Amigos, divulgo neste espaço interessante debate sobre a transição democrática no mundo atual, no qual participaram importantes estudiosos do mundo da política como Larry Diamond, Francis Fukuyama, Donald L. Horowitz e Marc E. Plattner.
Sob a coordenação deste último, já tinha eu participado, em novembro de 2001, de esclarecedora discussão em torno ao tema da transição democrática, em seminário organizado pelo meu amigo João Carlos Espada no Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica de Lisboa, dois meses depois dos atentados de 11 de setembro.
A minha exposição versou acerca dos modelos de transição democrática na América Latina. Na minha intervenção enfatizei o caminho que a sociologia brasileira denominou de "autoritarismo instrumental", proposto nos anos 50 por Oliveira Vianna e que, de fato, foi adotado na abertura brasileira de fim do ciclo militar. Ficou famosa a frase do general Figueiredo que encarnava esse modelo: "Juro fazer deste país uma democracia e prendo e arrebento quem se opuser".
A novidade do texto que divulgo é que se escora nas categorias propostas pelos liberais e liberais-conservadores no mundo anglo-saxão, que em muito podem esclarecer os confusos tempos que vivemos. Apenas para destacar um aspecto que me parece fundamental: mudanças como as efetivadas no seio da denominada "Primavera Árabe" não poderiam ser entendidas sem a nova mídia aberta pela tecnologia das comunicações via Smartphones. À luz dessa novidade poderiam ser interpretadas, também, as manifestações massivas que, no Brasil, depuseram Dilma Rousseff e deram por encerrado o ciclo lulopetista.
Agradeço ao meu amigo Marcos Moraes o envio deste documento que ora divulgo e que considero de capital importância para compreendermos os tempos confusos que, também no Brasil como no resto do mundo, estamos vivendo.
Repensando o
paradigma da transição
Larry Diamond, Francis Fukuyama,
Donald L. Horowitz e Marc F. Plattner
Publicado originalmente como
“Reconsidering the Transition Paradigm”, Journal of Democracy, Volume 25,
Número 1, Janeiro de 2014 © 2014 National Endowment for Democracy and The Johns
Hopkins University Press.
A discussão publicada aqui foi tirada do painel de encerramento de uma
série de mesas redondas organizada pelo International Forum for Democratic
Studies [Fórum Internacional de Estudos Democráticos] do National Endowment for
Democracy (NED). O título da série era “Reconsiderando as transições
democráticas: A Primavera Árabe e as revoluções coloridas”. Teve início em
dezembro de 2012, com uma sessão regional sobre a antiga União Soviética,
seguida por painéis nacionais sobre a Geórgia, a Ucrânia e o Quirguistão.
Depois, foi realizada uma sessão regional sobre o Oriente Médio e o norte da
África (MENA, na sigla em inglês), seguida por sessões nacionais sobre Tunísia,
Egito e Líbia. Asérie foi encerrada no dia 19 de setembro de 2013 com dois
painéis. O primeiro, intitulado “A Primavera Árabe e as revoluções coloridas”,
teve a participação de Alexander Cooley, professor do Barnard College; Nadia
Diuk, vice-presidente do NED; Matthew Kaminski, membro do conselho editorial do
Wall Street Journal; e Laith Kubba, diretor sênior de MENA do NED; Christopher
Walker, diretor executivo do International Forum, moderou o painel.
O segundo painel, apresentado aqui de forma resumida, teve a
participação de Larry Diamond, Francis Fukuyama e Donald L. Horowitz. Marc F.
Plattner foi o moderador do painel.
Larry Diamond é fundador e coeditor
do Journal of Democracy, e co-presidente do conselho de pesquisa do
International Forum for Democratic Studies. É pesquisador sênior do Hoover
Institution e do Freeman Spogli Institute for International Studies da
Universidade Stanford, onde ele também dirige o Center on Democracy,
Development, and the Rule of Law [Centro de Estudos da Democracia,
Desenvolvimento e Estado de Direito] (CDDRL).
Francis Fukuyama é pesquisador sênior
do Freeman Spogli Institute e do CDDRL. É o autor de Political Order and
Political Decay: From the French Revolution to the Present [Ordem política e
decadência política: Da Revolução Francesa ao presente] (a ser publicado em 2014).
Donald L. Horowitz é professor de
Direito e Ciência Política da Duke University e pesquisador sênior do
International Forum for Democratic Studies. É o autor de Constitutional Change
and Democracy in Indonesia [Mudança
constitucional e democracia na Indonésia] (2013).
Marc F. Plattner é fundador e
coeditor do Journal of Democracy, vice-presidente de estudos e pesquisa do NED,
e co-presidente do conselho de pesquisa do International Forum.
Para mais informações sobre essa
série de eventos, incluindo o vídeo dos painéis de 19 de setembro de 2013.
[Visite: http://www.ned.org/research/reconsidering-democratic-transitions-the-arab-spring-and-
the-color-revolutions].
Marc F. Plattner: O conceito de transições tem sido
central para as discussões sobre democratização há mais de três décadas. A
palavra “transição” tem sido o principal termo usado para descrever as mu-
danças políticas que tipificaram o que Samuel P. Huntington chamou de “terceira
onda” de democratização — o nascimento das novas democracias em mais de
cinquenta países, o que tornou a democracia o regime mais comum do mundo atual.
O auge das transições aconteceu durante as décadas de 1980 e 1990. No entanto,
na virada do século XXI, o nascimento de novas democracias desacelerou,
parcialmente porque muitos países já haviam se tornado democráticos. Como
consequência, cientistas políticos voltaram sua atenção para questões de
consolidação democrática e, depois, para a qualidade da democracia.
Em um ensaio amplamente discutido e influente na edição de janeiro de
2002 do Journal of Democracy, Thomas Carothers questionou a contínua
valorização do que ele chamou de “o paradigma da transição”. Por um instante,
parecia que a noção de transição pudesse ter se tornado ultrapassada ou que,
pelo menos, houvesse perdido sua utilidade. Entretanto, com as “revoluções
coloridas” na antiga União Soviética e, mais recentemente, e de maneira ainda
mais dramática, com as mudanças de regime associadas à “Primavera Árabe” e a
abertura política na Birmânia, a questão das transições democráticas retornou
ao centro do debate.
