A Dissertação em apreço, apresentada em 24 de Junho de 2009 para a obtenção do título de mestre, no programa de pós-graduação em História da Universidade Federal de Juiz de Fora, está bem redigida e cumpre com as condições básicas, de cunho metodológico e de conteúdo, para ser aprovada. O tema é relevante e constitui ponto de grande importância para a reconstrução do pano de fundo cultural em que se deu a organização, no Brasil, das instituições republicanas. A divisão da Dissertação em três partes (Formação de Rui, Ação e Pensamento Político até a Campanha Civilista, Ação e Pensamento Político durante a Campanha Civilista) parece-me bem concebida. O desenvolvimento das duas últimas partes é, no meu entender, a melhor parte da Dissertação, sendo que as observações que a seguir expresso referem-se, preponderantemente, à Primeira Parte.
Farei quatro observações críticas:
I – Rui, herói. - Parece-me que a caracterização de Rui Barbosa como “herói fáustico” (na trilha do conceito de “Mitologias Políticas” sugerido por Girardet), não corresponde, propriamente, ao que representa a figura em apreço, referida ao seu contexto histórico. Ora, o mito fáustico é típico da segunda metade do século XVIII, em que se dá, com Goethe, a crítica ao enciclopedismo e aponta para o surgimento de novo parâmetro filosófico, com o Romantismo. O herói fáustico apela para uma interioridade nova que, a partir de sua autenticidade, espalha ampla ação moralizadora e libertadora no seu contexto histórico, relativizando o mundo social e as instituições. Tudo se esfumaça à sombra da ação criadora da poesia, que invade o mundo concreto, tornando-o secundário. Como frisava Madame de Staël em relação a Goethe, “ele dispõe do mundo poético como um conquistador do mundo real e se considera suficientemente forte como para introduzir, como a natureza, o gênio da destruição nas suas próprias obras”.
Já a figura de Rui se situa em contexto cultural diferente. Como acho sugestiva a idéia de Girardet, considero que se deveria procurar, alhures, o arquétipo mítico em que ancoraria a personalidade do grande advogado baiano. Ora, ele se situa no contexto do agir positivo que constrói as instituições que garantem a liberdade. Rui estaria mais para um herói-demiurgo da República. O arquétipo em que ancoraria essa mitologia ruiana foi pautado pelo tipo de personagem que “salva” a sociedade, numa ação positiva que garante o funcionamento do Estado a serviço de todos e com rigorosa obediência aos “rios profundos” que comandam a História. As origens desse modelo seriam, portanto, diferentes das do herói “fáustico”. Ancorariam no tipo de herói que se constrói na narrativa do novo romance histórico (à maneira dos heróis de Sir Walter Scott), que na França encontra manifestação adequada na obra de Honoré de Balzac e de Victor Hugo, sendo que o referencial primordial (para o caso que nos ocupa) seria a obra romanesca de Alexandre Dumas, pai, autor de O cavaleiro de Sainte-Hermine (o romance histórico que sintetiza a gesta do Consulado e do Primeiro Império).
Napoleão foi o herói que salvou a França do niilismo revolucionário, dotando-a das instituições de direito que a tornariam viável historicamente, mas obedecendo cegamente às leis da História que consolidavam, no início do século XIX, a ascensão das massas. Para Dumas, enquanto o Corso obedeceu a essa tendência profunda da História moderna, a sua estrela brilhou. Quando, no entanto, quis agir pensando unicamente na consolidação do seu poder pessoal, a sua sina foi trágica. “O que caracteriza os grandes acontecimentos dos tempos modernos – frisava o romancista -, sem nenhuma exceção, é a pouca influência que os indivíduos neles exercem. Aqueles homens considerados mais fortes e mais capazes não dominaram nada, não conduziram nada, foram arrastados pelos acontecimentos. Poderosos enquanto foram os apóstolos do movimento, nulos quando tentaram opor-se a ele; foi essa a verdadeira estrela de Bonaparte, que se manteve brilhante enquanto ele próprio representava os interesses populares (...)”.
Rui, por sua vez, é o herói que constrói as instituições (alicerçadas nas leis), que garantem o efetivo gozo das liberdades aos seus concidadãos, na maré montante dos ideais republicanos, que constituem o caminho que percorrem as massas, no século XIX, rumo ao poder. Algo assim como a figura de Tocqueville que foi caracterizado por importante estudiosa como um “São João Batista de democracia”. Tratava-se, no caso da França, de encontrar um herói concreto e pragmático, que buscasse com denodo a construção das instituições, que garantissem a todos os Franceses o exercício da liberdade plena no contexto da maré democrática, irresistível, que constituiu a nova tendência do mundo, pautada pela Providência. Liberdade que foi seqüestrada, após a Revolução e a Restauração, pela tacanha burguesia. Mas sem a qual, a conquista da democracia iminente seria obra do despotismo. Ora, sabemos de que forma Tocqueville se sentia identificado com essa missão histórica. Apregoar a democracia com liberdade aos seus concidadãos e lutar para constituir instituições que garantissem a efetiva realização desses dois ideais: essa foi a sua missão, que o pensador francês chegou a identificar, no final da sua vida política, logo após a Revolução de 1848, com o ideal republicano.
