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segunda-feira, 23 de maio de 2016

O SENTIDO DA MEDITAÇÃO FILOSÓFICA CONTEMPORÂNEA, SEGUNDO A NOVA GERAÇÃO DOS CULTURALISTAS BRASILEIROS

 Leonardo Prota (1930-2016) e José Maurício de Carvalho (1957) dois representantes da Corrente Culturalista Contemporânea da meditação filosófica brasileira.

A filosofia no mundo de hoje é pensada ao redor de problemas, tendo sido Nicolai Hartmann (1882-1950) quem primeiro elaborou uma metodologia para estudar o papel dos problemas na meditação filosófica. O seu pensamento estruturou-se a partir dos postulados da Escola de Marburgo, mas acabou por se separar do idealismo lógico daquela Escola, bem como do neokantismo, por influência imediata de Edmund Husserl (1859-1938) e Max Scheler (1874-1928), mas também, segundo o próprio filósofo destaca, graças à retomada, por ele, da antiga tradição metafísica presente na obra de Aristóteles (384-322 a. C.). Hartmann destaca que na elaboração da sua proposta filosófica influiu a leitura das obras de Immanuel Kant (1724-1804) e de Georg W. F. Hegel (1770-1831), notadamente no que tange à discussão das raízes ontológicas que são pressupostas no pensamento desses filósofos.

A formulação de uma nova ontologia amadurece, no pensamento de Hartmann, por volta de 1919. As primeiras obras nas quais o autor expôs essa teoria são Metaphysik der Erkenntnis (Metafísica da inteligência, 1921) e Ethik (Ética, 1925). Nos anos seguintes, Nicolai Hartmann publicou a sua obra dedicada à lógica, sob o título de Studien zur Logik (Estudos sobre lógica, 1931 a 1944), cujo manuscrito terminou se perdendo no meio à agitação vivida na Alemanha, no final da II Guerra Mundial.

Não há dúvida de que Hartmann é um dos autores que mais têm influído na filosofia do século XX. Possuía o que denominaríamos hoje de ética da responsabilidade intelectual, num meio em que pairavam as idéias do totalitarismo e da despersonalização. Dessa inspiração ética, profundamente enraizada na tradição kantiana, dão testemunho as suas palavras: "não há nenhuma consciência acima da pessoa singular". Ou estas outras: "só o espírito pessoal é dotado de intuição, de capacidade de assinalar fins e de orientação". Essa sua enraizada convicção intelectual levou-o a não ceder nunca às modas intelectuais, se norteando unicamente pela procura sempre renovada da verdade.

A essência da posição de Hartmann, no que tange à teoria do conhecimento, consiste na afirmação do caráter histórico dos grandes problemas da Filosofia, que constituem problemas-limite, comuns a todas as ciências, e que são, no fundo, problemas metafísicos atrelados a um núcleo irracional e insolúvel. Hartmann utilizou na sua meditação o método fenomenológico, mas desatrelando-o da redução transcendental, tendo unicamente adotado a redução ao eidos. Graças a isso, para Hartmann, o fenômeno não exclui a aporética, mas, ao contrário, torna possível o acesso à Filosofia. À descrição fenomenológica segue-se, em primeiro lugar, para Hartmann, a prática dos métodos analítico e dialético, que constituem uma perspectiva de caráter horizontal dos fenômenos (livre da dimensão triádica da dialética hegeliana); em segundo lugar vem o método sintético que, no nível mais alto da intuição, possibilita a unificação das categorias, dando ensejo à descoberta de todos os atos alicerçados em outros de nível inferior.

Nicolai Hartmann conferiu tal grau de importância ao método eidético, que terminou confundido redução ao eidos com a própria epoché fenomenológica. A respeito dessa confusão, afirma o autor na sua obra Der Aufbau der realen Welt (A construção do mundo real, 1940): "só por isso pode a intuição das essências, abstraindo do acidental, ganhar a essência a partir do singular; este processo é a redução fenomenológica" [cf. Fraga, 1990: 2, 1010-1014].

