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quinta-feira, 26 de julho de 2018

TEOLOGIA DA LIBERTAÇÃO, MARXISMO E MESSIANISMO POLÍTICO



A contribuição do Dr. Fernando Flora á análise crítica do lulopetismo na obra: O sujeito oculto (São Paulo: Editora Arvore da Vida, 2015, 96 p.) que tive a honra de prefaciar, é de capital importância nos tempos de messianismo político que vivemos. Lembremos que o PT teve dois pais: o movimento sindical e a “esquerdigreja”, denominação dada, com muito acerto, pelo embaixador Meira Penna, a essa vigarice que tomou conta da Igreja Católica no Brasil ao longo das décadas de 70 e 80 do século passado, denominada de “teologia da libertação”, uma aproximação entre cristianismo e marxismo, da qual saíram chamuscados, certamente, os católicos. Os fiéis viram transformadas as missas em assembleias sindicais. E a fé foi para o brejo nesse tumulto de ideias que os marxistas habilmente introduziram nas pregações dos padres ligados à tal teologia.

Ao ensejo da formulação de uma "Teologia dos Pobres" ou "Teologia da Libertação", surgiu na América Latina, uma "Filosofia da Libertação", que se singulariza porque parte, à maneira medieval, dos pressupostos básicos do discurso teológico, para arrazoar ao redor deles. Configura-se, assim, o tradicional modelo da Philosophia Ancilla Theologiae, que caracterizou às grandes sínteses do século XIII, mas que acompanhou, também, à filosofia pensada ao ensejo da Segunda Escolástica. Diríamos que não houve mudança de paradigma: o hodierno discurso filosófico que se pretende mais latino-americano, o Libertador, é fiel à velha tradição de filosofar à sombra da teologia.

O tema acerca do qual versa a Filosofia da Libertação também não é novo: a questão da pobreza. Essa problemática, de caráter eminentemente moral, vem sendo objeto de reflexão desde o século XIX. Os doutrinários franceses, notadamente Guizot, debruçaram-se sobre ela, bem como a geração posterior, cujo mais importante representante na França seria Tocqueville [cf. Vélez, 1998 e 1999]. Mas não somente seria discutida a mencionada problemática do ângulo liberal. Também aprofundaram nela autores de outras tendências como Saint-Simon e Augusto Comte. Na França do final do século XIX aparece uma importante contribuição metodológica com a escola de Le Play: a problemática da pobreza precisa ser discutida à luz de uma delimitação clara da mesma, utilizando o método monográfico. Essa será a perspectiva que passará a influenciar nos autores brasileiros como Sílvio Romero e os demais teorizadores do chamado "culturalismo sociológico". Na Inglaterra, à época de Tocqueville, a questão ganhou grande relevo com Stuart Mill, os Fabianos e os primeiros ideólogos do Labour Party. A reflexão de Marx insere-se no primeiro ciclo da meditação sobre a problemática, mais ou menos na mesma época em que Stuart Mill desenvolveu as suas análises.

Anotemos que a atualidade da discussão sobre a pobreza decorre da sua situação no terreno da moral: sempre será válido meditar sobre as questões relacionadas ao ideal da justiça, como expressão da nova realidade ontológica destacada pela cultura judaico-cristã: todos somos filhos de Deus, criados à sua imagem e semelhança. Se este é um princípio válido, por que as enormes disparidades sociais? Mais ainda: se o Cristianismo apregoa como mandamento fundamental o amor ao próximo, que sentido têm as injustiças sociais? A reflexão sobre a pobreza e o equacionamento desse problema possuem, portanto, grande apelo moral. Situa-se nesse contexto o valor do chamado décimo-primeiro mandamento, que teria sido explicitado por Marx: Não explorarás o trabalho alheio.

Já desde os primórdios da discussão, apareceram claramente delineadas duas alternativas teóricas: de um lado, a daqueles que colocavam a questão em termos de uma multiplicidade de variáveis, sendo a econômica uma delas, mas sem pretender reduzir as outras a ela (trata-se de uma alternativa multidisciplinar e aberta) e, de outro lado, a alternativa dos autores que absolutizavam a variável econômica, pretendendo reduzir toda a análise da pobreza a essa perspectiva. Um exemplo da primeira alternativa seria a forma em que os doutrinários e Tocqueville abordaram a questão. Um exemplo da segunda alternativa seria a forma em que Marx formulou o seu materialismo histórico, para, a partir de uma perspectiva em que as relações de produção eram consideradas como a base de todo o edifício social, passar a discutir e equacionar o problema da pobreza em termos estritamente econômicos.

Interessante é destacar que, ao ensejo da primeira forma de abordagem, surge, como resposta, um modelo de sociedade plural, em que são reconhecidas várias ordens de interesses, sem que se pressuponha que, para resolver a questão da pobreza, seja necessário reduzir a sociedade a uma única ordem de reivindicações. O modelo aqui postulado é o liberal. Paralelamente, ao ensejo da segunda forma de abordagem, surge uma sociedade entrópica, em que todos os interesses devem ser reduzidos (à maneira rousseauniana) a uma única ordem: a do bem público, com explícita eliminação dos interesses particulares.

Decorrente do centripetismo desenvolvido nas sociedades ibero-americanas pelo Estado Patrimonial, a abordagem da problemática da pobreza não percorreu, nas nossas culturas latino-americanas, o caminho liberal do reconhecimento de múltiplas variáveis, entre as que se inseriria a econômica. Paralelamente, a solução apontada não poderia ser a liberal, que apresentasse um modelo de sociedade plural, organizada em diversas ordens de interesses. A solução viria, de forma vertical, a partir da identificação de uma ordem única de interesses, os correspondentes a um vaporoso bem público, que historicamente correspondeu, nas nossas sociedades, à defesa dos interesses da nomenklatura manipulada pelos donos do poder. Solução de tipo rousseauniano, que foi explicitamente cultuada pelo Libertador Simon Bolívar e que ainda hoje emerge travestida de diferentes maneiras, sob as roupagens populistas do peronismo, do varguismo, do lulismo, do castrismo, do chavismo, do sandinismo, etc.

Inserida no arquétipo rousseauniano, a solução à problemática da pobreza não poderia deixar de ser apresentada nos moldes do messianismo político. Porque ele é da essência do pensamento político do filósofo de Genebra. A forma de equilibrar uma sociedade injusta, para Rousseau, seria muito simples: consistiria na identificação de todos os cidadãos com a vontade geral, que seria a expressão do predomínio, em todos os espíritos, do bem público. Seriam os puros os chamados a enquadrar a sociedade nesse marco de ferro. Esses puros, aliás, desenvolveriam as funções messiânicas de salvadores da pátria. Ora, a Teologia da Libertação emerge no contexto latino-americano, amarrada ao modelo do messianismo político moderno. Mas convém destacar um aspecto importante: como a versão mais completa de messianismo político que se consolidou no século XX foi a do marxismo-leninismo, a Teologia da Libertação passou a ser cooptada por esse viés teórico, que terminaria dando ao discurso libertador ampla conotação totalitária.

