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domingo, 29 de maio de 2016

A HERANÇA MALDITA DA DILMA: É NECESSÁRIO FALAR DELA!

O economista Gustavo Franco

Amigos, reproduzo, aqui, o artigo publicado hoje pelo economista Gustavo Franco, na sua coluna de O Globo

A Presidente afastada ainda vai ser julgada, de forma definitiva, pelo Senado. É necessário que a opinião pública do país tenha claro o mapa da mina. Qual foi o tamanho do dessangre produzido, na economia do Brasil, pela incompetência da Presidente ora suspensa? 

Pelos números compulsados pelo economista Gustavo Franco, o tamanho do buraco é escatológico. Mas, convenhamos: melhor que conheçamos a real gravidade do mal para, uma vez afastada para sempre essa incompetente senhora, saibamos o grau de esforço que o Brasil precisará despender para fazer frente à catástrofe. O tamanho desta equivale ao de uma guerra devastadora.

O que mais impressiona é que, conhecendo a opinião pública alguns dos números da desgraça acontecida, haja gente querendo apoiar Dilma. Isso, a meu ver, acontece porque rola dinheiro nas mãos da direção partidária. Os petralhas, a partir da sua corrupta liderança, ainda pagam para que os movimentos sociais, os blogs chapa branca, alguns jornalistas irresponsáveis, os "intelectuais orgânicos" com bolsa no exterior e os militantes de sempre façam o barulho que todos conhecemos. 

Façamos, então, o nosso barulho, divulgando à exaustão os reais números da desgraçada herança que Lula e o seu Poste nos deixaram!

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Gustavo Franco - "Precisamos falar sobre herança". Publicado no jornal O Globo, edição de 29-05-2016

Fez muito bem o Ministro da Fazenda, na verdade o presidente Michel Temer, em propor ao Congresso a alteração da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) de modo a refletir as cores exatas do cenário econômico e fiscal que recebeu de Dilma Rousseff. É importante ter claro o legado da presidente afastada, inclusive para se acrescentar elementos aos julgamentos no Senado e diante da História.

O superlativo número de R$ 170 bilhões para o déficit primário no exercício de 2016, conforme aprovado na semana que passou, foi chocante e surpreendente para muitos.

Mas é só um pedaço da história, e pequeno.

Note-se, para começar, que este número não é bem uma meta, mas uma estimativa realista do que ocorrerá uma vez mantidas as coisas como estão. É certo que as autoridades têm o dever de buscar um número bem menor, mas é importante estabelecer com clareza o ponto de partida, e também que há muita coisa que não entra nessa conta.

Vale lembrar que, durante os dez anos anteriores a 2008, o resultado primário médio foi um superávit maior que 3% do PIB. Esta lembrança é importante para afastar a ideia de que a Constituição de 1988 teria sido culpada da deterioração fiscal recente. E também para que se tenha muito claro que foi Dilma Rousseff quem transformou um resultado positivo médio da ordem de R$ 190 bilhões (3% do PIB de 2016) em um negativo de R$ 170 bilhões.

A deterioração fiscal comandada por Dilma Rousseff foi, portanto, de R$ 360 bilhões, sendo este o tamanho do esforço fiscal que teria que ser feito hoje para colocar o país de volta na situação onde estava no período 1998-2007, quando houve crescimento, austeridade (ao menos quando medida por superávits primários) e melhoria na distribuição de renda.

São R$ 360 bilhões morro acima, só para arrumar o resultado primário. Se colocarmos na conta os juros, os números se tornam ainda mais perturbadores.

No ano de 2015, o Brasil foi o país cujo Tesouro Nacional mais pagou juros no mundo: 8,5% do PIB, contra 4,62% na Índia, 4,11% em Portugal, 4,02% na Itália e 3,61% na Grécia.

Em moeda corrente, estamos falando de R$ 502 bilhões em juros em 2015, quando o déficit primário (o resultado sem contar juros) foi de 1,88% do PIB, equivalente a R$ 111 bilhões. Assim, nesse ano, o déficit total do setor público foi de 10,38% do PIB ou de R$ 613 bilhões.

A mesma lei que recém alterou a LDO estimou o déficit nominal para 2016 em 8,96% do PIB, ou seja, R$ 579 bilhões, dentro dos quais estão os R$ 170 bilhões de que falamos logo acima. Estima-se que a conta de juros neste ano fique parecida com a do ano passado. A ver.

Tudo considerado, com este déficit nominal, a projeção para a dívida pública bruta ao final de 2016 é de 73,4% do PIB, uma alucinação.

E não pense que foi só isso.

Mesmo com o Tesouro entrando fortemente no vermelho, o governo resolveu fazer outros gastos fora do Orçamento, que não entram nas contas acima. Para tanto, transferiu cerca de R$ 500 bilhões para o BNDES em títulos, em várias operações. Como se a sua empresa estivesse dando prejuízo e você resolvesse se endividar para emprestar um valor correspondente à metade do seu faturamento a uma subsidiária.

Nesta semana que passou, um pedaço desse dinheiro foi devolvido, vamos ver quanto vai custar para regularizar essa operação.

Além disso, temos também as operações “anticíclicas” da Caixa e do Banco do Brasil, ordenadas explicitamente pelo governo. A quem pertencerá o prejuízo decorrente dessas atuações? Que tamanho tem essa conta? E as operações feitas com o dinheiro do FGTS?

Não seria bom ter um corte e uma análise circunstanciada do estado dessas instituições neste momento de transição e reflexão?

E as necessidades de capitalização da Petrobras, decorrentes da devastação a que foi submetida em consequência das insanidades heterodoxo-nacionalistas adotadas pelo governo afastado e da pilhagem engendrada pela quadrilha que ali se instalou?

A dívida da Petrobras cresceu a tal ponto que o fluxo de caixa descontado da empresa para o horizonte relevante de avaliação está zerado, ou pior, a depender do preço do petróleo nos próximos anos. Basta olhar os relatórios de analistas externos da empresa, todos acordes nesse terrível diagnóstico.

Isso mesmo, você não entendeu mal, a empresa está tecnicamente quebrada, funcionando da mão para a boca, um dia de cada vez, terrivelmente necessitada de um aumento de capital, ou da venda de ativos, de cortes dramáticos e providências difíceis. Uma empresa desse tamanho, ainda mais estatal, não pode entrar em recuperação judicial, não sem provocar um problema sistêmico.

Mas antes de pensar no conserto, que se registre a façanha: poucos anos depois do apogeu representado pela descoberta do pré-sal e do aumento de capital em Nova York em 2010, quando a companhia captou US$ 70 bilhões, na maior operação da espécie jamais registrada neste planeta, Dilma Rousseff conseguiu colocar a Petrobras a meio centímetro da recuperação judicial. Que portento em matéria de incompetência administrativa, imprevidência estratégica e desonestidade mesmo, esta última, inclusive, reconhecida oficialmente no balanço.

Fará bem o novo presidente da Petrobras em ter muito claras as condições da empresa no momento em que assumir as suas responsabilidades.

A mesma recomendação vale para a presidente do BNDES, para o qual já se decidiu devolver R$ 100 bilhões dos R$ 500 bilhões que recebeu do Tesouro. O banco deve ser capaz de demonstrar para onde foram os recursos, e talvez mesmo pagar o Tesouro com esses ativos. E, se houver prejuízo, que seja declarado e explicado para que as culpas pertençam a quem de direito.

Como foi acontecer uma tragédia desse tamanho?

É claro que temos que refletir muito sobre as brechas na Lei de Responsabilidade Fiscal e sobre o mau uso das empresas estatais, seja para propósitos políticos, para a corrupção, ou para simplesmente financiar e acobertar o populismo fiscal.