O uso da palavra “transição” para se referir a uma mudança de regime
político é relativamente novo. Um papel importante na introdução do termo,
nesse sentido, foi desempenhado por um artigo bastante citado escrito em 1970
pelo cientista político Dankwart Rustow, intitulado “Transitions to Democracy:
Toward a Dynamic Model” [Transições para a democracia: Em busca de um modelo
dinâmico]. Escrito antes do início da terceira onda, Rostow argumenta que a
maioria dos cientistas políticos da sua época focava em como a democracia podia
ser preservada e fortalecida onde ela já existia, especialmente na América do
Norte e na Europa Ocidental. Isso era de pouca ajuda para Rostow e os outros
pesquisadores que estudavam países em desenvolvimento, mais interessados no que
ele chama de “a questão genética”, sobre como a democracia se estabelece antes
de tudo.
O artigo de Rustow é citado como tendo sido a fonte de inspiração da
obra que, até hoje, é considerada o mais influente estudo sobre as transições,
o livro em quatro volumes Transições do regime autoritário (Transitions from
Authoritarian Rule), editado por Guillermo O’Donnell, Philippe Schmitter e
Laurence Whitehead e publicado em inglês em 1986. Naquele momento,
evidentemente, as transições da terceira onda democrática no sul da Europa e em
muitos países da América Latina já haviam ocorrido. Como o título dos livros
sugere, o fenômeno que eles estão estudando não é o da evolução gradual da
oligarquia para a democracia, focada por Rustow, mas a rápida queda e
substituição dos regimes autoritários, que podem levar tanto à introdução da
democracia como a alguma nova forma de autoritarismo. Eles definem transição de
maneira bastante ampla, como o intervalo entre um regime político e outro.
Ainda assim, enfatizam um caminho particular para as transições, que não é nem
violento nem revolucionário, mas avança por meio de negociação entre o regime
autoritário que sai e sua oposição democrática e, frequentemente, baseia-se em
pactos formais e informais ou em acordos que garantam segurança para ambos os
lados.
Esse modelo de transição, elaborado por O’Donnell e Schmitter com base
nos casos do sul da Europa e América Latina, veio a ser adotado também por
outras regiões, ainda que tenha havido bastante debate entre acadêmicos sobre
quão bem o modelo funcionou nos outros casos, particularmente nos
pós-comunistas. Esse modelo também foi adotado de maneira bastante rudimentar
por governos e agências de apoio à democracia, com cada país onde um governante
autoritário havia sido deposto sendo descrito como “em transição” para a
democracia, não importando qual era a real probabilidade de que a transição
caminhasse em direção à democracia. Isso levou Tom Carothers a pedir o fim do
paradigma da transição, argumentando que não havia uma sequência regular de
estágios pelos quais os países passassem após a queda de um regime autoritário.
Em vez disso, argumentou que muitos países que eram tidos como países em
processos de transição estavam, na verdade, presos no que ele chamava de “zona
cinzenta”, e que não havia certeza de que fossem emergir como democracias
liberais, no curto ou no longo prazo.
Apesar de o amplamente comentado artigo de Carothers promover uma útil e
profunda revisão e cuidadosa revisão ao aplicar o paradigma da transição,
claramente fracassou em provocar o fim desse paradigma. Então, com as
revoluções coloridas, e agora de maneira ainda mais proeminente com a Primavera
Árabe, cientistas políticos e autoridades públicas novamente expressaram sua
análise em termos do velho paradigma da transição.
Antes de dar a palavra a meus colegas de painel, gostaria de mencionar
um último ponto. A palavra “revolução” é aquela que mais prontamente pode ser
uma alternativa ao termo “transição”. Há muitas razões pelas quais a ideia de
revolução não é mais tão elegante hoje como era algumas décadas atrás, dentre
elas destaca-se a experiência amarga das revoluções totalitárias do século XX.
Ainda assim, essa afirmação precisa ser ponderada porque, embora revolução
possa não ser uma expressão popular no Ocidente ou entre acadêmicos, ainda é o
termo frequentemente preferido por aqueles que derrubam regimes ditatoriais. Os
protagonistas dos levantes bem sucedidos do norte da África dos últimos anos
tendem a falar com reverência da revolução; na verdade, quanto mais violência e
sofrimento tenham sido infligidos sobre uma oposição futuramente vitoriosa,
mais forte parece ser o apego à ideia de revolução. Apesar de termos aprendido
da maneira mais difícil que revoluções em nome da democracia frequentemente têm
alto custo e podem tornar difícil o estabelecimento de uma democracia estável,
há também um contra-argumento: transições não violentas ou graduais, que tendem
a deixar partes substanciais do velho regime intactas, também impõem obstáculos
substanciais ao progresso da democracia.
Donald L. Horowitz: O chamado conceito de transição
democrática não é realmente um conceito, e certamente não era um paradigma; era
apenas uma categoria ou um conjunto de ideias sobre como a democracia poderia
acontecer. Havia várias versões sobre possíveis consequências, atores e
estágios que poderiam estar envolvidos. Para falar a verdade, no artigo original
de Rustow havia bastante espaço para a capacidade de ação individual dos
atores, estava longe de ser determinístico. É o tipo de história comum nas
ciências sociais: alguém identifica um padrão ou dois associados a um fenômeno,
outros se prendem a ele, e depois é descoberto que o padrão não é universal.
