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sexta-feira, 30 de outubro de 2015

A GRANDE MENTIRA - LULA E O PATRIMONIALISMO PETISTA

Amigos, apresento o meu novo livro: A grande mentira - Lula e o patrimonialismo petista (Campinas: Vide Editorial, 2015, 231 p.).

    Muito se escreveu e se escreve nestes dias acerca do fenômeno do Lulopetismo no Brasil. É algo que marcou a nossa história. Por quê? Trata-se de alguma novidade? Diria que sim, não em termos substanciais, mas apenas, como diria Aristóteles, do ângulo “acidental”: a novidade veio, a meu ver, por causa da intensidade do fenômeno. Como frisei em entrevista recente, "O PT, no Brasil, potencializou o Patrimonialismo". 

      O Partido dos Trabalhadores veio com tudo para tomar conta do Estado e colocá-lo ao seu serviço. Unica e exclusivamente com essa finalidade. Para tornar o Brasil, a sua economia, a sociedade, as manifestações culturais, apenas massa de manobra na construção do "novo príncipe" gramsciano, que garantiria a hegemonia lulopetista para todo o sempre. Somente isso. Foi uma mudança na intensidade da privatização do poder para benefício de uns poucos. Para conseguir esse efeito, o PT constituiu-se numa quadrilha muito bem arquitectada, segundo foi sendo revelado pelo julgamento do Mensalão e pelas atuais investigações da Magistratura, do Ministério Público e da Polícia Federal acerca da Operação Lava-Jato.

       Foi uma obra e tanto de engenharia da corrupção que gerou a corrupção da nossa engenharia, das grandes empreiteiras e da Petrobrás. O PT chegou como um novo mito, salvacionista, sebastianista, que nos tiraria das sombras e nos levaria às alturas iluminadas da Utopia sonhada. Sem esforço. Por obra e graça do carisma do líder. Ele fez reviver, nas almas, a concupiscência orçamentívora de que não é preciso trabalhar para chegar lá. Tudo viria de cima para baixo, como chuva 
benfazeja nesta terra de Santa Cruz, onde "se plantando, tudo dá". Ou tudo viria, como discursava Lula com o macacão da Petrobrás, as mãos sujas de óleo, de baixo para cima, do pre-sal. Tanto faz. O importante era a ausência de esforço individual e a gratuidade da gorda mesada que a mãe natureza nos dava miraculosamente, pelas mãos do Estado empresário, “ex opere operato”, como frisavam os teólogos ibéricos dos séculos XVI e XVII, ou seja, de maneira automática.

        Lula reviveu nos corações o mito do Estado Providência, da "mamãezada", como diz Meira Penna. O Estado, com o auxílio dos seus conselhos técnicos, de acordo à variante pombalina do mito redentor, garante a riqueza da Nação. Logo, é só encostar-se a ele para tudo obter sem esforço. Ou melhor: sem respingo de liberdade. Esse pequeno detalhe. Entregamos o bem maior, a nossa liberdade, para termos o conforto de não pensarmos no futuro, para vermos garantidos os nossos desejos, como eternos submissos à minoridade intelectual, como meninos mimados, como diuturnos dependentes do Pai Estado. Essa foi e ainda é a força do Lula. A encarnação do mito do 
Paterfamílias que a todos cuida e que zela pelo bem-estar dos filhos, conquanto eles não pensem nem divirjam.

       Mas o Mito da ubérrima riqueza que a todos atinge sem esforço e por graça da força da gravidade das benesses cuspidas do trono como bolsas incondicionais, tem um viés sombrio. Mário de Andrade intuiu essa outra cara da moeda do nosso mito da Idade de Ouro. Assim como para os mexicanos o pai previdente é, na narrativa de Octavio Paz, também o "ogre filantrópico" que bate em quem dissente, o nosso herói tem face dupla. Há algo de sombrio na sua figura, nas dobras ontológicas da sua presença: é Macunaíma, o "herói sem nenhum caráter". Lascivo, engambelador, engana as multidões que, diante da força bruta do carisma, se comportam como a mulher frágil, em tudo acreditando e tudo esperando daquele que a tornou presa fácil da sua sedução. Misterioso, brincalhão, assim como ele vem insinuante das florestas e dos sertões, volta sem dar resposta, deixando a seca e a fome como herança. Tudo ficou na mesma. Ou pior do que estava, porque à carência dos iludidos soma-se a desesperança e a raiva dos traídos. E nós, brasileiros, abandonados pela Utopia, ficamos pendurados pagando a conta.

Mas os Mitos, como diz Ortega, não morrem de fora para dentro, mas de dentro para fora. O mito sebastianista está morrendo com Lula e o lulopetismo. Só nos resta descobrir, no fundo dos nossos corações, uma nova razão para a vida coletiva. Qual?
      
       Quando tudo fica nas sombras, quando não enxergamos mais saída, Hegel diz que a razão volta sobre si mesma e descobre no seu interior aquela luz pela qual nos tornamos filhos de Deus, que brilha em todos nós, o sol da inteligência iluminando a nossa liberdade individual, intransferível, trágica. É esse novo mito que está sendo redescoberto nas almas dos brasileiros nestes tempos de agruras. Quando um jovem escritor diz: "Pare de acreditar no governo" (Bruno Garschagen), o que quer transmitir? Ele diz: “Acredite em você!” “Ponha fé no seu interior, na força das suas convicções e, sobretudo, no impulso da sua liberdade que é o bem mais prezado, pelo qual vale a pena viver, morrer e ressuscitar!”

     A questão que está em jogo em face do Lulopetismo é a da liberdade. A sociedade brasileira está acordando para esse detalhe. Conquistamos a "Carta da Cidadania", a Constituição de 1988, como "o avanço do retrocesso", segundo intitulávamos obra coletiva vários amigos na época, em referência aos vícios da nossa Carta Magna. Nada de deveres. Muitos direitos. Para governar, os administradores tiveram de deixar sem regulamentar muita coisa. Era a carta da ingovernabilidade. Também pudera! Até os juros tinham sido tabelados em 12% para "felicidade geral da Nação".

     Mas a conta veio. Como diz o mestre Antônio Paim, "as instituições do governo representativo não caem do céu". Ou como frisava Tocqueville, "precisamos construir o homem político". Não cuidamos, ao longo destes anos de abertura democrática, do aperfeiçoamento das nossas instituições. Conquistamos durante os governos social-democratas a estabilidade econômica. Mas não demos alicerces suficientes ao aperfeiçoamento institucional, de modo a garantirmos o livre rodízio no poder e a autêntica representação de interesses. E a economia ficou sem âncora, tendo voltado a ressurgir as forças do atraso do patrimonialismo provinciano.

E ei-nos aqui, nessa sem-saída institucional, diante de uma Presidência da República enfraquecida pela falta de apoio popular e pelas criminosas pedaladas fiscais, e em face de um Congresso podre pelo clientelismo e sem lideranças, que mal consegue se entender e que pretende disciplinar a nossa vida pública. Felizmente resta uma tênue áurea de luz nesses Magistrados que, ao redor do bravo juiz Sérgio Moro e de alguns dos membros do Supremo, do Ministério Público e de outros tribunais, ainda tentam manter a casa em pé. Resta, como luz que alumbra nas sombras, a imprensa livre, cada vez mais assediada. Restam também as nossas Forças Armadas, que em vã tentativa de retaliação imposta pelos derrotados de ontem, enfrentam ainda hoje as estapafúrdias “Comissões da Verdade”.

         Do jeito em que as coisas estão, a resposta certamente virá das ruas. Da renovação dos protestos multitudinários contra a onda podre e cínica que nos asfixia. A sociedade brasileira já se derramou por ruas e avenidas ao longo destes últimos três anos para pressionar os políticos. E o fará de novo. Enquanto o tempo passa, enquanto os "rios profundos" do que vai por baixo das aparências não emergem, resta-nos o que aconselhava o grande Tocqueville em momentos de turbulência: fiquemos onde estamos, fazendo o que sabemos fazer. E o que sei fazer é escrever e dar aulas. E continuarei a fazê-lo. Alertando os meus alunos. Instigando os meus leitores. Destacando que o momento é grave, porque estamos jogando com o preço incalculável da nossa liberdade.

       Uma última palavra antes da rápida viagem pela obra que ora apresento: quem sou eu? Na casa dos 70, o que posso dizer? O que posso ensinar ao meu filhinho Pedro, de quase 4 anos, à minha filha Vitória, de 40, à minha jovem esposa Paula que me pede para deixar algum testamento espiritual para o nosso rebento?

Amigos, querida família, vou dizer apenas uma coisa: Sou um apaixonado pela liberdade! Filio-me à tradição liberal clássica, whig, à de Locke, Kant, Dom Quixote que enfrentava de peito aberto os moinhos de vento do Patrimonialismo ibérico para libertar e fazer justiça a camponeses indefesos, viúvas e prisioneiros, à tradição de Adam Smith, Madame de Staël, Benjamin Constant, Guizot, Silvestre Pinheiro Ferreira, do visconde de Uruguai, de Dom Pedro II, Sampaio Bruno, Herculano, Tocqueville, Rui Barbosa, Silveira Martins, Assis Brasil, Fidelino de Figueiredo, Miguel Reale com o seu "liberalismo social", de Gilberto Ferreira Paim, de Jorge Bornhausen, de Antônio Paim o mestre que me obrigou, jovem mestrando, a ler sistematicamente os clássicos liberais, me libertando dos dogmas do marxismo vulgar lá pelos idos de 70 do século passado, de Meira Penna com o seu espadachim espírito libertário, de Hayek, Aron, Furet, Françoise Mélonio, Von Mises, de Merquior, de Ubiratan Macedo, de João Carlos Espada, Og Leme, Roberto Campos, Donald Stewart, Otto Morales Benítez e Lleras Restrepo na Colômbia. Junto-me à tradição que hoje inspira a tantos e tantos jovens que lutam por um espaço de liberdade. Filio-me, em síntese, à família espiritual de Tocqueville. Porque entendi que o grande ideal pelo qual vale a pena viver é o da conquista da liberdade para todos, não apenas para uma minoria. Liberdade democrática!

Dividi a minha obra em oito capítulos, destacando, em cada um deles, um aspecto essencial da proposta lulopetista. Muitas e muitas coisas poderia ter adicionado a essas páginas e, de fato, as escrevi em jornais, revistas e blogs. Mas selecionei aqui os aspectos mais marcantes da caminhada do Partido dos Trabalhadores nestes últimos treze anos em que foi submetido, como dizem os anglo-saxões, “à prova da História”. 

No capítulo primeiro, “Avaliação do ciclo lulopetista”, destaco a índole esquizofrênica do PT, dividido, na época das eleições de 2002, entre duas propostas contraditórias: a “Carta de Olinda” e a “Carta do Recife”. Pela primeira, Lula apresentava ao eleitorado o que sempre tinha proposto em eleições anteriores: um programa de socialismo antiquado, amarrado ao modelo cubano. Programa totalitário que, certamente, lhe garantiria a derrota. Pela “Carta do Recife”, obra dos marqueteiros lulistas, o candidato se apresentava como um moderado socialdemocrata que respeitaria os contratos internacionais, os pactos do Brasil em matéria de política externa, a economia de mercado, o funcionamento pleno da oposição, das instituições democráticas e o cuidado para com as liberdades. Com essa plataforma Lula conquistou a classe média e se elegeu. Mas não abriu mão de “fazer o diabo” quando necessário, tirando do saco de maldades do primeiro documento, a “Carta de Olinda”, aquilo que fosse preciso para encurralar oposicionistas, tirar vantagem e fazer crescer a militância com a finalidade de fortalecer os movimentos sociais e amedrontar os adversários. Isso se tornou uma saída com a descoberta do Mensalão. E está sendo posto em prática hoje, quando as águas turvas do Petrolão chegam aos calcanhares do chefe.

No capítulo segundo, “O lulopetismo no seio do neopopulismo latino-americano”, destaco a forma em que o PT inseriu-se, no continente sul-americano, no seio da maré de neopopulismo que se alastrou por estas praias, dando continuidade a tendência presente também em outras regiões do mundo. O neopopulismo é fruto das dificuldades enfrentadas por economias não suficientemente dinâmicas no agressivo mundo globalizado de hoje.  Constitui uma espécie de defesa tacanha dessas sociedades, contra as medidas que precisam ser feitas. Ora, isso acelera as contradições e piora as coisas. Foi o que aconteceu, ao longo dos últimos treze anos, no Brasil, na Venezuela, na Argentina, na Bolívia, no Equador, etc., países pelos quais se derramou como óleo a mancha do “socialismo bolivariano do século XXI”, concebido pelo coronel Chávez na Venezuela e vendido aos seus vizinhos como a grande solução para os problemas do desenvolvimento. Lula, do alto do perpétuo palanque em que subiu após ter sido eleito, discursou entusiasmado apoiando a nova onda que terminou, infelizmente, por piorar as coisas em termos de perda de oportunidades para fazer negócios com o resto do Planeta.