Contrariando a doutrina husserliana, Hartmann retoma o conceito de coisa em si e, ao contrário da Escola de Marburgo, afirma um ponto de vista realista, no sentido de que o objeto descrito no conhecimento transcende à própria consciência. A sua teoria do conhecimento abria a porta, destarte, à ontologia, cujos aspectos essenciais são os seguintes: o ente em si mesmo, apreendido no processo do conhecimento, dá-se-nos diretamente no fenômeno do ser. A metafísica, pensa Hartmann, já não pode ser uma doutrina de sistemas; nisso o pensador alemão retoma a crítica efetivada por David Hume (1711-1776) e Kant. A metafísica somente pode ser possível como uma ontologia crítica. Na sua obra intitulada Zur Grundlegung der Ontologie (Acerca do fundamento da ontologia, 1935), o autor propõe as quatro investigações básicas da sua ontologia. Destaquemos apenas as duas mais caraterísticas, que tratam da relação de essência e existência e do problema do ser ideal e da sua relação com o ser real.

No que tange à pesquisa da relação da essência com a existência, Hartmann dá destaque à apreensão da existência sobre a afirmação da essência. A respeito, afirma: "A existência da árvore no seu lugar é uma essência da floresta, a floresta seria outra sem ela; a existência do ramo na árvore é uma essência da árvore (...) a existência de uma coisa é simultaneamente essência de outra". De outro lado, "a essência da folha é a existência da nervura, a essência do ramo é a existência da folha, etc.". O realismo de Hartmann, chamado pelos seus críticos de voluntarista, e que recebe a influência de Max Scheler e de Wilhelm Dilthey (1833-1911) destaca a experiência do próprio eu: a afirmação mais clara do ser-em-si é-nos dada pela existência dos nossos atos emocionais-transcendentes, notadamente aqueles que "se deixam isolar e analisar" (que são os receptivos, os prospectivos e os espontâneos).

No que tange à investigação de Hartmann acerca do problema do ser ideal e da sua relação com o ser real, o pensador alemão destaca que o ser ideal não é o ser do pensamento, mas é o das essências, das formações ideais da matemática e dos valores. O caminho pelo qual pode ser provada a idealidade do ser ideal é o da essência do a-priori, observável na relação da matemática pura à aplicada, bem como na indiferença das essências para com os casos reais.

O cerne da ontologia de Hartmann é a sua teoria dos modos de ser ou análise modal, que o pensador alemão expõe na obra intitulada Mögichkeit und Wirklichkeit (Possibilidade e Realidade, 1938). Nesta obra, o pensador explica as leis fundamentais que regulam as relações de possibilidade e realidade, necessidade e acidentalidade, impossibilidade e não realidade. A lei real da necessidade é formulada nos seguintes termos: "o que é realmente possível também é realmente necessário". Essa lei deriva do antigo princípio metafísico de que o ser não pode provir do não ser ou, em outros termos, de que a possibilidade do ser não é simultaneamente possibilidade do não ser. Hartmann formula, ademais, a lei ou fórmula "de identidade", que reza assim: "as condições de possibilidade real de uma coisa são simultaneamente as condições da sua necessidade real". Esta lei exprime uma convicção contrária ao conceito popular de possibilidade, que foi aceito pela ontologia tradicional, desconhecendo o rigor que os pre-socráticos (de Megara) conferiam ao conceito de possibilidade. A lei real da necessidade não implica, no entanto, para Hartmann, um determinismo total do mundo, mas apenas o que ele denomina de uma sobreposição de várias formas de determinação [cf. Fraga, 1990: 2, 1010-1014].

Em que pese o fato da concessão que Hartmann faz à perspectiva realista na sua ontologia (difícil de justificar teoricamente, uma vez aceitos os princípios do neokantismo), um aspecto, contudo, deve ser ressaltado: em face da complexidade do mundo, é necessário reconhecer que o pensamento moldado em sistemas está fora de jogo. A respeito, escreve o filósofo alemão em Autoexposição sistemática [Hartmann, 1989: 4]: "Explicar o espírito a partir da matéria ou entender a matéria a partir do espírito, o ser a partir da consciência; reduzir o organismo ao mecanismo ou fazer passar o acontecer mecânico por uma vitalidade encoberta, tudo isso e muito mais é hoje uma coisa impossível de se realizar. Isso contradiz, já nos primeiros passos, o que com segurança sabemos nos domínios especiais. O pensamento construtivo ficou fora de jogo".

Embora os pensadores contemporâneos não renunciem a uma busca de nexo sistemático entre os fenômenos, Hartmann considera, no entanto, que essa pressuposição deve ser abandonada como ponto de partida. O que a meditação filosófica faz, no seu início, é tomar consciência de uma complexidade do mundo, que o autor alemão não duvida em identificar como perspectiva problemática do pensar.