Isso não deveria nos chocar, porque é muito comum, mas não torna as ideias em
si sem valor. Há vários caminhos para a democracia, e é importante tentar
identificá-los. Carothers acusou o paradigma da transição de implicar que
eleições eram a consagração da democracia. Aqui, penso, ele estava certíssimo;
a equação fora talvez levada longe demais, especialmente por aqueles que
apoiavam a democracia. Eleições são uma condição sine qua non da
democracia, mas os acadêmicos rapidamente identificaram alguns elementos que
faltavam mesmo quando você tinha eleições mais ou menos democráticas. O termo
“democracia iliberal” foi popularizado por Fareed Zakaria, e noções similares
rondavam as ciências sociais, e ainda rondam. Alguns outros elementos foram
levados longe demais por acadêmicos. Meu favorito é “pactologia”, a noção de
que governantes autoritários e a oposição democrática precisam fazer pactos de
proteção mútua antes que a democracia possa avançar. O fato de que alguns
pactos tenham sido feitos não os torna requisitos universais. Na Indonésia, por
exemplo, não houve pacto algum.
O mesmo vale para a noção de “divisões” entre os linha-dura e os
moderados, tanto no governo autoritário quanto na oposição democrática, de
maneira que moderados em ambos os lados pudessem então negociar a transição. Às
vezes não há nenhum negociador crível e, portanto, demonstrações de rua
precisam derrubar o regime; ou, pior, a violência precisa ser empregada para
esse propósito.
Precisamos então de bastante espaço para variabilidade no processo de
democratização. Contudo, quero enfatizar duas variáveis, que eu chamaria de
tirania das condições de partida e de casualidade das escolhas iniciais.
Comentarei mais sobre a segunda mais tarde, mas quero oferecer alguns poucos
exemplos da importância das diferentes condições de partida, especialmente na
Primavera Árabe.
O pressuposto tácito de que três tiranias árabes impopulares, quando
derrubadas, de alguma maneira se moveriam mais ou menos na mesma direção estava
claramente equivocado. Mas vejam as diferenças de partida: era possível
identificá-las rapidamente. A Tunísia não teve que lutar para depor seu
ditador; a Líbia precisou, e o resultado é que a Líbia está inundada de armas
(e há um pouco de evidência comparativa de que regimes que chegam ao poder por
meio de uso da força das armas estão menos propensos a durar). Ou consideremos
a afeição popular pelo Exército egípcio versus o ódio popular ao Exército
tunisiano. Portanto o Exército egípcio ainda poderia ser um importante ator,
diferentemente da transição na Tunísia que tem sido dominada por civis. Ou o
maior equilíbrio entre islâmicos e secularistas na Tunísia e na Líbia do que no
Egito. Ou a maior exposição às ideias democráticas do Ocidente pelo Partido do
Renascimento Islâmico (Nahda) da Tunísia, e especialmente pelo seu líder,
Rachid Ghannouchi, do que entre os líderes da Irmandade Muçulmana no Egito,
algo que estimulou muito mais respeito pela oposição no processo constitucional
da Tunísia. Ou consideremos as grandes divisões entre liberais no Egito,
frequentemente porque o líder de cada um dos partidos políticos queria disputar
a presidência; nesse caso, o presidencialismo ajudou a rachar o movimento
liberal no Egito. Ou o intenso regionalismo, que cria uma importante clivagem,
dividindo a Líbia, mas que não existe nos outros países. Então temos diferentes
condições de partida e, portanto, não é razoável esperar um processo uniforme
ou uma trajetória similar.
Larry Diamond: Apenas algumas poucas observações:
fiquei espantado, quando estive na Birmânia, com o quão relevante o que está
acontecendo por lá é para toda a literatura e debate sobre transições. Acho que
a transição birmanesa apresenta, sim, os linha-dura e os moderados de cada
lado. Certamente há negociações sendo feitas neste exato momento. A Birmânia
não pode estabelecer uma democracia sem mudança constitucional — e isso irá
requerer um pacto político ou algum tipo de acordo em dado momento, porque a
constituição atual essencialmente dá aos militares o poder de veto sobre
mudanças constitucionais. A democracia que emerge dessas negociações — caso
emerja — será de alguma maneira uma democracia diminuída, ou o que Schmitter
chamou de democracia com defeitos de nascença, porque inevitavelmente fará
concessões aos militares (embora, espera-se, não tão distorcidas quanto as já
presentes na constituição atual).
Segundo, gostaria de oferecer uma breve observação adicional sobre o
artigo seminal de Tom Carothers sobre o paradigma da transição. Ele foi um dos
artigos mais bem sucedidos que o Journal of Democracy já publicou, mas talvez
tenha sido exageradamente retomado para discutir o tema. Mas, como um aluno de
Marty Lipset, gostaria de dizer algo sobre o debate sobre as pré-condições:
acho que o artigo de Carothers vai exatamente na direção oposta de Rustow e seu
argumento genético. Ele enfatiza a importância das condições de partida e o
fato de que nem todos os países têm chances iguais de fazer a democracia
funcionar. Bem, isso é obviamente verdade no sentido literal. Mas acho que
podemos cair num segundo e falso argumento determinístico: “Mali é um país incrivelmente
pobre; por que você está desperdiçando dinheiro lá tentando gerar democracia?”
Lipset nunca quis que seu argumento fosse interpretado dessa forma; ele
intitulou seu artigo original de 1959 “Some Social Requisites of Democracy”
[Alguns requisitos sociais da democracia], não pré-requisitos, e ele sempre
retornava para essa distinção. No meu ponto de vista, a única pré-condição
absoluta para se atingir uma transição democrática, com exceção da pré-condição
de Rustow de um Estado razoavelmente coerente (que ele rotulou, acho que com um
pouco de exagero, de “unidade nacional”), é um conjunto de elites que decidem,
por qualquer motivo, que a democracia é de seu interesse. Sim, se você é tão
pobre quanto Mali, é difícil fazê-la funcionar e mantê-la, e um choque exógeno
poderia desestabilizar tudo. Mas não devemos descartar a possibilidade de
transições democráticas em lugares improváveis, mesmo que as chances de isso
acontecer não serem boas.
Francis Fukuyama: Na verdade, acho que a maioria das
transições da última década não é muito como as transições da terceira onda e
que, portanto, essa literatura não é tão útil. Acho que as recentes transições
se parecem mais com as da primeira onda, que começaram com a Revolução Francesa
e continuaram até a vitória do sufrágio universal na maior parte da Europa.
