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terça-feira, 3 de novembro de 2015

Emergência na Rússia de corrente liberal em economia - ANTÔNIO PAIM

O economista liberal YEGOR GAIDAR (1956-2009) responsável pela privatização de empresas estatais na Rússia na década de 1990.
Amigos, com vistas a alimentar o debate sobre o Patrimonialismo e as possibilidades de superação do mesmo, divulgo, a seguir, artigo do professor Antônio Paim acerca da vertente liberal de pensamento econômico presente nesse país.

A passagem pelo primeiro governo russo após a era soviética de um autêntico economista liberal, Yegor Gaidar (1956/2009), responsável pela privatização de parcela significativa das empresas então estatizadas  aparece, à primeira vista, como fenômeno inexplicável. Em matéria de ciências sociais, o marxismo era não só a ideologia oficial como se tornara merecedora de culto muito próximo da forma pela qual se incorporara a religião à cultura ocidental. A investigação desse paradoxo serviu-nos para evidenciar que os russos, na medida em que o país se industrializava, depararam-se com um fenômeno muito diverso, em matéria de gestão econômica, das simplificações postas em circulação por Lenine. Este supunha que a concentração do processo produtivo em grandes empresas simplificaria de tal modo as relações entre os setores econômicos que um simples contador poderia dar conta da tarefa de medi-las e programar sua expansão.
        O avanço da industrialização soviética impôs aos responsáveis pela direção concreta das empresas o  estabelecimento da distinção entre economia política  e economia. Nesta, a exigência fundamental que se apresenta às empresas é que gerem lucros (nem se deram ao trabalho de inventar outra palavra) capazes de assegurar a continuidade dos investimentos. Assim, o Compêndio de Economia Política, do Instituto de Economia da Academia de Ciências da União Soviética, estabelecendo com nitidez a diferença entre as duas disciplinas, afirma que às empresas do Estado incumbe “medir os gastos e resultados da produção segundo sua expressão monetária; repor as despesas de produção com rendas próprias e assegurar a rentabilidade da empresa.” (pág. 465, da edição russa de 1954)
       A admissão da existência do que denominaram de “economia política”, na prática, corresponde à forma de preservar as teses obsoletas de Marx relativas ao capitalismo, centradas nas tentativas (frustradas) de medir o que batizara de mais valia (trabalho não pago, de onde proviria a capitalização das empresas) ou de Lenine acerca do imperialismo como última fase do capitalismo financeiro, ante-sala da crise geral que levaria de roldão o sistema burguês.
        Na década de sessenta do século passado, chegou-se a chamar a atenção, entre nós, para o fato de que o ministro polonês Oskar Lange (1904/1965) vinha alcançando sucesso, nos países do Leste Europeu como na própria Rússia, na adoção de regras difundidas pela econometria na esfera do planejamento econômico. Nessa linha, a Revista Brasileira de Economia daquele período publicou trabalhos do economista Aníbal Vilela sobre planejamento econômico na URSS. Chama a atenção para a adoção de modelos matemáticos e escreve: “só nos anos cinquenta passaram os economistas soviéticos a se preocupar com a necessidade de utilizar técnicas mais sofisticadas principalmente tabelas de relações inter-industriais.  Isso se deve em boa parte ao fato de que a economia soviética se havia tornado demasiado complexa para ser comandada por regras de polegar. Contribuiu também para essa mudança de atitude a possibilidade do emprego de computadores eletrônicos” (edição de junho de 1967, p.39). No volume dessa  publicação correspondente a junho de 1968, o mesmo autor resume os debates relativos às reformas na avaliação dos preços industriais, que tiveram lugar em Moscou nos últimos anos. Conclui que “os soviéticos estão redescobrindo a teoria do valor e dos preços, embora sob a roupagem matemática”. (p. 43)
       Mais ou menos na mesma época dá-se a retirada das acusações gratuitas a Keynes, a quem era de praxe definir como “defensor resoluto dos interesses do capitalismo monopolista”, resumindo suas teses a “idéias contraditórias”. Entretanto, no debate promovido pelo Instituto Gramsci de Roma, em junho de 1965, o economista tcheco Ludek Urban proclamaria o seguinte: “Não se pode esconder que a economia política burguesa fez consideráveis progressos, principalmente no que se refere ao conhecimento do funcionamento do mecanismo da economia capitalista nas condições de hoje. A contribuição fundamental no terreno do desenvolvimento da teoria econômica não marxista foi dada pelo keinesianismo”. (Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, edição de 20.02.1966)
       No texto preparado para apresentação dos dados biográficos essenciais de Yegor Gaidar indica-se que sua alma mater seria a Universidade Lomonosov. De sorte que começaremos tentando reconstituir o eventual papel que esse instituição teria desempenhado no sentido de aproximar-se do que a ciência econômica ocidental produziu no processo de dissociar-se de ranços ideológicos.

