Este artigo foi publicado pelo jornal O Estado de São Paulo com o título de: "Patrimonialismo em comodato" [pg. A2], na edição de 14/10/2015.
O “patrimonialismo estamental” tem longa vida na cultura
política brasileira. O modelito de gestão do público como privado, no Brasil do
ciclo republicano, terminou dando ensejo a eficiente estamento burocrático que
agia como colchão em que se amorteciam os conflitos da sociedade cooptada pelos
donos do poder. Foi assim na “política dos governadores”, quando o pacto de
cooptação era administrado a partir do consenso entre o chefe do Executivo
federal com os Executivos estaduais, tendo como instrumento a Mesa diretora do
Congresso com a sua Comissão de Verificação de Poderes, que descabeçava, de
entrada, aqueles que, nos vários Estados, tivessem ganhado as eleições e que
não fossem do agrado da Presidência da República e das oligarquias
representadas pelos governadores e os seus amigos no Congresso. Durante o ciclo
getuliano, inspirado na filosofia cientificista que os castilhistas da segunda
geração puseram em prática, o estamento burocrático identificou-se com os
“Conselhos Técnicos Integrados à Administração”, com que Getúlio e Lindolfo
Collor acenavam na campanha presidencial de 29. Recebia, assim, o nosso
patrimonialismo estamental um tinte de modernização, no contexto dos ares
saint-simonianos que inspiravam ao
ditador são-borjense.
No relativo ao “patrimonialismo parental”, evidentemente mais
arcaico do que o estamental por se restringir ao clã, os nossos vizinhos
hispano-americanos foram muito imaginosos ao elaborarem formas diversas desse
modelo. Manifestações do fenômeno foram, na Argentina, o “tango clientelista”
dos casais Perón / Evita, Perón / Isabelita e Néstor / Cristina Kirchner. No Haiti
de “Papa” Doc, a ditadura parental se deu ao redor do “Papa” e do “Baby Doc”.
Para não falar da mais antiga ditadura das Américas, a cubana, que em sessenta
anos de vigência tem girado ao redor dos irmãos Fidel e Raul Castro. Uma satrapia
familística para petralha nenhum botar defeito. Na Venezuela, o presidente Chávez
criou original forma ectoplasmática de dominação parental com a dupla Bolívar /
Chávez. (Lembremos que o finado coronel estava seguro de ter “incorporado” o
espírito do Libertador, tendo sacramentado a sua maluca intuição em cerimônia macabra
em que foram desenterrados por “paliteiros” os restos de Bolívar, numa liturgia
de vodu caribenho). Na hilariante saga de imitações bregas em que o atual
governo venezuelano mostrou-se pródigo, o presidente Maduro afirmou desde o
início que governava em dupla com o chefe que, do além, lhe falava através de
um passarinho. Um “patrimonialismo ornitológico- parental” para morrer de rir!
A modalidade de “patrimonialismo parental” conta, aliás, com
longa tradição na História do Ocidente, desde as monarquias por comodato dos
irmãos que se casavam entre si, como ocorreu no seio da civilização helenística
na dinastia Ptolomaica, no reino do Egito (ao longo dos séculos II e I
anteriores à era cristã), ou nas renascentistas manobras do Papa Alexandre VI
(1431-1503) que não teve pejo em dividir o poder com os filhos César e Lucrécia
Borgia. Esta, diga-se de passagem, conseguiu colocar ordem na bagunça
orçamentária que quase fez afundar a nau pontifícia graças à fome do Colégio de
Cardeais, uma espécie de guloso PMDB da época. Versão menos aventureira e mais
eficiente de “patrimonialismo parental” foi encarnada, na Espanha, ainda no
século XV, pelos Reis Católicos, Fernando de Aragão e Isabel de Castela, que venceram
definitivamente os sarracenos e conseguiram organizar a contento a burocracia
do Estado.
O “patrimonialismo em comodato” da presidente Dilma fez com
que ela abandonasse o modelo de “patrimonialismo estamental”, que funcionou em
outras épocas e que o PT tentou colocar em funcionamento neste segundo mandato.
Um ministério técnico, presidido pelo titular da pasta da Fazenda, que faria “o
dever de casa” saneando as contas públicas, era a melhor saída. Mas o
desarranjo institucional, potencializado pelas revelações escabrosas sobre os
desmandos fiscais à luz da Operação Lava Jato, pelo julgamento das contas da
gestão passada pelo TCU e pela reabertura da questão do financiamento da reeleição
pelo TSE levaram a presidente a, atabalhoadamente, tentar fechar a sangria da
sua impopularidade, agradando o partido majoritário da base aliada na reforma
ministerial. Num processo açodado, a mandatária passou informalmente a faixa ao
chefe Lula e ao desgoverno parlamentar presidido pelo PMDB no Congresso.
A solução chega num momento inoportuno, quando a realidade
exige o frio uso da razão para sanear as contas públicas e é necessário pulso
firme para afinar o governo com as expectativas dos brasileiros. Os petralhas,
liderados por Lula, decidiram peitar o Tribunal de Contas da União e foram
esmagadoramente derrotados. A mudança de ministério não agradou à opinião
pública e a consequência nefasta é o agravamento da já precária situação
econômica do país no plano internacional. O panorama não poderia ter ficado
pior.
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