Diferentemente das transições do fim do século XX na América Latina e
Leste europeu, que foram sobretudo conduzidas pelas elites, de cima para baixo,
as transições da Europa do século XIX foram conduzidas pela mobilização
popular, especialmente as pressões criadas pelas revoluções de 1848, que foram
suprimidas mas, depois, criaram as bases para a expansão do sufrágio por toda a
Europa nas décadas seguintes.
Há uma literatura sobre o que eu julgo ser a questão mais importante: a
democracia é conquistada ou concedida? Adam Przeworski tem um artigo com essa
exata questão no título; ele faz uma análise estatística, e acho que ele mostra
claramente que a maior parte das transições da primeira onda foram conquistadas
e não concedidas. Mas as do Leste Europeu e da América Latina da terceira onda
ocorreram todas em países que já haviam tido uma experiência democrática
anterior e, de certo modo, a imposição tanto do governo militar quanto do
comunismo foi vista por muitas dessas populações como uma aberração em relação
ao que deveria ter sido o caminho normal de desenvolvimento. Houve, portanto,
muito mais disposição da elite em negociar sua saída daquela forma particular
de autoritarismo; é por isso que há toda essa mobilização em torno de pactos,
porque o grande problema é: como você consegue fazer com que essas elites
concordem umas com as outras e cheguem a um caminho pacífico em direção à
democracia? Em alguns casos, como na Romênia e na República Tcheca, houve
mobilização popular uma vez iniciado o processo, mas o ímpeto inicial veio de
Gorbachev e de dentro da elite. De maneira similar, os militares na América
Latina simplesmente se cansaram de governar, então estavam dispostos a devolver
o poder aos civis.
A Primavera Árabe foi bem diferente, assim como as revoluções coloridas,
porque todas elas foram baseadas em mobilizações populares. Isso é algo de que
não podemos nos esquecer. Não é possível haver democracia a não ser que se
tenha mobilização política de importantes grupos sociais. Foi isso que
aconteceu em todo o mundo árabe, contradizendo todos os estereótipos culturais
sobre a passividade árabe. Claro, isso não irá levá-los para nada parecido com
a democracia liberal do Ocidente no curto prazo, mas é realmente como a
democracia aconteceu na Europa no século XIX: as pessoas simplesmente não
aguentavam mais; elas se enfureceram, e foram às ruas, arriscaram suas vidas, e
depuseram regimes. Isso é algo que, em grande medida, não aconteceu muito nas
primeiras transições da terceira onda.
A propósito, Larry, a única transição pactuada e conduzida pela elite
entre os casos mais recentes foi a da Birmânia, motivo pelo qual você viu tanta
ressonância lá com a literatura sobre as primeiras transições. As transições na
Líbia, no Egito e na Tunísia não começaram com divisões nas elites. Foram
realmente o resultado de uma pressão muito, muito pesada do povo na rua, e isso
não aconteceu na América Latina ou no Leste Europeu.
Larry Diamond: Não acho que sua última sentença
seja verdadeira. Há uma razão pela qual os militares se cansaram de governar no
Brasil e em alguns outros lugares. Houve na verdade muito mais protesto popular
do que reconhecem alguns relatos dessas transições, e penso ser difícil fazer
esse tipo de distinção clara entre as primeiras transições do período pós-1974
e as mais recentes. Claramente, os casos das revoluções coloridas e a Primavera
Árabe foram baseados em levantes populares, mas nas Filipinas em 1986 era a
revolução “Poder do Povo”, e na Coreia do Sul e em algumas transições
latino-americanas também houve bastante mobilização popular.
Marc F. Plattner: Uma maneira de esclarecer o
conceito de transição é perguntar sobre o que vem depois. O próximo estágio,
caso se siga a sequência usual, é a consolidação. E se há uma concordância
geral de que faz sentido se falar em transições, acho que há mais discordância
sobre se a consolidação é um termo útil, se isso significa qualquer coisa além
de que uma democracia que sobrevive, que poderia ter se dado por uma variedade
de causas. Então é útil falarmos sobre uma fase de consolidação?
Francis Fukuyama: Acho que não é útil. A democracia é
um conjunto complexo de instituições que envolve responsabilização, Estado de
direito, e um Estado adequado; eles têm que trabalhar em conjunto um com o
outro, e uma democracia bem sucedida acontece quando você institucionaliza de
maneira bem sucedida todos esses diferentes componentes. Então, a ideia de que
há um “efeito catraca” — se você tem duas eleições com bastante comparecimento
às urnas, isso vai lhe levar à democracia para sempre, e você não vai
retroceder — não faz sentido teoricamente, e é ofuscado pelo que acontece na
prática em vários países. Veja a Hungria neste exato momento; ela teve várias
eleições competitivas bem sucedidas nas décadas de 1990 e 2000, e agora tem um
governo que está lentamente desmantelando vários elementos da democracia
húngara. A metáfora da catraca é realmente enganosa, porque é possível haver
decadência política em qualquer lugar. Não há razão para pensar que haja um
único e necessário movimento na história. Todo este tempo, nós deveríamos haver
focado muito mais na institucionalização da democracia do que no começo do fim
das autocracias.
Donald L. Horowitz: Não acho que a consolidação esteja
necessariamente em conflito com a institucionalização, apesar de a
institucionalização ser talvez a referência mais importante. Acho que há alguns
indicadores probabilísticos que podemos observar para ver se democracia está em
um processo de consolidação: quando os militares não conseguem assumir o poder
porque estão muito desacreditados, desmoralizados, gastos pela experiência, ou
altamente divididos em facções; quando há um equilíbrio entre grupos políticos
civis tal que eles se uniriam contra um aspirante a ditador; quando eleições
viram rotina; e quando os tribunais conseguiram cavar um espaço relativamente
independente que se estende a casos com repercussões políticas (e o teste para
isso seria que mesmo as decisões judiciais impopulares fossem aceitas). Se usarmos
indicadores como esse — e suspeito que seria possível fazer uma lista mais
longa e útil —, notaremos que ter mais do que apenas dois grupos políticos em
competição entre si é uma condição favorável à democracia porque, se um grupo
tentar assumir o poder, os outros se uniriam contra ele. Não acho que
consolidação seja um conceito totalmente inútil. Não acho que nenhum desses
conceitos necessariamente nos leva muito longe, mas são categorias de
pensamento, contêineres se preferir, nos quais é possível
colocar muito conteúdo útil.