Ora, o advogado baiano enxerga a sua missão num contexto semelhante, no esforço em prol de corrigir os rumos da República, após o advento da mesma e do ciclo militarista que tomou conta das instituições, banindo a liberdade e os direitos civis. Trata-se, no caso de Rui, de garantir aos brasileiros as instituições republicanas, mas no contexto das liberdades liberais, com exercício da representação no Congresso, com a independência dos três poderes, com o respeito pelo instituto do hábeas corpus acintosamente desdenhado por Floriano Peixoto (quando da sua passagem pela Presidência) e com a instauração de um autêntico federalismo, (anacronicamente invalidado pela corrupta e centralizadora “política dos governadores” de Campos Sales). Esse é o tipo de heroísmo da Águia de Haia: o advogado, o político a serviço da democracia republicana. No plano internacional, Rui se insurge contra os impérios do momento e toma o partido daqueles países (como a Inglaterra, a França e os Estados Unidos), onde se estabeleceram as instituições do governo representativo e o regime de liberdades cidadãs. A Inglaterra, embora não seja República, é valorizada pelo peso que nela tem a instituição parlamentar, menosprezada por todos os despotismos, a começar pelo apregoado pelos positivistas tupiniquins, defensores da ditadura republicana.
II – Conceito de Modernidade. – Faltou na Dissertação, a meu ver, uma mais exata definição do conceito de modernidade política. O autor cita fontes que tratam do tema de forma muito ampla. Sugeriria se concentrar na caracterização feita por Benjamin Constant de Rebecque, em torno ao conceito de modernidade democrática, no famoso texto intitulado Da liberdade dos Antigos comparada com aquela dos Modernos. Ora, no texto apontado, o pensador liberal destaca o que é essencial ao conceito de modernidade política: em primeiro lugar, o exercício, por parte do poder estabelecido, de uma soberania relativa, não absoluta. Em segundo lugar, a constituição de instituições de governo representativo, que garantam a representação de interesses dos cidadãos. Em terceiro lugar, a fixação dos aspectos fundamentais das instituições, bem como dos direitos e deveres dos cidadãos, numa Constituição.
III – Questões metodológicas no terreno da história do pensamento. – Acho de capital importância o fato de o programa de pós-graduação em História da UFJF ter se aberto ao campo da história do pensamento, aspecto outrora menosprezado nas pesquisas historiográficas brasileiras. A história das idéias era uma espécie de gata borralheira da historiografia, o que levava os pesquisadores a cometer grosseiras simplificações polarizadas pelas preferências ideológicas, quando se tratava de caracterizar tendências ou ciclos de pensamento, bem como autores.
Considero que na Dissertação faltou destacar a metodologia específica a ser utilizada na caracterização das idéias de Rui acerca do conceito de modernidade. Ora, essa metodologia já existe e constitui a grande contribuição brasileira no terreno da historiografia das idéias. Os fundamentos teóricos da mesma foram colocados pelo pensador marxista italiano Rodolfo Mondolfo e pelo filósofo alemão neokantiano Nicolai Hartmann. Alicerçado nesses dois pensadores e levando em consideração o conceito husserliano de epoché, Miguel Reale elaborou proposta metodológica a ser seguida nas pesquisas historiográficas, no terreno das idéias. Essa proposta consta dos seguintes passos, segundo a síntese feita por Antônio Paim: 1) averiguar qual era o problema, ou quais eram os problemas com os que se defrontava o pensador; 2) identificar a forma em que o mesmo respondeu à problemática que o preocupava; 3) passar ulteriormente a tecer uma rede comparativa de semelhanças e derivações, entre as respostas elaboradas pelo pensador estudado em face dos problemas por ele tratados e diante das respostas dadas por outros pensadores do período a problemas semelhantes.
IV – O modelo liberal de Rui. – Faltou caracterizar, de forma clara, na Dissertação, o modelo liberal de Rui. Ora, sabemos que na filosofia política ocidental consolidaram-se duas modalidades de liberalismo: o denominado de radical e o moderado. O liberalismo radical foi apregoado por Jean-Jacques Rousseau e os aspectos políticos de sua proposta encontram-se sintetizados na obra: O Contrato Social. Para o pensador genebrino, a felicidade geral da Nação é garantida pela unanimidade. Logo qualquer dissidência deve ser expurgada, pelos “puros” (aqueles que renunciaram aos seus interesses individuais e passaram a se identificar com os interesses da “vontade geral”). Aos “puros” corresponde a educação dos cidadãos, deformados pelo egoísmo da sociedade dividida em grupos de interesses que lutam entre si. Os “puros” darão ensejo ao “novo homem”, que se identificará com a “vontade geral”. Rousseau apregoava a concentração de poderes no representante da “vontade geral”, o denominado por ele de “Poder Moral” que empreenderia a regeneração da sociedade. A manifestação concreta mais imediata desse ideário deu-se a Revolução Francesa, com os jacobinos exercendo as funções de “educadores” da sociedade, no momento da Revolução e no período denominado de “O Terror”. Napoleão, primeiro Cônsul e depois Imperador, chamou a si essa função representativa da “vontade geral” e passou a exercer de forma concentrada o poder, se auxiliando do “Conseil d´État” (uma entidade integrada por técnicos e especialistas nas diversas matérias sobre as que seria necessário legislar) e mantendo, estreitamente atreladas a si, as instâncias colegiadas, que dele receberiam a sua legitimidade.