Ao pensamento sistemático construtivo Hartmann contrapõe o pensamento problemático investigador. Essas duas grandes linhas epistemológicas são claramente identificáveis na história da Filosofia ocidental. Embora encontremos pensadores mais afinados com a perspectiva sistemática (como Plotino, Proclo, Tomás de Aquino, Duns Scot, Hobbes, Espinosa, Fichte, Schelling) e outros mais próximos da visão problemática (como Platão, Aristóteles, Descartes, Hume, Leibniz, Kant), em todos eles a meditação filosófica emerge a partir da base dos problemas metafísicos, que são os que acompanham a perplexidade da mente humana diante do mistério do Ser. "Em geral, escreve Hartmann, o morto e o simplesmente histórico pertencem ao pensar sistemático; pelo contrário, o supra-histórico e o vital pertencem ao pensar problemático puro. Nele se encontram as aquisições da história do pensamento" [Hartmann, 1989: 7].

Os historiadores da filosofia e os comentaristas deformaram, infelizmente, o pensamento de Platão, apresentando-o como decorrente de uma visão sistemática pré-concebida. Ora, nada mais afastado do grande filósofo grego do que essa preguiçosa concepção sistemática. Nele era fundamental, antes de tudo, a perplexidade em face do Ser, a dimensão da dúvida, que o levava a considerar como cosmogonias mitológicas as concepções herdadas dos seus antepassados. É necessário recuperar, frisa Hartmann, a dimensão problemática da filosofia platônica, para que saibamos valorar a sua criatividade. Platão, ao manter viva a perplexidade diante do real, deu vida à meditação filosófica, abrindo a porta para a interrogação e a elaboração de novos caminhos.

Hartmann considera necessário, de outro lado, recuperar a valoração problemática da meditação aristotélica, que parte da aporética e que se encaminha para a construção de um sistema de pensamento. Acontece que a sistematização escolástica empobreceu essa dimensão dinâmica da meditação do estagirita, ressaltando o momento sistemático e esquecendo o ponto de partida problemático. Três razões explicariam, nos historiadores da filosofia, essa pressa em valorar o sistema por cima dos problemas: em primeiro lugar, a impaciência para descobrir soluções custe o que custar; em segundo lugar, a pressuposição (falsa) de que problemas insolúveis são filosoficamente inúteis; em terceiro lugar, o menosprezo em face das perguntas irrecusáveis.

Em relação à primeira razão, Hartmann considera que é muito mais filosófico legar aos nossos discípulos perguntas sem responder, do que pretender construir, a qualquer preço, respostas sistemáticas para tudo. Em relação à segunda razão, o filósofo alemão considera que os problemas insolúveis são filosoficamente úteis. A história do pensamento ocidental mostra que o verdadeiro progresso advém da abertura à indagação e do questionamento às soluções já adquiridas. Ora, as ciências somente progridem em face do princípio da refutabilidade que nos leva a adotar, perante o que recebemos dos nossos antepassados, uma atitude não de subserviência, mas de crítica.  O drama dos dogmatismos, estreitamente ligados aos totalitarismos do mundo contemporâneo, consiste justamente no fato de eliminarem a dúvida e o pensamento crítico.

Em relação à terceira razão, Hartmann destaca que há problemas que foram colocados num determinado momento e que jamais seria possível colocá-los antes. A formulação de indagações está sempre ligada a determinadas condições históricas irrepetíveis, bem como a um determinado estado do saber. Enquanto os filósofos estiverem preocupados unicamente com a dimensão sistemática, não perceberão o sentido dos eternos e irrecusáveis conteúdos problemáticos, que ancoram na perplexidade diante da realidade. Assim, frisa Hartmann, "acontece que é necessária previamente uma reflexão especial sobre a linha histórica do pensamento problemático, que se oculta por trás da fachada dos sistemas, para garantirmos aqueles conteúdos" [Hartmann, 1989: 13]

Os eternos e irrecusáveis conteúdos problemáticos: esse constitui o ponto de partida do filosofar. Ora, destaca Hartmann, esses eternos e irrecusáveis conteúdos emergem da consciência perplexa pela complexidade do real, que constitui um fenômeno básico não impugnável. "Os fenômenos, escreve, são sempre mais fortes do que as teorias. O homem não pode mudar os fenômenos; o mundo permanece como é, qualquer que seja o pensamento do homem sobre ele. O homem pode somente apreendê-lo ou errar em relação a ele" [Hartmann, 1989: 14].