Larry Diamond: Acho que o principal foco precisa
ser na profundidade e qualidade da democracia, e em sua capacidade de ação e de
entrega. Concordo com Frank nesse ponto, e acho que o trabalho de Frank é
realmente seminal ao voltar nossa atenção novamente para a qualidade do Estado
— não apenas das instituições representativas, mas as instituições de
“resultado” do Estado. Se pensarmos na consolidação como o cruzamento de algum
nível de estabilidade, de solidez, de consenso, então acho que o conceito é
útil. E é observável, não apenas pelos indicadores que Don acabou de
apresentar, mas também pela opinião pública, quando, a despeito de qualquer
ceticismo sobre políticos ou insatisfações com a maneira pela qual a democracia
funciona, o comprometimento com a democracia como a melhor forma de governo
permanece alto.
Em segundo lugar, a maior parte da literatura sobre consolidação não diz
o que algumas interpretações simplistas sobre ela sugerem: que consolidação
significa irreversibilidade. Há algum tipo de processo pelo qual democracias
podem ser consolidadas por meio de mudanças institucionais ou normativas que
ocorrem durante um período de tempo posterior à transição. Acho que a transição
simplesmente termina quando a definição básica de democracia é atingida: um
regime no qual as pessoas podem escolher e substituir seus líderes por meio de
eleições livres e justas, com um clima de liberdade e de responsabilização
entre as eleições.
Mais dois pontos: há um relacionamento bem forte entre consolidação e a
conquista de uma democracia de alta qualidade. Não se vê muitas democracias
consolidadas que não ultrapassaram um determinado nível de capacidade,
institucionalização etc.
Por fim, há algo que podemos chamar de desconsolidação da democracia. Se
virmos decadência política, com o que ela se parece e como podemos
reconhecê-la? Não deveríamos esperar que, apenas porque a Grécia (ou a Hungria)
é parte da União Europeia, a democracia será estável lá o tempo inteiro. Um
processo de decadência política acontece quando um partido neonazista conquista
7% dos votos na Grécia. Não dá simplesmente para olhar para os lados e dizer:
“Bem, eles estão apenas frustrados com a situação econômica”. Por esse motivo,
é importante levar a sério o apelo de Tom Carothers para não pensarmos
teleologicamente.
Marc F. Plattner: Apenas acrescentaria que há uma
clara dimensão temporal à noção de transição. O’Donnell e Schmitter a definem
como o intervalo entre um regime político e outro. Em casos como o da Tunísia,
Líbia ou Egito, onde um velho regime foi derrubado e há um tipo de estrutura
provisória que explicitamente alega ser o trampolim para um novo regime, parece
fazer sentido definir esse período intermediário como uma transição. Durante
aquele período, o NED e outras organizações de apoio à democracia tentaram
ajudar grupos que estão apoiando a transição. Mas se uma transição é bem
sucedida, em algum momento o governo diz: “Muito bem, agora temos um governo
democraticamente eleito, e não um interino ou uma estrutura temporária”. Nesse
momento, a ajuda externa não mais é para apoiar uma transição, mas para ajudar
a fortalecer, aprofundar ou estabilizar a democracia — em outras palavras,
consolidação democrática.
Larry Diamond: Há uma crítica da literatura sobre
a consolidação implícita nessa discussão que é bastante válida, e possui
grandes implicações para o apoio à democracia e para como o NED realiza seu
trabalho. Se, por um lado, algum limiar já foi ultrapassado, há uma razoável
estabilidade, apoio do público e algum grau de consolidação, por outro lado,
ainda pode haver ainda muitos problemas de instituições fracas, baixo
desempenho democrático e fragilidade em vários aspectos. Acho que a comunidade
de apoio à democracia está cometendo um erro enorme quando olha para lugares
como a África do Sul e diz: “Bem, eles ultrapassaram o nível mínimo de
estabilidade democrática; vamos voltar nossa atenção e recursos para outro
lugar”. Esses lugares permanecem bastante frágeis, sujeitos a retrocessos.
Não acho que a democracia está consolidada lá ou em qualquer outro lugar
na África Subsaariana, e isso implica repensarmos as escolhas que estamos
fazendo.
Marc F. Plattner: Por que a gente não passa agora
para a questão de se há um futuro para as transições democráticas? Obviamente,
estamos no meio de transições em andamento (ou saindo do trilho) no mundo
Árabe. Estão elas destinadas a fracassar? Ainda podem ser resgatadas? A
Birmânia relatada por Larry — há alguma esperança de que a transição será bem
sucedida por lá? E depois, olhando para o longo prazo, o que dizer sobre países
autoritários importantes, como China, Rússia e Irã? Serão eles candidatos a uma
transição para a democracia num futuro próximo?
Donald L. Horowitz: Gostaria de falar um pouco sobre os
países da Primavera Árabe. Mencionei anteriormente a casualidade das escolhas
iniciais. Não estou argumentando a favor da inevitabilidade da dependência
histórica, mas quero destacar que as escolhas iniciais com respeito à
arquitetura institucional podem ter um grande impacto. Deixe-me citar apenas
alguns.
Consideremos a decisão egípcia de usar o sistema de segundo turno das
eleições presidenciais do sistema francês em um lugar onde é provável que haja
um campo altamente fragmentado. Isso permitiu que Mohamed Morsi, com 25% dos
votos no primeiro turno, chegasse ao segundo turno com uma baixa pluralidade e
então conquistasse a presidência. Acho que não foi uma grande escolha
institucional, dada a fragmentação dos alinhamentos políticos. Ou consideremos
as eleições de julho de 2012 da Líbia para o congresso, nas quais a parte oeste
do país obteve muito mais cadeiras do que a parte leste, com base na
distribuição populacional. Houve bastante desapontamento no leste, e violência
como resultado. Depois disso, a Líbia sabiamente optou por uma assembleia de 60
membros para reescrever a constituição, com 20 membros de cada uma de suas três
regiões, independentemente de sua população, assim como havia feito em 1951.