Mas nem por um segundo devemos esquecer que a responsabilidade pela catástrofe possui nome e sobrenome e que o Senado não estará se debruçando apenas sobre “pedaladas”, “jeitinhos” ou decretos feitos por assessores descuidados, mas sobre o maior descalabro fiscal que a história econômica brasileira registra desde, possivelmente, quando Dom João VI abandonou o país em 1821 e rapou o ouro que havia no Banco do Brasil.

E não por acidente as quedas no PIB do biênio 2015 e 2016, que se espera que atinjam 3,8% e 3,8%, ultrapassam o que se observou nos anos da Grande Depressão, 1930-31, quando as quedas foram de 2,1% e 3,3%.


É fundamental que se tenha clara a exata natureza e extensão da herança, para que as dores inerentes ao árduo trabalho de reconstrução financeira e fiscal do crédito público sejam associadas a quem produziu a doença, não ao médico.

sexta-feira, 27 de maio de 2016

A NOVA DIPLOMACIA DO GOVERNO TEMER E A FAXINA DO ENTULHO BOLIVARIANO

Posse do Ministro José Serra na chefia da pasta das Relações exteriores (Foto: Beto Barata / PR).

De parabéns a nova política internacional do governo Temer, que está sendo consolidada pela gestão lúcida e corajosa do chanceler José Serra. Primeiro objetivo: limpar o salão da nossa diplomacia, que outrora nos orgulhava, do entulho bolivariano com que a petralhada tentou destruí-la em 14 anos de governança ideológica e burra.

Serra veio mostrando que não é retórica a proposta da nova diplomacia brasileira: colocou freio à retórica populista que tinha tomado conta das nossas relações internacionais, interrompendo com coragem o discurso golpista ensejado por Dilma e patota. A intentona de desmoralização da imagem do Brasil no plano internacional, que os petralhas começaram a implementar, é um crime de lesa-pátria que encontrará, decerto, na nossa Justiça, um foro legítimo para ser investigado, julgado e devidamente punido. Os petralhas não tardam por esperar.

O chanceler Serra encerrou, felizmente, essa página negra da nossa diplomacia, que envergonha aos brasileiros e, em especial, aos honrados diplomatas que servem ao Brasil com denodo e sacrifício. Os últimos anos foram de penúria para eles. Dilma, irresponsavelmente, cortou o dinheiro para que eles mantivessem funcionando, como devido, as nossas representações no exterior. Cortou essas verbas simplesmente por descaso, pois não se tratava de poupar o dinheiro público, tornado objetivo a ser apropriado pelos corruptos petralhas e seguidores. As pedaladas fiscais mostram que a alta cúpula petralha não estava nem aí para as dificuldades da economia brasileira. O rombo de mais de 170 bilhões de dólares, devidamente apurado pelos funcionários do Ministério da Fazenda, mostra que o objetivo era outro: roubar cada vez mais, mesmo que para isso fosse necessário paralisar as nossas representações diplomáticas no exterior!

Nada melhor para calibrar a importância da nova fase da diplomacia brasileira representada por José Serra, do que citar os dez pontos em que o novo chanceler sintetizou os objetivos a serem atingidos pela sua pasta.

Destaco, no pronunciamento do Ministro Serra, três pontos: em primeiro lugar, o abandono da prática política exterior como questão ideológica de partido. As relações exteriores devem ser pautadas, considera Serra, por uma política de Estado. Em segundo lugar, a renovação do MERCOSUL, no contexto de relações pragmáticas que visem ao fortalecimento do nosso comércio, abandonando uma política tacanha de fechamento regional, na trilha dos populismos que tomaram conta do nosso Continente nas últimas décadas. A abertura para a Aliança do Pacífico será de capital importância. Em terceiro lugar, o trabalho conjunto do Ministério das Relações Exteriores com outros Ministérios (Defesa, Fazenda), a fim de garantir uma política de defesa adequada das nossas fronteiras, que viraram espaço de ninguém, por onde se fortalecem o tráfico de drogas e de armas.

Cito, a seguir, esses pontos, tal como foram explicitados no pronunciamento do Ministro José Serra, quando da sua recente posse no Ministério das Relações Exteriores:  

1. A diplomacia voltará a refletir de modo transparente e intransigente os legítimos valores da sociedade brasileira e os interesses de sua economia, a serviço do Brasil como um todo e não mais das conveniências e preferências ideológicas de um partido político e de seus aliados no exterior. A nossa política externa será regida pelos valores do Estado e da nação, não do governo e jamais de um partido. Essa nova política não romperá com as boas tradições do Itamaraty e da diplomacia brasileira, mas, ao contrário, as colocará em uso muito melhor. Medidas que, em outros momentos, possam ter servido ao interesse nacional, quero dizer, podem não ser mais compatíveis com as novas realidades do país e com as profundas transformações em curso no cenário internacional.

2. Estaremos atentos à defesa da democracia, das liberdades e dos direitos humanos em qualquer país, em qualquer regime político, em consonância com as obrigações assumidas em tratados internacionais e também em respeito ao princípio de não ingerência.

3. O Brasil assumirá a especial responsabilidade que lhe cabe em matéria ambiental, como detentor na Amazônia da maior floresta tropical do mundo, de uma das principais reservas de água doce e de biodiversidade do planeta, assim como de matriz energética limpa e renovável, a fim de desempenhar papel proativo e pioneiro nas negociações sobre mudança do clima e desenvolvimento sustentável. Lembro que, se fizermos bem a lição de casa, poderemos receber recursos caudalosos de entidades internacionais interessadas em nos ajudar a preservar as florestas e as reservas de água e biodiversidade do planeta, uma vez que o Brasil faz a diferença nessa matéria.

4. Na ONU e em todos os foros globais e regionais a que pertence, o governo brasileiro desenvolverá ação construtiva em favor de soluções pacíficas e negociadas para os conflitos internacionais e de uma adequação de suas estruturas às novas realidades e desafios internacionais; ao mesmo tempo em que se empenhará para a superação dos fatores desencadeadores das frequentes crises financeiras e da recente tendência à desaceleração do comércio mundial. O comércio mundial está se contraindo a galope, eu diria.

5. O Brasil não mais restringirá sua liberdade e latitude de iniciativa por uma adesão exclusiva e paralisadora aos esforços multilaterais no âmbito da Organização Mundial do Comércio, como aconteceu desde a década passada, em detrimento dos interesses do país. Não há dúvida de que as negociações multilaterais da OMC são as únicas que poderiam efetivamente corrigir as distorções sistêmicas relevantes, como as que afetam o comércio de produtos agrícolas. Mas essas negociações, infelizmente, não vêm prosperando com a celeridade e a relevância necessárias, e o Brasil, agarrado com exclusividade a elas, manteve-se à margem da multiplicação de acordos bilaterais de livre comércio. O multilateralismo que não aconteceu prejudicou o bilateralismo que aconteceu em todo o mundo. Quase todo mundo investiu nessa multiplicação, menos nós. Precisamos e vamos vencer esse atraso e recuperar oportunidades perdidas.

6. Por isso mesmo, daremos início, junto com o Ministério da Indústria, Comércio e Serviços, com a cobertura da CAMEX e em intensa consulta com diferentes setores produtivos, a um acelerado processo de negociações comerciais, para abrir mercados para as nossas exportações e criar empregos para os nossos trabalhadores, utilizando pragmaticamente a vantagem do acesso ao nosso grande mercado interno como instrumento de obtenção de concessões negociadas na base da reciprocidade equilibrada. Nada seria mais equivocado, errôneo, nesta fase do desenvolvimento brasileiro, do que fazer concessões sem reciprocidade. Não tem sentido.