Hartmann propõe um método progressivo para a razão não se afastar da realidade e construir as suas teorias sem falsear a apreensão dos fenômenos. O primeiro passo é constituído pela descrição fiel dos fenômenos. O segundo consiste na aporética ou estudo dos problemas, enquanto constituem o incompreendido dos fenômenos, explicitando com claridade as aporias naturais; este passo deve levar em consideração o estado da pesquisa respectiva. O terceiro passo, por fim, consiste na teoria, ou abordagem da solução das aporias.

Em relação à metodologia proposta, o filósofo alemão escreve: "Essa progressão: fenomenologia, aporética, teoria, não pode ser abreviada. Os dois primeiros graus, tomados cada um em si, constituem um amplo campo de trabalho, uma ciência inteira. E precisamente porque nenhum dos dois é o definitivo e verdadeiro, recai sobre eles a maior ênfase. O seu campo de trabalho é aquele onde os sistemas construtivos têm pecado. Estes precisamente ficaram curtos demais. E justamente por isso as teorias repousavam sobre bases frágeis. Aqui é preciso criar fundamentos sólidos -- não os fundamentos objetivos da teoria (que devem ser encontrados preferentemente só quando começa o estudo das aporias) --, mas os pontos de partida do conhecimento, enquanto deve ser algo mais do que simples descrição do encontrado anteriormente. No relativo ao terceiro grau, deve consistir num tratamento puro das aporias destacadas, e certamente com base no mesmo resultado presente nos fenômenos. Esse tratamento ou estudo não é mais do que uma solução das aporias. Somente pode tender em direção a uma solução. De antemão não pode dizer nem como resultará a solução, nem se alguma é possível absolutamente. O estudo das aporias é algo muito diferente quando pode se alicerçar num limpo trabalho prévio, realizado sobre o fenômeno e o problema, e quando parte, sem mais, de algo supostamente dado. Os problemas vistos com ingenuidade foram colocados na maior parte das vezes de forma inadequada, e atingem a realidade só de forma periférica. Pois a colocação problemática condicionada toma-se possível graças ao conteúdo problemático objetivo. Dessa forma, misturam-se muitas aporias artificiais e as naturais são encobertas. Mas, antes de mais nada, somente depois de efetivado o trabalho da aporética, resulta possível dar novamente à teoria mesma o seu valor e sentido original" [Hartmann, 1989: 16-17].

A radical inadequação entre o nosso pensamento e a realidade presente no mundo dos fenômenos, essa seria, no sentir de Hartmann, a metafísica dos problemas, a partir da qual tentamos, de várias formas, explicar a realidade (dando ensejo aos sistemas), sem que, contudo, consigamos nunca dar conta dela. Eis a raíz do que hoje denominamos de modéstia epistemológica, única atitude condizente com a busca diuturna da verdade.

Retomando os conceitos desenvolvidos por Hartmann, o pensador italiano Rodolfo Mondolfo (1877-1976) tematizou, por sua vez, o papel da indagação dos problemas na criação filosófica. A consciência da insuficiência dos nossos conceitos, esse seria o ponto de partida de uma autêntica reflexão. A respeito, escreve Mondolfo: " (...) na aquisição de conhecimentos e na reflexão intelectual, sempre acontece tropeçarmos com dificuldades que se baseiam no reconhecimento de faltas e imperfeições em nossas noções, cuja insatisfação, portanto, nos suscita problemas. E daí surge a investigação, isto é,  pela consciência de um problema, cuja solução nos sentimos impelidos a procurar, estando justamente a indagação voltada para a solução do problema, que nos foi apresentado" [Mondolfo, 1969: 30].

O pensador italiano considera que o sucesso da investigação filosófica decorre, sem lugar a dúvidas, da clareza com que tenha sido colocado o respectivo problema. É o ponto que os escolásticos chamavam de status quaestionis, que era colocado antes da elaboração doutrinária, na tradicional Lectio. Em relação a esse aspecto, Mondolfo escreve: "(...) a fecundidade do esforço investigador é proporcional à clareza e à adequação da formulação do problema; de maneira que a primeira exigência imposta ao investigador é a de conseguir, da melhor maneira possível, uma consciência clara e distinta do problema, que constitui o objeto de sua indagação. Esta exigência é válida preliminarmente para qualquer espécie de investigação, porém o é, sobretudo, na filosofia, sendo a filosofia antes de mais nada -- como já Sócrates o ressaltava--   consciência da própria ignorância, isto é,  da existência de problemas que exigem o esforço da mente na procura de uma saída dessa situação de mal-estar e de insatisfação" [Mondolfo, 1969: 30].