No capítulo terceiro, “O lulopetismo na perspectiva da América Latina: entre a Aliança do Pacífico e o neopopulismo bolivariano”, analiso as oportunidades perdidas pelo Brasil ao longo dos governos petistas, ao ensejo de ter se trancafiado no âmbito do MERCOSUL, tendo deixado de lado a negociação bilateral com países e blocos extracontinentais, reforçando antiquadas posições ideológicas favoráveis à sobrevida do cadáver do comunismo no Foro de São Paulo, criado por Lula e Fidel Castro nos anos 90. Ora, os países latino-americanos que se abriram ao comércio do Pacífico (a região econômica mais dinâmica do mundo), Chile, Peru, México e Colômbia, multiplicaram as suas possibilidades de comercialização e de dinamização das economias nacionais. No decorrer deste ano, com a assinatura, inclusive pelos Estados Unidos, do Tratado do Pacífico, que reúne 40 % da economia mundial, essa tendência se sedimentou. O Brasil lulopetista ficou do lado de fora, solidário com os seus “amigos do peito” do atraso, Argentina e Venezuela.

No capítulo quarto, “As desgraças do intervencionismo no Brasil”, destaco o quanto têm sido nocivos, na nossa história econômica e social, os golpes desferidos pelo Estado Patrimonial contra a livre iniciativa, já desde o século XIX. As agruras do visconde de Mauá decorriam, certamente, do fato de o empreendedor ter cogitado o funcionamento de empresas independentes dos “intendentes do rei”, em que pese o fato de o soberano, Dom Pedro II, ser uma figura de formação liberal, mas com um fardo muito grande: a herança patrimonialista ibérica. Ora, nessa luta de forças encontradiças terminou perdendo Mauá e a dinâmica da nossa livre iniciativa. No período republicano, submetido à influência perversa do cientificisismo positivista, essa tendência se tornou obstáculo quase intransponível para o livre-empreendedorismo e o crescimento da economia. O fenômeno da “desindustrialização” que contribui hoje ao quadro desolador da nossa economia, só se agravou nesse clima de estatismo improdutivo e de Cartorialismo vácuo que o PT, sob Lula e Dilma, potencializou de forma exponencial, culminando com as criminosas “pedaladas fiscais”, que não são outra coisa do que um saque desonroso contra a riqueza dos brasileiros, praticado pelo que de mais improdutivo há no nosso panorama institucional: a corrupta burocracia patrimonialista que tomou conta do Estado.

No capítulo quinto, “Um caso típico de voo de galinha: as políticas públicas em educação de 64 até 2014”, analiso as políticas educacionais da era Lula e Dilma, à luz do processo de massificação do ensino superior que tomou conta do país após o Ciclo Militar. Se bem os militares conseguiram dinamizar a extensão do ensino universitário, descuidaram, contudo, o ciclo básico, fato que se projetaria de forma negativa nas etapas subsequentes da nossa caminhada educacional. Nos governos socialdemocratas de Fernando Henrique Cardoso conquistou-se a racionalidade quanto aos repasses de verbas para o ensino fundamental e médio. Mas não houve grandes avanços no tocante à diversificação do sistema de ensino superior, muito engessado num modelo único de universidade, notadamente no setor público. Já nos governos petistas, o açodamento populista tomou a dianteira por cima dos rigores do planejamento racional. Tudo passou a ser feito a toque de caixa, de acordo com o jargão do ”nunca na história deste país”. Os critérios de avaliação dos vários níveis de ensino ficaram confusos, não houve uma clara política para com o setor privado (considerado como inimigo pelos petistas, embora precisassem dele), os preconceitos ideológicos passaram a ser o clima do debate no meio acadêmico e tudo terminou desaguando no desastre da “Pátria Educadora”       que fecha escolas, corta verbas essenciais e frustra gerações pelo país afora.

No capítulo sexto, “O marxismo gramsciano, pano de fundo ideológico da reforma educacional petista”, destaco que o marco conceitual a partir do qual os petistas pensaram a educação foi o da chamada “revolução cultural gramsciana”. Tudo foi imaginado, em termos de cultura e educação, para garantir a hegemonia do “novo príncipe”, o PT, que garantiria a efetiva revolução proletária no Brasil. Tratou-se de uma desastrada operação de enquadramento da realidade nos conceitos estreitos do comunismo pensados por Antônio Gramsci para a Itália. Tudo terminou cedendo às prioridades ideológicas. O que deveria ser alçado às alturas seria o Partido dos revolucionários de plantão, os militantes do PT e seus coligados. O resto que se danasse. O país que fosse culturalmente para o brejo. Era necessário reescrever a nossa história, agora ao redor de “heróis orgânicos” do proletariado, como facínoras do tipo Marighela e outros traidores da Pátria.

No capítulo sétimo, “A Rússia, a modernização brasileira e a saída do patrimonialismo”, traço um paralelo entre os processos modernizadores russo e brasileiro, ao longo dos séculos XIX e XX. Se o Brasil foi denominado por Gilberto Freyre de “Rússia dos trópicos” pela sua imobilidade e o seu paquidermismo burocrático, as semelhanças estendem-se à forma pela qual foi concebido, já no século XVIII, o processo modernizador do Estado nos dois contextos, à sombra do cientificismo iluminista que marcou as Reformas Pombalinas. Ora, estas processaram-se de forma semelhante a como se deu na Rússia czarista a modernização do Estado na época de Anna Ivanovna, sendo o médico cristão novo português Antônio Nunes Ribeiro Sanches, radicado em Paris, o consultor comum de Pombal e da Czarina na reforma dos estudos superiores e da alta burocracia.

Um traço comum ao governo Putin e aos governos lulopetistas: ambos fizeram das empresas de óleo e energia a ponta de lança para reforçar o poder do Estado Patrimonial. Mais uma semelhança do nosso Patrimonialismo com o russo. De qualquer forma, a saída do Patrimonialismo parece difícil em ambos os contextos. Destaco que Antônio Paim (O patrimonialismo brasileiro em foco, organização de Antônio Paim, Campinas: Vide Editorial, 2015, 99 p, com a colaboração de Antonio Roberto Batista, Paulo Kramer e Ricardo Vélez Rodríguez) chama a atenção para a formação de uma nova classe média na Rússia, o que talvez ajude à sociedade a fazer diminuir a força estatizante da etapa imediatamente posterior à queda do comunismo.

No capítulo oitavo, “A luta contra o terrorismo em época de bandalha populista” alerto para o fato de o Brasil da era lulopetista não ter-se preparado a contento para sediar grandes eventos internacionais como as Olimpíadas de 2016, em decorrência do fato de não terem sido tomadas as medidas necessárias, de caráter estratégico, para blindar o país contra o terrorismo.

O primeiro fato que deve ser lembrado é que o PT contingenciou o orçamento do Exército, no que tange à efetiva manutenção de uma política eficaz de vigilância de fronteiras, ao ensejo da ampliação do Projeto Sivan – Sisfron. De outro lado, tanto no que se refere à cultura e à educação fundamental, quanto no que tange à economia e à variável política, não foram dados os passos necessários, deixando o país numa zona cinza de instabilidade que preocupa. A começar porque para petistas e coligados o terrorismo ainda não é considerado crime. Ora, a legislação que poderia mudar essa situação está tardando a ser formalizada. De outro lado, porque o PT sempre flertou com a instabilidade e a participação marginal dos chamados “movimentos sociais”. Não é de hoje a preocupação de setores da sociedade brasileira com o fato de o Partido dos Trabalhadores manter nexos com o crime organizado, como foi verificado no Estado de São Paulo, onde políticos petistas foram identificados em atividades marginais conjuntas com o PCC.

A respeito da falta de uma estratégia contra o terrorismo, destaco na minha obra: “Esse cenário piorou com a chegada do PT ao poder, cuja única preocupação consistiu, desde o começo, em garantir a hegemonia partidária e o aniquilamento da oposição. O Brasil perdeu o rumo do médio e do longo prazo. Falta, na atual conjuntura, um tipo de reflexão institucional de caráter estratégico. Tudo se decide no embalo do vaivém da política partidária, sem que se leve em conta o horizonte de interesses permanentes da Nação, para utilizar um conceito que foi posto em circulação pelos liberais do período imperial. Os núcleos de reflexão estratégica existentes na sociedade civil simplesmente não são consultados pelo governo. Ele se pauta, única e exclusivamente, pelas prioridades dos marqueteiros em momentos de eleição, ou pelas preocupações hegemônicas do partido do governo. (...) É evidente o risco que decorre dessa falta de orientação estratégica num mundo global convulsionado pelo terrorismo islâmico” (p. 196).


Concluo a minha obra com as seguintes palavras que destacam a urgência da nossa mudança de atitude, em face do estatismo rasteiro que tomou conta do país: ”O cenário, como se vê, é complicado e não sairemos dele sem um grande esforço pessoal e coletivo. Escrevia recentemente o prêmio Nobel Mário Vargas Llosa (...) que as nações optam, às vezes, pelo haraquiri político, tomando decisões erradas que comprometem o bem-estar de futuras gerações. O Brasil, infelizmente, está nesse caminho, e não será fácil sair dele. Mas não temos outra escolha se quisermos legar aos nossos filhos um país habitável e não um cenário de conflito e destruição” (p. 210). 

sexta-feira, 16 de outubro de 2015

COMO SUPERAR O MARASMO EM QUE MERGULHAMOS: O PATRIMONIALISMO BRASILEIRO EM FOCO


Nestas épocas confusas de sobe e desce do dólar, de esgotamento da popularidade da Dilma e de luta do PT para, através dos seus ministros fiéis no STF, tentar melar o impeachment da presidente invadindo a seara do Legislativo, é importante não se perder nos detalhes dos males que afligem o Brasil.

Torna-se necessário identificar os "rios profundos", como diria o escritor peruano Alcides Arguedas (1879-1946) que correm embaixo da terra dos fatos cotidianos. E esses "rios profundos" tiveram um nascedouro, no Brasil, na herança patrimonialista ibérica. O desaguadouro deles é o reforço do Estado patrimonial, na mais concentrada manifestação do mesmo no mundo contemporâneo, nos regimes totalitários. Estes só se tornaram possíveis, como lembra Hannah Arendt, no seu clássico The Origins of Totalitarianism (1951), pela incorporação da hodierna tecnologia a serviço do poder discricionário. Ora, o projeto lulopetralha caminha nessa direção. O ideal é constituir "um poder não controlado por leis", como afirmava Lenine.

É necessária, portanto, a prevenção contra o totalitarismo no Brasil. Esta feição de poder total constituiria a etapa superior do patrimonialismo tupiniquim, potencializado ao longo dos últimos 13 anos pela estratégia lulopetista.

Insere-se no contexto de prevenção contra os riscos totalitários da evolução do nosso patrimonialismo, a obra organizada por Antônio Paim (1927) sob o título de:  O Patrimonialismo brasileiro em foco  (com a colaboração de Antônio Roberto Batista, Paulo Kramer e Ricardo Vélez Rodríguez. Campinas: Vide Editorial, 2015, 99 páginas). A parte maior da obra é do mestre Antônio Paim. Os co-autores agimos como coadjuvantes, discutindo com ele o texto original, da sua lavra, e fazendo alguns acréscimos. Concentrar-me-ei nesta breve resenha no resultado final do debate, cuja redação definitiva foi obra do Paim.

A obra se situa no contexto do que Aristóteles denominava de "política possível", excluindo como irrelevante a perspectiva do ideal que não teria chances de realização. Assim, da rápida exposição do conteúdo da obra pode-se extrair um roteiro prático para enfrentar o Leviatã Patrimonialista no Brasil.

Eis o sumário da obra: Capítulo I - A questão do patrimonialismo: 1 - Definição de patrimonialismo e as suas origens. 2 - Características e singularidades do patrimonialismo brasileiro. Capítulo II - A sobrevivência da estatização brasileira e como enfrentá-la: 1 - Existiriam outras estratégias além da privatização? 2 - A questão portuária. 3 - Encontrar o caminho para soerguer a indústria. Capítulo III - Ensinamentos da privatização russa: 1 - Reformas econômicas na Rússia. 2 -  Em que medida as reformas econômicas teriam enfraquecido o patrimonialismo. 3 - Os processos que mereceriam ser acompanhados na Rússia. Capítulo IV - A privatização na Comunidade Européia: 1 - Ideia sumária das linhas gerais da construção européia. 2 - O difícil caminho da desestatização. 3 - Avanços na integração econômica. 4 - Avanços na integração política. 5 - A crise financeira e a reforma imprescindível (bloqueada pela França). Capítulo V - Novo pacto federativo: 1 - Proposição de Jorge Bornhausen. 2 - Dimensão fundamental do federalismo. Capítulo VI - Efeitos da ascensão das igrejas evangélicas: 1 - Nota introdutória. 2 - Texto de pesquisa de Anthony Gill (Departamento de Ciência Política da Universidade de Washington, em Seattle, USA): "Weber na América Latina: o crescimento protestante está permitindo a consolidação do capitalismo democrático?"

Destacarei, nesta resenha, três aspectos que me parecem prementes para colocar sobre o tapete a questão de como derrubar o Patrimonialismo no Brasil. Em primeiro lugar, a dificuldade de se falar em privatização no meio brasileiro. Em segundo lugar, a questão da privatização na Rússia e os seus ensinamentos para o Brasil. Em terceiro lugar, as lições que podem ser tiradas da privatização na Comunidade Européia. Tecerei, na parte final, algumas considerações práticas acerca da forma em que poderemos superar o patrimonialismo brasileiro, à luz das ideias expostas na obra.

Antônio Paim selecionou os dois casos mencionados no parágrafo anterior como pontos para refletir sobre o Brasil, dadas as semelhanças existentes nos processos modernizadores russo e europeu ocidental, em face da realidade brasileira, tendo como objeto formal a questão da saída do Patrimonialismo. Ora, é claro que o processo modernizador brasileiro encontrará elementos que iluminem o caminho à luz desses dois casos.

