrava) do Rio de Janeiro, Brasília, São Paulo, Florianópolis, Porto Alegre e Santa Maria, com o propósito, como frisava a Carta de Princípios e Programa de Atuação [in Meira Penna, 1988: III], de "contribuir, pelo seu exemplo, no sentido de que as diversas correntes em que se divide a opinião nacional sejam levadas a explicitar corretamente os princípios em que se louvam", a fim de que fiquem claras as diferenças entre socialistas e liberais, no que se refere à construção do Estado. Este, pelos primeiros, sempre foi entendido como realidade mais forte do que a sociedade, enquanto que, para os segundos, deve estar a serviço da mesma. Segundo rezava mais adiante a Carta de Princípios da Sociedade Tocqueville, "a realidade do Estado patrimonial burocratizado configura ainda (...) o complexo de clã (Oliveira Vianna), em que predominam as funções afetivas e os critérios concretos de simpatia ou antipatia, no relacionamento pessoal privilegiado, em detrimento dos princípios abstratos de obediência à lei, de ordem, de responsabilidade e de justiça. Ainda existimos em berço esplêndido, sob a proteção do clã familiar. Quem não tem pai, padrinho ou patrono não tem vez. Só entramos parcialmente na Idade da Razão. A nossa modernização se processou a médias. O anacronismo e defasagem de nosso desenvolvimento cultural e mental é o que abre as portas à tentação totalitária".

A crítica de Meira Penna ao Estado patrimonial insere-se, portanto, nessa finalidade mais ampla (encampada pela Sociedade Tocqueville), de contribuir para o ingresso do Brasil na idade da razão. Segundo o nosso pensador, a sua primeira crítica ao Estado patrimonial data de 1972. A sua convicção viu-se reforçada pela débacle do estatismo na Europa e nos Estados Unidos, ao longo dos anos 80. "Universalmente, --frisa a respeito Meira Penna-- o público descobriu, como uma revelação súbita, que a culpa dos nossos males atuais cabe ao Estado forte e açambarcador, ao Estado burocrático repressivo" [1988: 9].

Em que consiste a essência do Patrimonialismo? Meira Penna considera que foi Max Weber quem melhor a definiu. "Nesse sistema -- frisa o nosso autor -- poderes particulares e as vantagens econômicas correspondentes são apropriadas, isto é, tornam-se propriedade particular do Chefe. Weber discute com certo pormenor a maneira como se processa essa apropriação. Vemos, no caso do Brasil, que a descrição se enquadra com bastante exatidão no que ocorre em nosso regime clientelista (...)" [1988: 142]. 

Neste, segundo Meira Penna, consolida-se a confusão entre as esferas pública e privada. A respeito, frisa: "O coronelismo, o clientelismo, o compadrio, o empreguismo, esse emaranhado extremamente confuso de relacionamentos e obrigações personalistas, ao nível municipal, que se associam à estrutura patrimonial do país, consistem (...) no aproveitamento privado da coisa pública. O coronelismo representa a forma local de domínio personalista. O patrimônio privado é ao mesmo tempo o patrimônio público. A privatização concreta se traduz pela incapacidade de conceber o governo como oriundo de um pacto social abstrato em que, segundo Hobbes, Locke e Rousseau, o Estado utiliza as leis como instrumento de sua autoridade. Um antigo governador do Ceará, o ministro Parsifal Barroso, contou-me que, quando visitava uma aldeia do interior, a população acudia para recebê-lo, aos gritos de lá vem o governo: a pessoa do governador é confundida com o próprio governo, sem distinção entre o corpo concreto do homem e a idéia abstrata de uma instituição" [1988: 144].

Analisarei neste ensaio a crítica de Meira Penna ao Estado patrimonial, em seis itens: Patrimonialismo, o mal latino;  Patrimonialismo e familismo clientelista; Patrimonialismo e formalismo cartorial; Patrimonialismo e estatismo burocrático; Patrimonialismo e mercantilismo; Patrimonialismo e corrupção. Concluirei mostrando quais são, do ponto de vista brasileiro e na perspectiva do nosso autor, as alternativas em face do Patrimonialismo.
 

1- Patrimonialismo, o mal latino.

Para Meira Penna, o vício do Patrimonialismo não é apenas caraterística culturológica que acompanhou a formação do Estado no Brasil. É herança, também, dos povos latinos. Franceses, italianos, espanhóis, portugueses e latino-americanos em geral, viram consolidar as suas instituições políticas de forma patrimonialista.

Em relação à França, o nosso autor alicerça-se diretamente na obra de Tocqueville L'Ancien Régime et la Révolution. Os franceses acostumaram-se a enxergar os seus chefes como tutores, após séculos de centralismo paternalista do Monarca sobre a nação. Meira Penna cita as palavras de Tocqueville a respeito: "Quando penso nas pequenas paixões dos homens de nossos dias, na frouxidão dos costumes, na potencialidade de suas luzes, na pureza de sua religião, na condescendência de sua moral, em seus hábitos metódicos, no apego que experimentam em relação ao vício, não creio que eles vejam seus chefes como tiranos, mas antes como tutores" [cit. por Meira Penna in 1988: 223-224].

Comentando as palavras do pensador francês, Meira Penna escreve: "Tocqueville acentua ainda, enfaticamente, como o novo regime democrático, longe de favorecer o desenvolvimento da liberdade individual, proporcionou o crescimento do poder estatal centralizador. Tocqueville é sem dúvida o primeiro pensador que caracterizou concretamente o antagonismo entre o puro democratismo e o conceito de liberdade. Escreve ele (..): Por debaixo da superfície aparentemente caótica, se desenvolvia um poder vasto e altamente centralizado que atraía para si e moldava num todo orgânico todos os elementos de autoridade e influência que até então se encontravam dispersos entre uma multidão de poderes menores e não coordenados... Nunca desde a queda do Império Romano o mundo contemplou um governo tão altamente centralizado. Tocqueville salienta, desde logo, que foram o aumento da burocracia estatal, juntamente com sua crescente ineficiência e corrupção, muito mais que as guerras, os magníficos palácios e o luxo da corte que determinam o colapso financeiro da França, motivo imediato da Revolução. Versailles e as aventuras bélicas dispendiosas arruinaram, sem dúvida, o final do reino de Luís XIV. Mas a segunda metade do século XVIII foi relativamente pacífica e Luís XVI não se excedeu em construções extravagantes. A estrutura econômica do país era basicamente saudável. O que estava acontecendo é que um número realmente excessivo de indivíduos da nobreza e da burguesia mamavam nos úberes fartos do Tesouro. O Estado se depauperava. A França estava falida" [1988: 224].