Na trilha da perspectiva genética apontada por Giambattista Vico (1688-1744) na sua famosa frase: "a natureza das coisas é o seu nascimento", Mondolfo escreve: "(...) Toda a investigação teórica que quiser encontrar seu caminho com maior segurança, supõe e exige, como condição prévia, uma investigação histórica referente ao problema, ao seu desenvolvimento e às soluções que foram tentadas para resolvê-lo" [Mondolfo, 1969: 30-31].

Mondolfo considera que a perspectiva problemática atrela-se à essência da pesquisa filosófica. Aparentemente haveria oposição entre a tarefa do historiador (inquiridor da verdade sub specie temporis) e a do filósofo, (perscrutador da alétheia sub specie aeterni). No entanto, a esta última só se chega pela porta estreita da historicidade, pois como frisa Karl Jaspers [1980: 34], "se saíssemos da História tombaríamos no nada".

A respeito deste ponto, escreve Mondolfo: "Com efeito, podemos distinguir um duplo aspecto na filosofia, conforme ela se apresente como problema ou como sistema. Como sistema, é evidente que o pensamento filosófico, apesar de sua pretensão, sempre asseverada, de uma contemplação sub specie aeterni, não consegue, na realidade, afirmar-se a não ser sub specie temporis, isto é, necessariamente vinculado à fase de desenvolvimento espiritual própria de sua época e de seu autor, e destinado a ser superado por outras épocas e outros autores sucessivos. Ao contrário, quanto aos problemas que suscita o pensamento filosófico, ainda que esteja sempre subordinado ao tempo em sua geração e desenvolvimento progressivo, apresenta-se, no entanto,  como uma realização gradual de um processo eterno. Com efeito, os sistemas passam e caem; porém, os problemas formulados sempre permanecem como conquistas da consciência filosófica, conquistas imperecíveis, apesar da variedade das soluções tentadas e das formas pelas quais tais problemas são propostos, pois esta variação representa um aprofundamento progressivo da consciência filosófica. Dessa maneira, a reconstrução histórica do desenvolvimento da filosofia aparece como um reconhecimento do caminho percorrido pelo processo de formação progressiva da consciência filosófica, o que vale dizer, como uma conquista da autoconsciência" [Mondolfo, 1969: 33-34].

Há evidentemente, para Mondolfo, uma lógica da história da filosofia. Nesse aspecto, o pensador italiano assume as teses fundamentais de Hegel nas suas Lições de História da Filosofia. Há um fio condutor na história do pensamento humano. Ora, esse fio corresponde à estrutura lógica da razão que busca, no meio aos fatos e aos fenômenos, se manter idêntica a si mesma. Daí por que Mondolfo considera que "a história da filosofia não pode, de maneira alguma, ser considerada como uma sucessão de criações contraditórias, que negam cada uma o que a outra afirmava, ou constroem a seu bel-prazer um edifício destinado a ser derrubado, a fim de deixar seu lugar para outra construção, que será igualmente demolida como produto arbitrário de uma fantasia caprichosa (...)" [Mondolfo, 1969: 57-58].

Em decorrência dessas observações no terreno da historiografia da filosofia, Mondolfo considera que se deve elaborar um método de pesquisa que respeite a essência da dimensão problemática da meditação ocidental. A respeito, Mondolfo [1969: 261] escreve: "Devemos reviver em nossa consciência a experiência filosófica da humanidade passada, tanto em seu conjunto, quanto na individualidade de cada pensador. E para viver de novo cada sistema temos que realizar o máximo esforço, a fim de colocarmo-nos na situação espiritual em que se encontrava o filósofo que o criou, isto é,  temos que reproduzir em nossa interioridade a consciência dos problemas que preocupavam a sua época, assim como as exigências particulares de sua personalidade, compenetrando-nos de seu processo de formação e de sua vida interior. E quando, nos filósofos que são objeto de nosso estudo, esta vida interior [tiver sido] muito intensa e ativa, deparamo-nos geralmente com um movimento contínuo de aprofundamento, renovação e evolução espirituais, que reúne, por assim dizer, múltiplas personalidades sucessivas numa única pessoa, o que complica e dificulta a tarefa do intérprete que procura a reconstrução histórica".