Primeiro, porque a Rússia é a encarnação de um dos mais fortes Estados patrimoniais da história, consolidado no contexto de longa experiência imperial com o czarismo e continuado na saga republicana comunista (muito curiosamente, numa sequência de etapas semelhantes às encontradas na nossa história, servatis servandis, claro, porque somos uma nação jovem em comparação com a milenar história russa). Mas, o certo é que tanto aqui como lá sucederam-se duas etapas: imperial e republicana. E, como tenho destacado em alguns trabalhos meus, os processos modernizadores russo e luso-brasileiro se afinaram no momento pombalino e de Ana Ivanovna, na segunda metade do século 18, com o médico judeu-português Antônio Nunes Ribeiro Sanches (1699-1783), radicado em Paris, agindo como assessor do primeiro ministro de Dom José I e da Czarina Ivanovna.

O segundo motivo (da serventia, para nós, do estudo do processo europeu ocidental), decorre do fato de termos sido tributários da trajetória da Europa Ocidental, no que tange à consolidação das nossas instituições, notadamente a partir da influência francesa, tanto no que nos atravanca, como é a sina do estatismo, como no correspondente ao que nos poderia dinamizar rumo ao desenvolvimento pleno, como seria a adoção de uma proposta liberal. Neste caso, o Brasil aprendeu mais, ao longo dos séculos 19 e 20, com a trajetória do Liberalismo Doutrinário francês do que com as ideias liberais surgidas nas Ilhas Britânicas. Pois o nosso Direito, como diria Hegel, andou na mesma trilha do denominado "Direito Germânico", não certamente pelo caminho do "Direito Consuetudinário" que vingou na Inglaterra. Para nós, brasileiros, como para um pensador europeu continental como Hegel, o Direito inglês avançou sempre pela contramão, indo do particular para o geral, enquanto a nossa tradição jurídica caminhou em sentido inverso, do geral para o particular.

Desenvolverei, a seguir, os três aspectos selecionados.

1 - A dificuldade em se falar de privatização no meio brasileiro.

Apesar das bem-sucedidas experiências de privatização ensejadas pelos governos de Fernando Henrique Cardoso, após 13 anos de domínio lulopetista parece que a principal consequência foi a desmoralização que foi lançada sobre os processos de privatização. Isso notadamente ficou claro no contexto do Petrolão, centrado, todo ele, no desvio de dinheiros destinados às obras de investimento da estatal brasileira, provenientes da iniciativa privada, para engordar as arcas do PT e dos partidos coligados, contando com a ação de eficientes e corruptos administradores públicos, possibilitando, também, o enriquecimento ilícito da cúpula político-partidária.

A respeito desse fenômeno, destaca Antônio Paim: "No Brasil, como na Rússia o setor energético em mãos do Estado revela-se como pilastra importante para a sobrevivência do patrimonialismo. Entre nós, acresce-se a circunstância de que a privatização, abrangendo outras atividades, não assumiu dimensões equivalentes à efetivada pelos russos. Nem por isto, certamente, o papel do setor ora considerado é menos relevante. A particularidade do caso brasileiro decorre do fato de que o país não chegou a privatizar a Petrobrás, nem a privatização das distribuidoras (estaduais) enfraqueceu o monopólio exercido pela Eletrobrás. A privatização em causa ainda teve o efeito perverso de transferir às empresas privadas o ônus da intermitência de fornecimento das geradoras (estatais), que provoca sempre grandes desconfortos para os consumidores. A ideia de privatização, que por si já não alcançava grande popularidade, viu-se, graças a esses incidentes, ainda mais combalida. Diante dessa realidade e da continuidade da administração petista, seria quixotesca a insistência na privatização" (pg. 39).

No entanto, seria ainda possível dinamizar algumas variáveis rumo à desestatização almejada, retomando o marco regulatório introduzido por Fernando Henrique (e deformado por Lula) para a exploração de petróleo e aplicando-o de volta tanto a esta variável como em relação à energia elétrica. Essa medida, frisa Paim, "talvez possa alcançar apoio popular capaz de constranger o governo e obrigá-lo a renunciar aos seus propósitos". Considera ainda nosso autor que tudo indica que a mudança efetivada pelos governos petistas "haja facilitado a prática da corrupção, elevando-a a níveis inimagináveis. Existe ainda a probabilidade de que, no âmbito da Eletrobrás, se revelem falcatruas idênticas às da Petrobrás" (pg. 40).

Outro terreno no qual se poderia reforçar a tendência privatizante, seria no correspondente aos portos, submetidos no ciclo lulopetista a um processo de "recentralização", com a finalidade de exorcizar o sadio processo de controle dos mesmos pela iniciativa privada. O recomendável, frisa Paim, "seria que se buscasse transferir à iniciativa privada os investimentos requeridos pela incessante modernização da atividade, na medida em que o Estado teria que direcionar os recursos arrecadados para o atendimento de seus encargos intransferíveis, a exemplo da melhoria médico-hospitalar e da segurança pública" (p. 40).

Seria, ainda, possível, segundo Paim "encontrar o caminho para soerguer a indústria". Considera o nosso autor que a tentativa de "desindustrialização" é algo querido pela elite lulopetralha como forma de reforçar o patrimonialismo. A respeito, o mestre explica os riscos que a indústria forte tem para esse modelo de dominação, que não admite competidores que ameacem o poder diuturno da burocracia político-partidária. Eis as suas palavras a respeito: "A premissa básica do enfraquecimento do Estado Patrimonial consiste em que, tratando-se de uma estrutura mais forte que a sociedade, o seu enfraquecimento dar-se-á na medida em que personagens oriundos do seio da sociedade obtenham condições de favorecer-se a nível de poder enfrentá-lo. Desse ponto de vista, o setor industrial é ente privilegiado para desempenhar tal papel. Portanto, torna-se uma questão relevante encontrar os meios de pôr termo à progressiva redução do setor industrial na geração do PIB" (p.  40-41).

Medidas que ajudariam à indústria a se fortalecer seriam, em primeiro lugar, o alívio da estúpida carga tributária a que é submetido o setor pelo governo. Em segundo lugar, a luta contra o protecionismo exacerbado. Em terceiro lugar, a diminuição dos índices de nacionalização (presente, por exemplo, nas exigências das encomendas da Petrobrás). Em terceiro lugar, a extinção da absurda preferência das políticas públicas pela importação de know how. Em quarto lugar, a identificação, pelas Universidades e centros de pesquisa, dos "setores de ponta nos quais o Brasil poderia conquistar nichos de mercado internacional" (p. 42). Por último, o abandono, por parte do empresariado, da confortável atitude de acomodação às práticas protecionistas, que o colocam como um pedinte perante o Estado, suscetível de ser por este cooptado através das benesses oferecidas via BNDES. Os empresários que caem na esparrela patrimonialista sonham em se verem convertidos, da noite para o dia, em "campeões de bilheteria". Dessa forma, a meu ver, os governos petistas conseguiram subordinar aos seus espúrios interesses as grandes empreiteiras nacionais, que passaram a ser identificadas como "autoras intelectuais do crime" do Petrolão, quando foram, na verdade, auxiliares e vítimas dos agentes públicos corruptos.

2 - A questão da privatização na Rússia e os seus ensinamentos para o Brasil.

Antônio Paim (que estudou na prestigiada Universidade Lomonosov de Moscou nos anos 50) conhece em profundidade a história cultural, política e econômica da Rússia. Segundo ele, as reformas liberalizantes acontecidas no grande país europeu-asiático foram inspiradas pelo jovem economista russo Yegor Timurovich Gaidar (1956-2009) que desempenhou o cargo de primeiro ministro em 1992 e que, no sentir de Jeffrey Sachs (da Universidade de Colúmbia) era o "líder intelectual de muitas das reformas políticas e econômicas da Rússia".

Contrariamente ao que muitos pensam, houve amplo processo de privatização, inclusive de empresas de petróleo, após a queda do regime comunista. Essas privatizações, claro, foram aproveitadas pelos membros da antiga nomenclatura. Mas, com o decorrer dos anos, o governo russo passou a enfrentar o fenômeno, no contexto da luta conhecida como combate aos "oligarcas" efetivada por Putin. Ele firmou a exploração do petróleo e gás ao redor da burocracia do Estado patrimonial. Mas, paralelamente a esse fato, surgiram grupos de empresários que, na área de serviços, consolidaram a presença e a atuação, no seio da sociedade, de uma crescente classe média. É a partir desse segmento social que aparecem focos centrados na assimilação e na difusão de idéias e valores liberais. Paim louva-se de estudo realizado por Vlaldimir Mau, segundo o qual Yegor Gaidar teria sido o inspirador dessa dinâmica evolução da nova classe média russa.

Em face dessas constatações, conclui Paim, não se deveria menosprezar o fato do crescimento da classe média russa; a respeito, escreve: " (...) não perder de vista que o objetivo primordial perseguido diz respeito ao que visariam as medidas tendentes a enfraquecer o Estado patrimonial. [Essas medidas] devem estar orientadas precipuamente à criação de grupos sociais extensos, interessados na economia de mercado. Como temos enfatizado, a suposição de que poderia ter surgido estrutura governamental democrática na Rússia é assumida apenas por uma parte da ciência política norte-americana, talvez simplesmente apressada em justificar o empenho de certos círculos do Partido Democrata em restaurar o clima da Guerra Fria. A melhor tradição nessa esfera situa-se do lado dos que levam em conta o peso das tradições culturais, cujo coroamento pode ser apontado no livro de Samuel Huntington (1927-2008), O choque de civilizações (1996). De sua parte (...) Henry Kissinger tem advertido para o equívoco dessa política. Assim, além do que pode levar-nos a uma posição mais realista sobre o significado e esperanças a depositar na privatização, a Rússia é bem um exemplo de que não devemos acalentar maiores ilusões no que diz respeito à criação, entre nós, de um sistema representativo definitivamente consolidado, como acontece na Europa e nos Estados Unidos" (pgs. 63-64).

3 - As lições que podem ser tiradas da privatização na Comunidade Européia.



A dinâmica econômica da Comunidade Européia conhece, na atualidade, dois modelos em face da questão central que afeta às economias dessa parte do mundo, no que tange ao regime previdenciário. As duas alternativas em questão são a americana e a européia.


A alternativa americana centra-se nos fundos de pensão alimentados pelas contribuições dos trabalhadores e rigorosamente geridos dentro da dinâmica do mercado, sob supervisão estatal, mas sem interferência direta do governo. A esse modelo aderiram Inglaterra, Alemanha e Holanda que conseguiram gerir a contento os problemas ensejados pelo Welfare. É um modelo liberal que se retroalimenta pelo crescimento da produção, libertada dos encargos da pesada burocracia estatal e com liberdade de iniciativa que permite incorporar ao trabalho miles de imigrantes.

A alternativa européia (denominada de "modelo social europeu" ou simplesmente de "Welfare"), tem como traço comum o financiamento mediante contribuições correntes, chamado de "pay as You go", com a intermediação de pesado esquema burocrático gerido pelo governo de Bruxelas e atendendo às demandas dos poderosos sindicatos que não admitem negociações que diminuam os benefícios. O modelo foi repensado por Alain Juppé, ao ensejo da crise de insolvência do sistema previdenciário dos últimos anos. As medidas recomendadas por este consistiram em aumentar a idade requerida para conseguir a aposentadoria, aumentar o valor das contribuições incluindo os aposentados entre os contribuintes e eliminar situações especiais no que tange aos benefícios. A maioria dos países europeus ficou vinculada a este modelo, o que explica a extensão da crise e o seu agravamento ensejado pela inadimplência grega e pelos miles de imigrantes do Médio Oriente e da Africa, que buscam os benefícios do Welfare europeu, sem contar com uma economia plenamente liberal e dinâmica que garanta postos de trabalho a todos os refugiados.

A respeito do imbróglio que atualmente afeta a maior parte das economias europeias por conta da crise previdenciária, escreve Paim: "A experiência indica que reforma de tal magnitude precisa contar com o apoio dos sindicatos de trabalhadores, o que se deu apenas na Holanda e na Alemanha. Na Inglaterra, Mme. Thatcher valeu-se do enfraquecimento das trade unions para impor a reforma. Não há qualquer indício de que possa haver reversão de expectativas. Na França, o Partido Socialista e os sindicatos têm bloqueado sistematicamente qualquer reforma mais profunda, posição política que exerce enorme influência na maioria dos países membros da Comunidade. O caso da Grécia parece emblemático. A impressão que se recolhe é de que a população está disposta a pagar para ver, isto é, se o país pode simplesmente dar o calote e sobreviver à hecatombe que inevitavelmente se seguirá" (pg. 80-81).

Conclusões. Explicitarei aqui algumas considerações que me ocorrem em face da análise da obra e tendo como norte a superação do patrimonialismo no Brasil.

1 - Permanência de um ranço patrimonialista em alguns países (na França, notadamente) e a dificuldade de superarmos velhas práticas patrimonialistas no Brasil.  