O liberalismo moderado foi apregoado por John Locke no seu Segundo Tratado sobre o Governo Civil, que sintetizou os ideais da Revolução Gloriosa de 1688, que instaurou na Inglaterra a Monarquia Constitucional e a prática da representação de interesses dos cidadãos no Parlamento bicameral. O modelo lockeano – que seria inspirador das instituições republicanas nos Estados Unidos – partia do pressuposto de que o natural na sociedade é a diversidade e o conflito entre interesses divergentes, a partir dos quais deveria ser construída, por negociação, a maioria. Portanto, a questão central seria elaborar os mecanismos eleitorais que possibilitariam aos cidadãos a representação dos seus interesses. Essa doutrina estava acompanhada da que se referia à preexistência, em face da sociedade organizada, nos indivíduos, de direitos inalienáveis à vida, à liberdade e às posses, direitos de que as instituições de governo representativo deveriam cuidar, sendo o respeito aos mesmos, essencial ao pacto político. Ora, este foi o liberalismo em que ancorou Rui Barbosa, ampliado pelas considerações acerca da democracia, efetivadas pelos doutrinários franceses e por Tocqueville, levando em consideração o exemplo americano.
A luta travada por Rui, no seio do Parlamento imperial e no contexto dos governos republicanos foi no sentido de se contrapor à versão de liberalismo radical (denominado de democratismo pelo historiador português Joel Serrão), que inspirou a formatação da “política dos governadores” efetivada por Campos Sales. Para Rui, a mencionada política traía os ideais de liberdade e de democracia com os quais tinha sido deslanchado o movimento da propaganda republicana, nas últimas décadas do século XIX.
Arsênio Corrêa caracterizou a “política dos governadores” como um expediente pragmático do governo para garantir a unidade política e a estabilidade, sem intervir direto nos Estados, mas manipulando o mecanismo de legitimação das eleições, privilegiando os interesses do Executivo e do Partido Republicano, ao seu serviço. Eis a caracterização efetivada pelo autor: “A política dos governadores foi, portanto, a unidade política estabelecida por Campos Sales, que pressupunha a não intervenção nos Estados. Isso trouxe a perda de importância das eleições, consolidando as situações estaduais, cuja legitimidade era equivalente à da União. É forçoso reconhecer que assegurou estabilidade política. Naturalmente, às custas da legitimidade da representação, vale dizer, do abandono do espírito que presidiu à estruturação das instituições de tal governo, no Segundo Reinado. Ali, o foco estava na determinação dos interesses que deveriam ser representados. E, subseqüentemente, a avaliação sucessiva da capacidade respectiva de assegurar-lhe legitimidade. Agora o foco mudava completamente de direção: assegurar o livre exercício do poder, excluída a possibilidade de negociação fora dos círculos que tivessem comprovado sua fidelidade ao sistema republicano. Somente o Partido Republicano tinha autorização de funcionamento e, portanto, de participar dos pleitos em que era admitida a disputa”.
A verdade é que à luz do espírito de Rousseau foi aclimatada, pela elite bacharelesca, à cuja testa situou-se Campos Sales, a concepção que tinha vingado no século XIX, na França, nos ciclos do republicanismo bonapartista (1799-1804), do Primeiro Império (1804-1814), da Segunda República (1848-1851) e do Segundo Império (1852-1870). Efetivamente, os dois Napoleões (tio e sobrinho) forjaram nova teoria da representação, inspirada no ideal da “vontade geral” do filósofo de Genebra, nos seguintes termos: 1) O governante (presidente eleito, primeiro cônsul ou imperador) é o verdadeiro representante da “vontade geral” da Nação. 2) Os corpos colegiados são legitimados, como representantes secundários da “vontade geral”, pelo primeiro mandatário. 3) As eleições são apenas mecanismos secundários para provisão dos corpos colegiados, que passarão a desempenhar somente funções técnicas (elaborar o orçamento, por exemplo), sendo que toda a questão de legislar e governar cabe ao Executivo, ajudado pelo Conselho de Estado, que é integrado, basicamente, por técnicos escolhidos a dedo pelo primeiro mandatário. 4) Quando as eleições são praticadas para eleger os mandatários nos ciclos republicanos (como quando Luís Napoleão assumiu a Presidência da República, em 1848) legitimam um poder que não pode ter limites e que é republicano pelo fato de ter sido eleito, tendo, portanto, o poder de legitimar, via plebiscito, as reformas que considerar necessárias.
Este texto não apenas apresenta, mas situa, diferencia e qualifica aquele que talvez seja o nosso maior herói nacional. Um artigo impecável.
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