                 A Universidade Lomonosov
              como instituição acadêmica tradicional

       Na Rússia, a Universidade Lomonosov foi criada em  1755. Mikhail Lomonosov (1711/1765) tornara-se notável cientista no mundo científico europeu de então, animador da Academia de Ciências da Rússia e um dos fundadores da Universidade que, posteriormente, homenageou-o ao a ser designada pelo seu nome.
       Na época considerada encontrava-se muito presente a influência francesa, estimulada por Pedro, o Grande que dedicaria o seu reinado (1682 a 1725) à  modernização e ocidentalização da Rússia. Entre outras coisas, transferiu a capital para as margens do Báltico (São Petersburgo) e obrigou a aristocracia a aprender e comunicar-se em francês. No plano educacional, essa influência expressa-se no fato de que a Universidade seria estruturada para coexistir com as grandes escolas, como se dava na França.
      A Universidade Lomonosov consolidou-se como centro formador da elite educacional já que se incumbia da formação  de professores para as diversas disciplinas em todos os níveis. A par disto, abrigava Faculdades de Medicina e Direito.
      Contemporaneamente, expressa bem essa coexistência com as grandes escolas, a organização de instituições de ensino e pesquisa para os setores produtivos mais relevantes. Em Moscou, celebrizou-se o Instituto de Energia, incumbido da formação de engenheiros para todas as atividades ligadas à geração, transmissão e pesquisa energética, dispondo de faculdades para dedicar-se a cada uma das atividades nas quais se subdivide.
      Embora a Faculdade de Filosofia correspondesse a uma das três faculdades a partir das quais criou-se a Universidade e haja se ocupado, ao longo do tempo, tanto da filosofia russa como das principais correntes européias, nos ciclos históricos correspondentes, durante o regime soviético acabou ocupando-se basicamente do marxismo. Essa situação parece ter sido superada pelas reformas introduzidas em 1996. Criaram-se então novos departamentos.
      Em decorrência da situação descrita, isto é, da estatização da economia, a Faculdade de Economia, criada em 1941, escapou ao enquadramento que teria afetado à filosofia. Como foi apontado, as interdições ao livre acesso às conquistas em matéria da ciência econômica foram suavizadas. Sendo parte expressiva da planificação os métodos empregados para fixar metas de expansão nos setores decisivos da economia --a exemplo da energia-- deixou de causar espécie a sistemática adoção dos mesmos procedimentos adotados pelas multinacionais ocidentais.
       Na apresentação oficial do histórico da Faculdade de Economia da Lomonosov afirma-se textualmente que “as reformas do início da década de noventa trouxeram radical reorientação do estudo da economia com o objetivo de apropriar-se dos desafios decorrentes da adoção da economia de mercado e dos padrões internacionais de educação da matéria.” A disciplina central passa a ser  administração de empresas (management). O bloco das disciplinas constantes do programa de matemática é extensa e detalhada bem como do estudo das teorias econômicas ocidentais.
       Vale a pena resumir algumas informações sobre o currículo do decano da Faculdade de Economia (Alexander Auzan), desde que proporciona uma idéia nítida do tipo de liderança emergente.
        Alexander Auzan (nascido em 1954) graduou-se na Faculdade de Economia da Universidade Lomonosov e passou a integrar o Corpo Docente da instituição, onde também concluiu o doutorado. Sob Gorbachov tornou-se um dos iniciadores, na Rússia, do movimento em defesa dos consumidores tendo, nessa condição, chegado a integrar o Birô da Internacional dos Consumidores, organização européia. De 2005 a 2011 dirigiu a Associação dos Think Tanks Russos de Economia. Integrou ainda a diretoria da Comissão para a Modernização e o Desenvolvimento Tecnológico da Economia da Rússia. Posteriormente foi membro do Conselho, junto à Presidência da República, para “otimização da presença do Estado na economia”, destinada as reduzir as funções reguladoras que preserva e assegurar a transparência.