Em decorrência dessa particularidade, serão analisados, aqui, os singulares fenômenos do Messianismo Político e da Teologia da Libertação, a partir dos quais se formula a Filosofia Libertadora, sem que pretendamos, nestas páginas, abordar este último item, que mereceria abordagem independente.

Messianismo Político e Teologia da Libertação

J. L. Talmon fez uma completa caracterização do messianismo político na sua clássica obra intitulada Messianismo Político [Talmon, 1969]. a influência do saint-simonismo, do ponto de vista político, teve ampla repercussão em autores tão variados quanto Augusto Comte, Michelet, Mazzini e o próprio Marx.

Um profundo sentimento apocalíptico empolgava ao conde Saint-Simon (1760-1825), que entrevia o nascimento de uma religião universal que impusesse a organização pacífica da sociedade. Este é um trecho que revela claramente tal sentimento: "Isto é o que dizemos sem dilação: os dias das soluções incompletas chegaram ao fim. É necessário dirigir-se resolutamente em direção do bem geral. É a verdade na sua totalidade o que deve ser salientado perante as circunstâncias atuais: é chegado o momento da crise. Essa crise profetizada por muitos dos textos do Antigo Testamento e para a qual, durante muitos anos, têm-se preparado as sociedades bíblicas, é a crise cuja existência acaba de demonstrar a instituição da Santa Aliança, união fundada nos mais generosos princípios de moralidade e religião. Esta é a crise que os judeus esperaram desde quando, expulsos do seu país, têm andado errantes, vítimas de perseguições, sem jamais renunciar à esperança de ver o dia em que os homens conviveriam como irmãos. Finalmente, essa crise tende diretamente ao estabelecimento de uma religião autenticamente universal e a impor a todos uma organização pacífica da sociedade" [apud Talmon, 1969: 21].

Saint-Simon encarava, dessa forma autenticamente messiânica, a crise sofrida pela sociedade francesa após a Revolução de 1789. Diante da desagregação ensejada pelo Jacobinismo e o Terror, o filósofo apresentava-se como peça-chave para a redenção, não somente da França como de toda a Humanidade. A respeito, escreve Talmon [1969: 22-23]: "Estava convencido de ser um Napoleão da ciência e da indústria, pela promessa que lhe fez Carlos Magno, durante um sonho que teve quando esteve preso na cadeia de Luxemburgo em 1774, de que conseguiria tanta glória como filósofo, quanto o seu famoso antecessor tinha alcançado nas artes da guerra e do governo (...)".

O conde Saint-Simon assistiu passivamente à Revolução Francesa como observador arguto, em que pese o fato de ter sido eleito, em 1790, como presidente da Assembléia Eleitoral da sua comuna, o que motivou a renúncia ao título de nobreza. Anos atrás, o jovem nobre tinha participado como voluntário do exército que, sob o comando do general Lafayette, tinha ajudado os revolucionários americanos a proclamar a Independência das treze colônias, em 1776.

A Revolução Francesa não foi, no sentir do filósofo, uma révolution régéneratrice, mas um espetáculo de destruição, de inútil debate e de desordem social. Frisava a respeito dessa situação crítica: "É a falta de idéias gerais o que nos tem levado à ruína; não poderemos renascer autenticamente senão com a ajuda de idéias gerais; as velhas idéias caíram (...) e já não é possível rejuvenescê-las. Precisamos de idéias novas (...), um sistema, quer dizer, uma forma de opinião que seja, por natureza, cortante, absoluta e exclusiva" [apud Talmon, 1969: 26].

Ao passo que Saint-Simon desconhecia o valor de heróis aos protagonistas da Revolução Francesa, considerava, pelo contrário, que Napoleão Bonaparte encarnava esse valor, não pelo fato de ter sido militar ou conquistador, mas por ter se firmado como "o chefe científico da Humanidade (...) e a sua cabeça política" [apud Talmon, 1969: 26], tendo legislado alicerçado em princípios racionais.

Saint-Simon preocupou-se por achar um princípio total que permitisse a explicação racional do universo. Nessa busca, terminou professando uma visão determinística do homem, que Talmon [1969: 27] tipificou assim: "O homem é como um pequeno relógio dentro de outro maior, o universo, do qual recebe a energia para movimentar-se. Saint-Simon sonhava com deduzir passo a passo as leis determinantes do universo em ordem de sucessão (...) para, no final, chegar às leis da organização social mediante a reconstrução prévia da inter-dependência do orgânico e do inorgânico, dos corpos fixos e dos fluidos, da matéria e do movimento". Nesse contexto, a sociedade é concebida como "verdadeira máquina organizada" ou como um "organismo" que, ao longo dos tempos, criou os seus próprios órgãos para se adaptar às diferentes situações. A unidade inteligível da História não é nem o Estado, nem a Nação, mas a Sociedade orgânicamente considerada. As suas forças e processos não são criação deliberada de ninguém, mas frutos do organismo social.

O essencial dos processos sociais é representado, no entanto, pelos sistemas filosóficos que seriam, assim, o principal mecanismo de adaptação do organismo social às diferentes épocas. Como frisa Talmon [1969: 30], todo sistema social é, assim "a aplicação de um sistema filosófico. A religião, a política, a moral, a instrução pública, não são mais do que reflexo e aplicação de um sistema de idéias, uma Weltanschauung (...)".

Dado o caráter orgânico da sociedade, a expressão dos sistemas de idéias corresponde, nas diferentes épocas históricas, a uma cabeça que pensa pelo todo social. Como frisa Bréhier [1948: II, 712], Saint Simon "é aristocrata demais para poder acreditar que o povo, em cujo favor trabalha, seja capaz de fazer alguma coisa em prol de sua renovação". Assim, é importante identificar aquele ator social a quem corresponderia a tarefa de explicitar o novo sistema de idéias, que regeneraria a sociedade após a Revolução Francesa.

Na formulação do plano salvífico da sociedade por parte de uma elite, o pensamento saint-simoniano percorreu duas etapas: uma cientificista e outra religiosa. Essa dupla feição é típica, aliás, de um discípulo de Saint-Simon: Augusto Comte, cuja obra oferece essa dupla vertente, de cunho cientificista e religioso/dogmático.

Na primeira fase da sua obra, Saint-Simon considerava que a elite pensante que presidiria como cabeça do corpo social, devia ser integrada pelos industriais, que figuravam à frente do sistema produtivo. A sua gestão na sociedade não se revestiria do caráter coercitivo das épocas anteriores, pois prevaleceria não a força, mas a razão das coisas. Todo o trabalho a ser feito consistiria, portanto, em explicar a cada um o lugar que devia ocupar no corpo da sociedade industrial. Saint-Simon salientava que, no sistema industrial, "os homens desfrutariam, com essa ordem de coisas, do mais alto grau de liberdade compatível com o estado de sociedade" [apud Talmon, 1969: 41].