Notemos, aliás, que a memória histórica tem um papel importante nas
escolhas institucionais. Há dois tipos de memória histórica: boas lembranças e
lembranças do que gostaríamos de evitar. O último tipo foi bastante poderoso na
Indonésia, e restringiu consideravelmente o leque de escolhas. Os líbios, no
entanto, tinham uma boa lembrança do processo de 1951. Para as próximas
eleições da assembleia constituinte, eles optaram (de maneira pouco sábia,
penso) por um sistema majoritário uninominal [first-past-the-post] para
cada um dos 60 assentos, com apenas algumas centenas de assinaturas necessárias
para indicar um candidato. Muitos candidatos devem disputar (aproximadamente
700 na última contagem), e muitos delegados serão eleitos por maiorias muito
baixas, muito menores do que 50%. Quando se soma a isso um prazo muito curto para
produzir uma constituição — e não deveria haver prazos curtos para se deliberar
sobre uma constituição se for possível evitar —, isso pode realmente
comprometer a legitimidade do produto final.
Os detalhes da arquitetura institucional realmente importam para as
perspectivas da democratização. Eles serão importantes para a Birmânia também,
que precisará de um federalismo cuidadosamente desenhado para incluir as
minorias, e um programa bastante hábil para induzir os militares a deixar a
política. Há muitos outros casos com os quais os birmaneses poderiam aprender
sobre essas questões. Há muitas federações mal desenhadas por aí: consideremos
a primeira república da Nigéria ou o Paquistão entre 1947 e 1971 (e mesmo
agora). Esquemas federativos possuem muitos perigos. Demandas pela proliferação
de estados são bastante comuns, assim como a discriminação contra não nativos
dos novos estados das federações. Esses são problemas bastante grandes, que
precisam ser abordados desde o início.
Há muitas lições sobre manter os militares fora da política; os
indonésios, por exemplo, fizeram um bom trabalho a esse respeito.
No entanto, as pessoas que desenham as instituições frequentemente focam
nos exemplos errados; olham para as democracias mais bem sucedidas, em vez de para
países com problemas similares aos seus e que parecem ter feito progresso; ou
olham para as instituições de antigas potências colonizadoras. É importante
ajudá-los a encontrar os exemplos apropriados, e os consultores internacionais
nem sempre desempenharam um bom papel nesse sentido.
Larry Diamond: Outro problema de desenho
institucional frequentemente ignorado é como limitar a potencial acumulação de
poder, de maneira a reduzir o que está em jogo nas eleições, e criar
instituições capazes de servir de freios e contrapesos às tendências
monopolísticas. É preciso um judiciário forte, um bom poder legislativo, e
instituições de responsabilização horizontal.
Apesar de todas as inovações da China no uso de métodos não democráticos
de responsabilização e boa governança, seu sistema se encontra em um estado
avançado de decadência. Acho que eles estão a uma crise financeira de distância
do colapso do Partido Comunista Chinês, porque o ódio ao partido e à sua
corrupção vem ganhando força. Espero que Xi Jinping lance um processo
incremental de transição, do tipo que ocorreu em Taiwan; caso contrário, acho
que há um perigo real. A República Popular da China parece forte, confiante e
dinâmica, mas há muita coisa questionável em suas fundações e nas atitudes do
governo, e se eles não derem início a um processo de reforma incremental, as
coisas poderão se desenrolar de maneiras bastante interessantes, incluindo um
colapso repentino no estilo soviético. Não sei se devemos desejar que isso
aconteça, porque haveria um vácuo de poder. Ainda não há instituições, não há
oposição, partidos nacionais, nem mesmo redes cívicas efetivas. O resultado
poderia cair na categoria “cuidado com aquilo que você deseja” — não um avanço
em direção à democracia, mas um governo militar feio, nacionalista, não
comunista, com liderança estilo Putin, que pode fazer movimentos militares
sobre as ilhas disputadas para desviar a atenção do público de todas as
frustrações domésticas. A China será um lugar para se olhar nos próximos dez a
quinze anos.
Francis Fukuyama: Não discordo de que seja preciso
haver controles sobre o poder quando se está desenhando instituições, apenas
acho que especificá-los formalmente não ajudará muito. Pode-se dizer: “Ok, você
terá uma corte constitucional independente”, e então o presidente simplesmente
nomeia um de seus amigos para dirigi-la, porque não há uma tradição enraizada
de independência do judiciário. Muita atenção às regras formais oculta o fato
de que as coisas são tão fluidas nessas democracias jovens que tudo de fato
depende da capacidade dos grupos sociais subjacentes de se mobilizar e
conseguir o que desejam. Este pode ser um dos aspectos mais importantes para
pensarmos. No momento da Revolução Gloriosa, por exemplo, por que o novo rei,
ao final, concordou com uma constituição? Nosso colega de Stanford Barry
Weingast acha que é porque eles desenharam esse pacto brilhante, estável,
alinhado com a teoria dos jogos, mas o acordo formal não gerou estabilidade por
si só. A chave é que o parlamento possuía força, e o rei sabia que, caso
violasse o pacto, eles mostrariam suas armas e cortariam novamente a cabeça
real.
Marc F. Plattner: Antes de irmos para a questão das
lições para o apoio à democracia, gostaria de acrescentar algo em relação à
legitimidade. É bastante surpreendente que, embora as pessoas possam ter
dúvidas sobre se haverá transições democráticas em países como China, Rússia ou
Irã, a perspectiva de alguma maneira não parece irrealista. Em The Spirit of
Democracy, Larry argumenta isso ao comparar a Índia com a China: a Índia tem
uma colocação pior em todos os tipos de indicadores, mas as pessoas ficariam
chocadas se daqui a quinze anos a Índia tivesse um tipo diferente de regime,
enquanto ninguém ficaria chocado se o regime autoritário da China fosse
derrubado durante esse período. Acho que isso ajuda a explicar por que toda a
noção de transições teve apelo. Durante décadas, regimes autoritários têm
caído, muitas vezes sem serem confrontados pelo tipo de mobilização que alguém
julgaria necessária para fazer com que os governantes autoritários abrissem mão
do poder. Acho que tem a ver com a legitimidade superior que a democracia ainda
goza comparada a regimes autoritários.