7. Um dos principais focos de nossa ação diplomática em curto prazo será a parceria com a Argentina, com a qual passamos a compartilhar referências semelhantes para a reorganização da política e da economia. Junto com os demais parceiros, precisamos renovar o Mercosul, para corrigir o que precisa ser corrigido, com o objetivo de fortalecê-lo, antes de mais nada quanto ao próprio livre-comércio entre seus países membros, que ainda deixa a desejar, de promover uma prosperidade compartilhada e continuar a construir pontes, em vez de aprofundar diferenças, em relação à Aliança para o Pacifico, que envolve três países sul-americanos, Chile, Peru e Colômbia, mais o México. Como disse Enrique Iglesias, muito bem observado, não podemos assistir impassíveis à renovação de uma espécie de Tratado de Tordesilhas, que aprofundaria a separação entre o leste e o oeste do continente sul-americano.  Em relação ao México, será prioritário aproveitar plenamente o enorme potencial de complementaridade existente entre nossas economias e, hoje, das nossas visões internacionais.

8. Vamos ampliar o intercâmbio com parceiros tradicionais, como a Europa, os Estados Unidos e o Japão. A troca de ofertas entre o Mercosul e a União Europeia será o ponto de partida para avançar na conclusão de um acordo comercial que promova maior expansão de comercio e de investimentos recíprocos, sem prejuízo aos legítimos interesses de diversos setores produtivos brasileiros. Como disse o ministro Mauro, houve a troca de ofertas, nós vamos agora examinar quais são as ofertas da União Europeia. Com os Estados Unidos, nós confiamos em soluções práticas de curto prazo para a remoção de barreiras não-tarifárias, que são, no mundo de hoje, as essenciais. No mundo de hoje não se protege, do ponto de vista comercial, com tarifas. Se protege com barreiras não-tarifárias. Quero dizer que o Brasil nesse sentido é o mais aberto do mundo. Nós não temos nenhuma barreira tarifária, ao contrário de todos os outros que se apresentam como campeões do livre comércio. Com os Estados Unidos, confiamos em soluções práticas de curto prazo, eu repito, para a remoção de barreiras não-tarifárias, e de regulação que entorpecem o intercâmbio. Daremos igualmente ênfase às imensas possibilidades de cooperação em energia, meio ambiente, ciência, tecnologia e educação.

9. Será prioritária a relação com parceiros novos na Ásia, em particular a China, este grande fenômeno econômico do século XXI, e a Índia. Estaremos empenhados igualmente em atualizar o intercâmbio com a África, o grande vizinho do outro lado do Atlântico. Não pode esta relação restringir-se a laços fraternos do passado e às correspondências culturais, mas, sobretudo, forjar parcerias concretas no presente e para o futuro. Ao contrário do que se procurou difundir entre nós, a África moderna não pede compaixão, mas espera um efetivo intercâmbio econômico, tecnológico e de investimentos. Nesse sentido, a solidariedade estreita e pragmática para com os países do Sul do Planeta Terra continuará a ser uma diretriz essencial da diplomacia brasileira. Essa é a estratégia Sul-Sul correta, não a que chegou a ser praticada com finalidades publicitárias, escassos benefícios econômicos e grandes investimentos diplomáticos. É importante ter a noção clara de que os diferentes eixos de relacionamento do Brasil com o mundo não são contraditórios nem excludentes, sobretudo dado o tamanho da nossa nação. Um país do tamanho do Brasil não escolhe ou repele parcerias, busca-as todas com intensidade, inspirado no seu interesse nacional. Vamos também aproveitar as oportunidades oferecidas pelos foros inter-regionais com outros países em desenvolvimento, como por exemplo, os BRICS, para acelerar intercâmbios comerciais, investimentos e compartilhamento de experiências. E, com sentido de pragmatismo, daremos atenção aos mecanismos de articulação com a África e com os países árabes.

10. Nas políticas de comércio exterior, o governo terá sempre presente a advertência que vem da boa análise econômica, apoiada em ampla e sólida consulta com os setores produtivos. É ilusório supor que acordos de livre comércio signifiquem necessariamente a ampliação automática e sustentada das exportações. Só há um fator que garante esse aumento de forma duradoura: o aumento constante da produtividade e da competitividade. Se alguém acha que basta fazer um acordo e abrir, que isso é condição necessária suficiente, está enganado. É preciso investir no aumento constante da competitividade e da produtividade. Daí a ênfase que será dada à redução do custo Brasil, mediante a eliminação das distorções tributárias que encarecem as vendas ao exterior e a ampliação e modernização da infraestrutura por meio de parcerias com o setor privado, nacional e internacional. O custo Brasil hoje é da ordem de 25%, ou seja, uma mercadoria brasileira idêntica a uma mercadoria típica média dos países que são nossos parceiros comerciais, custa, por conta da tributação, dos custos financeiros, dos custos de infraestrutura, dos custos tributários, 25% a mais. Imagine-se o desafio que nós temos por diante. E apenas assumi o ministério, eu me dei conta, conversando com nosso embaixador na China, o Roberto Jaguaribe, do esforço de nossas embaixadas para atrair investimentos nestes setores básicos da economia. O Roberto estava trabalhando inclusive para seduzir os capitais chineses a virem ao Brasil, investir em parceria com o Estado brasileiro nas obras de infraestrutura. Esse esforço será multiplicado, tenho certeza, com sucesso.

Aqui encerro as diretrizes, mas se eu tivesse que acrescentar uma a mais (...), eu citaria uma que temos que cumprir, colaborando com os ministérios da Justiça, da Defesa e da Fazenda, no que se refere à Receita Federal: a proteção das fronteiras, hoje o lugar geométrico do desenvolvimento do crime organizado no Brasil, vamos ter isso claro, que se alimenta do contrabando de armas, contrabando de mercadorias, que é monumental, e do tráfico de drogas. Em especial, nos empenharemos em mobilizar a cooperação dos países vizinhos para uma ação conjunta contra essas práticas criminosas que tanto dano trazem ao nosso povo e à nossa economia.

Por último, não menos importante, quero reafirmar meu compromisso com as comunidades brasileiras no exterior e o bom funcionamento de nosso serviço consular. Continuaremos a dar atenção prioritária à garantia dos direitos dos cidadãos brasileiros, onde quer que eles estejam. Dirijo-me agora ao corpo de funcionários do ministério. Nós vamos recuperar a capacidade de ação do Itamaraty, acreditem. Num período de grandes transformações e, por que não dizer, incertezas no cenário internacional e de promissoras mudanças internas, a nossa diplomacia, não tenho dúvida, terá de, gradualmente, atualizar-se e inovar, e até mesmo ousar, promovendo uma grande reforma modernizadora nos objetivos, métodos e técnicas de trabalho. A diplomacia do século XXI não pode repousar apenas na exuberância da retórica e no tom auto-laudatório dos comunicados conjuntos. Precisa ter objetivos claros e ser a um só tempo discurso político e resultado concreto.

Os diplomatas brasileiros despertam o orgulho do país e o respeito dos parceiros do Brasil no exterior. Quero valorizar a carreira diplomática, assim como as demais carreiras do serviço exterior. Respeitar o critério do mérito. Não discriminar em favor dos amigos do rei ou de correligionários de um partido político. Quero progressivamente retirar o Itamaraty da penúria de recursos em que foi deixado pela irresponsabilidade fiscal que dominou a economia brasileira nesta década. Quero reforçar a casa, e não enfraquecê-la. Vamos restaurar o orgulho das novas gerações em servir ao Itamaraty e, sobretudo, ao Brasil. A Casa será reforçada, e não enfraquecida. E no governo do presidente Temer, o Itamaraty volta ao núcleo central do governo.

Meu programa de ação corresponderá à minha tradição na vida pública: trabalhar muito, apresentar e receber ideias, tomar iniciativas, delegar responsabilidades, cobrar resultados e promover negociações efetivas, bem como ter presença marcante, longe de cumprir um calendário de visitas inócuas, para “cumprir tabela”.