Em que pese o fato do caráter irreversível da sociedade industrial, Saint-Simon considerava que o seu advento devia ser induzido por outra elite esclarecida: os savants positifs, a cuja frente ele próprio se colocava. O papel deles consistiria em preparar a grande revolução que seria a passagem da sociedade tradicional para a industrial. Saint-Simon previa "uma ação que, por sua natureza, é brusca e cortante, pois esta transformação tende a modificar subitamente os hábitos intelectuais assumidos pelo espírito público" [apud Talmon, 1969: 43]. Contudo, não fica confirmado esse caráter aparentemente violento da revolução, quando Saint-Simon entra a explicitar a forma em que deverão proceder os savants positifs na efetivação da mesma. O papel deles é eminentemente persuasivo, não violento, devendo limitar-se a mostrar aos reis, povos, aristocracias e governos a inevitabilidade do advento do sistema industrial, cujo caráter construtivo será também explicado. Assim advirá a sociedade industrial.

Apesar do papel de liderança atribuído por Saint-Simon aos savants positifs, aos poucos foi reconhecendo, na segunda fase da sua obra, a necessidade de alicerçar o comportamento coletivo harmônico numa base mais ampla do que a pura ciência, a fim de abranger os sentimentos humanos, que jogam um papel tão importante na conduta dos homens. Saint-Simon procurou, assim, forças mais profundas numa religião vital. Achou que o fator religioso desempenhava um papel de primeira ordem na organização social. A propósito, escrevia o filósofo: "A religião tem servido e servirá sempre como base da organização social (...). A humanidade tem atravessado crises científicas, morais e políticas, sempre que a ideologia religiosa tem experimentado algum câmbio" [cit. por Talmon, 1969: 50]. E dedicou a última parte da sua vida à procura desse embasamento religioso para a sociedade industrial.


Teologia da Libertação e tradição despótica

A Teologia da Libertação, enquanto discurso teológico que pretende garantir a inserção da Igreja no mundo subdesenvolvido, ganhou muita atualidade no Brasil contemporâneo, na medida em que inspira a ação político-pastoral dos setores “progressistas”, identificados com as comunidades eclesiais de base. Embora existam interpretações que, de um lado, tentam desligar a Teologia da Libertação de qualquer identidade com o marxismo e analisam-na no contexto do discurso eclesiástico, reivindicando o seu caráter soteriológico [cf. Romano, 1979], ou que, de outro lado, embora reconhecendo alguma inspiração marxista, consideram ser possível a sua permanência no seio da teologia católica, mediante alguns ajustes que limassem as arestas ideológicas [cf. Lepargneur, 1979: 122], acho que a parcela mais agressiva e representativa dos teólogos libertadores aderiu explicitamente ao marxismo, sendo, assim, uma versão atualizada do Messianismo Político. O padre e poeta nicaragüense Ernesto Cardenal expressou, com clareza, essa adesão, em entrevista concedida em 1979 à revista soviética América Latina, ao relatar a sua atividade guerrilheira na comunidade de monges e camponeses, no arquipélago de Solentiname, no lago da Nicarágua: "Começamos a estudar o marxismo junto com os camponeses que estavam mais integrados conosco, especialmente com os jovens. E fomo-nos identificando com o movimento guerrilheiro da Nicarágua, com a Frente Sandinista de Libertação Nacional. E fomos descobrindo que as idéias cristãos originárias eram, em sua essência, revolucionárias, e que colocavam o problema da luta de classes, que o mundo estava dividido entre exploradores e explorados e que os explorados triunfariam sobre os exploradores e seria estabelecida na terra uma sociedade justa. E nos identificamos, então, com a luta do Movimento de Libertação da Nicarágua, e chegamos já praticamente a pertencer a esse movimento" [Cardenal, 1979: 178].

O exemplo de radicalização da comunidade de Solentiname expressa perfeitamente o fenômeno acontecido, no decorrer das décadas de 60 e 70, ao longo da América Latina: não foram as massas de cristãos as que, em primeiro lugar, fizeram a opção marxista. Foram os sacerdotes. E eles levaram à radicalização, posteriormente, as suas comunidades, ensejando, assim, o surgimento de uma nova forma de clericalismo. E na radicalização dos sacerdotes pesou muito a influência da revolução cubana e da mística revolucionária por ela difundida.

Para o padre Cardenal não existe dúvida de que o cristianismo é totalmente compatível com o marxismo, e de que a expressão dessa unidade é a Teologia da Libertação: "Nesses anos (da década de 70) -- frisa -- surgiu na América Latina o movimento chamado de Teologia da Libertação. Eu e os outros membros da minha comunidade em Solentiname percebemos que não havia nenhuma incompatibilidade entre o autêntico cristianismo do Evangelho e o marxismo. A partir de então começamos nós também a pertencer a esse grupo, já muito grande na América Latina, de cristãos marxistas. Isso também influenciou na minha poesia" [Cardenal, 1979: 180].

Segundo Cardenal, quem formulou primeiro essa sintonia entre cristianismo latino-americano e revolução foi Che Guevara, ao afirmar que "quando os cristãos, na América Latina, fossem autenticamente revolucionários, a revolução seria inevitável". Sem dúvida, Guevara formulou e encarnou o modelo de mística revolucionária, sobrepondo os elementos da religiosidade popular do povo latino-americano ao arcabouço do messianismo político marxista. Para ilustrar essa afirmação, eis o trecho final da carta enviada por Che a Carlos Quijano, do semanário Marcha de Montevidéu, em que o líder guerrilheiro sintetizava a sua visão revolucionária nestes termos:

"Nós, os socialistas, somos mais livres porque somos mais plenos; somos mais plenos pelo fato de sermos mais livres. O esqueleto da nossa liberdade completa está formado, falta a substância protéica e a roupagem; criá-los-emos. a nossa liberdade e o seu fundamento cotidiano têm cor de sangue e estão cheios de sacrifício. O nosso sacrifício é consciente; quota para pagar a liberdade que construímos.  O caminho é longo e desconhecido em parte; conhecemos as nossas limitações. Faremos, nós mesmos, o homem do século XXI. Forjar-nos-emos na ação cotidiana, criando um homem novo com uma nova técnica. A personalidade  joga o papel de mobilização e direção, enquanto encarna as mais altas virtudes e aspirações do povo e não se afasta do caminho. Quem abre o caminho é o grupo de vanguarda, os melhores entre os bons, o Partido. A argila fundamental da nossa obra é a juventude: nela depositamos a nossa esperança e a preparamos para receber de nossas mãos a bandeira. Se esta carta balbuciante esclarece alguma coisa, cumpriu o objetivo com que a escrevo. Receba a nossa saudação ritual, como um aperto de mãos ou um Ave Maria Puríssima. Pátria ou morte! [Guevara, 1977: II, 383-384].

Os comentaristas soviéticos consideravam a Teologia da Libertação como um movimento progressista inspirado no marxismo, que ajudava às revoluções democráticas na América Latina. Valentina Andrónova, da Academia de Ciências da União Soviética, frisava, por exemplo, que o aspecto essencial da mencionada Teologia é a sua inspiração no marxismo, alicerçada no pressuposto de que cristianismo e marxismo são afins. "Os teólogos -- escrevia Andrónova -- consideram que se for tomado o melhor de um e de outro, essa fusão poderia levar a resolver eficazmente os problemas sociais. O cristianismo é portador de valores espirituais e morais; o marxismo comporta o princípio racional que oferece solução real e prática ao problema" [Andrónova, 1980: 47].