Tendo prometido que iríamos para a questão do apoio à democracia,
deixe-me perguntar que implicações emergidas de nossa discussão podem servir de
guia para organizações como o NED e muitas outras, que estão envolvidas no
apoio à democracia mundo afora. Frank, você indicou pensar que muitas das
coisas que estão sendo feitas estariam erradas.
Francis Fukuyama: Posso colocar isso de maneira
simples. Acho que damos atenção demais para a sociedade civil, e não o bastante
para os partidos políticos ou para ajudar os grupos democráticos a apresentarem
maneiras programáticas de governar. Se quisermos ter uma democracia, precisamos
passar por pelo menos três estágios. Primeiro, precisamos ter a mobilização
inicial que se livra do antigo regime autoritário.
Segundo, temos que realizar a primeira eleição livre, o que significa
que temos que aprender a como organizar um partido político. Até hoje, não acho
que ninguém tenha aparecido com uma alternativa aos partidos políticos como
meio de mobilização eleitoral. É por isso que os partidos políticos existem. A
sociedade civil não pode substitui-los nessa função.
Por fim, uma vez que a primeira eleição tenha sido realizada, e que
tenhamos um novo governo democraticamente eleito, ele deve ser capaz de
entregar serviços e bens públicos, e todas as coisas que as pessoas esperam de
uma democracia. É no segundo e terceiro estágios que os ativistas da democracia
realmente se atrapalham. Samuel Huntington disse que estudantes e jovens são
terríveis para organizar as coisas. Eles conseguem organizar manifestações e
protestos, mas organizar um partido político que possa conquistar o voto nas
áreas rurais e em todos os distritos do país é algo realmente além da sua
capacidade. Claro, ensinar essas habilidades é a especialidade de organizações
como o National Democratic Institute (NDI) e o International Republican
Institute (IRI), mas acho que mais apoio é preciso para ajudar os ativistas da
sociedade civil a construir uma máquina política que funcione bem.
E então chega a parte do governar. Larry e eu estávamos há pouco na
Ucrânia, em um encontro de ex-alunos do programa Draper Hills Summer Fellows do
CDDRL que vivem na antiga União Soviética. Havia uma grande delegação da
Geórgia lá, e tivemos algumas discussões interessantes sobre o que aconteceu na
Geórgia. Acho que as grandes diferenças entre as revoluções Rosa e Laranja
podem ser encontradas naquele terceiro estágio — o que de fato fazer depois que
você chegou ao poder em uma revolução democrática. Os ucranianos basicamente
entregaram o Estado para um bando de velhas raposas da política vindas da nomenklatura [“casta
dirigente”]. Yushchenko era uma dessas pessoas, apesar de acabar representando
a face da Revolução Laranja; Yulia Tymoshenko era outra heroína dessa revolução
democrática. Ainda assim, nenhum deles fez um esforço para lidar com a profunda
corrupção do Estado na Ucrânia ou para aprimorar sua prestação de serviços. Os
georgianos sob o governo de Saakashvili reformaram sua burocracia, começando
pelas forças de segurança. Estavam comprometidos a garantir que não seria
preciso subornar o policial para que ele os protegesse. E trabalharam para
introduzir praças de atendimento [one–stop shops], onde você pode ir até
uma agência do governo para tirar uma licença ou registrar um negócio e
resolver o problema na hora. Foram incrivelmente bem sucedidos nesses esforços.
Foram um pouco longe demais, prendendo muitas pessoas e adotando algumas
práticas bastante questionáveis, mas estão em uma situação muito melhor do que
a Ucrânia neste momento. Após realizar sua transição e suas primeiras eleições,
descobriram como fazer com que seu governo funcionasse um pouco melhor,
enquanto a Ucrânia ficou presa nesse terceiro estágio. Então precisamos dar
mais atenção aos estágios dois e três se realmente quisermos garantir que essas
revoluções não sejam revertidas.
Donald L. Horowitz: Concordo com Frank, e gostaria de
ir mais além, e em uma direção diferente. Acho que o envolvimento externo
importa e, se estivermos procurando por provas, há um caso fácil. A Organização
para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE) estava operando no Leste Europeu
para elevar os padrões de tratamento das minorias. Usou vários incentivos e
sanções, e essencialmente demandou coisas que os países do Leste Europeu nunca
teriam tolerado em casa, em particular quotas para minorias em várias
instituições.
Há bastante ironia no envolvimento externo. Muitas das organizações
externas — estou pensando no International Institute for Democracy and
Electoral Assistance (International IDEA), PNUD e alguns outros — vêm
desenvolvendo um consenso sobre as prescrições-padrão a respeito tanto da
substância quanto do processo de desenho institucional para novas democracias.
Mas, se estiver certo sobre a tirania das condições de partida, então seguir
práticas-padrão será, de maneira geral, uma má ideia. Deixe-me colocar uma
ideia sobre quais são alguns desses elementos de consenso.
Há um crescente consenso de que uma democracia parlamentarista é melhor
do que uma presidencialista; mas a literatura não é unânime sobre isso, e há
várias razões a favor do presidencialismo. Em relação aos sistemas eleitorais,
há um forte consenso a favor da representação proporcional, especialmente para
se atingir a representação de minorias. Porém, há estudos que mostram que
minorias geograficamente concentradas são, na verdade, mais beneficiadas pelo
sistema majoritário uninominal do que pela representação proporcional. Às vezes
a representação proporcional é um sistema especialmente apto; pode reforçar a
multipolaridade, por exemplo. Mas às vezes não é; pode reforçar a fragmentação
onde isso é um problema, e pode retardar o crescimento de partidos de base
ampla, capazes de agregar interesses diversos. Quanto ao processo de criar
novas instituições, o consenso é forte a favor da completa transparência nas
deliberações constitucionais.