A verdade é que o estatismo francês pesa no contexto da Comunidade Européia. Ele caracteriza-se, frisa Paim, "pela posse direta de empresas e da maneira como o Estado instaurou monopólios em suas mãos (...). O que parece perturbador seria o fato de que, louvando-se de uma comprovada eficiência tornou-se impeditivo da efetivação das reformas do Welfare. A par disto, os custos de manutenção da chamada  burocracia de Bruxelas transformaram-se num ônus adicional às dificuldades crescentes que chegam a ameaçar a sobrevivência da Comunidade Européia - sem favor a mais significativa experiência vivida pelo Ocidente nos tempos modernos. (...). De uma certa forma, o papel catalisador, na sociedade, da burocracia estatal veio a ser abençoado pelo liberalismo doutrinário. Trata-se, portanto de uma longa tradição que certamente terá resquícios do velho patrimonialismo. Requer portanto que a Comunidade invente uma forma original de enfrentar o problema. Talvez o aprofundamento da crise atual os force a encontrar solução factível" (pg. 81-82). 

Ora, se na Europa Ocidental, onde houve plena tradição de Feudalismo ainda há traços de patrimonialismo, é claro que esta tradição não se extingue por arte de magia, mas por força de um processo diuturno de maturação econômica, política e cultural. No Brasil teremos, certamente, que lutar ainda muito para vermos superada a cultura política do patrimonialismo que ainda inspira a classe política e justifica a intervenção desproporcionada do Executivo na gestão do Estado.

2 - Sucesso da Política Agrícola Comum, que levou ao racional abastecimento da Comunidade Européia e à modernização do sistema. Necessidade de reforçar, no Brasil, as políticas modernizadoras do agronegócio.

Afora o Welfare que, como vimos, apresenta hoje pontos difíceis de serem equacionados na Europa Ocidental, o que certamente deu certo foi a modernização da economia agrícola e a instauração, nela, das leis do mercado, mantendo políticas subsidiárias onde se julgasse necessário. 

Em decorrência da adoção dessa política moderada e decididamente modernizadora, como frisa Paim, "(...) a produtividade agrícola elevou-se de forma verdadeiramente espantosa. Confrontando a Europa dos 6 (Alemanha, Bélgica, França, Itália, Luxemburgo e Holanda) com a Europa dos 15 - isto é, o período que vai dos anos sessenta aos fins da década de 80 e começos da seguinte - o rendimento médio da cultura de trigo paticamente dobrou e, no caso do milho, o incremento foi de 50%. Aumentos da ordem de 50% registram-se também na produção leiteira. (...) O objetivo central da Política Agrícola Comum (PAC) é assegurar garantia de abastecimento. Embora uma das conquistas primordiais da Comunidade haja consistido na manutenção da paz, os traumas experimentados durante as duas guerras mundiais em matéria de abastecimento pesam nesse tipo de política. A par disto, [o objetivo é, também] alcançar a obtenção de preços estáveis para agricultores e consumidores, conjugar a atividade com a proteção do meio ambiente e, ainda, garantir a sobrevivência de pequenas comunidades, evitando ao mesmo tempo o aumento da disparidade de renda no confronto com as zonas urbanas" (pg. 72-73). 

No Brasil, a definitiva modernização do agronegócio constitui ponto importante para a superação da tradição patrimonialista, que ainda se agarra aos chamados "movimentos populares" como o MST. Ora, este, de mãos dadas com movimentos internacionais como "Via Campesina", ataca frontalmente essa realidade que sustenta de forma heroica as contas públicas, tremendamente desorganizadas na era lulopetista. 

O agronegócio constitui, hoje, centro de luta contra a tradição patrimonialista. É um campo que deve ser reforçado a fim de que, com a indústria, sejam criados espaços de liberdade e de independência em face do poder central. O agronegócio encontrará, sem dúvida, na análise do caso europeu, elementos de inspiração para aperfeiçoar as políticas ambientalistas, sem prejuízo da produtividade tradicional do setor.

3 - As políticas previdenciárias no Brasil e o que podemos aprender do exemplo europeu. 

A primeira lição que decorre do exemplo da Europa Ocidental em face da nossa tradição patrimonialista é que não é fácil superá-la de vez. Em cada contexto é necessário encontrar os elementos que podem ser dinamizados. O caso do Welfare europeu certamente pode nos iluminar no que teremos de fazer para equacionar o problema previdenciário no Brasil. Os sindicatos não podem ficar de fora, somente apresentando dificuldades, como se tornou praxe à luz da retórica petista. De outro lado, políticas públicas de distribuição de favores sem nenhuma contrapartida de parte dos beneficiários (como a bolsa família, por exemplo), criam mais problemas do que resolvem. 

No caso das políticas previdenciárias, certamente seria positivo se no Brasil os responsáveis por elas se aproximassem mais do modelo norte-americano, como fizeram Alemanha, Holanda e Inglaterra. Mas o que certamente fica claro é que a adoção da economia de mercado, o controle sobre o gasto público e a liberalização de trocas foram fatores que agiram de forma muito efetiva na superação de velhas praxes patrimonialistas, como as que atravancavam o desenvolvimento da Espanha e de Portugal. As políticas de austeridade, notadamente neste último país, evidenciam que, quando as autoridades decidem fazer frente ao problema do gasto público descontrolado, os resultados aparecem mais rápido do que se esperava e sobre bases efetivamente confiáveis.

4 - A superação das diferenças econômicas entre regiões na Europa Ocidental e a discussão brasileira sobre o novo pacto federativo. 

O Brasil recebeu importante legado dos que construíram as instituições políticas no século 19, superando o risco do separatismo que, aliás, pulverizou o velho Império espanhol em múltiplas repúblicas onde a norma era a instabilidade. Contudo, como adverte Paim, é necessário sedimentar a nossa unidade nacional, mediante a superação das disparidades econômicas entre as regiões. A respeito, frisa o nosso autor: "Superar os grandes desníveis entre regiões do país, diz respeito a proporcionar uma base sólida - e de fato definitiva - para a unidade nacional" (pg. 86).

Neste ponto, o exemplo da Comunidade Européia pode nos ajudar, e muito. A superação das desigualdades regionais, esse foi um ponto diretamente atacado pelos dirigentes europeus e nessa batalha se engajaram ativamente as forças políticas dos países membros. Em relação a este ponto, Paim escreve: "A superação das diferenças econômicas entre regiões constitui um dos principais programas de que [a Comunidade Européia] se ocupa. A Europa compreendida pela Comunidade, para a efetivação do programa em apreço, acha-se subdividida em regiões. Em cada uma delas, identifica-se a comunidade administrativa que desempenha (ou pode desempenhar) o papel de elemento catalisador. Depois, avaliar se as vocações locais acham-se adequadamente identificadas, sobretudo com vistas a averiguar a existência de possibilidades inaproveitadas" (pg. 87).

Trazendo o debate para o Brasil, no contexto da discussão do que o ex-senador Jorge Bonrhausen, do PFL, denominava de "Novo Pacto Federativo", Paim frisa que seria possível estabelecer um mecanismo de avaliação das razões preponderantes nas desigualdades regionais. A propósito, escreve: "Trata-se, sem dúvida, de uma questão que precisaria ser amadurecida, a começar interessando em debatê-la com as lideranças dos estados fronteiriços e algum dos estados do Nordeste onde se pudesse balancear, de modo isento, as razões pelas quais permanece insuperado o atraso tornado secular" (pg. 87). 

5 - Estudo sistemático dos nossos clássicos do pensamento político, entre os quais se destaca a obra de Antônio Paim.

O pensamento político deste autor já começou a inspirar as jovens gerações no debate em torno à superação do patrimonialismo entre nós, com propostas de inspiração liberal e superando o cientificismo marxista que nos afoga. Pensadores de outros países destacaram-se na proposta de soluções para os graves problemas que deveriam ser enfrentados. Sem as análises liberais de Friedrich Hayek (1899-1992), Margareth Thatcher (1925-2013) não teria escrito a sua obra A Arte de Governar, nem teria efetivado as reformas conservadoras que marcaram a sua era na Grã Bretanha. Sem Anthony Giddens (1938) os trabalhistas britânicos não teriam conseguido superar o vezo estatizante a que ficaram presos durante décadas e não teriam efetivado as reformas que levaram adiante,  no contexto da "terceira via" de Tony Blair. De forma semelhante, sem as propostas práticas e as análises acuradas de Irving Kristol (1920-2009) as políticas neo-conservadoras não teriam sido formuladas nos Estados Unidos nas duas décadas anteriores. 

O pensamento de Antônio Paim concentra-se, a meu ver, ao redor de três eixos: 1 - O patrimonialismo brasileiro. 2 - O cientificismo marxista, o socialismo e a social democracia. 3 - O pensamento liberal. 

O eixo correspondente ao patrimonialismo brasileiro foi abordado pelo autor nas suas obras A querela do estatismo (1ª edição, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1978; 2ª edição, acrescida do subtítulo: A natureza dos sistemas econômicos: o caso brasileiro. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1994), Momentos decisivos da história do Brasil (1ª edição, São Paulo: Martins Fontes, 2000) e O relativo atraso brasileiro e a sua difícil superação (São Paulo:Senac, 2000).

O eixo relativo ao cientificismo marxista, ao socialismo e à social democracia foi abordado nas obras intituladas: Marxismo e descendência (Campinas: Vide Editorial, 2009), Liberdade acadêmica e opção totalitária (São Paulo: Artenova, 1979), A Escola cientificista brasileira (Londrina: Cefil, 2003).

O eixo relativo ao pensamento liberal encontra-se desenvolvido nas seguintes obras: Evolução histórica do liberalismo (Belo Horizonte: Itatiaia, 1987, em colaboração), Evolução do pensamento político brasileiro (Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1989, organizador em colaboração com Vicente Barretto), A agenda teórica dos liberais brasileiros (São Paulo: Massao Ohno / Instituto Tancredo Neves, 1997), História do liberalismo brasileiro (São Paulo: Mandarim, 1998). O liberalismo social: uma visão histórica (São Paulo: Massao Ohno, 1998, em colaboração com José Guilherme Merquior e Gilberto de Melo Kujawski). Como pano de fundo do estudo das doutrinas políticas na formação cultural brasileira, o autor organizou o Curso de Introdução ao Pensamento Político Brasileiro, que contou com duas edições: a primeira, da Editora da Universidade de Brasília, 1982, em 7 volumes e a segunda, da Editora da Universidade Gama Filho, 1995 em 13 volumes.

quinta-feira, 15 de outubro de 2015

O PATRIMONIALISMO DILMISTA


Este artigo foi publicado pelo jornal O Estado de São Paulo com o título de: "Patrimonialismo em comodato" [pg. A2], na edição de 14/10/2015.

O Brasil experimenta, nestes tempos confusos de dólar em disparada e de popularidade presidencial em queda vertiginosa, um estranho “governo em comodato”, segundo o jornal O Estado de S. Paulo  (“O Ministério do contubérnio”, 4 de Outubro). O título desse editorial inspirou-me para este comentário. Pois esse “governo em comodato” é expressão de algo mais profundo: o “patrimonialismo em comodato” que hoje é praticado no Brasil. Consiste em administrar o Estado como bem de família, mas passando a outro ou a outros o ônus do governo, bem como as benesses dele decorrentes. Essa é, aliás, uma variante de fenômenos mais largos, encontradiços na velha tradição política ibero-americana: o “patrimonialismo estamental” e o “patrimonialismo parental”.

O “patrimonialismo estamental” tem longa vida na cultura política brasileira. O modelito de gestão do público como privado, no Brasil do ciclo republicano, terminou dando ensejo a eficiente estamento burocrático que agia como colchão em que se amorteciam os conflitos da sociedade cooptada pelos donos do poder. Foi assim na “política dos governadores”, quando o pacto de cooptação era administrado a partir do consenso entre o chefe do Executivo federal com os Executivos estaduais, tendo como instrumento a Mesa diretora do Congresso com a sua Comissão de Verificação de Poderes, que descabeçava, de entrada, aqueles que, nos vários Estados, tivessem ganhado as eleições e que não fossem do agrado da Presidência da República e das oligarquias representadas pelos governadores e os seus amigos no Congresso. Durante o ciclo getuliano, inspirado na filosofia cientificista que os castilhistas da segunda geração puseram em prática, o estamento burocrático identificou-se com os “Conselhos Técnicos Integrados à Administração”, com que Getúlio e Lindolfo Collor acenavam na campanha presidencial de 29. Recebia, assim, o nosso patrimonialismo estamental um tinte de modernização, no contexto dos ares saint-simonianos que inspiravam  ao ditador são-borjense.

No relativo ao “patrimonialismo parental”, evidentemente mais arcaico do que o estamental por se restringir ao clã, os nossos vizinhos hispano-americanos foram muito imaginosos ao elaborarem formas diversas desse modelo. Manifestações do fenômeno foram, na Argentina, o “tango clientelista” dos casais Perón / Evita, Perón / Isabelita e Néstor / Cristina Kirchner. No Haiti de “Papa” Doc, a ditadura parental se deu ao redor do “Papa” e do “Baby Doc”. Para não falar da mais antiga ditadura das Américas, a cubana, que em sessenta anos de vigência tem girado ao redor dos irmãos Fidel e Raul Castro. Uma satrapia familística para petralha nenhum botar defeito. Na Venezuela, o presidente Chávez criou original forma ectoplasmática de dominação parental com a dupla Bolívar / Chávez. (Lembremos que o finado coronel estava seguro de ter “incorporado” o espírito do Libertador, tendo sacramentado a sua maluca intuição em cerimônia macabra em que foram desenterrados por “paliteiros” os restos de Bolívar, numa liturgia de vodu caribenho). Na hilariante saga de imitações bregas em que o atual governo venezuelano mostrou-se pródigo, o presidente Maduro afirmou desde o início que governava em dupla com o chefe que, do além, lhe falava através de um passarinho. Um “patrimonialismo ornitológico- parental” para morrer de rir!