De outro lado, as comunidades eclesiais de base eram apresentadas por Andrónova como núcleos de protesto social da Igreja progressista, que ameaçavam a estabilidade do status quo na medida em que punham em prática os princípios da Teologia da Libertação. A grande extensão dessas comunidades seria expressão do seu potencial político. "As estatísticas -- frisava a comentarista soviética -- podem calcular o número das comunidades de base. Atualmente [final dos anos 70 do século passado][1] existem em cada país latino-americano, chegando a umas 150 mil. Somente no Brasil existem perto de 50 mil e abrangem um milhão de pessoas" [Andrónova, 1980: 48].

Em que pese essas considerações, os comentaristas soviéticos reconheciam, contudo, que a Teologia da Libertação não constituía uma teoria íntegra, em parte devido a que em sua elaboração participaram teólogos de formação diferente, tanto católicos quanto protestantes; a imprecisão e a confusão afetavam muitas vezes a utilização do conceito de luta de classes e, por último, a linguagem figurada de muitos desses teólogos terminava por confundir a claridade dos conceitos. Apesar dessas críticas, Andrónova salientava que a posição prática dos que formularam a Teologia da Libertação era cada vez mais conseqüente e mais firme, do ponto de vista da opção revolucionária [Andrónova, 1980: 46-47].

José Grigulévich, da Academia de ciências da URSS, expressou claramente o papel instrumental que representavam a Igreja progressista latino-americana e a Teologia da Libertação na estratégia de penetração soviética no continente: "A experiência destes quatro lustros ensina que, apesar de participar ativamente da luta popular contra as forças reacionárias, a Igreja não tem possibilidades para se converter em fator determinante do processo de mudanças na América Latina, à imagem e semelhança do Islã, que se tornou força reitora do dinamismo revolucionário iraniano (...). Isso é compreendido perfeitamente pelos comunistas que, alheios a um anticlericalismo ostensivo, têm promovido sempre uma política de colaboração com a Igreja e os católicos em prol da paz, da democracia e das mudanças sociais indispensáveis" [Grigulévich, 1980: 31].

Podemos, a esta altura, formular uma pergunta, que surge espontaneamente do exame dessa mútua atração entre um fenômeno tão tipicamente latino-americano como a Teologia da Libertação e o marxismo: quais foram as razões histórico-culturais que fizeram do mundo ibero-americano caldo de cultura apto para que nele vingasse essa síntese de messianismo político? Tentemos, embora a grandes traços, esboçar uma resposta.

Na Península Ibérica, como também na Rússia, desenvolveu-se uma experiência de absolutismo ensejada pelo despotismo oriental. Ao passo que essa experiência deu-se na Rússia em decorrência da invasão tártara no século XIII e da influência bizantina, na Espanha e em Portugal apareceu a partir da invasão e da dominação árabes, fenômeno que se estendeu de 710 a 1490. Como acertadamente anota Alexandre Herculano na sua História de Portugal [1914: II, 19-20], durante todo esse período a minoria cristã, que se refugiu nas montanhas do norte, sofreu uma forte influência da cultura e dos hábitos políticos dos sarracenos, tendo esquecido os costumes medievais de desconcentração de poderes e chegando a imitar os procedimentos centralizadores dos califas. Isso era explicável pela superioridade técnica e cultural dos muçulmanos sobre a nobreza visigótica. Os príncipes herdeiros de Portugal, desde Afonso Henriques (1109-1185), foram influenciados por essa maré centralizadora e despótica.

Se de um lado é certo que os efeitos desse despotismo foram o progresso econômico e urbanístico da Hispania sarracena, de outro lado não é menos certo que essa experiência contribuiu para a difusão da cultura árabe, particularmente no que diz respeito ao papel destinado à religião, no contexto social. Esse papel, segundo mostrou Wittfogel, é claro no contexto do despotismo oriental, e consiste na utilização da variável religiosa para reforçar o poder absoluto do Estado. A respeito, escreve este autor: "Diferentemente da sociedade européia feudal, na qual a maior parte dos chefes militares (os barões feudais) não estavam ligados aos seus suseranos senão por frágeis laços e um contrato, e na qual a religião dominante era independente do governo secular, (no seio do despotismo hidráulico) a religião dominante estava estreitamente ligada ao Estado" [Wittfogel, 1977: 127].

É fora de dúvida que tanto Espanha quanto Portugal, após a expulsão dos árabes, conservaram a tendência para a utilização dos fatores culturais (entre eles, o religioso), como elementos que garantissem a estabilidade do Estado. Fidelino de Figueiredo, no seu ensaio intitulado As duas Espanhas, explica bem como o Império espanhol sob a dinastia dos Áustrias, no século XVI, utilizou os fatores científico-religioso-jurídicos para consolidar um modelo absoluto de dominação.

Quanto à utilização do fator religioso, frisa Fidelino: "Entretanto, Carlos V fora eleito Imperador da Alemanha, em sucessão do seu avô, arrogara-se o título de majestade e simbolizara numa águia a amplitude nova e ambiciosa da sua política. Esmagada a resistência dos comuneros, estava fundado o Império germano-espanhol. Mas era necessário atribuir-lhe algum conteúdo espiritual, porque o que mais estreita os homens é o dinamismo propulsor duma ação em comum. As rivalidades com a França e a Inglaterra eram escopo muito limitado. Deveria ser alguma coisa de maior prestígio, e mais promotora de energias combativas. É a reforma religiosa, explodindo, que sugere esse conteúdo unificador: a defesa da fé católica sob a bandeira do espírito da contra-reforma que, em breve, também acharia no ambiente espanhol um dos seus instrumentos essenciais. E a velha herança romana do imperialismo sobre o alicerce de um pensamento único, nunca esquecida nos séculos medievais e avivada na Renascença, realiza-se pelo consórcio do império espiritual do pensamento único, que era o papado, com o império militar do mando único, que era a dinastia austríaca" [Figueiredo, 1959: 76-78].

A herança do despotismo oriental da Espanha estendeu-se à dinastia borbónica, cujo regalismo era, segundo Fidelino de Figueiredo, mais absorvente que o dos Áustrias, tendo chegado a realizar uma centralização absoluta [cf. Figueiredo, 1959: 112-113]. Da herança despótica oriental não fugiu Portugal que viu consolidar, sob a dinastia de Avis (1385-1580), os alicerces do Estado patrimonial [Cf. Faoro, 1958: I, 33 seg.]. A irrupção de Portugal na modernidade, obra do Marquês de Pombal (1699-1782), consolidou mais ainda a centralização de poderes no Estado, bem como a fundamentação deste na ciência e na religião oficiais [cf. Paim, 1978].

A modernização do Estado português teve, aliás, elementos comuns ao processo empreendido pela Rússia czarista. Teófilo Braga salienta que a criação do Colégio dos Nobres de Lisboa, efetivada em 1761 para garantir a formação de uma elite esclarecida que servisse à primazia e à estabilidade do Estado na sociedade, proveio do médico de origem judaica Antônio Nunes Ribeiro Sanches, que tinha prestado serviços à Imperatriz da Rússia como conselheiro, médico e pesquisador no Colégio dos Nobres de São Petersburgo [cf. Braga, 1898: III, 350-351].