O pensador italiano frisa que no estudo historiográfico da filosofia deve-se reconhecer, como aspecto fundamental, o progresso contínuo do espírito humano. Mas esse fato não reduz a cinzas as conquistas dos nossos antecessores. Elas serão sempre importantes, como a escada que nos permitiu subir mais alto para enxergar, numa maior altura, o horizonte. Continua presente, aqui, a convicção filosófica de Hegel no progresso do espírito humano. A respeito, frisa Mondolfo [1969: 263]: "Naturalmente,  não ficam anulados ou destruídos os resultados das investigações e intuições de Hegel ou de Zeller, ou de outros grandes historiadores, por serem superados pelas indagações sucessivas, cuja realização foi condicionada e estimulada por eles próprios. O processo de superação, como pensava Hegel, sempre outorga uma verdade mais profunda ao que foi superado, o qual permanece vital e ativamente nas raízes dos novos resultados, cuja obtenção tornou possível, impulsionando-os para a sua realização. Neste aspecto, devemos expressar nosso respeito e reconhecimento para com os grandes historiadores do passado, cujo estudo será sempre ponto de partida e fonte de fecundas sugestões  -  positiva ou negativamente, por meio da aceitação ou da oposição que provoca, das soluções que indica ou dos problemas que formula  -  para os novos investigadores".

Os culturalistas brasileiros assumiram a herança de Hartmann e de Mondolfo, sendo necessário lembrar a pesquisa historiográfica sobre o pensamento brasileiro desenvolvida, ao longo dos últimos quarenta anos, por Miguel Reale (1910-2006) e Antônio Paim (1927) [cf. Reale, 1951; Paim, 1979]. Pela trilha aberta por Reale e Paim, novas gerações de estudiosos têm empreendido a marcha, sendo hoje as figuras de Leonardo Prota (1930-2016) e José Maurício de Carvalho (1957), duas importantes manifestações dessa caminhada intelectual.

O primeiro aprofundou na temática da meditação brasileira à luz dos problemas que surgiram no seio das várias filosofias nacionais e o segundo tem particularizado as análises acerca da corrente culturalista, no contexto de uma pesquisa historiográfica dos problemas [cf. Prota, 2000 e Carvalho, 1998b e 2000].

Leonardo Prota adotou o ponto de vista culturalista ao analisar a Filosofia como problema e centrou a sua investigação no estudo da problemática das Filosofias Nacionais. Com a finalidade de abrir um debate amplo a respeito, fez desse tema o item central a ser discutido nos Encontros Nacionais de Professores e Pesquisadores da Filosofia Brasileira, entre 1989 e o início deste século.  A respeito da forma em que abordou o tema, Prota escreve, destacando a perplexidade que o tema das Filosofias Nacionais ainda suscita entre os estudiosos: “Afinal, por que tanta desconfiança com esse tipo de investigação filosófica?
 Possivelmente a explicação esteja no entendimento equivocado a respeito do conceito de Filosofia Universal. O problema não pode ser colocado em termos de oposição e exclusão, [numa espécie de confronto entre a] Filosofia Universal [e as] Filosofias Nacionais (...), que constituem e formam a Filosofia Universal, assim como anteriormente eram os sistemas que constituíam o pensamento universal” [Prota, 1999].
Em relação à forma em que este pensador equaciona a problemática das filosofias nacionais, Antônio Paim escreve: “Naquela altura, Leonardo Prota demonstrava haver amadurecido em seu espirito a temática a ser desenvolvida na obra que daria por concluída no ano seguinte, justamente com a denominação de As filosofias nacionais e a questão da universalidade da filosofia (Londrina: Editora UEL, 2000). A primeira pergunta que se propõe resolver consiste no seguinte: como se explica o surgimento de filosofias nacionais? Obviamente, não poderia haver filosofias nacionais antes das nações (...). A Primeira Parte da obra intitula-se justamente: ‘A quebra da unidade linguística na Europa e o surgimento das filosofias nacionais’. Para resolver a questão proposta, procede à reconstituição do processo de formação das nações europeias, permitindo-lhe apresentar uma síntese e uma cronologia. Sentiu necessidade de deter-se no exame das duas forças que espontânea e naturalmente se contrapunham a tal processo: o Sacro Império Romano Germânico e o Império Otomano. Tenha-se presente que este ocupou a parte substancial dos Bálcãs e esteve às portas de Viena” [Paim, 2015].