A figura centralizadora e omnipresente de Colbert é, no contexto francês, o exemplo do superbarnabé que faria as delícias do cartorialismo lusitano rejuvenescido sob Pombal. A respeito desse arquétipo e dos nefastos efeitos da sua ação cartorial sobre a França, escreve Meira Penna: "(...) Colbert é uma espécie de primeiro modelo do superburocrata. O Leviatã absolutista que Luís XIV impusera sobre a França incluía esse funcionário típico que trabalhava dezesseis horas por dia, que era tão frio, inflexível e cruel que madame de Sévigné o apelidara Le Nord, e que esfregava as mãos de volúpia quando chegava ao escritório, às 5:30 da madrugada, e encontrava a mesa apinhada de processos para despachar. De fato, tudo despachava. Despachava também para as galeras os comerciantes que ousassem importar do exterior, em concorrência às manufaturas estatais, tecidos de algodão. E tudo regulamentava, disciplinava, obstruía, ordenava, coibia com suas famosas Ordonnances. E multiplicava os decretos criando empresas públicas, manufaturas reais, tecelagens reais, forjas reais, arsenais reais e milhares de outras companhias reais, sempre na crença de que cabia ao Estado incentivar a indústria. A iniciativa privada era a priori suspeita. A economia era desenhada geometricamente, à la française como os jardins, mas o resultado final é que em todos os terrenos a França começa a ficar para trás já a partir de 1800. Uma por uma, as repúblicas e monarquias capitalistas de religião protestante, com exceção da Bélgica, ultrapassam os índices de produtividade e de renda ostentados pela França (...)" [1988: 229].

Meira Penna considera que o centralismo francês em muito se assemelha ao centripetismo do Estado patrimonial português, no período colonial. A semelhança alicerça-se num ponto específico: manter inalterada a dominação do centro, aniquilando qualquer tentativa de atividade organizada e de solidariedade espontânea. É o que Weber diz quando afirma que, para o patrimonialismo, é intolerável qualquer pretensão de dignidade por parte dos dominados [Weber, 1944: IV, 175 seg.].

Em relação a essa semelhança, afirma Meira Penna: "Tocqueville também explicou com muito acerto como a política municipal e principalmente a política fiscal dos monarcas absolutos dos séculos XVII e XVIII acabaram definitivamente com qualquer veleidade de iniciativa e qualquer possibilidade de atividade organizada espontânea, particularmente nos escalões inferiores. Nesse sistema de impostos, afirma Tocqueville, cada contribuinte tinha, efetivamente, um interesse direto em espionar seus vizinhos e denunciar aos coletores os progressos de suas fortunas: todos eram instruídos para a delação e o ódio. Vemos assim a semelhança com o que ocorreu no Brasil colonial em virtude das mesmas causas. A rigidez, a centralização e o controle opressivo do sistema francês se sustentam na necessidade de manter a ordem numa sociedade por natureza rebelde (...)" [1988: 231].

Esse centripetismo produziu o atraso das colônias francesas, segundo Tocqueville. Meira Penna destaca, com as seguintes palavras, a semelhança no atraso produzido nas suas respectivas colônias pelas políticas ultramarinas patrimonialistas francesa e ibérica, "(...) a experiência canadense constituiu uma espécie de caso-limite, alguns de cujos aspectos mais lamentáveis deviam reproduzir-se mais tarde, na segunda grande experiência de colonização realizada pela sociedade francesa, a experiência argelina. O ponto importante é que Tocqueville salienta a rigidez e centralização burocrática extrema do sistema colonial francês, em condições que muito lembram o ocorrido no Brasil e no resto da América Latina. O fracasso desse tipo de colonização e o subdesenvolvimento deixado como herança no Québec, testemunham o fato de que as mesmas causas tiveram o mesmo efeito lamentável. É nesse sentido que as observações de Tocqueville são relevantes" [1988,: 233].

mal latino do patrimonialismo afetou também aos italianos. Eles teriam herdado da ocupação espanhola dos séculos XVI e XVII os preconceitos contra o trabalho produtivo, que constituem o caldo de cultura apropriado para o espírito orçamentívoro. Em relação a esse ethos do não trabalho (que é típico também da cultura brasileira), o nosso autor comenta com as seguintes palavras os estudos de conhecido ensaísta italiano: "(Luigi) Barzini começa aceitando em parte a explicação de alguns escritores, seus compatriotas, que atribuem ao longo domínio espanhol na Itália meridional alguns dos males administrativos aparentemente incuráveis do país. A culpa caberia, diz ele, ao desprezo feudal dos espanhóis pelas ocupações úteis e produtivas. O galantuomo consideraria sinal de distinção o não fazer nada. A ociosidade representaria um status symbol. Barzini (...) denomina preconceitos barrocos o conjunto de características que Gilberto Freyre e Oliveira Vianna, entre nós, estudaram e classificaram como complexo do gentleman. A forma principal é o desdém pelo trabalho manual, pelo comércio, o dinheiro e a atividade produtiva. Dizia-se, no Brasil colonial, o ócio vale mais do que o negócio... Hoje, a vingança do burocrata preguiçoso, que não é promovido, e do intelectual ocioso, que está na miséria, é pôr a culpa em cima do capitalismo e do imperialismo yankee..." [1988: 237].

mal latino também está presente na América espanhola. A mais acabada manifestação dele é o patrimonialismo telúrico da ditadura científica mexicana, tão bem estudado por Octavio Paz. Segundo Meira Penna, para o mencionado Prêmio Nobel "(...) o Estado patrimonial mexicano constitui uma sociedade cortesã, pois no regime patrimonial o que conta, em última análise, é a vontade do príncipe e de seus clientes e agregados" [1988: 247]. 

O nosso autor antecipava, na época da publicação de O Dinossauro em 1988, os dissabores que a bem comportada ditadura científica do Partido Revolucionário Institucional enfrentaria em Chiapas, nos anos 90. Estas são as suas palavras a respeito: "(O governo mexicano) sustenta o regime marxista da Nicarágua e as guerrilhas vermelhas da América Central e não seria de admirar se um dia o feitiço se virasse contra o feiticeiro: afinal, poucos países na América Latina continuam a oferecer um espetáculo mais deprimente de tamanhas massas de miseráveis desempregados, alimentados com tortilla e propaganda. Um dia poderá ocorrer que eles se decidam a passar da ingestão passiva da theoria para o exercício mais ativo da praxisrevolucionária..." [1988: 251].

Traço comum aos patrimonialismos ensejados pelo mal latino é o clericalismo, que constitui uma manipulação da variável religiosa, com a finalidade de preservar a dominação de uma elite que privatizou o poder em benefício próprio. Essa é uma caraterística geral dos países que incorporaram a mentalidade tridentina. Esse caráter culturológico estende-se no plano histórico desde o século XVI até os nossos dias. Espírito contra-reformista e Teologia da Libertação seriam dois momentos dessa evolução. 