Em que pese o cientificismo professado por Pombal, o seu projeto modernizador considerava a variável religiosa como elemento essencial à consolidação política do Estado. A propósito, comenta Laerte Ramos de Carvalho: "Na defesa dos interesses da sociedade a política pombalina procurou furtar-se aos termos do dilema Sacerdócio-Império porque, pela força das condições históricas, tentou construir, de acordo com o apoio do próprio clero português, excetuados os jesuítas, a república que, dentro do espírito do absolutismo, se tornara a preocupação dos teóricos mais avançados do tempo. A religião, na mentalidade que então predominava, era o esteio da ordem civil, o tribunal que, ao resguardar a pureza da fé, resguardava, ao mesmo tempo, os interesses mais legítimos do poder temporal. O homem natural pertence tanto à religião quanto aos seus parentes e pátria: somente na união cristã, que não lisonjeia os interesses desnaturalizantes da Igreja, sem pátria e sem fronteiras, pode a sociedade civil viver e prosperar. Não se pretendia propriamente a consagração, tão no gosto do radicalismo cismontano, do aforismo - non respublica est in ecclesia, sed ecclesia in respublica - mas uma tentativa de conduzir, numa harmonia de interesses, conjuntamente, a República e a igreja pelo caminho do progresso material e espiritual da nação lusitana" [Carvalho, 1978: 48-49].

Os Estados surgidos na América Latina após os processos de independência das metrópoles espanhola e portuguesa, herdaram do despotismo ibérico fortes tendências centralizadoras e burocráticas, das quais formou parte a tentativa de utilizar os fatores religiosos, científicos e jurídicos como elementos da estabilidade política, num contexto absolutista. Esse centralismo burocrático, aliado à tendência a considerar o poder como instância patrimonial de quem o detém, levou à atrofia da cultura, segundo um ensaísta como o argentino Domingo Faustino Sarmiento (1811-1888), que escrevia: "Um espanhol ou um americano do século XVI deve ter afirmado: existo, logo não penso". E considera que tal cidadão não viveria se tivesse a desgraça de pensar. Para Sarmiento, o cerne dessa situação é o despotismo ibérico, fortemente alicerçado no elemento religioso: "Filipe II -- escreve -- é a concentração do princípio maometano-espanhol da unidade de crenças. Ele, e não o Papa, funda a Inquisição (...). Sem Maomé não haveria Inquisição na Espanha (...). O Papa conservou sem fogo a Inquisição. Porém, só na Espanha e com ex-maometanos (...) podiam ser levantados altares ao canibalismo, à aversão à velha (bruxa) que conservaram os selvagens". Essa é, segundo Sarmiento, a mentalidade herdada pelos hispano-americanos. E conclui: "O terror está em nós" [cit. por Zea, 1976: 113-114].

A tendência à utilização do fator religioso manifestou-se como uma constante da cultura latino-americana, com variadas formas de clericalismo a serviço dos interesses políticos [cf. Vélez, 1978: 85 seg.]. Não estranha, assim, a tremenda força de propostas messiânico-políticas, a serviço de um projeto de dominação despótica, como a Teologia da Libertação.

Os russos compreenderam perfeitamente o valor do elemento religioso na América Latina. Herdeiros -- como nós -- de longa tradição despótica oriental, convertida, ao longo do século XX, para eles, em sistema totalitário, souberam utilizar o fator religioso como ponta de lança para a penetração soviética no continente latino-americano. E estimularam, até a queda do Império da URSS, a difusão da Teologia da Libertação.

Antes da reunião do CELAM em Medellín (1968), a Teologia da Libertação deitava raízes nos esforços de alguns padres ativistas por aderirem à dialética marxista, como instrumento-chave para a análise socio-política da realidade latino-americana. Esse esforço iniciou-se, a nível continental, após a eclosão da revolução cubana, a partir de 1960. Nesse amplo trabalho de doutrinação engajaram-se os movimentos católicos como o MIIC (Movimento Internacional de Intelectuais Católicos, que editava a revista Víspera em Montevidéu), a JUC (Juventude Universitária Católica que editava, com o auxílio material e intelectual do MIIC, farto material de conscientização marxista no meio universitário latino-americano), a JEC (Juventude Estudantil Católica), a JOC (Juventude Operária Católica), os Movimentos de Profissionais Católicos que, através do método da revisão de vida, foram conscientizados pelos sacerdotes e pela elite intelectual (representada principalmente pela liderança do MIIC) acerca da necessidade da utilização da dialética marxista como instrumento de reflexão-ação.

Essa liderança intelectual instalou-se, inicialmente, no Paraguai, no Uruguai, na Argentina e no Chile, tendo-se deslocado posteriormente para o Peru (a partir de 1972) e a Colômbia, na medida em que ia crescendo a onda repressiva no Cone Sul. No Brasil, a tendência à radicalização seria representada pelo trabalho do padre Henrique Cláudio de Lima Vaz junto à comunidade universitária, o qual, ao longo da década de 60 do século passado, conseguiu formar na dialética marxista a elite que se radicalizaria na opção totalitária após 64 [cf. Paim, 1979: 118 seg.].

Nas últimas duas décadas do século XX, o foco mais ativo dessa elite intelectual radicalizada concentrou-se no norte do continente, na Colômbia, no México e na América Central. Em que pese o fato de no Brasil haver, na atualidade, boa parcela do clero e leigos influenciados pela teologia da libertação, a sua força não assumiu o grau de radicalismo que conduziu à luta armada na Colômbia, na Nicarágua, em El Salvador, na Guatemala, no México, etc. Do ponto de vista dos russos, a Teologia da Libertação foi um elemento valioso da luta no plano ideológico, toda vez que suficientemente vago em ambíguo do ângulo das propostas de governo, mas tremendamente dinâmico no sentido de motivar grandes massas de cristãos, para assumirem a revolução socialista como um compromisso heróico, deixando o comando do processo, certamente, em mãos de elementos treinados militar e políticamente. O que aconteceu na Colômbia talvez ilustre esse efeito estratégico. Em que pese a queda do Muro de Berlim e o fracasso do Império Soviético, os guerrilheiros das FARC e do ELN conseguiram mobilizar segmentos significativos da intelectualidade a partir de uma retórica libertadora que empolgou os católicos ativistas, sendo que hoje fica clara a opção eminentemente pragmática da liderança guerrilheira (que descambou para a criminalidade pura e simples), tendo sido deixados de lado ou sumariamente eliminados os líderes que ainda acreditavam numa Teologia Libertadora, após a morte do sacerdote guerrilheiro Manuel Pérez [cf. Rangel, 1999; Villamarín, 1996].