Antônio Paim sintetizou as restantes etapas da pesquisa de Leonardo Prota acerca das filosofias nacionais, da seguinte forma: “(...) As filosofias nacionais e a questão da universalidade da filosofia contém, ainda, duas outras partes. Elas tratam (...) do processo de formação das principais filosofias nacionais, onde procede à reconstituição desse processo no caso das filosofias inglesa, alemã, francesa e italiana. Valeu-se do material resultante das discussões sobre cada uma delas, verificado nos mencionados Encontros. A Parte subsequente intitula-se: ‘universalidade da filosofia e filosofias nacionais’, na qual resume a meditação de Nicolai Hartmann e de Rodolfo Mondolfo sobre o sucessivo desaparecimento de sistemas em face da permanência dos problemas. Insiste em que a questão ‘não pode ser colocada em termos de oposição e exclusão, filosofia universal versus filosofias nacionais, mas em termos de constituição; ou seja, contemporaneamente, são as filosofias nacionais (reflexões e investigações suscitadas por problemas filosóficos que marcaram as distintas tradições nacionais), que constituem e formam a filosofia universal, assim como anteriormente eram os sistemas que constituíam o pensamento universal’. Tece, então, alguns comentários sobre as quatro filosofias nacionais que escolheu para ilustrar o seu pensamento. Escreve: ‘Se na filosofia inglesa salientamos como característica a valorização da experiência, ninguém pode levantar dúvidas de que essa peculiaridade do pensamento inglês não faça parte, hoje, do pensamento universal’. Prosseguindo, frisa: ‘igualmente, se a persistência na elaboração de sistema filosófico marcou a filosofia alemã, tendo como resultado a filosofia crítica, seria absurdo imaginar o contexto da filosofia moderna sem essa aportação do momento Kant-Hegel’. Que dizer da filosofia francesa? - Pergunta. Responde dizendo que é impossível negar que o empenho de fazer prevalecer a racionalidade faça parte do patrimônio comum da filosofia universal. Registra que, ao tratar da Filosofia italiana, adotou a tese de Bertrando Spaventa (1817-1883), segundo a qual as filosofias nacionais, na Europa, correspondem a momentos particulares do desenvolvimento da Filosofia Moderna, nas diferentes nações” [Paim, 2015].
Representante da nova geração de pesquisadores da filosofia brasileira formada na Universidade Federal de Juiz de Fora, ao ensejo do Curso de Mestrado em Filosofia que ali funcionou no período que se estende de 1984 até a primeira década deste século, José Maurício de Carvalho enveredou pela pesquisa da filosofia brasileira, adotando como ponto de vista a concepção da filosofia como problema, à luz da metodologia apontada de Hartmann e de Mondolfo e seguindo a trilha aberta por Miguel Reale e Antônio Paim. A sua tese de doutorado, defendida na Universidade Gama Filho no decorrer dos anos 90, acerca dos fundamentos saint-simonianos do pensamento econômico do visconde de Mauá, situa-se ainda nesse contexto epistemológico [Carvalho, 1997b].
À frente do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de São João del Rei, José Maurício desenvolveu dinâmico trabalho de pesquisa sobre a formação da Filosofia brasileira, comparando esse processo com o que foi trilhado pela Filosofia portuguesa, ao longo dos século XIX e XX. Membro do Instituto de Filosofia Luso-brasileira, com sede em Lisboa, tendo efetivado os seus estudos de pós-doutorado, na Universidade Nova, sob a orientação de José Esteves Pereira, José Maurício passou a coordenar, na Universidade Federal de São João del Rei, a programação dos Colóquios “Antero de Quental”, que possibilitaram o confronto dos pensadores brasileiros com os seus homólogos portugueses.
 O fulcro da análise efetivada por José Maurício de Carvalho parte exatamente do ponto de vista firmado por Reale e Paim: Qual era o problema, ou os problemas, que inspiraram a obra de determinado pensador? A partir da resposta dada a essa questão, o pesquisador passou a estudar as relações entre os autores, mas sempre levando em consideração a problemática histórica à qual eles pretendiam responder. Essa metodologia foi posta em prática, por exemplo, na sua obra sobre o pensamento do filósofo e pedagogo português Delfim Santos (1907-1966) [Cf. Carvalho, 1996].
Destaco o valor pedagógico da metodologia utilizada por José Maurício de Carvalho, notadamente na sua obra: Curso de Introdução à Filosofia Brasileira [Carvalho, 2000], que foi por mim utilizada como texto básico para os seminários sobre Filosofia Brasileira, que dirigi na Universidade Federal de Juiz de Fora, entre 2003 e 2013. A adequada compreensão dos vários autores deve-se inserir, como faz José Maurício, no contexto dos problemas por eles levantados nas suas obras, aos quais tentaram responder. O confronto entre as várias respostas dadas às problemáticas levantadas permitiu, aos alunos, ter uma visão completa acerca do valor e do significado da sua contribuição na história das ideias filosóficas no Brasil.
Do exposto acerca do pensamento de Leonardo Prota e José Maurício de Carvalho fica claro que na trilha da reflexão crítico-histórica desenvolvida por Miguel Reale e Antônio Paim, abriu-se fecunda perspectiva para analisar, de forma aberta e objetiva, os principais problemas que afetam ao homem contemporâneo. Por esse caminho vai se identificando a forma brasileira de abordar a existência humana do ângulo filosófico, sendo que hoje podemos falar, como frisa com propriedade Zdenek Kourim [1997: 425]  de uma autêntica "emancipação intelectual" do nosso país.
No contexto da reflexão crítico-histórica firmada por Miguel Reale e Antônio Paim, desenvolvi a minha reflexão sobre os problemas ao redor dos que gira a meditação filosófica nos nossos dias, na obra: Tópicos especiais de filosofia contemporânea [Vélez, 2001], que é uma tentativa de reflexão, do ponto de vista culturalista, acerca da problemática da cultura, da interdisciplinaridade, da ciência contemporânea, da comunicação, da epistemologia da história, da cibernética nas suas implicações educacionais, do totalitarismo, do messianismo político, da ética econômica, da questão da transparência na política, da bioética, da problemática da violência, das questões debatidas pelos comunitaristas e da utopia socialista. Problemas atuais que, sem dúvida, nos desvelam e que a filosofia tenta iluminar, numa tentativa de garantir o equacionamento humanístico dos mesmos, preservando a consciência e a liberdade.