A modalidade de “patrimonialismo parental” conta, aliás, com longa tradição na História do Ocidente, desde as monarquias por comodato dos irmãos que se casavam entre si, como ocorreu no seio da civilização helenística na dinastia Ptolomaica, no reino do Egito (ao longo dos séculos II e I anteriores à era cristã), ou nas renascentistas manobras do Papa Alexandre VI (1431-1503) que não teve pejo em dividir o poder com os filhos César e Lucrécia Borgia. Esta, diga-se de passagem, conseguiu colocar ordem na bagunça orçamentária que quase fez afundar a nau pontifícia graças à fome do Colégio de Cardeais, uma espécie de guloso PMDB da época. Versão menos aventureira e mais eficiente de “patrimonialismo parental” foi encarnada, na Espanha, ainda no século XV, pelos Reis Católicos, Fernando de Aragão e Isabel de Castela, que venceram definitivamente os sarracenos e conseguiram organizar a contento a burocracia do Estado.

O “patrimonialismo em comodato” da presidente Dilma fez com que ela abandonasse o modelo de “patrimonialismo estamental”, que funcionou em outras épocas e que o PT tentou colocar em funcionamento neste segundo mandato. Um ministério técnico, presidido pelo titular da pasta da Fazenda, que faria “o dever de casa” saneando as contas públicas, era a melhor saída. Mas o desarranjo institucional, potencializado pelas revelações escabrosas sobre os desmandos fiscais à luz da Operação Lava Jato, pelo julgamento das contas da gestão passada pelo TCU e pela reabertura da questão do financiamento da reeleição pelo TSE levaram a presidente a, atabalhoadamente, tentar fechar a sangria da sua impopularidade, agradando o partido majoritário da base aliada na reforma ministerial. Num processo açodado, a mandatária passou informalmente a faixa ao chefe Lula e ao desgoverno parlamentar presidido pelo PMDB no Congresso.  


A solução chega num momento inoportuno, quando a realidade exige o frio uso da razão para sanear as contas públicas e é necessário pulso firme para afinar o governo com as expectativas dos brasileiros. Os petralhas, liderados por Lula, decidiram peitar o Tribunal de Contas da União e foram esmagadoramente derrotados. A mudança de ministério não agradou à opinião pública e a consequência nefasta é o agravamento da já precária situação econômica do país no plano internacional. O panorama não poderia ter ficado pior.

domingo, 11 de outubro de 2015

O DESABAFO DE GABEIRA

Amigos, não podia deixar passar em branco o magnífico artigo do Fernando Gabeira publicado ontem no Estadão. Uma clara manifestação de repúdio ao espírito totalitário petralha. Palmas para o corajoso jornalista que não perdeu o senso crítico. PT nunca mais! Reproduzo, a seguir, o seu artigo.

FERNANDO GABEIRA
Publicado no Estadão 10-10-2015


Por toda parte, queixas e lamúrias: arrasaram o Brasil, estamos quebrados, tudo fechando, alugando. É uma fase pela qual temos de passar. Quanta energia, troca de insultos, amizades desfeitas. Às vezes penso que a melhor forma de abordar o novo momento é apenas deixar que os fatos se imponham.
Muitas vezes afirmei que o dinheiro roubado da Petrobras foi para os cofres do PT e usado na campanha de Dilma Rousseff. Caríssima campanha, R$ 50 mil por mês só para o blogueiro torná-la um pouco engraçada.
O primeiro fato importante foi a delação premiada do empresário Ricardo Pessoa. Ele afirmou que deu quase R$ 10 milhões à campanha para não perder seus negócios na Petrobras. Logo depois surgiram suas anotações, estabelecendo um vínculo entre o dinheiro que destinou ao PT e os pagamentos que recebia da Petrobras. Verdade que a empresa estava nomeada apenas como PB. Claro que ainda podem dizer que esse PB quer dizer Paraíba, ou pequena burguesia. É um jogo cansativo.

Nem é tão necessário que a investigação defina novos vínculos entre o escândalo, o PT e a campanha de Dilma. Basta assumir as consequências do que já se descobriu. Se o tema vai ser neutralizado no Supremo, se o governo compra um punhado suficiente de deputados, tudo isso não altera minha convicção de que o escândalo desnudou um projeto político criminoso.
Ainda na semana passada o Estadão publicou reportagem sobre a Medida Provisória (MP) 471. Ao que tudo indica, foi comprada. Ela garante a isenção de R$ 1,3 bilhão em impostos. E rendeu R$ 36 milhões em propina.

Não estranho que tenha sido aprovada pela maioria. Eram estímulos para três regiões do país e as respectivas bancadas estavam satisfeitas com isso.
Também não havia, da parte das outras regiões, questionamentos sobre estímulos localizados. O único nó nesse campo, se me lembro bem, era a divisão dos royalties do petróleo.
Muito possivelmente, a emenda foi vendida com o preço da aprovação parlamentar embutido. De qualquer forma, a maioria no Congresso foi enganada e, com ela, todos os seus eleitores.
A empresa que negociou a medida provisória destinou R$ 2,4 milhões ao filho de Lula. Segundo a notícia, ele diz que o dinheiro foi pago por assessoria de marketing esportivo. O pai assina a MP, o filho recebe R$ 2,4 milhões da empresa de lobby. Se você não estabelece uma conexão entre as duas coisas, vão chamá-lo de ingênuo; se estabelece, é acusado de lançar suspeita sobre a reputação alheia.
A maioria das pessoas consegue processar fatos e documentos já divulgados e talvez nem se escandalize mais com a venda de uma MP: é o modo de governar de um projeto. É todo um sistema de dominação. É preciso ser um Jack estripador ou um ministro do Supremo para dizer: vamos por partes.
As conexões estão feitas na cabeça da maioria e nada de novo acontece. Neste momento pós-moderno, em que as narrativas contam, mas não as evidências, o conceito de batom na cueca também se tornou mais elástico. Não é bem uma marca de batom, mas algo vermelho que esbarrou pelo caminho, uma tinta, um morango maduro.
Enquanto se vive este faz de conta nacional, a situação vai se agravar. É muito grande o número de brasileiros que se sentem governados por uma quadrilha. Apesar de não estarem organizados, ou talvez por isso, alguns vão se desesperar, ultrapassando os limites democráticos. O tom do protesto individual está subindo. Dirigentes do PT são vaiados, figuras identificadas até a medula com o partido, como o ministro Lewandowski, também não escapam mais da rejeição popular.
O PT e os intelectuais que o apoiam falam de ódio. De fato, o amor é lindo, mas como ser simpático a um partido que arrasa o país, devasta a Petrobras e afirma que está sendo vítima de uma injustiça?
Não são apenas alguns intelectuais do PT que se recusam a ver a realidade. No passado, as denúncias de violência stalinista eram guardadas numa gaveta escura do cérebro. Era impossível aceitar que o modelo dos sonhos se apoiava numa carnificina. Agora também parece impossível admitir que o líder que os conduz tem como principal projeto tornar-se milionário. É como se admitissem ser humildes fiéis de uma religião cujo pastor acumula, secretamente, uma fortuna, enquanto teoriza sobre a futilidade dos bens materiais.
A sucessão de escândalos, demonstrando a delinquência do governo, não basta para convencer os mais letrados. E certamente não bastará para convencer os que ignoram a História e são pagos para torpedear o adversário nas redes.
Mas os fatos ainda têm grande força. Lutar contra eles, em certas circunstâncias, não é só um problema de estupidez, mas também de estreita margem de manobra.
Se o governo não pode aceitar que suas contas sejam recusadas por unanimidade no TCU, não resta outro caminho senão tentar melar o julgamento. Sabem que todos estão vendo sua jogada e talvez experimentem uma ligeira sensação de ridículo. Mas o que fazer?
A única saída decente seria renunciar. Mas, ao contrário, decidiram ficar e convencer os críticos de que estão cegos por causa de sua ideologia de direita, conservadora e elitista.
Isso radicaliza a tática de Paulo Maluf, que insiste em dizer que não tem conta na Suíça, que o dinheiro e a assinatura não são dele. Maluf apenas nega o que estamos vendo. O PT nos garante que há algo de errado com nossos olhos.
Pessoalmente, na cadeia e no Congresso, fui treinado a discordar, mas conviver com as pessoas, apesar de seus crimes. Nem todos os brasileiros pensam assim, na rua. Não é possível irritar as pessoas ao extremo e, quando reagem, classificá-las de intolerantes.
O momento é uma encruzilhada entre a ira popular e a enrolação institucional. Com todos os seus condenáveis excessos, a raiva nas ruas é que tem mais potencial transformador.

A esquerda sempre soube disso. Agora, com o traseiro na reta, o PT descobre o amor.

sábado, 3 de outubro de 2015

DA NARCO-GUERRILHA ÀS BIBLIOTECAS. AS LIÇÕES DAS CIDADES COLOMBIANAS.


Biblioteca "Virgílio Barco", em Bogotá: um dos Parque-Bibliotecas que ajudaram na pacificação. (Fotos: Divulgação).


Parece não haver nada em comum entre estes três conceitos. No entanto, na realidade colombiana eles estão estreitamente ligados. Não de maneira unívoca, mas dialética. Explico: a dura realidade dos narcos e dos seus massacres terminou sendo enfrentada, pelas cidades colombianas, com a concretização do terceiro conceito: as bibliotecas.

O seriado “Narcos” apresentado pelo Netflix e estrelado por Wagner Moura, sob a direção de José Padilha (2015) repete o sucesso do seu antecessor, o seriado colombiano “El patrón del mal”, estrelado por Andrés Parra e com a direção de Camilo Cano e Juana Uribe (2012).

Ambas as séries televisivas narram a história de Pablo Escobar (1949-1993), o traficante colombiano fundador do “Cartel de Medellín”, que se tornou bilionário ao organizar a empresa do narcotráfico a partir da venda de cocaína aos viciados dos Estados Unidos. De forma pragmática, Pablo Escobar dizia: “a cocaína é o petróleo dos pobres. Ora, se os americanos e os xeques árabes lucram bilhões com a exportação e o refino de petróleo, nós, os pobres, podemos ganhar legitimamente uns trocados com a exportação de cocaína”.   

Desenvolverei neste artigo os seguintes itens: I – A guerra dos Narcos e dos Guerrilheiros contra a sociedade colombiana. II – A reação dos municípios colombianos e dos governos de Uribe Vélez (2002-2010), na reconstrução do tecido social. III – Políticas de segurança pública em Bogotá e Medellín. IV – Bibliotecas e políticas públicas para a recuperação da memória nacional. V – A influência da experiência colombiana no Brasil e na América Latina. VI – Conclusão.

I - A guerra dos Narcos e dos Guerrilheiros contra a sociedade colombiana.

Quem foram os narcos? Eles se identificaram, na Colômbia, com os produtores e comercializadores das drogas, representados pelos tradicionais cartéis de Medellín e de Cali, bem como pela narcoguerrilha das FARC, que se transformou no mais poderoso cartel após a morte de Pablo Escobar em 1993. Na guerra que, entre 1978 e 2002, os narcos e os guerrilheiros moveram contra a sociedade, houve um saldo trágico de 450.000 mortos. Os colombianos chegaram ao fundo do poço.

A Colômbia tinha sido balcanizada em três regiões, com séria ameaça para a unidade nacional. Essas regiões eram constituídas, no norte e noroeste do país, pelas autodefesas unidas da Colômbia (AUC), que foram organizadas por criadores de gado para reagir contra os achaques das FARC e dos outros grupos guerrilheiros. Na parte central, dominava o governo, sitiado no planalto onde fica a capital, Bogotá, pelos paramilitares e pelos narcos. Na parte sul, a partir da “República livre de El Caguán” (uma imensa área do tamanho do Estado do Rio de Janeiro, cedida aos guerrilheiros pelos governos populistas), dominavam as FARC e os outros grupos armados.

Diante da situação de anarquia reinante na maior parte dos municípios colombianos, houve uma reação inesperada, nascida no seio das pequenas cidades onde se situavam os “resguardos” indígenas. Nessas áreas os nativos podiam exercer a sua soberania, elegendo prefeitos, deputados, senadores e até governadores, uma herança do velho direito filipino.

No desenrolar da guerra contra o Estado colombiano, os guerrilheiros chegaram a dominar mais da metade dos 1000 municípios do país, notadamente aqueles de maior expressão econômica, situados nas ricas regiões produtoras de gado e de café. A forma de imposição das FARC era brutal: durante uma noite inteira os guerrilheiros atacavam a pequena cidade a ser submetida, com um pesado bombardeio feito com botijões de gás carregados de dinamite e metralha, disparados mediante rudimentares canhões fabricados pelo Exército Republicano Irlandês (IRA).

O resultado, na manhã seguinte, era desolador: embora os alvos prediletos fossem prédios públicos (prefeitura, câmara de vereadores, escritórios do governo central, bancos oficiais e quartel da polícia), os improvisados canhões geralmente erravam o alvo e atingiam residências, igrejas, escolas e hospitais. Os sobreviventes do massacre, de manhã, eram levados pelos guerrilheiros à praça central, onde após a identificação do prefeito e dos secretários municipais, era assinado um “contrato de serviços de segurança” com as FARC, que obrigava o município ao repasse de 10% do orçamento aos guerrilheiros. Se os funcionários se negassem a assinar, ou se não pagassem religiosamente a soma mensal estabelecida, eram fuzilados na presença dos habitantes aterrorizados. Era o denominado “clientelismo armado” das FARC, uma espécie de “mensalão” cobrado pelos meliantes.