Estes são compromissos que apresento hoje. Este é o convite que faço a todos os servidores desta Casa, a fim de que façamos um esforço comum para valorizar o Itamaraty e pelo êxito de um governo que enfrentará, como todos sabemos, desafios imensos, mas que criará, se Deus quiser, as condições para a reconstrução do sistema político, o fortalecimento da representatividade da nossa democracia e a volta do crescimento da produção e do emprego.

Muito obrigado, mãos à obra, vamos em frente.



(Fonte: Ministro José Serra)

quarta-feira, 25 de maio de 2016

O GOVERNO TEMER, O SANEAMENTO DA ECONOMIA E O MESTRE GUDIN

O economista liberal Eugênio Gudin (1886-1986)
As medidas anunciadas ontem pelo Presidente Temer são alvissareiras. Elas marcam o início do fim da farra com o dinheiro dos brasileiros. O PT causou a maior sangria do Tesouro, fez falir a mais importante estatal brasileira, desembestou a fera da inflação, reduziu a expectativa de vida dos brasileiros ao inviabilizar o SUS e ao castigar os mais humildes com o aumento dos preços dos itens básicos de sobrevivência, iludiu-os com as "bolsas-vale-tudo" que terminaram minguando simplesmente por falta de recursos, corrompeu a burocracia e os Partidos que se chegaram aos petralhas, com os dinheiros públicos desviados nas tramoias que hoje a Lava-Jato investiga, tornou a nossa diplomacia refém dos populismos rasteiros, enfim, envergonhou-nos a todos de forma tal que já se faz troça, no exterior, com o desastre da nossa economia.

O cerne das reformas apresentadas pelo Presidente Temer consiste no bom senso: não se pode gastar o que não se tem. É necessário reconhecer, com coragem (como fizeram Temer e o Ministro da Fazenda), o tamanho do buraco deixado na economia pela petralhada, furo que hoje é calculado em 170 bilhões de reais e que, certamente, será aproximado para cima quando as investigações em curso (no BNDES, na Eletrobrás e em outras estatais) tiverem chegado a término, a fim de calcular  o tamanho final do desastre financeiro imposto por Lula e o seu Poste.

Resta-nos que o Congresso cumpra com o seu papel, aprovando as reformas necessárias para a implementação das medidas apresentadas pelo Executivo. As vozes insensatas da representação petralha, no parlamento, continuarão a gasnir os seus berros intermináveis e já por todos conhecidos (o bla-bla-bla do golpe repetido ad nauseam por Gleisi Hoffman e outros parlamentares petralhas ou afinados com eles). Não interessa a balbúrdia que os seguidores da Dilma e do Lula façam. As propostas serão aprovadas e a nossa economia começará a longa e difícil caminhada para a sua plena recuperação.

Ganham força, neste contexto de luta contra o estatismo deslavado, as sábias palavras do mestre Eugênio Gudin (1886-1986) que, se vivo fosse, estaria certamente dando a sua contribuição ao atual governo. Lembro apenas dois trechos do texto escrito por Gudin com o título de "Salário Mínimo" para a Revista Digesto Econômico (São Paulo: vol. 10, número 118, Setembro de  1954, pgs.  5-11, citado por Maria Angélica Borges na obra intitulada: Eugênio Gudin - Capitalismo e neoliberalismo, São Paulo: EDUC, 1996, pg. 152). 

Referindo-se à generosidade com que o governo tinha fixado, na época, o salário mínimo acima da lei da oferta e da procura, escreveu o nosso autor:  "Socialmente ou antes, idealmente, é muito bonito. Economicamente, distribuir o que não há é um contra-senso. O Estado tem normalmente o poder de taxar, o poder de lançar o imposto e, com o produto desse imposto, beneficiar a classe B com recursos hauridos da classe A. Mas, aqui,  o Estado vai além: intervém nos preços que uns pagam aos outros pelos serviços prestados, fixando preços superiores aos do mercado" (pg. 6).

Algumas palavras mais, que iluminam. Considerando que o salário mínimo tinha sido calculado e fixado para cima pelo governo, levando em consideração, apenas, a sua política industrial e desprezando como irrelevante o setor agrícola, escrevia Gudin no mesmo texto: "A dificuldade é que, para que isso funcionasse, seria preciso que o Estado tivesse o poder, não somente de alterar valores absolutos e sim de alterar também os valores relativos (...). A hierarquia geral dos valores relativos dos fatores não pode ser permanentemente subvertida, salvo alterações na procura ou na oferta. Ela se restabelecerá com o tempo, porque ela corresponde à hierarquia das produtividades dos diversos fatores de produção, em geral, e dos diversos tipos de mão-de-obra, em particular" (art. cit., p. 5).

Pois bem: os regimes petralhas simplesmente ignoraram a lei básica da oferta e da procura, ao imaginarem que os recursos de que os governos dispunham eram infinitos. E deu no que deu. Felizmente o Presidente Temer soube se rodear de experientes economistas abertos ao pensamento liberal e que não têm medo de propor medidas que estão desagradando aos contumazes gastadores que são os socialistas caboclos. Ponto para Michel Temer e sua equipe de governo!

segunda-feira, 23 de maio de 2016

O SENTIDO DA MEDITAÇÃO FILOSÓFICA CONTEMPORÂNEA, SEGUNDO A NOVA GERAÇÃO DOS CULTURALISTAS BRASILEIROS

 Leonardo Prota (1930-2016) e José Maurício de Carvalho (1957) dois representantes da Corrente Culturalista Contemporânea da meditação filosófica brasileira.

A filosofia no mundo de hoje é pensada ao redor de problemas, tendo sido Nicolai Hartmann (1882-1950) quem primeiro elaborou uma metodologia para estudar o papel dos problemas na meditação filosófica. O seu pensamento estruturou-se a partir dos postulados da Escola de Marburgo, mas acabou por se separar do idealismo lógico daquela Escola, bem como do neokantismo, por influência imediata de Edmund Husserl (1859-1938) e Max Scheler (1874-1928), mas também, segundo o próprio filósofo destaca, graças à retomada, por ele, da antiga tradição metafísica presente na obra de Aristóteles (384-322 a. C.). Hartmann destaca que na elaboração da sua proposta filosófica influiu a leitura das obras de Immanuel Kant (1724-1804) e de Georg W. F. Hegel (1770-1831), notadamente no que tange à discussão das raízes ontológicas que são pressupostas no pensamento desses filósofos.

A formulação de uma nova ontologia amadurece, no pensamento de Hartmann, por volta de 1919. As primeiras obras nas quais o autor expôs essa teoria são Metaphysik der Erkenntnis (Metafísica da inteligência, 1921) e Ethik (Ética, 1925). Nos anos seguintes, Nicolai Hartmann publicou a sua obra dedicada à lógica, sob o título de Studien zur Logik (Estudos sobre lógica, 1931 a 1944), cujo manuscrito terminou se perdendo no meio à agitação vivida na Alemanha, no final da II Guerra Mundial.

Não há dúvida de que Hartmann é um dos autores que mais têm influído na filosofia do século XX. Possuía o que denominaríamos hoje de ética da responsabilidade intelectual, num meio em que pairavam as idéias do totalitarismo e da despersonalização. Dessa inspiração ética, profundamente enraizada na tradição kantiana, dão testemunho as suas palavras: "não há nenhuma consciência acima da pessoa singular". Ou estas outras: "só o espírito pessoal é dotado de intuição, de capacidade de assinalar fins e de orientação". Essa sua enraizada convicção intelectual levou-o a não ceder nunca às modas intelectuais, se norteando unicamente pela procura sempre renovada da verdade.