A respeito, escreve Meira Penna: "O Estatismo absolutista está implícito na Contra-Reforma: a Igreja apelara para o Estado no sentido de suprimir a heresia. A Igreja conclamara os soberanos temporais para a luta contra o liberalismo dito protestante, anglo-saxão e modernizante. Os reis absolutistas, Felipe II na Espanha, Luís XIII, com Richelieu, na França e Luís XIV se aproveitaram da oportunidade para hostilizar os primeiros anseios de liberdade que se faziam sentir. Um liberalismo nascente que implicava a liberdade de julgar problemas morais ou liberdade de consciência e que seria fruto, segundo argumentava a Igreja, das detestáveis heresias de Lutero e Calvino. Em última análise, o liberalismo seria diabólico. O Catolicismo da Contra-Reforma é que, por tradição, transmite o autoritarismo o qual se transmuda hoje, naturalmente, no social-estatismo dos marxistas e dos teólogos da libertação" [1988: 230]. Convém destacar que o nosso autor dedicou dois trabalhos à crítica da Teologia da Libertação: O Evangelho segundo Marx [1982] e Opção preferencial pela riqueza [1991].

2 - Patrimonialismo e familismo clientelista.

Para Meira Penna, as sociedades estruturadas de forma patrimonialista são, antes de mais nada, organizações não puramente racionais, mas portadoras de uma racionalidade afetiva. O nosso autor alicerça em Weber e Jung essa sua apreciação, destacando, de um lado, o distanciamento das organizações patrimoniais em relação ao puro modelo racional-legal weberiano, mas identificando nelas, ao mesmo tempo, uma modalidade especial de legitimação, alicerçada no sentimento [1988: 149-150].

Meira Penna define a sociedade legitimada pela racionalidade afetiva como Coisa Nossa ou Patota. Eis a forma em que o nosso autor aplica esses conceitos à sociedade patrimonialista brasileira, seguindo, nesse ponto, a análise que Oliveiros Ferreira desenvolveu em relação à Máfia siciliana: "A Coisa Nossa brasileira não é necessariamente uma organização criminosa porque é tradicional. A Máfia siciliana também não é, na Sicília, considerada criminosa. Considera-se, ao contrário, uma honrada sociedade. Ela constitui tão somente (...) uma coterie. Uma teia de relações sociais, às vezes centrada no que se poderia chamar de estruturas de parentesco, o mais das vezes tecidas na intimidade, primeiro, das experiências comuns nos bancos acadêmicos, depois na compartilha de iguais vicissitudes do início da vida profissional, dos mesmos desejos de fugir às responsabilidades do trabalho assalariado (...). A Coisa Nossa é uma coterie, ou se se quiser, no sentido da gíria brasileira, uma patota, isto é, grupo ou bando que, até se poderia dizer, faz patotadas. Os membros do sistema burocrático ou o que mais recentemente também se designa como Nova Classe ou Nomenklatura, vivem de e para o aparelho de Estado. Não diria que são corruptos ou cínicos quando aceitam favores deste ou daquele a quem um dia favorecerão... Eles têm esses favores (de) que são cumulados como coisa natural: é parte inerente da função receber presentes!" [1988: 148].

O patotismo, no entender de Meira Penna, constitui a privatização do poder por uma minoria que se assenhoreia do Estado em benefício próprio. Na nossa tradição sociológica esse fenômeno recebeu também os nomes de clientelismo, coronelismo, compadrio. Tratando de caracterizá-lo mais detalhadamente, o nosso autor frisa: "O coronelismo, o clientelismo, o compadrio, o empreguismo, esse emaranhado extremamente confuso de relacionamentos e obrigações personalistas, ao nível municipal, que se associam à estrutura patrimonial do país, consistem, essencialmente, no aproveitamento privado da coisa pública. O coronelismo representa a forma local de domínio personalista. O patrimônio privado é ao mesmo tempo o patrimônio público. A privatização concreta se traduz pela incapacidade de conceber o governo como oriundo de um pacto social abstrato em que, segundo Hobbes, Locke e Rousseau, o Estado utiliza as leis como instrumento de sua autoridade (...)" [1988: 144].

Seguindo as análises feitas sobre a nossa realidade patrimonialista por Riordan Roett, o nosso autor destaca o caráter minoritário da nomenklatura que empolgou o poder no Brasil. A respeito, afirma: "Seria uma minoria mas assim mesmo uma minoria ponderável pois, com sete ou oito milhões de funcionários públicos e suas respectivas famílias, os parasitas do Estado não constituem parcela pequena da nossa sociedade" [1988: 146]. Esses parasitas são, no entender de Meira Penna, os identificados por Raymundo Faoro como donos do poder [1988: 147].

O vício do familismo clientelista é tão antigo quanto o Brasil. Estende-se por gerações e gerações, desde os tempos de Pero Vaz de Caminha (que pedia ao Monarca, na sua carta, sinecuras para familiares), até o dia de hoje. Meira Penna ilustra essa tendência com muitos exemplos tirados da sua longa experiência no serviço público. Citemos apenas três casos dos muitos apresentados pelo autor.

O primeiro foi vivido pessoalmente por ele, quando do início da sua vida diplomática. Ele era concursado, (como foi também Roberto Campos) com todas as exigências legais para ingressar no serviço diplomático. Mas teve alguns felizardos, amigos do Homem, que entraram pela janela. Eis as suas palavras a respeito: "O testemunho de minha experiência pessoal, como burocrata do Serviço Exterior brasileiro, pode contribuir para reforçar esses conceitos (...) sobre o patrimonialismo do sistema administrativo brasileiro. Em 1938, com vinte anos de idade, ingressei por concurso na carreira diplomática. Nem meu pai, nem qualquer outro membro da minha família, mantinham qualquer relação de amizade ou clientelismo com os donos do poder da época. A própria instituição do concurso, com todos os cuidados que a protegem da intervenção de fatores afetivos relacionados com o personalismo, constitui uma expressão do sistema burocrático funcional, democraticamente aberto e concebido como instrumento da autoridade racional-legal. A instituição do Mandarinato na China confuciana já o admitira há quase dois mil anos! Pois bem, na véspera do dia em que eu e mais cinco colegas, aprovados no concurso, fomos nomeados para a carrière a que faziamos jus automaticamente por aquele instrumento legal, dez outros simpáticos personagens locupletaram-se igualmente do decreto presidencial: eram todos filhos ou parentes de autoridades, ou amigos gaúchos do ditador. Nenhum deles preenchia as condições mínimas exigidas para a candidatura por concurso ao cargo inicial do Itamaraty. Chamava-se então àquilo de entrar pela janela... Queiram imaginar o estímulo que, para nós, concursados, representou aquele ato estupendo de privilégio patrimonialista!" [1988: 152].