O exército, mal aparelhado e constituído por conscritos inexperientes, estava acuado pela agilidade com que a guerrilha atacava. Esta se deslocava sempre mais rápido que as forças da ordem. Nesse contexto, os aterrorizados habitantes das pequenas cidades submetidas estavam praticamente entregues à sua própria sorte. Foi quando, nos municípios indígenas, surgiu uma reação à la Gandhi entre os habitantes. Após a noite de bombardeio, na manhã seguinte, todos os cidadãos se sentavam em silêncio na praça pública. Ninguém falava, mesmo que os chefetes guerrilheiros ameaçassem matar todo mundo, se não indicassem quem era o prefeito e os seus secretários.

A reação dos guerrilheiros foi de surpresa diante do silêncio geral. Não sabiam o que fazer. Matar ali, à luz do dia, dois mil e mais indígenas desarmados, constituiria um genocídio evidente demais, que seria rapidamente noticiado pela imprensa internacional e atrairia a reação do exército. Os meliantes esquerdistas abandonavam, então, a cidade de forma atabalhoada.

II - A reação dos municípios colombianos e dos governos de Uribe Vélez (2002-2010), na reconstrução do tecido social.

Essa primeira reação não violenta fez acordar, nas cidades do interior colombiano submetidas à chantagem armada das FARC, o sentido da força dos habitantes quando decidem agir juntos. Houve, é claro, alguns assassinatos que não fizeram esmorecer, entre os habitantes do interior colombiano, esse sentimento de força. Em Bojayá, por exemplo, um perdido município do departamento de Chocó, na parte noroeste do país, em maio de 2002, os guerrilheiros atacaram, com botijões de gás recheados de dinamite e pregos, 120 mulheres, velhos e crianças que tinham se refugiado na igrejinha de madeira. Todos morreram carbonizados. Mas apesar desses atos hediondos, a consciência na força dos habitantes unidos prevaleceu sobre o terror assassino.

Foi assim como, nos municípios maiores e nas áreas das grandes cidades, nasceu o movimento cívico “Como Vamos”, que passou a reunir as pessoas que decidiam agir por conta própria, como movimento social, a fim de fazer frente à violência guerrilheira e organizar a gestão municipal para responder aos anseios da população. Esse movimento se fortaleceu ao longo da década de 1990 e se consolidou como prática rotineira de 2002 para cá.

Sensível a esta reação dos municípios colombianos, o candidato presidencial Alvaro Uribe Vélez centrou sua plataforma de governo (em 2002) em duas questões fundamentais: primeiro, reforçar e modernizar as Forças Armadas para que pudessem combater com eficiência os grupos armados. Segundo, governar escutando diretamente as demandas dos municípios e garantindo, neles, a presença do Estado mediante uma vigilância efetiva da Polícia Nacional e das Forças Armadas. Nisso consistia, fundamentalmente, o denominado “Plano Colômbia”, para cuja realização o presidente eleito conclamou as nações latino-americanas vizinhas, a fim de que lhe dessem ajuda financeira com a intermediação da Organização dos Estados Americanos.

É sabido como a OEA e os principais países latino-americanos, notadamente o Brasil, ficaram em cima do muro. “Essa guerra não é nossa, a Colômbia que a administre sozinha”! Essa foi a resposta das “nações amigas”. Pior: O governo brasileiro, presidido por Lula, simplesmente tomou as dores dos assassinos das FARC, se negando a qualifica-los como terroristas, pelo fato de que os guerrilheiros pertenciam ao famigerado Foro de São Paulo, criado nos anos noventa por Lula e por Fidel Castro para dar sobrevida ao comunismo internacional. Paralelamente, o governo brasileiro passou a desqualificar as decisões do presidente colombiano.

Mas voltemos à reação protagonizada pelos municípios na Colômbia. Alvaro Uribe a reforçou de maneira decidida e eficaz. Passou a governar visitando, semanalmente, os municípios mais esquecidos do interior do país. Toda semana o Chefe do Estado despachava a partir de um deles, se deslocando, no final de semana, com o seu gabinete. Os funcionários da alta administração se queixavam da estafante maratona que o Chefe do Executivo tinha posto em marcha. A reunião do presidente com os seus ministros ocorria na sede do poder municipal, o “cabildo”, a fim de que pudessem participar os cidadãos, que faziam diretamente ao governo as reivindicações mais urgentes. Foi assim como renasceu, no interior da Colômbia, o sentimento de que havia Estado e de que este estava a serviço dos cidadãos.

A hábil política desenvolvida por Uribe Vélez tirou rapidamente qualquer ponto de sustentação às FARC. A decisão, por ele rapidamente tomada, de garantir, em cada município, a presença constante da Polícia Nacional e das Forças Armadas, fez com que se esvaziasse a denúncia dos guerrilheiros de que o Estado tinha abandonado as cidades do interior. Foi organizada pelo governo ampla rede de informações que eram repassadas ao alto comando das Forças Armadas, a respeito dos movimentos das FARC e de outros grupos armados. As políticas sociais como a relativa à “bolsa família” enquadraram-se nesse contexto de incorporar ao convívio cidadão as pessoas mais esquecidas. [1] Ressurgiu, com toda força, o sentimento de confiança no governo. Isso explica a tremenda popularidade de que ainda goza Uribe Vélez entre os colombianos.

Mas voltemos às ações com que os municípios reagiram à violência das FARC com o movimento “Como Vamos”, que foi organizado também nas grandes cidades como Bogotá, Medellín, Cali, Cartagena de Índias, etc. A nossa exposição restringe-se, aqui, aos resultados obtidos nas duas maiores cidades colombianas, Bogotá (8 milhões de habitantes) e Medellín (3 milhões).

III - Políticas de Segurança Pública em Bogotá e Medellín.

Apontadas como as cidades mais violentas do mundo, Bogotá e Medellín transformaram-se em avançados laboratórios para a prevenção da criminalidade e, em especial, dos homicídios. Apesar de ainda manterem altos níveis de pobreza – cerca de 40% da população — essas duas cidades conseguiram reduzir, respectivamente, suas taxas de homicídio em 79% (Bogotá) e 90% (Medellín), ao longo dos últimos dez anos.
Qual foi a estratégia desenvolvida para a redução da violência?

As principais medidas adotadas foram as seguintes:

1 - Com a finalidade de unificar o combate à criminalidade, as reformas constitucionais feitas em 1993 atribuíram aos alcaides (prefeitos) das áreas metropolitanas a missão de coordenar as políticas públicas que visavam à segurança cidadã. O prefeito, nessas regiões, passou a desempenhar as funções de chefe de polícia.

2 - A Polícia Nacional sofreu uma forte modernização, bem como uma depuração dos maus elementos. Em Bogotá e Medellín foram extintas as bandas podres que davam cobertura aos meliantes. Para se ter uma idéia da profundidade da limpeza efetivada no seio dos organismos policiais, pode-se lembrar que somente na capital colombiana, no decorrer de um ano, foram excluídos dois mil agentes. Hoje, a polícia colombiana constitui uma força de 164.600 homens, muito bem treinada e com armamento moderno. A reforma foi profunda e moralizadora. A população, em contrapartida, passou a confiar mais na corporação policial.

3 – As Forças Armadas aumentaram os seus efetivos para 281.400 homens. Nelas atuam duas unidades de elite: a Força de Intervenção Rápida (FUDRA), do Exército, criada em 1999 e que conta com 5 mil homens treinados para intervir rapidamente em qualquer região do país, em operações de tipo comando. A segunda unidade de elite é constituída pela Força de Tarefa Conjunta Ômega (FUTCO), criada em 2003 com militares do exército, da marinha e da aeronáutica e que conta com 21.000 efetivos que dão apoio às ações da Força de Intervenção Rápida.

Vale a pena destacar que as Forças Armadas colombianas se modernizaram de forma definitiva ao longo dos dois mandatos de Uribe Vélez, no contexto do “Plano Colômbia”, que os Estados Unidos apoiaram. As Forças Especiais (FUDRA e OMEGA) receberam treinamento de ponta nos Estados Unidos e foram equipadas com armamento de última geração, incluindo helicópteros Black Hawk e aviões de combate Tucano T 29, de fabricação brasileira, equipados com aviónica israelense, além de armamento moderno como os fuzis M-4 calibre 5.56, coletes cerâmicos e um amplo conjunto de acessórios ótico-eletrônicos. Assim, as Forças Armadas colombianas constituem hoje o mais bem treinado exército da América Latina. Elas passaram a contar, também, com apoio satelital americano, a fim de fazer um seguimento preciso dos movimentos de combatentes das guerrilhas e dos grupos paramilitares. Graças a esses avanços, o Exército conseguiu virar a guerra contra as FARC e leva-las à mesa de negociação.

A Força de Intervenção Rápida do Exército (FUDRA) podia entrar em ação a pedido do Prefeito metropolitano e do governador do Departamento. É importante destacar que os projetos de pacificação empreendidos nas cidades de Bogotá e Medellín se inseriram no contexto mais amplo da estratégia da “Seguridade Democrática” que o presidente Álvaro Uribe Vélez colocou em funcionamento. As condições de sobrevivência das instituições do estado democrático de direito eram muito negativas quando Uribe assumiu o poder. A Colômbia estava praticamente dividida em três grandes áreas: ao norte, dominavam os paramilitares. No centro, o governo mal conseguia governar a região de Bogotá. No sul, dominavam as FARC. Tratava-se de uma situação de balcanização que ameaçava seriamente a sobrevivência da Colômbia como país democrático.

Diante dessa situação extremada, os três ramos do poder público fecharam fileiras ao redor do Executivo. O Legislativo colaborou votando uma legislação que visava dar ao Estado instrumentos para combater o terrorismo das FARC e dos narcotraficantes. O Judiciário colaborou também, mediante a rápida concretização das novas modalidades de administração de justiça (os legisladores colombianos inspiraram-se, em boa medida, nas reformas que foram efetivadas na Itália para combater a máfia e o poder dos grupos terroristas, na década de 80 do século passado). O sistema prisional foi reformado, de maneira a garantir a incomunicabilidade dos líderes mafiosos e dos guerrilheiros presos nos presídios de segurança máxima como o de Cómbita (no Departamento de Boyacá). Um tratado de extradição foi firmado com os Estados Unidos, para enviar a esse país os líderes dos cartéis da cocaína acusados de exportação da droga. Sem essas medidas que comprometeram o alto governo, a política pacificadora dos municípios teria sido insuficiente para restabelecer a tranquilidade nas áreas metropolitanas. A Igreja Católica, de outro lado, deu a sua contribuição, apoiando de forma clara a política pacificadora posta em execução pelo governo. Isso ficou patenteado nos pronunciamentos da Conferência Episcopal colombiana.

4 - O Prefeito e os seus assessores passaram a identificar as áreas mais violentas das cidades e a definir as ações que deveriam ser feitas para erradicar os focos de narcotraficantes, paramilitares e guerrilheiros ali instalados. A ação da Força Pública foi rápida e, uma vez desarticulados os focos violentos, a Polícia passou a ocupar, de forma permanente, a área que foi objeto da intervenção. Foi garantido, em toda a área ocupada, o policiamento ostensivo.

5 - Num prazo de 120 dias, após a erradicação dos focos armados, a Prefeitura entregou à comunidade uma série de obras sociais, que visavam a elevar a autoconfiança dos cidadãos, lhes mostrando, eficazmente, que o Estado veio para ficar e que não os abandonaria. Essa ação abarcou a instalação dos seguintes itens: posto de saúde, escola municipal, delegacia de polícia, banco popular (denominado de Megabanco, cuja finalidade consistia em fazer empréstimos com juros baixos para pequenos comerciantes e prestadores de serviços), parque-biblioteca com área de lazer (vale a pena lembrar que as construções e as áreas públicas foram desenvolvidas com recursos de última geração em arquitetura e urbanismo) e sistema local de transporte urbano que conectava o bairro com a rede pública de transporte de massa da cidade.

O eixo principal de transporte de massa em Medellín é constituído pelo metrô e em Bogotá pelo sistema de ônibus em faixa rápida denominado de Transmilênio (que se inspirou na modalidade de ônibus articulado de Curitiba). Como Medellín é uma cidade de relevo irregular, com muitos morros, o sistema de integração dos bairros com o metrô foi o bondinho, com seis linhas que atendem as mais remotas comunidades. Em virtude do fato de Bogotá ser uma cidade plana, o sistema integrado passou a ser a ciclovia (a cidade conta, atualmente, com 380 quilômetros de vias para essa modalidade de transporte, integradas ao Transmilênio). Salientemos, outrossim, que o sistema de transporte serve às comunidades que buscam os parques-biblioteca, de forma tal que os habitantes dos bairros carentes contam com acesso rápido e barato a essas áreas de cultura e lazer, pois é possível a um passageiro percorrer vários desses lugares com um só bilhete.