A essência da posição de Hartmann, no que tange à teoria do conhecimento, consiste na afirmação do caráter histórico dos grandes problemas da Filosofia, que constituem problemas-limite, comuns a todas as ciências, e que são, no fundo, problemas metafísicos atrelados a um núcleo irracional e insolúvel. Hartmann utilizou na sua meditação o método fenomenológico, mas desatrelando-o da redução transcendental, tendo unicamente adotado a redução ao eidos. Graças a isso, para Hartmann, o fenômeno não exclui a aporética, mas, ao contrário, torna possível o acesso à Filosofia. À descrição fenomenológica segue-se, em primeiro lugar, para Hartmann, a prática dos métodos analítico e dialético, que constituem uma perspectiva de caráter horizontal dos fenômenos (livre da dimensão triádica da dialética hegeliana); em segundo lugar vem o método sintético que, no nível mais alto da intuição, possibilita a unificação das categorias, dando ensejo à descoberta de todos os atos alicerçados em outros de nível inferior.

Nicolai Hartmann conferiu tal grau de importância ao método eidético, que terminou confundido redução ao eidos com a própria epoché fenomenológica. A respeito dessa confusão, afirma o autor na sua obra Der Aufbau der realen Welt (A construção do mundo real, 1940): "só por isso pode a intuição das essências, abstraindo do acidental, ganhar a essência a partir do singular; este processo é a redução fenomenológica" [cf. Fraga, 1990: 2, 1010-1014].

Contrariando a doutrina husserliana, Hartmann retoma o conceito de coisa em si e, ao contrário da Escola de Marburgo, afirma um ponto de vista realista, no sentido de que o objeto descrito no conhecimento transcende à própria consciência. A sua teoria do conhecimento abria a porta, destarte, à ontologia, cujos aspectos essenciais são os seguintes: o ente em si mesmo, apreendido no processo do conhecimento, dá-se-nos diretamente no fenômeno do ser. A metafísica, pensa Hartmann, já não pode ser uma doutrina de sistemas; nisso o pensador alemão retoma a crítica efetivada por David Hume (1711-1776) e Kant. A metafísica somente pode ser possível como uma ontologia crítica. Na sua obra intitulada Zur Grundlegung der Ontologie (Acerca do fundamento da ontologia, 1935), o autor propõe as quatro investigações básicas da sua ontologia. Destaquemos apenas as duas mais caraterísticas, que tratam da relação de essência e existência e do problema do ser ideal e da sua relação com o ser real.

No que tange à pesquisa da relação da essência com a existência, Hartmann dá destaque à apreensão da existência sobre a afirmação da essência. A respeito, afirma: "A existência da árvore no seu lugar é uma essência da floresta, a floresta seria outra sem ela; a existência do ramo na árvore é uma essência da árvore (...) a existência de uma coisa é simultaneamente essência de outra". De outro lado, "a essência da folha é a existência da nervura, a essência do ramo é a existência da folha, etc.". O realismo de Hartmann, chamado pelos seus críticos de voluntarista, e que recebe a influência de Max Scheler e de Wilhelm Dilthey (1833-1911) destaca a experiência do próprio eu: a afirmação mais clara do ser-em-si é-nos dada pela existência dos nossos atos emocionais-transcendentes, notadamente aqueles que "se deixam isolar e analisar" (que são os receptivos, os prospectivos e os espontâneos).

No que tange à investigação de Hartmann acerca do problema do ser ideal e da sua relação com o ser real, o pensador alemão destaca que o ser ideal não é o ser do pensamento, mas é o das essências, das formações ideais da matemática e dos valores. O caminho pelo qual pode ser provada a idealidade do ser ideal é o da essência do a-priori, observável na relação da matemática pura à aplicada, bem como na indiferença das essências para com os casos reais.

O cerne da ontologia de Hartmann é a sua teoria dos modos de ser ou análise modal, que o pensador alemão expõe na obra intitulada Mögichkeit und Wirklichkeit (Possibilidade e Realidade, 1938). Nesta obra, o pensador explica as leis fundamentais que regulam as relações de possibilidade e realidade, necessidade e acidentalidade, impossibilidade e não realidade. A lei real da necessidade é formulada nos seguintes termos: "o que é realmente possível também é realmente necessário". Essa lei deriva do antigo princípio metafísico de que o ser não pode provir do não ser ou, em outros termos, de que a possibilidade do ser não é simultaneamente possibilidade do não ser. Hartmann formula, ademais, a lei ou fórmula "de identidade", que reza assim: "as condições de possibilidade real de uma coisa são simultaneamente as condições da sua necessidade real". Esta lei exprime uma convicção contrária ao conceito popular de possibilidade, que foi aceito pela ontologia tradicional, desconhecendo o rigor que os pre-socráticos (de Megara) conferiam ao conceito de possibilidade. A lei real da necessidade não implica, no entanto, para Hartmann, um determinismo total do mundo, mas apenas o que ele denomina de uma sobreposição de várias formas de determinação [cf. Fraga, 1990: 2, 1010-1014].

Em que pese o fato da concessão que Hartmann faz à perspectiva realista na sua ontologia (difícil de justificar teoricamente, uma vez aceitos os princípios do neokantismo), um aspecto, contudo, deve ser ressaltado: em face da complexidade do mundo, é necessário reconhecer que o pensamento moldado em sistemas está fora de jogo. A respeito, escreve o filósofo alemão em Autoexposição sistemática [Hartmann, 1989: 4]: "Explicar o espírito a partir da matéria ou entender a matéria a partir do espírito, o ser a partir da consciência; reduzir o organismo ao mecanismo ou fazer passar o acontecer mecânico por uma vitalidade encoberta, tudo isso e muito mais é hoje uma coisa impossível de se realizar. Isso contradiz, já nos primeiros passos, o que com segurança sabemos nos domínios especiais. O pensamento construtivo ficou fora de jogo".

Embora os pensadores contemporâneos não renunciem a uma busca de nexo sistemático entre os fenômenos, Hartmann considera, no entanto, que essa pressuposição deve ser abandonada como ponto de partida. O que a meditação filosófica faz, no seu início, é tomar consciência de uma complexidade do mundo, que o autor alemão não duvida em identificar como perspectiva problemática do pensar.

Ao pensamento sistemático construtivo Hartmann contrapõe o pensamento problemático investigador. Essas duas grandes linhas epistemológicas são claramente identificáveis na história da Filosofia ocidental. Embora encontremos pensadores mais afinados com a perspectiva sistemática (como Plotino, Proclo, Tomás de Aquino, Duns Scot, Hobbes, Espinosa, Fichte, Schelling) e outros mais próximos da visão problemática (como Platão, Aristóteles, Descartes, Hume, Leibniz, Kant), em todos eles a meditação filosófica emerge a partir da base dos problemas metafísicos, que são os que acompanham a perplexidade da mente humana diante do mistério do Ser. "Em geral, escreve Hartmann, o morto e o simplesmente histórico pertencem ao pensar sistemático; pelo contrário, o supra-histórico e o vital pertencem ao pensar problemático puro. Nele se encontram as aquisições da história do pensamento" [Hartmann, 1989: 7].

Os historiadores da filosofia e os comentaristas deformaram, infelizmente, o pensamento de Platão, apresentando-o como decorrente de uma visão sistemática pré-concebida. Ora, nada mais afastado do grande filósofo grego do que essa preguiçosa concepção sistemática. Nele era fundamental, antes de tudo, a perplexidade em face do Ser, a dimensão da dúvida, que o levava a considerar como cosmogonias mitológicas as concepções herdadas dos seus antepassados. É necessário recuperar, frisa Hartmann, a dimensão problemática da filosofia platônica, para que saibamos valorar a sua criatividade. Platão, ao manter viva a perplexidade diante do real, deu vida à meditação filosófica, abrindo a porta para a interrogação e a elaboração de novos caminhos.