A Teologia que, na sua essência, consiste num discurso racional sobre a fé, não se compatibiliza com esse tipo de instrumentalização política, que se reduz à conquista violenta do poder para mudar as estruturas. A Teologia, como reflexão racional e sistemática sobre a fé religiosa, parte do pressuposto da aceitação da Revelação de Cristo, no caso da Teologia cristã. E o cerne dessa revelação é o seguinte: 1) Jesus-Cristo, Filho de Deus, encarnou-se, morreu e ressuscitou para salvar o homem; 2) a aceitação desse fato é graça de Deus, livremente aceita pelo homem, mas, afinal, graça, doação gratuita, que não é concedida a todos os homens (em outros termos, trata-se do reconhecimento da dimensão sobrenatural da fé); 3) a salvação consiste fundamentalmente no perdão dos pecados (que são pessoais e não anônimos ou coletivos) nesta vida, ou seja na conversão e na participação, após a morte, da vida eterna; 4) a salvação oferecida por Deus através de Jesus Cristo é universal, quer dizer, visa a todos os homens, os quais, mesmo que não tenham a graça da fé, podem se beneficiar dela, em virtude da sua retidão moral, quando tiverem procurado agir de acordo com a sua consciência; 5) o fato de possuir a graça da fé, produz no beneficiado obrigações morais e não privilégios: a obrigação moral básica do cristão consistirá no testemunho do amor a todos os homens. É lógico que a luta de classes apregoada pela praxe marxista nega frontalmente essa obrigação moral básica do cristão.

Bem no fundo da Teologia da Libertação encontramos uma fonte de inspiração tão antiga quanto o messianismo político que, se bem foi sistematizado no mundo moderno por Saint-Simon (1760-1825), é uma tentação tão velha quanto o próprio cristianismo. Não consistiu nisso, por acaso, o cerne das tentações sofridas por Cristo no deserto? E não foi essa, também, a pretensão que o Divino Mestre teve de combater repetidas vezes nos seus discípulos?

O projeto libertador que acalenta a Teologia da Libertação e que pretende erigir como tradição sagrada a luta revolucionária, vem ao encontro direto de outra tendência que, originada na Rússia comunista, fez da luta revolucionária e do modelo totalitário por ela imposto, uma religião cujas divindades seriam os arautos que apregoavam a nova fórmula salvadora. A respeito, frisa Paul Blanchard [1952: 66]: "Na santa trindade da teologia do Kremlim, Marx ocupa o lugar de Deus e Stalin o do Espírito Santo. Engels é o semi-deus (...). A existência dessa deidade trinitária não é específicamente reconhecida na literatura soviética, mas forma parte definida e importante do mundo comunista (...)". Depois de Stalin, poderíamos colocar, no seu lugar, os sucessivos dirigentes, todo-poderosos e despóticos do PC, até o desmantelamento da URSS [cf. Barbuy, 1977].


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[1] Anotação nossa.

quinta-feira, 24 de agosto de 2017

PARÂMETROS DOUTRINÁRIOS DA NOVA DIREITA, SEGUNDO LUCAS BERLANZA


Que o chamado "pensamento da direita" está em ascensão não há dúvida. Esclareçamos: por "pensamento da direita" entenda-se, primordialmente, aquele que se afina com as ideias políticas liberal-conservadoras, que se centram nos seguintes pontos: 1 - defesa incondicional da liberdade individual nos terrenos cultural, político e econômico; 2 - respeito às tradições vigentes, levando em consideração que só podem vingar aquelas mudanças sociais que as preservarem.

A propaganda marxista encarregou-se, no Brasil, de confundir as coisas. Tudo aquilo que não se afinasse com o cientificismo comuna foi jogado pelos militantes-propagandistas da esquerda vociferante no saco sem fundo da "direita". Ora, o "pensamento da direita" tem muitas nuances, sendo a principal delas a correspondente ao velho Liberal-conservadorismo. É ao estudo dessa tendência que o jovem escritor carioca Lucas Berlanza dedica a sua obra, recentemente lançada no Rio de Janeiro com o sugestivo título: Guia bibliográfico da nova direita - 39 livros para compreender o fenômeno brasileiro (Prefácio de Rodrigo Constantino, São Luís: Resistência Cultural, 2017, 255 pgs.).

Essa jovem direita liberal-conservadora eclodiu ao longo dos últimos 15 anos. O seu ponto de partida foi o desencanto das novas gerações com a vulgata marxista, que como pernicioso tsunami tudo invadiu no universo cultural brasileiro, de mãos dadas com a conivência oficial e a pregação dos velhos chavões marxistas-leninistas pela geração de mestres que se dedicou a essa inglória tarefa. Da radicalização simplificadora não escapou nem a Igreja Católica, a partir do momento em que os quadros dirigentes da CNBB foram tomados de assalto por militantes treinados na doutrinação marxista, que tudo centraram ao redor do messianismo político pregado pela Teologia da Libertação, como denunciou com coragem o padre português José Narino de Campos, na sua obrinha intitulada: Brasil, uma Igreja diferente (São Paulo: T. A. Queiroz, 1981).

As desgraças da radicalização e da intoxicação ideológicas não ocorrem ao acaso: elas são preparadas por trabalho continuado de simplificação conceitual e propaganda. De há muito o universo cultural brasileiro foi tomado de assalto pelos radicais marxistas. Já desde início dos anos 80 do século passado, o embaixador Meira Penna chamava a atenção para a silenciosa ocupação das Secretarias estaduais e municipais de Educação pela turma do PT, que se encarregou de radicalizar a formação de professores e alunos no ensino de primeiro e segundo graus, bem como nas Faculdades de Educação, à sombra da doutrina de Paulo Freire. Tudo foi potencializado, como de resto os vícios da corrupção e do compadrio, pelo PT no poder. Mas de tempos atrás a decisão da petralhada para manter vivo o pensamento marxista entre nós, foi projeto acalentado pelas lideranças partidárias.

O ponto alto dessa estratégia de dar vida ao cadáver insepulto do comunismo foi a criação (em 1990), por Lula, do Foro de São Paulo, tendo como colaboradores dessa empreitada os irmãos Castro, cabeças da ditadura cubana. Somaram-se a essa iniciativa os movimentos guerrilheiros atuantes na América Latina, a começar pelas FARC, bem como, anos depois, o coronel Chávez, que se elegeu presidente da Venezuela com a sua descabelada proposta de "Revolução Bolivariana". Fidel Castro achava que a liderança militar do processo de revolução comunista na América Latina deveria ser de Hugo Chávez. De lá para cá só aumentou essa maré vermelha. 

Acontece que os jovens da nova geração se cansaram da dieta ideológica de fome. Começaram a questionar a simplória estória que lhes era contada. Nos últimos 15 anos, essa reação só foi aumentando. Hoje conta com estruturados analistas que colocam as coisas no seu lugar, mostrando as grosseiras simplificações armadas pelo marxismo tupiniquim. 

São várias as jovens personalidades que se destacam, a meu ver, nessa nova geração. Correndo o risco de deixar por fora nomes de relevo, lembro alguns deles: Alex Catharino, Rodrigo Constantino, Alexandro Souza, Marco Antônio Barroso, Humberto Schubert Coelho, Bernardo Goitacazes de Araújo, Jefferson Silveira Teodoro, Bruno Garschagen, Hélio Beltrão, Lucas Berlanza, César Kyn d´Ávila, José Lorêdo Filho (com o magnífico empreendimento editorial da "Resistência Cultural"), Marcus Boeira, Caio Vioto, Paulo Briguet, Sílvio Grimaldo, Filipe Barros, Caroline de Toni, Bernardo Pires Küster, Débora Gois Torres, etc. Efetivamente, são inúmeros os jovens que, em Faculdades e nos seus lugares de trabalho, bem como a partir de grupos de estudo e thing tanks elaboram uma visão crítica da propaganda marxista-leninista, defendendo corajosamente o sagrado valor da liberdade individual e da tradição da Civilização Ocidental, ancorada no Cristianismo. 

