Platão e Aristóteles no afresco A Escola de Atenas, de Rafael Sanzio de Urbino. |
A "paz napoleônica". Pátio central de Les Invalides, Paris. (Foto: arquivo pessoal do autor, janeiro de 2011). |
Em face da crise do euro, com os gregos querendo desembarcar
da Comunidade Européia, lembro-me do artigo muito pertinente escrito pelo meu
amigo João Carlos Espada (“A Grécia e as infelizes dicotomias continentais”, Público, Lisboa, 06/07/15), no qual ele identificava um problema: não
foi imaginado pelos criadores da zona do euro, um mecanismo de desembarque para
as Nações que, como os gregos hoje, não se sentissem à vontade nela.
Ora, faltou esse mecanismo de desembarque. Se houvesse, não
estaria passando a Europa unida por tantos sobressaltos. É claro que eu, como
meu amigo Espada, não tenho simpatias pelo Tsipras nem pelo seu grupo de
esquerda radical Syriza. Baste lembrar que a primeira providência do jovem
líder grego depois de eleito, foi receber o embaixador do arquirrival da
Comunidade Europeia, o czar Putin. É botar gasolina na fogueira.
Passo a refletir sobre a crise do euro à luz dos conceitos
filosóficos, sendo fiel à minha profissão de professor de filosofia. Falta à
Comunidade Européia, hoje, mais flexibilidade na gestão dos conflitos.
Resumiria esse imperativo no subtítulo do meu artigo: Menos Platão, mais
Aristóteles.
Lembremos que, diante da crise que os Gregos enfrentavam no
século IV AC., com Atenas perdendo terreno para a sua rival Esparta, a solução
platônica consistiu em incrementar o modelo educacional ateniense, tirando o
ensino das mãos dos sofistas, estrangeiros em geral, e passando-o às dos
atenienses, sob o rígido controle do governo da Pólis. O modelo ateniense
deveria ser incutido nas mentes das novas gerações pela pedagogia platônica, a Paideia, toda ela a serviço da
construção da máquina do Estado, sob a previdente condução do Rei Filósofo.
Ora, esse modelo funcionava em Atenas e em nenhum outro lugar. Quando Platão
tentou sugeri-lo a Dionísio, tirano de Siracusa, foi posto em prisão e os seus
discípulos tiveram de fazer uma vaquinha para libertar o mestre.
Aristóteles não tinha origem ateniense, era um bárbaro
macedônio civilizado, tendo estudado na Academia platônica. Mas possuía uma
visão ampla do mundo e uma concepção política aberta à diversidade. Viajou pelo
Médio Oriente, pelo Mediterrâneo Oriental e pelo Egito e escreveu a sua obra
sobre as constituições do mundo antigo, tendo identificado 158 formas diversas
de governo. Formou nessa mentalidade aberta o seu pupilo, o jovem Alexandre,
que seria o famoso conquistador do mundo antigo, construtor do primeiro império
globalizado da época.
Dessa magnífica obra aristotélica chegou até nós a Constituição
de Atenas, preservada do criminoso incêndio da Biblioteca de Alexandria
por zelosos amanuenses bizantinos, egípcios e árabes, que a trouxeram até nós.
Ora, o postulado fundamental da política em Aristóteles é que há duas condições
para conquistar a estabilidade no seio do Estado: que este se organize a partir
das tradições em que a comunidade acredita e, em segundo lugar, que se
estabeleça um regime que traduza a média da opinião, postulado que passou à
posteridade, na Idade Moderna, pela mão, sobretudo de François Guizot, o
primeiro-ministro do reinado de Luís Felipe na França.
A Comunidade do euro foi organizada mais pensando na
unanimidade platônica (herdada por Hegel, que certamente influenciou muito a
intelligentsia alemã e a chanceler atual, Ângela Merkel). Faltou a média da opinião de Aristóteles. Não
foram criados mecanismos que possibilitassem, aos países integrantes, um
eventual desembarque da zona do euro. Era isso o que justamente temia Margareth
Thatcher, quando foi posta em discussão a adoção, pelos parceiros europeus, da
moeda única. Lembremos parte do seu discurso pronunciado no Conselho da Europa,
reunido em Roma em outubro de 1990, no qual a primeira-ministra britânica desaconselhava
a adoção da moeda única pelo seu país.
A senhora Thatcher afirmava que os trabalhistas não teriam
problema em entregar a soberania nacional. O Partido Trabalhista, dizia ela
ironicamente, “Talvez concordasse com a moeda única e com a
abolição da libra esterlina. Talvez, sendo totalmente incompetente na
administração da política monetária, ficaria feliz em delegar toda a responsabilidade
a um banco central [europeu], como fez em relação ao FMI. O fato é que o
Partido Trabalhista não tem competência para lidar nem com dinheiro nem com a
economia” (Papéis de Margaret Thatcher, Documento número 869, 30 outubro de
1990, consultado em 06/07/15 http://www.margaretthatcher.org/document/108234).
Ora, a Comunidade Européia, na rigidez dos seus
princípios organizacionais, lembra mais Platão e o Bloco Continental imaginado
pelo imperador Napoleão Bonaparte do que uma federação de Estados livremente
unidos por um pacto flexível, costurado à sombra do bom senso aristotélico. Um
Banco Central operante pressupõe mecanismos de união política que hoje estão
ausentes da comunidade. Eis o cerne do problema. A ordem imposta desde fora é
problemática. “As baionetas”, aconselhava a velha raposa Talleyrand a Napoleão,
“servem para muitas coisas, menos para sentar em cima delas”.
Voltando para o bom senso britânico, considero pertinentes as palavras com
que João Carlos Espada conclui o seu artigo: “As instituições sociais não são
fabricadas especificamente por ninguém. Emergem de um longo e complexo processo
de interação descentralizada que não é suscetível de comando central — mesmo
que esse comando central seja exercido pela chamada Razão, ou mesmo pela Razão
libertadora de preconceitos e tradições não racionais (...). Não pretendo
com isto concluir que a criação do euro tenha sido necessariamente um erro. Mas
foi seguramente um erro gigantesco ter criado o euro sem uma cláusula de saída
ordeira. E é um erro gigantesco identificar a moeda única com a União Europeia.
A moeda única deve ser apenas uma opção possível para aqueles países que
queiram subscrevê-la”.
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