6 - Com a finalidade de restabelecer a confiança da população nas autoridades, tanto em Bogotá quanto em Medellín foram ocupados, pelo poder municipal, os lugares mais problemáticos da cidade. Em Bogotá as ações ocorreram, inicialmente, em três áreas onde o poder público não estava presente e que tinham sido tomadas de assalto pelos marginais: El Cartucho (reduto das FARC, no centro velho da cidade), El Tunal e El Tintal (na periferia, sendo que estas localidades tinham virado núcleos maioristas de narcotráfico e outras formas de criminalidade). Em Medellín foram ocupados, inicialmente, o conjunto de favelas Santo Domingo (na parte leste-norte da cidade, que tinha se convertido em praça forte de guerrilheiros e milicianos), a perigosa Comuna 13 (dominada pelas FARC) e a Comuna 6, (controlada por milicianos e traficantes). Depois de ocupadas as áreas mais problemáticas de ambas as cidades, outras foram objeto da intervenção militar e social das respectivas Prefeituras, com a criação, em Bogotá e Medellín, de mais parques-bibliotecas, que hoje somam nove em cada uma dessas cidades.

7 - Todas as obras foram financiadas pelas respectivas Prefeituras, mediante parcerias público-privadas (90% do investimento), ou ajuda internacional (10%). Os empreendimentos sociais chamaram a atenção de governos estrangeiros. A Coroa espanhola, por exemplo, financiou integralmente o Parque-Biblioteca Espanha, em Medellín. Nessa mesma cidade, os franceses ajudaram transferindo a tecnologia para os bondinhos que atendem as comunidades carentes.

8 - Resultados: entre 1993 e 2007 a taxa de homicídios caiu 79% em Bogotá, passando de 80 por 100 mil habitantes para 17. A taxa, em Medellín, caiu 90%, passando de 311 por 100 mil habitantes, para 26. Além de transporte público e ciclovias, as duas cidades investiram no ensino, tornando-se epicentro, na América Latina, da idéia de Cidades Educadoras. Papel importante coube, nesse esforço, à rede pública de Parques-bibliotecas de Bogotá e Medellín, interligados às outras bibliotecas existentes em cada uma dessas cidades. Assim, aos parques-biblioteca de Bogotá foram interligadas 26 bibliotecas públicas; em Medellín, foram vinculadas 34 bibliotecas municipais.

Tanto em Bogotá quanto em Medellín, essas entidades vincularam-se também aos museus, no sentido de divulgar as suas exposições e facilitar a visita, mediante o oferecimento, pela rede de transportes públicos, de bilhetes a preços reduzidos no final de semana, quando a entrada aos museus é gratuita. A principal finalidade dessa política municipal consiste em recuperar o espaço público deteriorado e facilitar a convivência a partir da ideia de que o lazer pode ser encontrado na área cultural, dando à comunidade a possibilidade de ter, no seu seio, uma bela biblioteca que sirva como espaço de convívio e de divertimento sadio, notadamente para os jovens. O impacto visual dessas construções é semelhante ao dos CEUs, as modernas e amplas escolas públicas na periferia de São Paulo, sendo que algumas delas são verdadeiras joias arquitetônicas, como a Biblioteca Virgílio Barco em Bogotá, ou a Biblioteca Espanha, em Medellín.

9 - Essas políticas públicas de ocupação e resgate de áreas marginais foi precedida, em Bogotá e Medellín, como já foi destacado, pela participação cidadã na luta contra a violência, no movimento cívico “Como Vamos”, mencionado acima. Em meados da década de 90 consolidaram-se os movimentos “Bogotá como vamos” e “Medellín como vamos”. O movimento, nas duas cidades, foi organizado a partir das Câmaras de Comércio. Somaram-se a essa iniciativa as Universidades, bem como algumas Fundações mantidas pela Indústria e a Imprensa.

A finalidade do Movimento consistia em fazer um balanço mensal do estado da gestão municipal, levando em consideração a qualidade de vida dos habitantes da cidade, bem como a percepção que eles tinham acerca da gestão urbana. Passaram a ser avaliados, mensalmente, 12 indicadores, a saber: educação, saúde, saneamento básico, habitação, meio ambiente, áreas públicas, transporte público, responsabilidade cidadã, segurança cidadã, gestão pública, finanças públicas e desenvolvimento econômico. Os resultados das avaliações mensais são divulgados, no final de cada mês, por um jornal de ampla circulação na cidade correspondente (El Tiempo, de Bogotá e El Colombiano, de Medellín).

Convém destacar que as avaliações efetivadas pelo Movimento tornaram-se pauta para os governantes municipais e para as plataformas dos novos candidatos, dando ensejo à continuidade de projetos, entre uma administração municipal e outra. Passaram a ser eleitos novos atores políticos, desvinculados dos Partidos tradicionais (Liberal e Conservador), provenientes do meio empresarial, operário ou universitário. (Na última campanha presidencial, os ex-prefeitos Antanas Mockus, Sérgio Fajardo, Enrique Peñalosa e Lucho Garzón integraram as duas chapas mais votadas).

De outro lado, aumentou significativamente a autoestima dos habitantes de ambas as cidades, bem como a sua participação cidadã. O Movimento Como Vamos passou a ser adotado por outras cidades colombianas, dando ensejo ao Projeto “Rede de Cidades Como Vamos”. No início de 2007, cinco cidades integravam esse Movimento: Bogotá, Medellín, Cali, Barranquilla e Cartagena de Índias.

A partir da sua implantação, o Movimento cívico “Como Vamos” passou a acompanhar a administração municipal, mediante a pesquisa de opinião mensal atrás referida. Surgiram novas lideranças que renovaram a representação em nível municipal, nas Câmaras de Vereadores e nas Assembleias Legislativas que passaram a responder, melhor, aos anseios da população. Essa renovação em nível municipal e departamental terminou tendo reflexos em nível nacional, tendo sido adotados critérios mais democráticos para as eleições dos membros da Câmara de Representantes e do Senado da República.

Na atual campanha para eleições municipais em Medellín, a ação do Movimento cívico “Como Vamos” tem sido decisiva na tentativa de elaborar critérios de escolha mais democráticos e que respeitem os anseios da sociedade. Eis o que publicava a respeito, em 24-09-2015, o jornal El Colombiano, de Medellín:

“Transparência. A isso responde a pergunta feita aos candidatos acerca da sua proposta de governabilidade, um assunto que cai bem se levarmos em conta que aí está compreendida a ética da gestão pública e como garantir que os programas propostos possam efetivamente ser executados. Para responder a esta preocupação, El Colombiano solicitou a cada um dos aspirantes que resumissem em textos de 250 palavras aquilo que seria a sua proposta de governabilidade (...), a fim de mostrar aos cidadãos as estratégias que serão utilizadas para executar as políticas públicas de que Medellín necessita. Criar espaços de diálogo e participação cidadã, reformar a estrutura da atual administração, zelar para que haja um governo transparente, ético e legal, e promover uma administração mais eficiente e austera. Todas essas propostas fazem parte das ideias esboçadas pelos candidatos. A análise dessas iniciativas ficará por conta (...) do Instituto de Estudos Políticos da Universidade de Antioquia”.

IV – Bibliotecas e políticas públicas para a recuperação da memória nacional.

Bibliotecas Públicas Colombianas: a sua presença cobre o território nacional. (Imagem: Divulgação do Ministério da Cultura).

O Libertador Simón Bolívar (1783-1830), em que pese a sua formação rousseauniana, conhecia, porém, profundamente, os países por ele libertados. Dizia a respeito daqueles que integravam a Grã Colômbia: “A Venezuela é um quartel, o Equador é um convento e a Colômbia é uma universidade”. Pois bem: a República da Colômbia (que levou inicialmente o nome de Nueva Granada) caracterizou-se, desde os seus primórdios, pela valorização que a sociedade professava em relação à vida cultural. Já desde o período colonial, as universidades situadas nesse vice-reinado eram notáveis pela atividade intelectual, atraindo cientistas como José Celestino Mutis (1732-1808) ou formando pesquisadores como Francisco José de Caldas (1768-1816). Os centros de estudos superiores brilhavam também pelas suas bibliotecas. A guerra da Independência foi um caldeirão de ideias que, das universidades, se espraiou por todo o tecido social, dando provas de uma enorme curiosidade intelectual por parte dos neogranadinos e do esforço dos seus líderes em prol da fundamentação do seu projeto de nação, à luz das ideias que se debatiam então na Europa e nos Estados Unidos.

Ao longo do século XX, notadamente após a década de 30, a Colômbia passou a apostar nas redes de bibliotecas públicas, espalhadas por todo o país, como forma de enfrentar a violência política. Essa política veio se reforçar com motivo do surto mais recente da violência, ao ensejo da guerra contra os narcos e as guerrilhas, a partir de 2002. A experiência de pacificação das cidades colombianas foi, assim, acompanhada, como coração das intervenções cívicas, de uma presença forte e da ação dos Parques-Biblioteca, que ajudaram, certamente, na consolidação da paz, fazendo diminuir dramaticamente os índices de violência.

A ministra da cultura colombiana, Mariana Garcés deu, no Rio de Janeiro, em evento internacional sobre políticas culturais ocorrido em 2013, importante testemunho acerca da força que as bibliotecas públicas têm no país, enquanto variável pacificadora. Como exemplo, ela citou o papel que desempenha, na cidade de Cali, fortemente abalada pelos cartéis do narcotráfico, a iniciativa da prefeitura local de criar um parque-biblioteca na violenta localidade de Água Branca, onde se defrontavam gangues rivais de jovens de dois bairros da periferia.

Eis o relato jornalístico desse fato: “A biblioteca tem seis andares e obrigou os estudantes, que antes viviam em guerra, a compartilhar salas de aula, os mesmos espaços esportivos e livros. Para Garcés, até em comunidades violentas como as de Cali existe um consenso de que os espaços culturais devem ser respeitados e é necessário que essa atitude seja a de toda a população. O Plano Nacional de Leitura e Bibliotecas do Governo da Colômbia já conseguiu que todos os municípios do país contem com pelo menos uma biblioteca pública, o que concentra os próximos esforços do governo em fortalecer os seus conteúdos, com lançamentos literários, jornais e revistas, explicou a ministra. A prioridade de investimento está em municípios chamados de consolidação, que sofreram condições de violência ou conflito, onde o Estado intervém com presença militar, mas também com ofertas culturais para mudar as condições de vida do local. De acordo com Garcés, o impacto social tem a ver com a autoestima dessas populações, com a possibilidade que elas passam a ter de contar suas próprias histórias e de preservar sua língua. As comunidades indígenas e palenqueras recebem textos em seus próprios idiomas e participam de projetos culturais em suas bibliotecas ou malocas, onde se desenvolve sua vida cultural e social. Segundo a Ministra, o governo do presidente Juan Manuel Santos construiu 100 bibliotecas públicas nos últimos quatro anos, superando as 16 construídas no mesmo período na administração anterior. Para financiar o programa, se usa a décima parte de um imposto de 4% de consumo de celulares, explicou. Isso faz com que os próximos ministros que ocuparem o cargo no tenham a obrigação de destinar estes recursos para o projeto, mesmo que mudem seus focos de ação, apontou”. [2]

Jorge Melguizo, secretário de cultura de Medellín, frisava a respeito do papel desempenhado pelos parques-biblioteca para dinamizar a cultura democrática da cidade: "Os parques-biblioteca deram um sentido de pertencimento a esses locais, promovendo o acesso à leitura; oferecem acesso gratuito à internet onde antes não havia; trazem ao bairro eventos culturais, tanto da comunidade como realizados pela prefeitura, o que faz com que tenhamos apresentações de primeira qualidade em todos esses lugares, gerando uma afluência de turismo interno e externo. Isso porque esses lugares se converteram em lugares de circulação para as pessoas da cidade que antes não se atreviam nem sequer a pensar em ir a um desses bairros". [3]

As políticas públicas de pacificação das cidades colombianas incorporaram, portanto, a ideia de que a cultura, no seu sentido mais amplo, é fator básico para um processo de combate à violência. O conceito de Biblioteca deixou de ser o de depósito de livros, para se vincular àquela concepção clássica, nascida na Antiguidade, na Biblioteca-Museu de Alexandria, de ponte entre os povos, bem como de espaço para lazer, de convívio com os nossos semelhantes e de livre desenvolvimento dos valores espirituais que marcam a própria identidade.

Referindo-se à atualidade dessa herança, escreveu Claudio de Moura Castro: “A fórmula salvadora já existe e é resumida pela celebrada arquiteta americana Maya Lin. Para ela, bibliotecas são os templos de hoje, espaços para reflexão, exploração intelectual e discussão de ideias. Mas engana-se quem pensa ser revolucionária tal visão. De fato, a primeira grande biblioteca que o mundo conheceu, a de Alexandria, tinha como ponto de partida uma arquitetura memorável, e sua concepção antecipa essa linha. Além dos livros, tinha jardins, exposições de arte, concertos e outras atividades culturais. No dizer de um contemporâneo, era um lugar para curar a alma”.[4]

O “livro e a leitura – lembrando o escritor argentino José Luis Borges – é a extensão da memória e da imaginação”, se constituindo, assim, nos melhores aliados para pacificar os espíritos. Essa concepção dinâmica de biblioteca foi enriquecida, a partir de meados do século passado, com a ideia de que as Bibliotecas, os Museus e os Arquivos Públicos devem estabelecer uma rede cultural a serviço dos cidadãos; esta ideia foi tomada da Biblioteca Pública da Cidade de Nova Iorque e passou a inspirar os empreendimentos culturais que, nas cidades colombianas, ajudaram de forma definitiva no desmonte da violência.