Hartmann considera necessário, de outro lado, recuperar a valoração problemática da meditação aristotélica, que parte da aporética e que se encaminha para a construção de um sistema de pensamento. Acontece que a sistematização escolástica empobreceu essa dimensão dinâmica da meditação do estagirita, ressaltando o momento sistemático e esquecendo o ponto de partida problemático. Três razões explicariam, nos historiadores da filosofia, essa pressa em valorar o sistema por cima dos problemas: em primeiro lugar, a impaciência para descobrir soluções custe o que custar; em segundo lugar, a pressuposição (falsa) de que problemas insolúveis são filosoficamente inúteis; em terceiro lugar, o menosprezo em face das perguntas irrecusáveis.

Em relação à primeira razão, Hartmann considera que é muito mais filosófico legar aos nossos discípulos perguntas sem responder, do que pretender construir, a qualquer preço, respostas sistemáticas para tudo. Em relação à segunda razão, o filósofo alemão considera que os problemas insolúveis são filosoficamente úteis. A história do pensamento ocidental mostra que o verdadeiro progresso advém da abertura à indagação e do questionamento às soluções já adquiridas. Ora, as ciências somente progridem em face do princípio da refutabilidade que nos leva a adotar, perante o que recebemos dos nossos antepassados, uma atitude não de subserviência, mas de crítica.  O drama dos dogmatismos, estreitamente ligados aos totalitarismos do mundo contemporâneo, consiste justamente no fato de eliminarem a dúvida e o pensamento crítico.

Em relação à terceira razão, Hartmann destaca que há problemas que foram colocados num determinado momento e que jamais seria possível colocá-los antes. A formulação de indagações está sempre ligada a determinadas condições históricas irrepetíveis, bem como a um determinado estado do saber. Enquanto os filósofos estiverem preocupados unicamente com a dimensão sistemática, não perceberão o sentido dos eternos e irrecusáveis conteúdos problemáticos, que ancoram na perplexidade diante da realidade. Assim, frisa Hartmann, "acontece que é necessária previamente uma reflexão especial sobre a linha histórica do pensamento problemático, que se oculta por trás da fachada dos sistemas, para garantirmos aqueles conteúdos" [Hartmann, 1989: 13]

Os eternos e irrecusáveis conteúdos problemáticos: esse constitui o ponto de partida do filosofar. Ora, destaca Hartmann, esses eternos e irrecusáveis conteúdos emergem da consciência perplexa pela complexidade do real, que constitui um fenômeno básico não impugnável. "Os fenômenos, escreve, são sempre mais fortes do que as teorias. O homem não pode mudar os fenômenos; o mundo permanece como é, qualquer que seja o pensamento do homem sobre ele. O homem pode somente apreendê-lo ou errar em relação a ele" [Hartmann, 1989: 14].

Hartmann propõe um método progressivo para a razão não se afastar da realidade e construir as suas teorias sem falsear a apreensão dos fenômenos. O primeiro passo é constituído pela descrição fiel dos fenômenos. O segundo consiste na aporética ou estudo dos problemas, enquanto constituem o incompreendido dos fenômenos, explicitando com claridade as aporias naturais; este passo deve levar em consideração o estado da pesquisa respectiva. O terceiro passo, por fim, consiste na teoria, ou abordagem da solução das aporias.

Em relação à metodologia proposta, o filósofo alemão escreve: "Essa progressão: fenomenologia, aporética, teoria, não pode ser abreviada. Os dois primeiros graus, tomados cada um em si, constituem um amplo campo de trabalho, uma ciência inteira. E precisamente porque nenhum dos dois é o definitivo e verdadeiro, recai sobre eles a maior ênfase. O seu campo de trabalho é aquele onde os sistemas construtivos têm pecado. Estes precisamente ficaram curtos demais. E justamente por isso as teorias repousavam sobre bases frágeis. Aqui é preciso criar fundamentos sólidos -- não os fundamentos objetivos da teoria (que devem ser encontrados preferentemente só quando começa o estudo das aporias) --, mas os pontos de partida do conhecimento, enquanto deve ser algo mais do que simples descrição do encontrado anteriormente. No relativo ao terceiro grau, deve consistir num tratamento puro das aporias destacadas, e certamente com base no mesmo resultado presente nos fenômenos. Esse tratamento ou estudo não é mais do que uma solução das aporias. Somente pode tender em direção a uma solução. De antemão não pode dizer nem como resultará a solução, nem se alguma é possível absolutamente. O estudo das aporias é algo muito diferente quando pode se alicerçar num limpo trabalho prévio, realizado sobre o fenômeno e o problema, e quando parte, sem mais, de algo supostamente dado. Os problemas vistos com ingenuidade foram colocados na maior parte das vezes de forma inadequada, e atingem a realidade só de forma periférica. Pois a colocação problemática condicionada toma-se possível graças ao conteúdo problemático objetivo. Dessa forma, misturam-se muitas aporias artificiais e as naturais são encobertas. Mas, antes de mais nada, somente depois de efetivado o trabalho da aporética, resulta possível dar novamente à teoria mesma o seu valor e sentido original" [Hartmann, 1989: 16-17].

A radical inadequação entre o nosso pensamento e a realidade presente no mundo dos fenômenos, essa seria, no sentir de Hartmann, a metafísica dos problemas, a partir da qual tentamos, de várias formas, explicar a realidade (dando ensejo aos sistemas), sem que, contudo, consigamos nunca dar conta dela. Eis a raíz do que hoje denominamos de modéstia epistemológica, única atitude condizente com a busca diuturna da verdade.

Retomando os conceitos desenvolvidos por Hartmann, o pensador italiano Rodolfo Mondolfo (1877-1976) tematizou, por sua vez, o papel da indagação dos problemas na criação filosófica. A consciência da insuficiência dos nossos conceitos, esse seria o ponto de partida de uma autêntica reflexão. A respeito, escreve Mondolfo: " (...) na aquisição de conhecimentos e na reflexão intelectual, sempre acontece tropeçarmos com dificuldades que se baseiam no reconhecimento de faltas e imperfeições em nossas noções, cuja insatisfação, portanto, nos suscita problemas. E daí surge a investigação, isto é,  pela consciência de um problema, cuja solução nos sentimos impelidos a procurar, estando justamente a indagação voltada para a solução do problema, que nos foi apresentado" [Mondolfo, 1969: 30].

O pensador italiano considera que o sucesso da investigação filosófica decorre, sem lugar a dúvidas, da clareza com que tenha sido colocado o respectivo problema. É o ponto que os escolásticos chamavam de status quaestionis, que era colocado antes da elaboração doutrinária, na tradicional Lectio. Em relação a esse aspecto, Mondolfo escreve: "(...) a fecundidade do esforço investigador é proporcional à clareza e à adequação da formulação do problema; de maneira que a primeira exigência imposta ao investigador é a de conseguir, da melhor maneira possível, uma consciência clara e distinta do problema, que constitui o objeto de sua indagação. Esta exigência é válida preliminarmente para qualquer espécie de investigação, porém o é, sobretudo, na filosofia, sendo a filosofia antes de mais nada -- como já Sócrates o ressaltava--   consciência da própria ignorância, isto é,  da existência de problemas que exigem o esforço da mente na procura de uma saída dessa situação de mal-estar e de insatisfação" [Mondolfo, 1969: 30].

Na trilha da perspectiva genética apontada por Giambattista Vico (1688-1744) na sua famosa frase: "a natureza das coisas é o seu nascimento", Mondolfo escreve: "(...) Toda a investigação teórica que quiser encontrar seu caminho com maior segurança, supõe e exige, como condição prévia, uma investigação histórica referente ao problema, ao seu desenvolvimento e às soluções que foram tentadas para resolvê-lo" [Mondolfo, 1969: 30-31].