Os outros dois exemplos que mencionaremos a seguir, ilustram como o vício do clientelismo familístico é próprio da nossa estrutura patrimonialista, tanto em tempos de autoritarismo (como no caso anteriormente mencionado), quanto em épocas mais brandas de abertura democrática. A respeito, Meira Penna escreve: "Quando (...) o Presidente do Supremo Tribunal Federal, o mais altamente colocado magistrado do país e aquele de quem mais se poderia exigir o cumprimento rigoroso das Leis, quando esse juiz, dizia eu, exerceu interinamente a presidência da República, em 1945, após a primeira derrubada de Getúlio Vargas por um golpe militar, sua primeira preocupação, senão única, consistiu em nomear todos os parentes para cargos públicos, inclusive o próprio filho para a carreira diplomática. Em outras palavras, considerou imediatamente que a presidência da República era seu patrimônio particular. Por que não dela se locupletar enquanto houvesse tempo? Estou seguro de que nenhuma compunção moral o deteve. Criticado, o aludido magistrado achou suas iniciativas perfeitamente legítimas, não podendo mesmo compreender o sentido da crítica... Quarenta anos depois, terminou o regime militar e a chamada Nova República se inaugurou com uma verdadeira maré de nomeações e promoções da enorme clientela respectiva, em praticamente todos os Estados da Federação e em Brasília. O governador de São Paulo, em que pese sua sofisticação, discretamente colocou em posições no Palácio dos Bandeirantes toda a sua família. O resultado do sistema é que a classe privilegiada que se apropriou das alavancas do governo graças a mecanismos representativos imperfeitos e, em muitos casos espúrios, mantém indefinidamente seu poder, quaisquer que sejam as peripécias da vida política da nação. As revoluções ocorrem. Mudam os regimes. Os governos se sucedem. Mas os mesmos políticos ou seus clientes conservam o poder de controle absoluto sobre a Cosa Nostra..." [1988: 150-151].

O mecanismo para ingressar na estrutura do Estado Patrimonial brasileiro, acabamos de ver, não é certamente o concurso, embora estes aconteçam como exceções que confirmam a regra. O mecanismo normal de ingresso e promoção, no seio do patrimonialismo, é o conhecido pistolão, que é definido pelo nosso autor como "(...) a relação de um empregado (nomeado ou promovido) com alguém na organização hierárquica, por força de laços de sangue, casamento ou amizade" [1988: 213].

Entre os muitos exemplos de pistolão apresentados pelo nosso autor, citemos este, tirado da carreira diplomática: "O critério do pistolão adquiriu outrora uma complexidade prodigiosa. Houve um Presidente da República que se queixava de serem as promoções do Itamaraty (...) um dos atos mais difíceis de sua administração. Os candidatos à promoção de embaixador ou a ministro ou ao posto de conselheiro da Embaixada em Paris se apresentavam armados, como num jogo de pôquer, de um par de senadores e um par de arcebispos; ou de uma trinca de generais; ou de uma seqüência parlamentar (a bancada do Estado); ou de um pôquer de ministros, acrescido da diretora do Museu de Arte Moderna. Em outros ramos do serviço público o sistema não atingia tal sofisticação, mas o mecanismo é o mesmo" [1988: 214].

Aspecto deveras paradoxal do familismo é o chamado por Meira Penna de nacionalismo uterino, que constitui "uma combinação indecente de burocracia e ideologia nacionalista", que "se rebela contra uma política necessária, urgente e nacional de controle da natalidade" e que, ao mesmo tempo, "age no sentido de dificultar o processo de adoção". Trata-se, para o nosso autor, de um caso de cruel ignorância das elites política e eclesiástica acerca desse gravíssimo problema, cuja essência é assim identificada: "O espetáculo nacional apresenta curiosidades e incoerências que, às vezes, nos enchem de grande perplexidade. Vejam, por exemplo, o seguinte caso: nascem aqui cerca de quatro e meio milhões de crianças por ano. O índice de natalidade talvez ainda ultrapasse os 4%, elevadíssimo e próprio de país subdesenvolvido (...).Dos quatro e meio milhões de bebês nascidos vivos, mais de 300.000 morrerão antes de alcançar cinco anos. Milhões serão abandonados. Milhares se transformarão em trombadinhas e, eventualmente, em marginais, assaltantes e assassinos (...)" [1988: 176-177].

3 - Patrimonialismo e formalismo cartorial.

Alheia à racionalidade weberiana, a burocracia tupiniquim terminou se fossilizando num vácuo formalismo cartorial, que tudo paralisa e que inferniza a vida do cidadão comum. Se o monstro patrimonial é bonzinho com os seus, com o resto é autêntico ogre. O Estado Patrimonial, como aliás destacou acertadamente Octavio Paz, é um ogre filantrópico [Paz, 1983], ou como se diz nestes tempos de máfias previdenciárias, um ogre pilantrópico.

A caracterização que desse irracional formalismo faz Meira Penna é deveras rica e ampla, porquanto abarca aspectos os mais diversos da vida social brasileira. Eis as suas palavras a respeito: "O Brasil é o país das certidões, dos documentos carimbados com firma reconhecida, dos processos tão pesados e lentamente elaborados quanto o Antigo Testamento, das filas intermináveis no suplício medieval dos guichets. 

É o país onde o processo de aposentadoria de um velho e cansado funcionário, que tudo deu pelo Estado, sofre a via dolorosa de, pelo menos, 193 encaminhamentos (se devemos dar crédito a um ministro do Planejamento), antes de ser despachado em favor do beneficiário. Outro ministro certa vez apresentou, na televisão, dezenas de metros de formulários, colados uns ao lado dos outros, para ilustrar qual a documentação necessária a um processo de exportação: verdadeira jibóia destinada a estrangular o afoito que pretendeu vender ao estrangeiro soutiens de senhoras. (...) Demora-se no Brasil quinze dias para obter um atestado de bons antecedentes porque todo cidadão, até prova em contrário, é considerado mentiroso e salafrário... Neste nosso país um doente, à morte, que dá entrada no hospital (...) tem previamente de apresentar contra-cheque, fotografia e certidão de casamento. Um candango que precisa obter uma carteira de identidade do INI de Brasília, tem de tirar fotografia com paletó e gravata: só assim se identifica... Um cadáver de brasileiro, embarcado no exterior para ser enterrado no abençoado torrão natal, deve ser legalizado, pagar emolumentos consulares e ser despachado com a classificação espécimen de história natural, sem o que não vencerá a barreira do Aquerontes alfandegário. Nessa barreira, uma escultura metálica de Mary Vieira foi certa vez embargada porque classificada como sobressalente de automóvel com similar nacional, sem licença de importação. Dois elefantes doados pela Índia para o jardim zoológico do Rio não atravessaram o Styx. Pudera! Enorme esforço é empreendido pelo Estado para o desenvolvimento das nossas inesgotáveis potencialidades turísticas, e no entanto este mesmo Estado ergue, em suas repartições, uma barreira de desconforto, impolidez e terror destinada a afugentar o mais entusiástico admirador de Copacabana e das Cataratas do Iguaçu. Barreiras fiscais internas, denominadas Barreiras do Inferno, compartimentam ainda o país, semelhantes às que dividiam a Europa antes da Idade da Razão (...)" [1988: 164-165].