Os cursos de História, quem diria, outrora terreno exclusivo dos marxistas, começaram a pensar com categorias diferentes, próximas do liberalismo e do conservadorismo e abertas à pesquisa das origens da nossa realidade social. Essas análises críticas deixam de cabelo em pé os velhos propagandistas do marxismo-leninismo e do gramscismo bem comportado, que o PT colocou como a última moda do bom-mocismo esquerdopata. Os bravos jovens liberais-conservadores optaram também pela luta político-partidária, como é o caso, em Londrina, de Filipe Barros e Bernardo Pires Küster. Os exemplos desses jovens liberais-conservadores engajados na luta político partidária multiplicam-se pelo país afora.

Feita essa introdução, parto para analisar sumariamente o conteúdo da nova obra de Lucas Berlanza. Em 6 capítulos, uma conclusão e um apêndice, o autor desenvolve o seu pensamento acerca da "nova direita" brasileira. Menciono os capítulos que integram a obra: I - Origens e fundamentos das ideias. II - Como entender o Brasil. III - Grandes ícones da política internacional. IV - Um olhar sobre adversários e inimigos. V - Grandes temas e controvérsias. VI - Um olhar sobre os dias atuais. Conclusão: Essa "direita" poderosa e onipresente, um mal absoluto a atrasar o Brasil, não passa de uma lenda. Apêndice: Por uma nova liberdade: o manifesto libertário.

Berlanza deixa clara a sua identificação com a renovação propiciada pelo "pensamento da direita", com as seguintes palavras, no prólogo à obra que comento: "Uma das características mais particulares desse 'novo' tipo de pensamento político, e do movimento que o orbita, é o fato de se fundamentarem em uma bibliografia filosófico-política e econômica toda especial, que não ocupa posição de protagonismo nas indicações didáticas tradicionais. O livre pensar dessa geração a levou a buscar outros ares e pesquisar novas fontes e indicações de leitura, a despeito do 'index' de educadores marxistas de ocasião. Por isso mesmo, entendemos que o vulgo não conheça suas ideias, não entenda do que se trata, e haja o risco de confusões serem semeadas por quem não tem interesse na divergência" (pg. 19).

Lucas Berlanza pretende apresentar na sua obra uma "guia de leitura" do ângulo liberal-conservador. No prólogo, frisa a respeito: "Este livro é nada mais que um esforço para apresentar, através de algumas dicas de leitura cuidadosamente selecionadas, marcos de ideias que tornam possível ao leitor apreender, em um quadro geral, a genealogia e a natureza de alguns princípios e posturas que circulam nesse grupo heterogêneo de liberais e conservadores - e que os definem. Das fontes bibliográficas mais antigas e clássicas até as mais modernas, reuni 39 resenhas de livros que ajudam a esclarecer do que se trata esse fenômeno social que vem inquietando e alimentando esperanças no Brasil. (...). É um livro sobre livros. Não que, em certo sentido, todos os livros não o sejam: mas as resenhas não são apenas artigos elogiando ou criticando determinado título. Todas elas contêm ilações e desdobramentos que delineiam as ideias que justificam sua inclusão e que, compreendidas em seu conjunto, fazem da relação um modesto guia bibliográfico, que não esgota, mas traça um retrato do núcleo de princípios dos grupos de que estamos falando (...)" (pg. 19-20).

Berlança identifica como fontes inspiradoras do conservadorismo liberal da nova geração, as ideias de Burke, Bastiat, Hayek, Von Mises, Margaret Thatcher, Winston Churchill, Roger Scruton, Ronald Reagan, etc. No terreno da cultura brasileira, as fontes do liberal-conservadorismo seriam Roberto Campos, Meira Penna, Carlos Lacerda, José Guilherme Merquior, Ubiratan Borges de Macedo, Ubiratan Jorge Iorio, João Pereira Coutinho (com a sua original contribuição do ângulo luso-brasileiro), Rodrigo Constantino, Ricardo Vélez Rodríguez, etc. 

Eu adicionaria os nomes de Antônio Paim, o maior historiador contemporâneo do pensamento liberal-conservador brasileiro, Alberto Oliva, Mário Guerreiro e Roque Spencer Maciel de Barros, pensador original que abriu as propostas liberal-conservadoras ao terreno da educação, alertando para o risco totalitário concretizado na vulgata marxista. No campo do conservadorismo típico, não pode deixar de ser mencionado, a meu ver, o nome do professor Olavo de Carvalho e do seu antecessor, Paulo Mercadante.

Destaca-se na obra que comento a inspiração de Lucas Berlanza nos fundadores do Instituto Liberal e discípulos da Escola Austríaca, Donald Stewart e Og Leme. Para ele, contudo, é o pensador irlandês Edmund Burke, o whig que atraiu os tories para refundar o partido conservador britânico, no início do século XIX, o principal inspirador do liberal-conservadorismo brasileiro.

A partir das desassombradas propostas burkianas surgiu, no sentir de Berlanza, uma doutrina que propende pela mudança, sem perder o sentido das conquistas do passado, permanecendo firme no compromisso com a defesa da liberdade individual, nos terrenos social, cultural e econômico. É o velho liberalismo conservador originado em Locke e alargado pelos Pais Fundadores dos Estados Unidos e que os doutrinários colocaram em circulação na França, ao longo do oitocentos. Só que, para Berlanza e os jovens que redescobriram Burke, as fontes prioritárias passaram a ser os clássicos de origem anglo-saxã e irlandesa.

Considero que os doutrinários franceses tinham elaborado uma meditação nova acerca do liberalismo lockeano, a partir das fontes escocesas, naquela aventura intelectual que Ortega y Gasset identificou como "o que de mais interessante ocorreu na Europa Ocidental ao longo do século XIX" e que desaguou na original proposta liberal-conservadora de Madame de Staël e Constant de Rebecque (os precursores) e que continuou com a meditação dos doutrinários propriamente ditos (Roger-Collard, Guizot) e dos seus discípulos (Tocqueville e Aron). 

Ora, penso eu, o liberal-conservadorismo brasileiro, como de resto na Espanha, em Portugal, na Colômbia e alhures na América Latina, formatou-se primordialmente à luz dos doutrinários. Eles falavam uma linguagem mais acessível ao espírito ibérico, do que aquela falada pelos anglo-saxões. A experiência continental europeia na defesa da liberdade foi mais próxima de nós do que a defesa das teses dos liberais britânicos. Isso por conta da nossa tradição jurídica, herdeira do antigo "direito germânico", ao passo que os anglo-saxões ancoravam na tradição consuetudinária restrita a eles.