Mondolfo considera que a perspectiva problemática atrela-se à essência da pesquisa filosófica. Aparentemente haveria oposição entre a tarefa do historiador (inquiridor da verdade sub specie temporis) e a do filósofo, (perscrutador da alétheia sub specie aeterni). No entanto, a esta última só se chega pela porta estreita da historicidade, pois como frisa Karl Jaspers [1980: 34], "se saíssemos da História tombaríamos no nada".

A respeito deste ponto, escreve Mondolfo: "Com efeito, podemos distinguir um duplo aspecto na filosofia, conforme ela se apresente como problema ou como sistema. Como sistema, é evidente que o pensamento filosófico, apesar de sua pretensão, sempre asseverada, de uma contemplação sub specie aeterni, não consegue, na realidade, afirmar-se a não ser sub specie temporis, isto é, necessariamente vinculado à fase de desenvolvimento espiritual própria de sua época e de seu autor, e destinado a ser superado por outras épocas e outros autores sucessivos. Ao contrário, quanto aos problemas que suscita o pensamento filosófico, ainda que esteja sempre subordinado ao tempo em sua geração e desenvolvimento progressivo, apresenta-se, no entanto,  como uma realização gradual de um processo eterno. Com efeito, os sistemas passam e caem; porém, os problemas formulados sempre permanecem como conquistas da consciência filosófica, conquistas imperecíveis, apesar da variedade das soluções tentadas e das formas pelas quais tais problemas são propostos, pois esta variação representa um aprofundamento progressivo da consciência filosófica. Dessa maneira, a reconstrução histórica do desenvolvimento da filosofia aparece como um reconhecimento do caminho percorrido pelo processo de formação progressiva da consciência filosófica, o que vale dizer, como uma conquista da autoconsciência" [Mondolfo, 1969: 33-34].

Há evidentemente, para Mondolfo, uma lógica da história da filosofia. Nesse aspecto, o pensador italiano assume as teses fundamentais de Hegel nas suas Lições de História da Filosofia. Há um fio condutor na história do pensamento humano. Ora, esse fio corresponde à estrutura lógica da razão que busca, no meio aos fatos e aos fenômenos, se manter idêntica a si mesma. Daí por que Mondolfo considera que "a história da filosofia não pode, de maneira alguma, ser considerada como uma sucessão de criações contraditórias, que negam cada uma o que a outra afirmava, ou constroem a seu bel-prazer um edifício destinado a ser derrubado, a fim de deixar seu lugar para outra construção, que será igualmente demolida como produto arbitrário de uma fantasia caprichosa (...)" [Mondolfo, 1969: 57-58].

Em decorrência dessas observações no terreno da historiografia da filosofia, Mondolfo considera que se deve elaborar um método de pesquisa que respeite a essência da dimensão problemática da meditação ocidental. A respeito, Mondolfo [1969: 261] escreve: "Devemos reviver em nossa consciência a experiência filosófica da humanidade passada, tanto em seu conjunto, quanto na individualidade de cada pensador. E para viver de novo cada sistema temos que realizar o máximo esforço, a fim de colocarmo-nos na situação espiritual em que se encontrava o filósofo que o criou, isto é,  temos que reproduzir em nossa interioridade a consciência dos problemas que preocupavam a sua época, assim como as exigências particulares de sua personalidade, compenetrando-nos de seu processo de formação e de sua vida interior. E quando, nos filósofos que são objeto de nosso estudo, esta vida interior [tiver sido] muito intensa e ativa, deparamo-nos geralmente com um movimento contínuo de aprofundamento, renovação e evolução espirituais, que reúne, por assim dizer, múltiplas personalidades sucessivas numa única pessoa, o que complica e dificulta a tarefa do intérprete que procura a reconstrução histórica".

O pensador italiano frisa que no estudo historiográfico da filosofia deve-se reconhecer, como aspecto fundamental, o progresso contínuo do espírito humano. Mas esse fato não reduz a cinzas as conquistas dos nossos antecessores. Elas serão sempre importantes, como a escada que nos permitiu subir mais alto para enxergar, numa maior altura, o horizonte. Continua presente, aqui, a convicção filosófica de Hegel no progresso do espírito humano. A respeito, frisa Mondolfo [1969: 263]: "Naturalmente,  não ficam anulados ou destruídos os resultados das investigações e intuições de Hegel ou de Zeller, ou de outros grandes historiadores, por serem superados pelas indagações sucessivas, cuja realização foi condicionada e estimulada por eles próprios. O processo de superação, como pensava Hegel, sempre outorga uma verdade mais profunda ao que foi superado, o qual permanece vital e ativamente nas raízes dos novos resultados, cuja obtenção tornou possível, impulsionando-os para a sua realização. Neste aspecto, devemos expressar nosso respeito e reconhecimento para com os grandes historiadores do passado, cujo estudo será sempre ponto de partida e fonte de fecundas sugestões  -  positiva ou negativamente, por meio da aceitação ou da oposição que provoca, das soluções que indica ou dos problemas que formula  -  para os novos investigadores".

Os culturalistas brasileiros assumiram a herança de Hartmann e de Mondolfo, sendo necessário lembrar a pesquisa historiográfica sobre o pensamento brasileiro desenvolvida, ao longo dos últimos quarenta anos, por Miguel Reale (1910-2006) e Antônio Paim (1927) [cf. Reale, 1951; Paim, 1979]. Pela trilha aberta por Reale e Paim, novas gerações de estudiosos têm empreendido a marcha, sendo hoje as figuras de Leonardo Prota (1930-2016) e José Maurício de Carvalho (1957), duas importantes manifestações dessa caminhada intelectual.

O primeiro aprofundou na temática da meditação brasileira à luz dos problemas que surgiram no seio das várias filosofias nacionais e o segundo tem particularizado as análises acerca da corrente culturalista, no contexto de uma pesquisa historiográfica dos problemas [cf. Prota, 2000 e Carvalho, 1998b e 2000].

Leonardo Prota adotou o ponto de vista culturalista ao analisar a Filosofia como problema e centrou a sua investigação no estudo da problemática das Filosofias Nacionais. Com a finalidade de abrir um debate amplo a respeito, fez desse tema o item central a ser discutido nos Encontros Nacionais de Professores e Pesquisadores da Filosofia Brasileira, entre 1989 e o início deste século.  A respeito da forma em que abordou o tema, Prota escreve, destacando a perplexidade que o tema das Filosofias Nacionais ainda suscita entre os estudiosos: “Afinal, por que tanta desconfiança com esse tipo de investigação filosófica?
 Possivelmente a explicação esteja no entendimento equivocado a respeito do conceito de Filosofia Universal. O problema não pode ser colocado em termos de oposição e exclusão, [numa espécie de confronto entre a] Filosofia Universal [e as] Filosofias Nacionais (...), que constituem e formam a Filosofia Universal, assim como anteriormente eram os sistemas que constituíam o pensamento universal” [Prota, 1999].
Em relação à forma em que este pensador equaciona a problemática das filosofias nacionais, Antônio Paim escreve: “Naquela altura, Leonardo Prota demonstrava haver amadurecido em seu espirito a temática a ser desenvolvida na obra que daria por concluída no ano seguinte, justamente com a denominação de As filosofias nacionais e a questão da universalidade da filosofia (Londrina: Editora UEL, 2000). A primeira pergunta que se propõe resolver consiste no seguinte: como se explica o surgimento de filosofias nacionais? Obviamente, não poderia haver filosofias nacionais antes das nações (...). A Primeira Parte da obra intitula-se justamente: ‘A quebra da unidade linguística na Europa e o surgimento das filosofias nacionais’. Para resolver a questão proposta, procede à reconstituição do processo de formação das nações europeias, permitindo-lhe apresentar uma síntese e uma cronologia. Sentiu necessidade de deter-se no exame das duas forças que espontânea e naturalmente se contrapunham a tal processo: o Sacro Império Romano Germânico e o Império Otomano. Tenha-se presente que este ocupou a parte substancial dos Bálcãs e esteve às portas de Viena” [Paim, 2015].