Mas é bastante sabido que políticos acham difícil chegar a acordos
quando todo mundo está olhando. Jon Elster disse, e acho que de maneira
correta, que você precisa de segredo durante negociações e de transparência dos
resultados. No entanto, essa sutileza se perdeu entre aqueles que defendem a
transparência em todos os estágios. O consenso também favorece uma extensa
participação popular na elaboração da constituição, de modo que o público “se
aproprie” do processo. Isso requer que os constituintes tenham que educar o
povo sobre de que se trata uma constituição, e obter o feedbackdo
público sobre o que deveria constar na constituição. Mas é possível que isso se
dê às custas da deliberação e da formação de consenso entre os membros eleitos
da assembleia constituinte ou dos políticos que terão que fazer o trabalho de
construção das novas instituições. Apesar dessas recomendações bastante fortes
de ampla participação popular, não há nenhuma centelha de evidência de que isso
melhore a durabilidade ou o conteúdo democrático das constituições. E há
custos. Educar o público sobre os detalhes de uma constituição requer bastante
tempo e esforço, que poderiam ser gastos solicitando bons conselhos e
avaliando-os cuidadosamente à luz das condições de partida.
Minha conclusão é que os profissionais deveriam evitar
fórmulas-padrão a priori, porque diferenças muito pequenas no
contexto de um país em relação ao outro podem ser surpreendentemente
importantes. O que eles deveriam fazer é começar a ler o Journal of Democracy.
Larry Diamond: Sim. E, se o fizerem, “The End of
the Transition Paradigm” é uma das coisas que eles deveriam ler. E veriam na
análise de Tom Carothers uma reflexão sobre o que Don acaba de dizer: é muito
importante fazer a análise correta em cada um dos países; é preciso que haja,
de alguma forma, um encontro entre nosso conhecimento comparativo e teórico e
os fatos reais.
Gostaria de destacar um último ponto. Acho que tudo o que Frank disse
sobre partidos e instituições é incontestável, mas acho que a comunidade de
apoio internacional também comete um erro ao abandonar a sociedade civil após a
transição. Não gosto de continuar voltando para o exemplo da África do Sul, mas
tenho que chamar a atenção para a morte da instituição seminal daquele país
voltada para a construção de uma sociedade civil democrática, o Institute for
Democracy in Africa (IDASA) [fechado em março de 2013]. Independentemente de
quaisquer outras razões específicas que pudessem estar envolvidas, seu
fechamento deveu-se, em grande medida, ao fato de que o apoio financeiro
internacional para seu trabalho na África do Sul simplesmente secou. As pessoas
disseram: “Tudo bem, é a África do Sul, uma democracia consagrada em um país de
renda média; eles não precisam de ajuda. Há todos aqueles ricos empresários
sul-africanos, muitos deles liberais, e eles deveriam apoiar instituições como
essa”. Bem, esses empresários estão todos preocupados em não ofender o
Congresso Nacional Africano (CNA) ao apoiar abertamente instituições
independentes da sociedade civil como o IDASA, então eles não o farão. Onde
instituições como essa buscarão, então, seus recursos? Se dissermos: “A
sociedade civil não precisa mais ser uma prioridade; vamos focar apenas nas
instituições políticas”, arriscamos prejudicar ambas. Muitas vezes, a energia
para inovação institucional e reforma vem da sociedade civil, e parcerias entre
sociedade civil e partidos políticos ou entre a sociedade civil e o Estado
podem gerar benefícios significativos. É muito importante não perdermos isso de
vista.
Notas | Trabalhos discutidos
Carothers, Thomas. “The End of the Transition Paradigm”. Journal of
Democracy, v. 13, n. 1, January 2002, pp. 5–21.
Diamond, Larry. The Spirit of Democracy: The Struggle to Build Free
Societies Throughout the World. Nova York: Henry Holt, 2008.
Huntington, Samuel P. The Third Wave: Democratization in the Late
Twentieth Century. Norman, OK (EUA): University of Oklahoma Press, 1991. [Ed.
bras.: A Terceira Onda: A democratização no final do século XX. São Paulo:
Ática, 1994]
Karl, Terry Lynn; Schmitter, Philippe C. “Modes of Transition in Latin
America, Southern and Eastern Europe”. International Social Science Journal, v.
43, n. 128, May 1991, pp. 269–84.
Lipset, Seymour Martin. “Some Social Requisites of Democracy: Economic
Development and Political Legitimacy”. American Political Science Review, v.
53, n. 1, March 1959, pp. 69–105.
O’Donnell, Guillermo; Schmitter, Philippe C.; Whitehead, Laurence
(Eds.). Transitions from Authoritarian Rule. 4 volumes. Baltimore: Johns
Hopkins University Press, 1986. [Ed. bras.: Transições do regime autoritário:
América Latina. São Paulo: Vértice, 1988.]
Przeworski, Adam. “Conquered or Granted? A History of Suffrage
Extension”. British Journal of Political Science, v. 39, n. 2, April 2009, pp.
291–321.
Rustow, Dankwart A. “Transitions to Democracy: Toward a Dynamic Model”.
Comparative Politics, v. 2, n. 3, April 1970, pp. 337–63.
Zakaria, Fareed. “The Rise of Illiberal Democracy”. Foreign Affairs,
v. 76, n. 6, November–December 1997, pp. 22–43.
“
Repensando o paradigma da transição”. Augusto Franco, no seu blog, divulgou este importante debate (13/08/2017)
destacando o seguinte: “Este texto é a versão resumida e levemente editada de um painel de
discussão ocorrido em 2013. Nossos agradecimentos a Dean W. Jackson e Marlena
Papavaritis por terem produzido a transcrição inicial”. O texto original foi publicado inicialmente
com o título: “Reconsidering the Transition Paradigm”, Journal of Democracy, Volume 25, Número 1, Janeiro de 2014 © 2014
National Endowment for Democracy and The Johns Hopkins University Press.