Pode-se arguir falta de sistematização nesse meu trabalho. Mas, após as considerações de Hartmann e Mondolfo, talvez fique claro que a falta de sistema não encobre carência de reflexão, muito pelo contrário: revela atenção à complexidade do real, que nos coloca, sempre, diante dos grandes e eternos problemas que dão vida à meditação filosófica e que não se deixam esgotar pelos sistemas. Em que pese a falta de sistema, a minha reflexão deixa claro o pano de fundo transcendental que a anima, ao considerar a ampla gama dos problemas contemporâneos à luz do ideal de pessoa como consciência e liberdade, que constitui, sem dúvida, a mais importante herança cultural do Ocidente.  Essa metodologia inspirada na ideia de Hartmann da “Filosofia como Problema”, já tinha sido posta em prática por mim na obra intitulada: Tópicos especiais de filosofia moderna [Vélez, 1995].

BIBLIOGRAFIA

CARVALHO, José Maurício de [1986]. A causalidade no pensamento de Moritz Schlick. Juiz de Fora: Universidade Federal de Juiz de Fora (dissertação de Mestrado).

CARVALHO, José Maurício de [1994]. As ideias filosóficas e políticas de Tancredo Neves. Belo Horizonte: Itatiaia. Coleção Reconquista do Brasil.

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3 comentários:

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  2. Uma das maiores contribuições filosófico-culturais dos pensadores brasileiros da atualidade - somente citanto Antonio Paim, Ricardo Vélez Rodríguez, Leonardo Prota e José Maurício de Carvalho - é a explicitação da questão dos problemas específicos nacionais dando origem às filosofias nacionais. Aquilo que era denominado de filosofia universal na verdade era um problema nacional e como tal uma filosofia nacional.

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  3. Creio que caberia sugerir Paulo Mercadante, Gilberto Freyre, Olavo de Carvalho e, principalmente, Mário Ferreira dos Santos para comporem esse time de "titãs" do pensamento brasileiro.

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