Mas este mal, como o familismo, não é recente. Confunde-se com as nossas origens. Humboldt e Darwin já sofreram, no passado remoto, com essas mesmas barreiras da nomenklatura. A respeito, escreve Meira Penna: "Mal de muitos consolo é: visitando o Brasil em 1832 (uma experiência inolvidável para ele e para a ciência, pois aqui se inspirou antes de escrever A Origem das Espécies), Charles Darwin teve que obter um passe, a fim de penetrar no interior. Sua experiência foi semelhante à de outro famoso colega, um tal barão de Humboldt, que também, no alto rio Branco, se deparou com a desconfiança do burocrata brasileiro. Eis o que escreve Darwin em seu Diário: Passou-se o dia procurando obter passaporte para minha expedição pelo interior. Não é nada agradável a gente submeter-se à insolência de funcionários públicos; mas se submeter aos brasileiros, que são tão desprezíveis no espírito como miseráveis no corpo, chega a ser intolerável. A perspectiva, porém, de ver uma floresta que é habitada por belas aves, macacos, preguiças e lagos onde moram jacarés, fará qualquer naturalista lamber o pó que acaba de ser pisado até mesmo pelo pé de um brasileiro.... Como explicar esse caráter agressivo da burocracia patrimonialista, num país que se orgulha de ser tolerante e ambiciona desenvolver-se racional e legalmente, segundo o modelo democrático?" [1988: 165-166].

O formalismo cartorial brasileiro é estetizante, no sentir de Meira Penna, pois constitui uma espécie de liturgia dos donos do poder, destinada a manter os seus privilégios e a sua preeminência sobre a sociedade. A respeito frisa o nosso autor: "Na burocracia brasileira o que vale é o status. O mandarim tem que se dar ares de importância. A Persona é importantíssima! O conceito de manter a face. Carro oficial com chapa branca, casa na península ou apartamento funcional na Asa Sul, esposa bem vestida pela moda francesa, casamento com a presença do senhor Presidente da República. Reina, sobretudo em assuntos de interesse financeiro, uma atmosfera de solenidade, de mistério: os menores problemas se transformam em enigmas insondáveis. Cria-se uma barreira intransponível, se não existe um mínimo de intimidade pessoal entre os interessados (...)" [1988: 189].

Outra nota do nosso cartorialismo é a ineficiência. Alicerçado na ética macunaímica do menor esforço, o burocrata, além de se dar ares de importância, age com mentalidade de elevador: empurra todos os processos para cima. Em relação a esse ponto, frisa Meira Penna: "A combinação do desejo de se dar ares de importância com a relutância em tomar decisões, em seu próprio nível, tem como conseqüência a pressão tremenda exercida no sentido de empurrar todos os expedientes para cima, para os ministros de Estado e para o Presidente da República (...)" [1988: 190].

Mais uma nota do cartorialismo brasileiro: as leis não possuem entrelaçamento racional. Consequentemente, o povo não acredita nelas. O único cimento que as cola é a interpretação voluntariosa delas, feita pelos próprios funcionários, de acordo com os seus interesses. A respeito, o nosso autor cita o testemunho do diplomata húngaro Peter Kellemen, para quem o brasileiro "é um povo onde as leis são reinterpretadas; onde regulamentos e instruções do governo já são decretados com um cálculo prévio da percentagem em que são cumpridos; onde o povo é um grande filtro das leis e os funcionários, pequenos ou poderosos, criam sua própria jurisprudência. Ainda que esta jurisprudência não coincida com as leis originais, conta com a aprovação geral, se é ditada pelo bom senso" [cit. por Meira Penna in 1988: 191].

4 - Patrimonialismo e estatismo burocrático.

A ausência de racionalidade fez com que a estrutura burocrática do Estado patrimonial brasileiro crescesse adiposamente, sem nenhuma preocupação de eficiência. O nosso autor ilustra de forma plástica esse mostrengo, que cresceu com o correr dos séculos como uma espécie de pirâmide inamovível, em cujo vêrtice repousam, inatingíveis, os nobres da nomenklatura, "duques e marqueses poderosos" servidos por um exército de intermediários, uma classe média visceral identificada com a "Maria Candelária", que vive sentada e fofoca durante o expediente e uma base ampla de ineficientes funcionários de baixo escalão, os contínuos.

Eis a fotografia de corpo inteiro do Leviatã brasileiro: "Monstro antediluviano, foi a burocracia brasileira erguida como instituição patrimonial com seus castelos, cercados de bastiões, fossos e pontes-levadiças. Neles habitam os grandes barões do Estado cartorial, a aristocracia soberba dos altos funcionários, duques e marqueses com sua enorme clientela de gordas escriturárias e magricelas serventes famintos, que suplementam o salário-mínimo com gorjetas e comissões. Sobrevivem o foro, a enfiteuse e o laudêmio. Sólidos como o Pão de Açúcar, resistem ao sopro de renovação os direitos adquiridos, que são muitos: o direito ao cargo para o qual foi nomeado sem concurso, por ser filho de fulano ou primo de dona Carmen; o direito à promoção por ser amigo de beltrano; o direito à reclassificação, por ser amante de sicrano" [1988: 188].

No corpo médio da pirâmide burocrática do Estado patrimonial brasileiro encontramos os intermediários, que possuem duas caraterísticas visceralmente unidas: servir de dique aos chatos que pretendem perturbar o repouso remunerado da cúpula, se beneficiando, nessa sua função patrimonialista, da privatização das vantagens que lhes garante a indústria de oferecer dificuldades para vender facilidades. 

Em relação a este estamento, escreve Meira Penna: "Para defender o status dos altos funcionários, a burocracia criou uma série de intermediários, o principal dos quais é o chefe de gabinete. A função desse é essencialmente a do Cão Cérbero: barrar a entrada. Sobretudo aos chatos. Ai daquele que não possa colocar com suficiente ênfase e força de convicção, para penetrar no augusto recinto, a clássica pergunta: O senhor sabe com quem está falando?... Uma outra classe de intermediários é o despachante. Trata-se de um prodígio biológico: o parasita dos parasitas. Quando não se pode recorrer a esse espécime burocrático, há que utilizar uma das técnicas especiais de penetração na burocracia. O funcionalismo criou o que já foi chamado a indústria de dificuldades para vender facilidades. Contra essa indústria, o recurso é o jeito. O trêfego e vivo Macunaíma, manhoso e cheio de velhacarias, aparece com seu saco de surpresas que sugerem a saída com uma brilhante sugestão salvadora. Toda a técnica pegajosa e açucarada do Eros é então utilizada para impô-la à situação, sobrepujando o obstáculo. A relação pessoal que se estabelece entre o funcionário e a parte sobrepõe-se ao dispositivo legal ou à inércia burocrática. Eros vence Anankê, a necessidade. É o jeitinho..." [1988: 190-191].