Ora, os prefeitos colombianos, bem como os administradores da área cultural em nível nacional, departamental e municipal, passaram a desenvolver audacioso programa de inter-relação entre as várias bibliotecas, museus e centros de documentação do país, com a finalidade de ajudar no embasamento de uma cultura nacional vinculada à paz. Ao redor das bibliotecas públicas passou a se desenvolver uma política de colaboração com as redes de bibliotecas particulares. Só para dar um exemplo, a Caixa de Compensação Familiar da Federação de Comerciantes da Colômbia (COMFENALCO) administra 120 bibliotecas distribuídas em todo o país, e que trabalham junto com as 1414 bibliotecas públicas existentes na Colômbia, em projetos de ampliação da leitura notadamente entre jovens e de desenvolvimento de iniciativas culturais que interessem às comunidades.

 V - A influência da experiência colombiana no Brasil e na América Latina.

A experiência colombiana de pacificação dos centros urbanos foi seguida de perto por governadores e prefeitos do Brasil. No início de 2007, os governadores de Minas Gerais (Aécio Noves) e do Rio de Janeiro (Sérgio Cabral) viajaram à Colômbia a fim de observar a forma como as autoridades do país vizinho estavam ganhando a guerra contra a criminalidade, notadamente contra o envolvimento de menores.

Empolgado com os resultados observados, o governador do Rio fez declarações à imprensa, no sentido de que poria em execução políticas semelhantes às adotadas no país andino, tanto no que diz respeito ao transporte público de massas em áreas faveladas, quanto no relativo às questões sociais (policiamento e atendimento à população carente). Surgiram, assim, tanto no Estado do Rio de Janeiro quanto em Minas Gerais, políticas de pacificação, que no Rio se traduziram na criação das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs). Paralelamente, nas campanhas para eleição de prefeitos nos anos seguintes, vários candidatos se interessaram por conhecer a experiência colombiana. Ex-prefeitos de Bogotá e Medellín, bem como alguns dos seus colaboradores, foram convidados para expor, em várias cidades (São Paulo, Vitória, Porto Alegre, Salvador, etc.), as experiências de pacificação.

Do ponto de vista da iniciativa privada, houve várias visitas às cidades colombianas, a fim de tomar conhecimento das políticas de pacificação ali desenvolvidas. Sem dúvida que a iniciativa mais importante foi a empreendida pela Confederação Nacional do Comércio. Aproximadamente vinte empresários participaram de uma missão que visitou, no final do mês de julho de 2007, as cidades de Bogotá, Medellín e Cartagena de Índias, a fim de conhecer as políticas que ali se desenvolviam. O resultado de tal visita ficou registrado na minha obra intitulada: Da guerra à pacificação – A escolha colombiana. [5]

No que tange à influência do “Movimento Como Vamos” no Brasil, foi criada, em 2008, a Rede Social Brasileira por Cidades Justas e Sustentáveis. Fazem parte dela: Belém (PA), Belo Horizonte (MG), Brasília (DF), Curitiba (PR), Florianópolis (SC), Goiânia (GO), Holambra (SP), Ilha Bela (SP), Ilhéus (BA), Januária (MG), Maringá (PR), Niterói (RJ), Peruíbe (SP), Porto Alegre (RS), Recife (PE), Salvador (BA), Ribeirão Bonito (SP), Rio de Janeiro (RJ), Santos (SP), São Luis (MA), São Paulo (SP), Teresópolis (RJ) e Vitória (ES).

No âmbito dos países hispano-americanos, a rede “Como Vamos” também recebe o nome de Rede Cidadã por Cidades Justas e Sustentáveis. Integram a rede na América Latina: Barranquilla, Bogotá, Cali, Cartagena e Medellín (Colômbia), Buenos Aires (Argentina), Lima (Peru), Quito (Equador) e Santiago (Chile). Participam dessa rede, também, as cidades brasileiras mencionadas anteriormente.

VI - Conclusão.

Da experiência colombiana, com certeza, podemos tirar algumas lições práticas, em face dos projetos de pacificação em andamento no Rio de Janeiro, e que estão servindo como vitrine para projetos semelhantes em outras cidades brasileiras. Eis as principais conclusões:

1 – Urgência de sanear os organismos policiais, a fim de recuperar a credibilidade deles entre os cidadãos. No Rio de Janeiro, o grande problema ainda existente reside, justamente, na presença da denominada “banda podre” da polícia, que esvazia ações tendentes a erradicar o narcotráfico, beneficiando os bandidos com informações prévias e, o que é pior, achacando-os para favorecer a agentes corruptos, fazendo com que a população passe a desconfiar sistematicamente dos homens da lei. Falhas dessa natureza terminaram por empanar uma ação excelentemente bem planejada, como foi a ocupação do Morro do Alemão em novembro de 2010.

O recente envolvimento de policiais cariocas na eliminação sumária de jovens suspeitos de colaborarem com o narcotráfico, simplesmente faz desabar a confiança dos cidadãos na instituição policial. As chacinas perpetradas ao longo deste ano em São Paulo simplesmente chocam pela mensagem contraditória que passam para a opinião pública. Como pode uma instituição paga com dinheiro dos contribuintes para garantir a segurança, ser uma máquina mortífera que escapa à lei e aos procedimentos mais comezinhos da justiça? Nenhuma política de segurança sobrevive à presença habitual de agentes assassinos.

2 – Necessidade urgente de revisar a legislação existente, a fim de que se assinalem os caminhos pelos quais as Forças Armadas podem participar de ações contra o terrorismo imposto pelo narcotráfico. As condições de luta contra o inimigo mudaram radicalmente no final do século passado e no início deste milênio, com a presença, na atual conjuntura, de novos atores internos, ligados a redes terroristas. Tal é o caso dos narco-terroristas que, pela sua capacidade de fogo e pela mobilidade nas nossas fronteiras e no interior do país, deixaram de ser apenas um inimigo da polícia e se transformaram em núcleos a serem combatidos com força maior.

Ouço de muitas pessoas a seguinte queixa: se as nossas Forças Armadas participam, com eficácia, de ações de combate aos marginais em países como o Haiti, por que não podem fazer o mesmo no nosso país, quando isso se torne necessário? O episódio de ocupação do Morro do Alemão mostrou que a presença das Forças Armadas, em certas circunstâncias, é necessária. Falta, porém, definir um quadro legal que dê sustentação a essas ações. Como falta, também, que a legislação brasileira mude no item relacionado à prática do terrorismo. O vácuo da atual legislação simplesmente abre a porta para a ação de grupos terroristas no Brasil. Isto, diante da realização, no país, de eventos internacionais de grande porte, é inacreditável. A posição do PT de tolerar, até o limite do inaceitável, a ação de grupos terroristas, simplesmente por motivos ideológicos, é suicida e contamina a tomada de decisões do governo federal nesse ponto.

3 – Falta definir, no Brasil, uma política de alcance nacional, não apenas municipal e regional, no terreno da segurança pública. Ações tópicas, como as desenvolvidas no Rio de Janeiro (e em outras áreas metropolitanas), conduziram, de fato, a uma interiorização da criminalidade, como vem acontecendo ao longo dos últimos dez anos. A zona da mata mineira, o interior nordestino, o interior paulista, o interior paranaense, bem como os municípios interioranos de Santa Catarina e Rio Grande do Sul têm sido vítimas dessa mobilidade dos narco-terroristas que, combatidos nas áreas metropolitanas, passaram a migrar para áreas menos policiadas.

O aumento acelerado do índice de criminalidade causado pela migração dos traficantes de crack e cocaína, nas pequenas e médias cidades do interior brasileiro, mostra que algo há de falho nas políticas de segurança pública. Em contraposição, um ponto importante no sucesso das políticas de segurança pública adotadas em Bogotá e Medellín decorreu, justamente, de terem sido formuladas no marco mais amplo, de alcance nacional, efetivado pelos dois governos do presidente Álvaro Uribe Vélez, no combate frontal contra as FARC e os paramilitares. Sem esse enquadramento maior, as políticas de segurança pública desenvolvidas nas cidades de Bogotá e Medellín teriam sido insuficientes para fazer cair os índices de criminalidade.

4 – Na estratégia desenvolvida para aplicar políticas públicas de pacificação em áreas urbanas, é importante levar em consideração que a ação policial tem de estar acompanhada, ao mesmo tempo, das intervenções sociais que visem a devolver aos cidadãos a autoestima. O exemplo de Bogotá e Medellín, nesse aspecto, é fundamental. A ação policial, sozinha, não é suficiente para devolver às pessoas o sentimento de cidadania. Deve haver um conjunto de ações eficientemente coordenadas, como aconteceu nas cidades colombianas.  Como frisava o prefeito de Medellín Sérgio Fajardo: “As pessoas precisam entender, com estas políticas, que o Estado veio para ficar e para lhes servir”.

5 – É necessária a colaboração efetiva da sociedade civil na concretização das políticas de segurança pública e de pacificação. Essa participação é fundamental, notadamente no terreno do estudo das políticas de segurança, por parte de Universidades e centros de pesquisa. Ainda é modesta a colaboração dos nossos centros de estudos superiores nesse terreno. Em face de uma questão polêmica como a legalização de determinadas drogas, fazem falta estudos que esclareçam a população, acerca da forma em que essas políticas têm sido implementadas em outros contextos (Europa, Estados Unidos, Canadá, Austrália, Nova Zelândia), para evitar que soluções inadequadas tornem ainda mais complexo o problema de consumo de tóxicos. De outro lado, convém lembrar que as políticas desenvolvidas em Medellín e Bogotá só se tornaram possíveis com a maciça colaboração do empresariado local que financiou, em parecerias público-privadas, as obras realizadas.

6 – É necessário, também, que todos os poderes públicos, no plano estadual, federal e municipal, bem como as três ramas do poder, executivo, legislativo e judiciário, assumam a mesma posição, em face do combate ao narco-terrorismo, de acordo com a defesa do estado de direito e dos direitos humanos. É grave, para a sociedade, a posição díspar dos poderes públicos em face de tão importante questão. A anistia concedida pelo presidente brasileiro a notório terrorista já condenado pela justiça de um país amigo, em que impera o estado de direito, constitui um vexame para a opinião pública civilizada e endereça uma mensagem aos terroristas, no sentido de que as nossas instituições toleram esse tipo de crime. Na Colômbia, em face da agressividade do terrorismo, houve uma sintonia dos poderes públicos. Somente assim a sociedade colombiana conseguiu se sobrepor aos violentos, na guerra contra os narcotraficantes.

7 – Por último, levando em consideração que já há várias cidades brasileiras que integram a experiência iniciada na Colômbia com o Movimento “Como Vamos” (Rede Social Brasileira por Cidades Justas e Sustentáveis) seria interessante que houvesse eventos que avaliassem essa experiência e divulgassem os resultados obtidos, a fim de que pudessem servir para outras cidades preocupadas com as questões da segurança pública. Alguma entidade privada (como a CNC, por exemplo), poderia, com a colaboração do Ministério das Cidades, se tornar a força aglutinadora das experiências urbanas em relação ao movimento “Como Vamos”.


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Endereços na web do Movimento “Como Vamos”, em algumas cidades brasileiras e colombianas:






Outros endereços de interesse para entender as políticas existentes na Colômbia na área de Bibliotecas Públicas:

http://www.bvirtualc.unal.edu.co/ [consultado em 02-10-2015]


http://www.bibliotecanacional.gov.co/ [consultado em 01-10-2015]






[1] Convém lembrar que o programa “Bolsa Família” foi copiado do Brasil, mas se ajustando às recomendações do Banco Mundial, que foi o inspirador dessa política. Entre as recomendações, figurava a de estabelecer nexos de responsabilidade com os beneficiários das mesmas. Assim, o programa foi implantado por Uribe Vélez, tendo-o alocado numa secretaria especial vinculada à presidência da República. Cada grupo de 100 famílias era monitorado mensalmente por um representante da secretaria, com o auxílio de um palm, em que eram anotados os resultados obtidos pelo grupo familiar. Antes de entrar no programa, o representante da família assinava com a secretaria especial um contrato, em que se comprometia a cumprir com uma lista de aproximadamente 25 itens. Se ao longo de três meses seguidos a família descumprisse cinco deles, era excluída do programa. Os itens iam desde enviar as crianças à escola municipal, ter em dia a carteira de vacinação delas, colaborar com as autoridades locais nas políticas de segurança, até indicar alguém pertencente ao grupo familiar a fim de que se capacitasse para o mercado de trabalho, em cursos oferecidos pelo Serviço Nacional de Aprendizagem (SENA) no município. Em dez anos de funcionamento, o balanço do programa mostrava que um índice muito pequeno de famílias foi excluído do programa, sendo que, em cinco anos (período máximo para o recebimento da bolsa), a maioria tinha saído da linha de pobreza.       
[3]DOMINGUEZ, Andrea. “Bibliotecas para a paz urbana na Colômbia” In:  http://www.comunidadesegura.org/pt-br/node/41456. [Consultado em 02/10/2015].
[4] CASTRO, Claudio de Moura. “Bibliotecas: metamorfose ou morte?” In: Veja, São Paulo, edição 2440, ano 48, nº 34 (26 de agosto de 2015): pg. 24.

[5] VÉLEZ Rodríguez, Ricardo. Da guerra à pacificação – A escolha colombiana. Campinas: Vide Editorial, 2010.