Capítulo importante da magna obra dos doutrinários foi a defesa incondicional da liberdade, de um lado, junto com a crítica sistemática ao democratismo rousseauniano, que consistiu na nova forma de servidão e sob cuja inspiração foram cometidos todos os excessos da Revolução Francesa e do Terror Jacobino. Os doutrinários destacaram, no entanto, que algo podia ser salvo da maré revolucionária: a defesa da liberdade individual como elemento fundamental da libertação humana. Essa foi, aliás, a réstia de luz que Tocqueville encontrou no tormentoso momento revolucionário de 1789, e que o próprio Kant identificou inicialmente no movimento revolucionário francês. Guizot considerava que a missão dos doutrinários consistiria em "completar a Revolução Francesa" mediante a defesa da liberdade individual através das instituições do governo representativo. Tocqueville alargava a defesa da liberdade individual, com bicameralismo e instituições representativas para todos os franceses, não apenas para a burguesia encarrapitada no poder a partir da restauração monárquica e o reinado de Luís Filipe (1830-1848).

A meu ver, a meditação brasileira do século XIX louvou-se principalmente dos doutrinários, embora conhecesse as fontes britânicas e o pensamento de Burke. O principal expoente dessa versão nossa de liberal-conservadorismo foi, no início do século, Silvestre Pinheiro Ferreira, com a sua teoria da dupla representação (dos interesses permanentes da Nação e dos interesses mudáveis, dos indivíduos), tese que foi seguida nas propostas de criar a representação e o Poder Moderador pelos estadistas do Segundo Reinado, entre os que se destaca o visconde de Uruguai, com o seu Tratado de Direito Administrativo (1860). Mas já no final do século e no início da República, Rui Barbosa retoma as teses tocquevillianas de um liberalismo conservador que quer fazer da República uma experiência liberal, acorde com a representação de interesses e a tripartição de poderes. Idêntico trabalho de arrumação teórica foi feito pelos bravos liberais gaúchos que combateram o castilhismo no final do século XIX, notadamente Gaspar da Silveira Martins e Joaquim Francisco de Assis Brasil. Todas essas são as fontes inspiradoras dos nossos primeiros liberais-conservadores do século XX, Reale, Roque Spencer Maciel de Barros, Merquior, Antônio e Gilberto Paim, Ubiratan Macedo, Meira Penna, Alberto Oliva, Mário Guerreiro, Roberto Fendt, etc. Eu próprio me filio a essa tendência.

Ora, os fundadores do Instituto Liberal (notadamente Donald Stewart e Og Leme) e alguns pensadores próximos deles como Meira Penna, filiam-se sobretudo aos liberais austríacos e partem para discutir os afazeres da política à luz da velha tradição liberal pensada por eles, mas que entronca em Locke e nos patriarcas da Independência americana, bem como no liberalismo telúrico dos pensadores da segunda escolástica ibérica capitaneados por Francisco Suárez, levando em consideração também a mediação de Tocqueville e Aron. A essa turma junta-se, como muito bem mostra Berlanza nas suas páginas, o grande Roberto Campos, na sua última fase, sendo que ele se inspira, também, nas teses do liberalismo econômico já defendidas pelo professor Gudin e pela Escola Austríaca.

Os bravos jovens da novel geração à qual Berlanza pertence, partem com desassombro para uma meditação liberal-conservadora que tece fios de ligação com a primeira geração de liberais conservadores do século XIX, bem como com os seus discípulos brasileiros ao longo do século XX. Parece-me sobremaneira alvissareira a perspectiva que se abre entre os participantes da nova geração, que não se intimidam diante da discussão de questões acirradas como a que diz relação às teses sustentadas pelos libertários (tipo Rothbard) e que enfrentam de peito aberto os seus adversários e inimigos, como faz Berlanza no capítulo IV do seu livro. 

No seio dos adversários, ganham destaque nas páginas de Berlanza os teóricos da social-democracia capitaneados por Fernando Henrique Cardoso (cujo pecado principal foi o festival de tributação que arrancou nos seus dois governos e que se prolongou acintosamente na lamentável gestão lulopetralha, ao longo dos últimos 14 anos). Entre os inimigos figuram os já conhecidos ícones do totalitarismo do século XX, a dupla Lenine-Stalin; o pai do nazismo, Hitler, e Benito Mussolini, formatador do fascismo. Entre os adversários aparecem, outrossim, os estatistas tupiniquins conhecidos: à direita, Ernesto Geisel e à esquerda Nelson Werneck Sodré. 

A nova geração de liberais-conservadores brasileiros (e coisa semelhante está a acontecer em outros países latino-americanos como Chile, México, Argentina, Colômbia, Argentina e Peru) lê diretamente os clássicos britânicos, irlandeses e americanos do pensamento liberal-conservador. A redescoberta de Burke pela atual geração brasileira situa-se nesse contexto.

Muito poderiam aproveitar os nossos jovens liberais-conservadores se aprofundassem também no estudo dos doutrinários. Isso lhes permitiria entender o valor do "poder neutro", ou "poder moderador" defendido pelos liberais conservadores brasileiros do século XIX. Essas teses, levantadas inicialmente por Constant de Rebecque (como mostrou o jovem pesquisador mineiro Marco Antônio Barroso na sua tese de doutoramento na UFJF), em face dos conflitos que grassavam no continente europeu, poderiam iluminar novas experiências de parlamentarismo moderado na América Latina, como as que são levantadas no Brasil na atualidade. A velha experiência do "Poder Moderador" do Segundo Reinado não está tão longe das nossas circunstâncias, mesmo que falemos atualmente de instituições republicanas. Valeria a pena reler Rui Barbosa (o da campanha civilista de 1919) sob esse viés. São reptos novos que a jovem geração de liberais certamente enfrentará com coragem e lucidez.

Lucas Berlanza dá continuidade ao liberalismo-conservador que inspirou ao grande Carlos Lacerda, um dos ícones do liberalismo brasileiro. Lacerda foi injustiçado pelo regime militar, que identificou erradamente o inimigo a ser combatido, tendo passado a combater os liberais, como lembra o professor Antônio Paim na obra A querela do estatismo (1ª edição, 1978; 2ª edição, 1994), quando o real inimigo eram os totalitários comunistas mimetizados, após 1985, em vários partidos e movimentos de esquerda revolucionária.

O atual liberal-conservadorismo brasileiro não se colocou contra as mudanças, muito pelo contrário: aposta naquelas que se enraízam na tradição. Insere-se, assim, no seio dessa secular tradição liberal que endossa as "revoluções conservadoras", como a Gloriosa Revolução inglesa de 1688 (cujo grande propagandista foi John Locke) e a Revolução Americana de 1776. O Brasil também conheceu essas "revoluções conservadoras" com o "Fico" de Dom Pedro, em 1822, ou o Ato Adicional de 1841. A nova geração de liberais-conservadores da qual Berlanza é lúcido expoente, aposta também nessas mudanças de longo curso, à maneira da "revolução conservadora" de Margareth Thathcher e de Ronald Reagan, dando continuidade à gesta de estadistas da talha de Winston Churchill e, entre nós, dos Construtores do Império (lembrando o título de conhecida obra de João Camillo de Oliveira Torres, que teve magnífica edição  pala Resistência Cultural).