A base da pirâmide cartorial é formada pela arraia miúda da burocracia patrimonialista, as Marias Candelárias e os Contínuos, que constituem, respectivamente, a classe média visceral do sistema e a sua classe baixa. Eis a descrição desses personagens: "A massa passiva do funcionalismo, que se poderia chamar o tecido adiposo formado de glicerina e ácido grasso do nosso Dinossauro, é a Maria Candelária. Constitui a classe média visceral da burocracia. Sentada o dia inteiro, notável pela sua esteatopigia, conversa ela com as colegas sobre as peripécias da última novela de rádio e as fofocas da repartição, enquanto se estende a fila do público desesperado pelos corredores da repartição e até o portão do Ministério. Abaixo de todos, na escala hierárquica, temos a figura melancólica do contínuo. Sua missão é difícil de definir em qualquer sociedade que acredite em desenvolvimento e eficiência. Ele simplesmente existe. É expressão do subemprego generalizado com que o social-estatismo caritativo procura liqüidar com esse horroroso crime do capitalismo que é a concorrência e o desemprego. O contínuo aparece num corredor ou numa portaria, ao lado de um gabinete, geralmente sentado com um olhar vago de indiferença. Às vezes fica de pé, respeitosamente, quando passa um alto funcionário. Abre-lhe a porta. Carrega papéis e mensagens de um lado para outro. Tem o importante encargo de fazer café, levar a aposta da loteria esportiva, comprar cigarros e, ocasionalmente, o de receber propinas para desencravar processos perdidos em alguma gaveta ou obter assinaturas do chefe. Em troca, pede emprego para o filho..." [1988: 191].

5 - Mercantilismo e patrimonialismo.

Como se financia o Dinossauro Patrimonialista? Certamente não mediante o empreendimento capitalista teorizado por Adam Smith na sua clássica obra A Riqueza das Nações. O Patrimonialismo afina-se com uma concepção mercantilista das relações econômicas, que parte do pressuposto de que a riqueza já está feita e que o problema reside em como se apropriar dela, ou como realizar, segundo dizia Marx, a "acumulação primitiva". A concepção macro-econômica de Adam Smith, segundo a qual a riqueza não precisa ser roubada de ninguém, porquanto pode ser produzida mediante o trabalho, arrepia o lombo do rebanho burocrático, que sente calafrios em face da palavra tarefa ou produtividade. O mercantilismo, para Meira Penna, "(...) foi uma forma econômica que dominou a Europa, na fase preparatória da Revolução Industrial desencadeada pelo Capitalismo. Ele precede, portanto, o sistema de autoridade que Max Weber qualifica de racional-legal, correspondendo antes à fase final do modelo de autoridade dito tradicional patrimonialista" [1988: 140].

É longa, na nossa história, a tradição mercantilista aliada ao Patrimonialismo. Os prolegômenos desse modelo deram-se em Portugal. A propósito, frisa o nosso autor: "O mercantilismo que inspirou a conquista da Índia transformou o Estado português em gigantesca empresa de tráfico. Esse crescimento prematuro do poder do Estado, consolidado subseqüentemente e modernizado com o despotismo de Pombal, teria conseqüências ominosas. Ele impediu o desenvolvimento do capitalismo industrial que é, essencialmente, fruto da iniciativa privada. A península ibérica e suas colônias não conheceram as relações capitalistas na sua expressão industrial íntegra. O atraso ocorreu em virtude dessa ausência de raízes feudais profundas e da permanência teimosa de estruturas patrimonialistas centralizadas. O poder perene do príncipe português sobre o comércio e a economia está na origem do social-estatismo burocrático e paternalista (ou seria maternalista?) que hoje descobrimos no Estado brasileiro. A herança é o Dinossauro (...)" [1988: 156-157].

Essa tradição se fortaleceu, portanto, no período pombalino, quando o Estado começou a ser definido como fonte da riqueza da Nação, e passou a alicerçar os hábitos econômicos da sociedade, de forma que até os atores econômicos passam a esperar do Estado tutor o lucro subsidiado. É uma espécie de colbertismo caboclo, que tira da empresa econômica o caráter de risco, para transformá-lo em sujeição ao poder político. A respeito, afirma o nosso autor: "Tão fortemente entrincheirado na tradição e nos hábitos empresariais é o fato de que o próprio setor privado não se julga, muitas vezes, inclinado a enfrentar os árduos riscos do empreendimento, recorrendo ao Estado quando as coisas andam mal (...). Existe uma velha definição da empresa privada como uma empresa controlada pelo governo, sendo a empresa pública aquela que não é controlada por ninguém, mesmo se, na aparência, é administrada por coronéis reformados, tecnocratas profissionais, amigos do presidente da República ou políticos fisiológicos" [1988: 145].

O Brasil, atrelado ainda ao modelo mercantil-patrimonialista herdado do ciclo pombalino, está defasado historicamente em relação ao mundo desenvolvido. Vivemos, efetivamente, um modelo muito mais próximo das monarquias absolutistas dos séculos XVII e XVIII. A respeito, escreve Meira Penna: "Ora, a filosofia econômica desse sistema político foi articulada pelo que os entendidos (...) tendem a descrever como expressão econômica da monarquia absoluta e da autoridade patrimonialista: o Mercantilismo. No fundo, como aponta Antônio Paim, é ainda o espírito do marquês de Pombal que aqui impera" [1988: 158].

Esse modelo econômico de mercantilismo patrimonialista em que o Estado, através das empresas do setor público, garante a riqueza da nação, empolgou no Brasil sobretudo o pensamento da esquerda, que terminou formulando uma proposta de social-estatismo ou de nacional-socialismo, em que se insere, inclusive, a chamada opção preferencial pelos pobres dos chamados setores progressistas da Igreja. O nosso autor destaca o caráter retrógrado de tal política, que deixa as coisas como sempre estiveram, em mãos do Estado patrimonial e da sua burocracia. A respeito, escreve: "Não estou seguro de que uma revolução marxista no Brasil modificaria fundamentalmente a situação: a apropriação pessoal das rédeas de comando continuaria como dantes, com uma simples mudança de quadros numa estrutura burocrática já toda montada. O vício fatal do socialismo é, com efeito, a concentração do poder político e do poder econômico nas mesmas mãos. Sem o controle de um poder por outro poder, sem a liberdade de crítica, não pode haver justiça, nem é possível evitar a corrupção" [1988: 151].