Antônio Paim sintetizou as restantes etapas da pesquisa de Leonardo Prota acerca das filosofias nacionais, da seguinte forma: “(...) As filosofias nacionais e a questão da universalidade da filosofia contém, ainda, duas outras partes. Elas tratam (...) do processo de formação das principais filosofias nacionais, onde procede à reconstituição desse processo no caso das filosofias inglesa, alemã, francesa e italiana. Valeu-se do material resultante das discussões sobre cada uma delas, verificado nos mencionados Encontros. A Parte subsequente intitula-se: ‘universalidade da filosofia e filosofias nacionais’, na qual resume a meditação de Nicolai Hartmann e de Rodolfo Mondolfo sobre o sucessivo desaparecimento de sistemas em face da permanência dos problemas. Insiste em que a questão ‘não pode ser colocada em termos de oposição e exclusão, filosofia universal versus filosofias nacionais, mas em termos de constituição; ou seja, contemporaneamente, são as filosofias nacionais (reflexões e investigações suscitadas por problemas filosóficos que marcaram as distintas tradições nacionais), que constituem e formam a filosofia universal, assim como anteriormente eram os sistemas que constituíam o pensamento universal’. Tece, então, alguns comentários sobre as quatro filosofias nacionais que escolheu para ilustrar o seu pensamento. Escreve: ‘Se na filosofia inglesa salientamos como característica a valorização da experiência, ninguém pode levantar dúvidas de que essa peculiaridade do pensamento inglês não faça parte, hoje, do pensamento universal’. Prosseguindo, frisa: ‘igualmente, se a persistência na elaboração de sistema filosófico marcou a filosofia alemã, tendo como resultado a filosofia crítica, seria absurdo imaginar o contexto da filosofia moderna sem essa aportação do momento Kant-Hegel’. Que dizer da filosofia francesa? - Pergunta. Responde dizendo que é impossível negar que o empenho de fazer prevalecer a racionalidade faça parte do patrimônio comum da filosofia universal. Registra que, ao tratar da Filosofia italiana, adotou a tese de Bertrando Spaventa (1817-1883), segundo a qual as filosofias nacionais, na Europa, correspondem a momentos particulares do desenvolvimento da Filosofia Moderna, nas diferentes nações” [Paim, 2015].
Representante da nova geração de pesquisadores da filosofia brasileira formada na Universidade Federal de Juiz de Fora, ao ensejo do Curso de Mestrado em Filosofia que ali funcionou no período que se estende de 1984 até a primeira década deste século, José Maurício de Carvalho enveredou pela pesquisa da filosofia brasileira, adotando como ponto de vista a concepção da filosofia como problema, à luz da metodologia apontada de Hartmann e de Mondolfo e seguindo a trilha aberta por Miguel Reale e Antônio Paim. A sua tese de doutorado, defendida na Universidade Gama Filho no decorrer dos anos 90, acerca dos fundamentos saint-simonianos do pensamento econômico do visconde de Mauá, situa-se ainda nesse contexto epistemológico [Carvalho, 1997b].
À frente do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de São João del Rei, José Maurício desenvolveu dinâmico trabalho de pesquisa sobre a formação da Filosofia brasileira, comparando esse processo com o que foi trilhado pela Filosofia portuguesa, ao longo dos século XIX e XX. Membro do Instituto de Filosofia Luso-brasileira, com sede em Lisboa, tendo efetivado os seus estudos de pós-doutorado, na Universidade Nova, sob a orientação de José Esteves Pereira, José Maurício passou a coordenar, na Universidade Federal de São João del Rei, a programação dos Colóquios “Antero de Quental”, que possibilitaram o confronto dos pensadores brasileiros com os seus homólogos portugueses.
 O fulcro da análise efetivada por José Maurício de Carvalho parte exatamente do ponto de vista firmado por Reale e Paim: Qual era o problema, ou os problemas, que inspiraram a obra de determinado pensador? A partir da resposta dada a essa questão, o pesquisador passou a estudar as relações entre os autores, mas sempre levando em consideração a problemática histórica à qual eles pretendiam responder. Essa metodologia foi posta em prática, por exemplo, na sua obra sobre o pensamento do filósofo e pedagogo português Delfim Santos (1907-1966) [Cf. Carvalho, 1996].
Destaco o valor pedagógico da metodologia utilizada por José Maurício de Carvalho, notadamente na sua obra: Curso de Introdução à Filosofia Brasileira [Carvalho, 2000], que foi por mim utilizada como texto básico para os seminários sobre Filosofia Brasileira, que dirigi na Universidade Federal de Juiz de Fora, entre 2003 e 2013. A adequada compreensão dos vários autores deve-se inserir, como faz José Maurício, no contexto dos problemas por eles levantados nas suas obras, aos quais tentaram responder. O confronto entre as várias respostas dadas às problemáticas levantadas permitiu, aos alunos, ter uma visão completa acerca do valor e do significado da sua contribuição na história das ideias filosóficas no Brasil.
Do exposto acerca do pensamento de Leonardo Prota e José Maurício de Carvalho fica claro que na trilha da reflexão crítico-histórica desenvolvida por Miguel Reale e Antônio Paim, abriu-se fecunda perspectiva para analisar, de forma aberta e objetiva, os principais problemas que afetam ao homem contemporâneo. Por esse caminho vai se identificando a forma brasileira de abordar a existência humana do ângulo filosófico, sendo que hoje podemos falar, como frisa com propriedade Zdenek Kourim [1997: 425]  de uma autêntica "emancipação intelectual" do nosso país.
No contexto da reflexão crítico-histórica firmada por Miguel Reale e Antônio Paim, desenvolvi a minha reflexão sobre os problemas ao redor dos que gira a meditação filosófica nos nossos dias, na obra: Tópicos especiais de filosofia contemporânea [Vélez, 2001], que é uma tentativa de reflexão, do ponto de vista culturalista, acerca da problemática da cultura, da interdisciplinaridade, da ciência contemporânea, da comunicação, da epistemologia da história, da cibernética nas suas implicações educacionais, do totalitarismo, do messianismo político, da ética econômica, da questão da transparência na política, da bioética, da problemática da violência, das questões debatidas pelos comunitaristas e da utopia socialista. Problemas atuais que, sem dúvida, nos desvelam e que a filosofia tenta iluminar, numa tentativa de garantir o equacionamento humanístico dos mesmos, preservando a consciência e a liberdade.

Pode-se arguir falta de sistematização nesse meu trabalho. Mas, após as considerações de Hartmann e Mondolfo, talvez fique claro que a falta de sistema não encobre carência de reflexão, muito pelo contrário: revela atenção à complexidade do real, que nos coloca, sempre, diante dos grandes e eternos problemas que dão vida à meditação filosófica e que não se deixam esgotar pelos sistemas. Em que pese a falta de sistema, a minha reflexão deixa claro o pano de fundo transcendental que a anima, ao considerar a ampla gama dos problemas contemporâneos à luz do ideal de pessoa como consciência e liberdade, que constitui, sem dúvida, a mais importante herança cultural do Ocidente.  Essa metodologia inspirada na ideia de Hartmann da “Filosofia como Problema”, já tinha sido posta em prática por mim na obra intitulada: Tópicos especiais de filosofia moderna [Vélez, 1995].

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