O efeito mais claro do mercantilismo patrimonialista é a pobreza da Nação, assim como o efeito direto do Capitalismo seria a sua riqueza. Efetivamente, o modelo mercantilista é eminentemente improdutivo e espoliativo da riqueza existente. Esse modelo ultrapassado já causou à humanidade, ao longo dos séculos XVII e XVIII, inúmeras guerras, pois como frisa Irving Kristol, citado por Meira Penna, "o Mercantilismo não pretendia o aumento da riqueza permanente do povo (aquilo que é o propósito da economia capitalista), mas antes aumentar a riqueza temporária do Estado, a riqueza que podia ser traduzida em poder internacional" [1988: 159].

6 - Patrimonialismo e corrupção.

A soma do mercantilismo e do familismo produz um resultado concreto: a corrupção. Esta não é outra coisa do que a apropriação, pelos particulares, dos bens públicos, como se se tratasse de bens privados. Ora, essa é a essência do Patrimonialismo que constitui, portanto, uma fonte inesgotável de corrupção. O grande objetivo da burocracia é a privatização do orçamento em benefício próprio. É o fenômeno que Oliveira Vianna chamou de burocratismo orçamentívoro. Os números apresentados por Meira Penna acerca do acelerado crescimento da burocracia estatal brasileira e da sua cupidez, ao longo das últimas décadas, não mentem, e são sobejamente conhecidos por todos. Já frisava o professor Mário Henrique Simonsen, na sua obra Brasil, 2001, que o nosso país bateu todos os recordes de crescimento do setor burocrático estatal no Hemisfério Ocidental, ao longo do século que ora finda.

Apenas para ilustrar o mal do burocratismo orçamentívoro, citemos um texto do nosso autor: "O mal, infelizmente, não é apenas federal. É também estadual e, sobretudo, municipal. Ele está profundamente enraizado nos hábitos do governo e do povo, penetrando por todos os poros da administração ao nível mais regional e local. No Estado de São Paulo, unidade da Federação que é a mais avançada e progressista do país, haveria cerca de 800.000 funcionários em fins de 1985, segundo revelou a Secretaria da Fazenda do Estado. Isso representaria 120.000 a mais do que em dezembro de 1982, quando eram pouco mais de 640.000. Foi um crescimento de 18% em 3 anos, ou 6% ao ano, crescimento muito mais rápido que o aumento demográfico e o do produto interno bruto do Estado. A maior parte das nomeações dos 120.000 teria ocorrido na administração Montoro, mas também grande quantidade no final do governo anterior, explicando-se o exagero por motivações indiscutivelmente eleitoreiras. Os abusos do empreguismo, dos privilégios e da ociosidade parecem ser tanto maiores quanto mais pobre ou atrasado é o Estado ou o Município. Vejam o caso de Alagoas, que adquiriu uma triste notoriedade. A Assembléia Legislativa alagoana encerrou suas atividades, em 1985, criando 240 cargos de assessores para cada um dos 24 deputados. O diretor da Assembléia, Edvaldo Meira Barbosa, recebe um salário mensal equivalente a dez mil dólares, salário do mais bem remunerado executive americano, com a diferença que o diretor brasileiro não paga imposto de renda. (...) Dessa multidão de assessores (580), pelo menos 400 não trabalham, por falta de espaço físico. Alguém se espanta com a pobreza de Alagoas? Serão as multinacionais, o capitalismo industrial, a dívida externa ou os bancos estrangeiros responsáveis pela situação? Não parece claro qual o motivo local do subdesenvolvimento? (...)" [1988: 211].

7 - Alternativas ao Patrimonialismo.

Meira Penna encontra, na difusão das luzes da Razão no seio da sociedade brasileira, a solução para as contradições e irracionalidades ensejadas pela nossa tradição patrimonialista. O de que precisamos é, com dois séculos de atraso, da entrada definitiva do Brasil na Idade da Razão. É o que o nosso autor denomina de Revolução do Lógos. A respeito, escreve: "O de que precisamos, sem prejuízo da contribuição que sempre nos darão os que sentem, é uma revolução do Lógos (do bom senso, do equilíbrio, da inteligência), coisas que são necessárias, embora difíceis de obter, pois sem elas o monstro burocrático obsoleto estará sempre crescendo desmesuradamente. É nesse ponto que se coloca uma das mais cruéis opções com que nos deparamos em nosso esforço de renovação e modernização, pois se não eliminarmos a mamãezada e substituirmos o paquiderme terciário por um organismo mais evoluído, serão vãs as nossas esperanças de desenvolvimento. A opção é essa. Só essa" [1988: 259].

A proposta de Meira Penna aponta para um processo educacional que modifique a mentalidade. Somente assim garantir-se-á uma solução de fundo ao problema do Estado Patrimonial, que repousa em hábitos administrativos sedimentados ao longo dos séculos. Trata-se de uma proposta de pedagogia social e política. É o ponto que o nosso pensador destaca no seguinte trecho: "A pergunta natural para quem, de frente, fita o Dinossauro anteriormente descrito é a seguinte: Que fazer? Como caçar o monstro? Como eliminá-lo? Como diminuir o empreguismo, banir o clientelismo, combater o nepotismo, selecionar os melhores, aumentar a dedicação dos servidores, apressar e simplificar os processos, suprimir as tolices, racionalizar os serviços, reduzir o poder do Estado?Não se trata tanto, a meu ver, de tomar esta ou aquela medida legal corretiva quanto de mudar a mentalidade. Algo que virá lentamente com a educação, com o esforço consciente do governo e com o próprio desenvolvimento. Uma sociedade liberal moralmente estruturada poderá superar o estágio da mamãezada patrimonialista. Mas não é o caso de debater os remédios. Todo mundo sabe quais são, sobretudo se pertence à própria classe(...)" [1988: 259].

Duas instituições o nosso autor enxerga para, a partir delas, deflagrar o amplo processo educativo de que o Brasil carece: uma Escola Nacional de Administração, destinada à formação da elite técnica civil de que o Estado carece e um Instituto Superior de Ciência Política, destinado à formação da nova classe política. Ambas as instituições foram inspiradas, ao nosso ver, na experiência que Meira Penna teve no Itamaraty como diplomático de carreira. O Instituto Rio Branco representa, na burocracia brasileira, o mais bem sucedido intento de escola de altos estudos para formação de pessoal técnico a serviço do Estado. Diríamos que é uma das instâncias profissionalizantes que mais se aproximam, na nossa sociedade, do ideal burocrático-racional weberiano.

A primeira das instituições apontadas, a Escola Nacional de Administração proposta por Meira Penna, encontra uma outra fonte de inspiração: a École National d'Administration francesa, bem como a nossa Fundação Getúlio Vargas e a própria Escola Superior de Guerra. Essa instituição "assumiria uma função precisa e nitidamente delimitada: assegurar o recrutamento e a formação da fração superior do funcionalismo civil. A Escola apontada, como a ENA francesa, adotaria rigorosos critérios de seleção alicerçados exclusivamente na capacidade dos candidatos, desmontando portanto qualquer mecanismo familístico ou clientelista. Nela, frisa o nosso autor, "(...) são os próprios alunos que, por ordem de classificação final segundo o mérito, escolhem a carreira desejada nesse ou naquele Ministério, Tribunal ou Conselho mais procurado. O sistema cria um extraordinário estímulo, pois a escolha vai determinar o destino do rapaz nos 30 ou 40 anos seguintes. O serviço público deixa assim de constituir uma sinecura, alcançada a golpes de pistolão, para se tornar uma honraria dada ao mérito, e acompanhada de forte incentivo material. O serviço público adquire, em suma, o sentido mais alto de carreira, que encontramos nas armas e na diplomacia" [1988: 260].

A segunda das instituições propostas, o Instituto Superior de Ciência Política, encontrou inspiração imediata na Escola Superior de Guerra e na Escola de Governo de Harvard. O nosso pensador parte do seguinte princípio filosófico, herdado de Sócrates e Platão: "a boa política pode ser ensinada" [1988: 264]. Meira Penna formula nos seguintes termos o seu projeto de Instituto: "(...) o que apresento como proposta idônea é a organização de uma Escola de Altos Estudos Políticos, funcionando no quadro da Universidade de Brasília e sediada na capital. Seu propósito central seria constituir um fulcro de pesquisa e uma ponte entre a universidade, como mais alta instituição educacional, a meio caminho entre a esfera privada e a esfera pública, e o mundo da política" [1988: 266].

O Instituto apontado buscaria profissionalizar a atividade político-administrativa pelo estudo e pela pesquisa. Na trilha do princípio de Bacon de que conhecimento é poder, a ciência política permite, hoje, desenvolver um treinamento sério para o serviço público. A respeito, escreve Meira Penna: "(...) O de que se necessita, em conclusão, é de educação superior adequada de uma nova elite política. Uma profissão que incluiria as pessoas eleitas para o legislativo, nomeadas pelo executivo ou promovidas em suas carreiras estatutárias, independentemente das vicissitudes da vida partidária. Pessoas todas selecionadas na base de sua capacidade analítica, de seus conhecimentos teóricos, de sua sensibilidade aos imperativos da justiça, sua responsabilidade moral, sua competência administrativa prática e o seu sentido de fidelidade institucional" [1988: 267].

Conclusão

Algumas breves considerações para terminar. Meira Penna, graças ao seu conhecimento aprofundado do serviço público e da máquina administrativa do Estado, desenvolve uma das mais completas análises críticas do Patrimonialismo brasileiro. A sua contribuição coloca-o junto dos que se destacaram, ao longo dos últimos sessenta anos, no estudo da nossa tradição política: Oliveira Vianna, Gilberto Freyre, Raimundo Faoro, Simon Schwartzman, Guerreiro Ramos, Vianna Moog, Caio Prado Júnior, Miguel Reale, João Camillo de Oliveira Torres, Antônio Paim, Fernando Uricoechea, Wanderley-Guilherme dos Santos, Celso Lafer, Bolívar Lamounier e outros.

A análise efetivada por Meira Penna não faz concessões ao bom-mocismo ou ao politicamente correto. Corajosa atitude de quem, na casa dois oitenta anos, ainda não perdeu a capacidade de indignação diante das irracionalidades do nosso Leviatã e dos hábitos tortos por ele estimulados no seio da sociedade brasileira.

As propostas apresentadas pelo nosso autor, como vimos, situam-se no contexto do que o saudoso Roque Spencer Maciel de Barros denominava de "a ilustração brasileira", e que Meira Penna denomina de "a idade da Razão". Na trilha da lição aprendida do mestre embaixador, com quem criei, em 1986, a Sociedade Tocqueville e de quem sempre recebi estímulo para os meus estudos sobre o liberalismo, vou me permitir uma observação crítica. Não bastam, no combate ao Estado Patrimonial, a meu ver, medidas no terreno de uma nova paideia que aponte para a formação de uma elite civil e política. O ponto que me parece fundamental é que essas medidas venham acompanhadas de um aperfeiçoamento da representação e da vida político-partidária, sem as quais não se renova a capacidade da nossa sociedade para domar o dinossauro patrimonialista.

Falta-nos, no Brasil atual, como dizia Tocqueville em relação à França da sua época, construir o homem político, empreendimento que tanto ele como os seus mestres doutrinários entendiam em duas etapas, intimamente correlacionadas: ilustrada e institucional. Não há dúvida que é importante a instância ilustrada, concretizada, no nosso caso, nas propostas apresentadas por Meira Penna na sua obra. Mas falta-nos muito caminho para percorrer no que tange à questão do aperfeiçoamento das instituições que no Brasil garantam o exercício da liberdade e da democracia. Sem aperfeiçoarmos o sistema representativo e a vida político-partidária, terminarão vingando soluções aventureiras de rousseaunianismo caboclo, como a que anda apregoando o presidente Chávez na Venezuela. Neste campo não podemos deixar para depois, como filigrana jurídica, a discussão dos mecanismos institucionais e das reformas que precisam ser feitas. Este aspecto é tão fundamental quanto a Revolução do Lógos proposta pelo nosso autor.

BIBLIOGRAFIA CITADA
  • MEIRA PENNA, José Osvaldo de. O Evangelho segundo Marx. São Paulo: Convivio, 1982.
  • MEIRA PENNA, José Osvaldo de. O Dinossauro. Uma pesquisa sobre o Estado, o Patrimonialismo selvagem e a nova classe de intelectuais e burocratas. São Paulo; T. A. Queiroz, 1988.
  • MEIRA PENNA, José Osvaldo de. Opção preferencial pela riqueza. Rio de Janeiro: Instituto Liberal, 1991.
  • TOCQUEVILLE, Alexis de. A Democracia na América. (Tradução de Neil Ribeiro da Silva). 2a. edição. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1977.
  • TOCQUEVILLE, Alexis de. O Antigo Regime e a Revolução. (Tradução de Y. Jean; apresentação de Z. Barbu; introdução de J. P. Mayer). 3a. edição. Brasília: Universidade de Brasília, 1989.
  • WEBER, Max. Economía y Sociedad. (Tradução ao espanhol a cargo de José Medina Echavarría et alii). 1a. edição em espanhol. México: Fondo de Cultura Económica, 4 volumes, 1944.