                              A passagem de Yegor Gaidar
                                   pelo governo

        Yegor Gaidar foi indicado para exercer o cargo de Primeiro Ministro pelo então chefe do governo Boris Yeltsin, a 15 de junho de 1992. Precedentemente, desde o início de 1991, era Primeiro Vice-Ministro da Federação Russa, vale dizer: acompanhou Yeltsin na sua ascensão ao governo (25 de dezembro de 1991, data em que promoveu a dissolução da União Soviética e auto proclamou-se Presidente da Federação Russa).
        Dada a sua condição de integrante da nova elite dirigente, tinha planejado as reformas que de imediato introduziu, classificadas como “terapia de choque”. Era consensual na nova equipe que fracassara a experiência de estatização da economia, na medida em que acompanhavam de perto o caminho seguido pela Europa nessa matéria, quando a privatização (remember Mme. Thatcher) se considerava como “o novo nome do desenvolvimento”.
        Empossou-se a 15 de junho, decretando de imediato o fim do controle de preços. Sob o regime soviético, vigorava a prática generalizada da administração dos diversos preços. A única exceção era concedida ao denominado “Mercado Kolkoziano”, isto é, do setor da agricultura que gerava o grosso da produção de gêneros alimentícios, como leite, ovos, carne etc., isto é, não industrializados.
        Assim, como não poderia deixar de ser,  desencadeou inflação generalizada que, por sua vez, produziu a deterioração do padrão de vida de milhões de cidadãos.
         A essa providência seguiu-se a privatização da chamada indústria leve e dos serviços, levada à prática mediante a distribuição de bônus, a todos os cidadãos adultos, que os habilitava a adquirir as empresas privatizadas. Em que pese a circunstância de que, em muitos casos,  esses bônus tenham sido adquiridos pelos que então dirigiam as empresas em questão, não havendo portanto mudança em sua direção, estudiosos independentes consideraram ter sido esta a única formula disponível. Os novos dirigentes encontravam-se a partir daí sujeitos à falência e estavam obrigados a, por si mesmos,  promover a modernização tecnológica. Em conseqüência, proliferaram os acordos com empresas européias, notadamente alemãs.
          Apesar de que a situação do país não era nada edificante, Yeltsin convocou eleições no mês de Julho (1991). Seria o primeiro dirigente russo dos novos tempos a ser eleito democraticamente. Contudo o equivalente do Parlamento --(Duma),  que não dispõe dos mesmos poderes que seus congêneres ocidentais-- revelar-se-ia hostil às reformas, visando preferentemente a pessoa de Yegor Gaidar. Em conseqüência, seria substituído a 14 de dezembro daquele ano, sem que deixasse o governo, porquanto passou a ocupar, durante parte de 1992, o cargo de Ministro das Finanças. Continuou exercendo grande influência governamental até os começos de 1994. O governo de Yeltsin duraria até 1999. Yegor Gaidar faleceu a 16 de dezembro de 2009, tendo 53 anos de idade.
          Esclareça-se que o favorecimento, de algumas pessoas, dando surgimento a grandes fortunas em mãos dos que passaram a ser designados como “oligarcas” --obrigando o governo Putin a revê-las-- é fenômeno típico da privatização dos grandes conglomerados, levada a cabo depois da precedentemente referida (indústria leve e serviços).
          A “terapia de choque” aplicada por Yegor Gaidar seria discutida amplamente na Rússia. Na medida em que se tornaram evidentes seus efeitos --notadamente a comprovação de que proporcionara sólida base material para o surgimento de afluente classe média, inexistente no passado do país-- a figura de Yegor Gaidar passou a ser amplamente cultuada, como teremos oportunidade de indicar, mais adiante.
        Entretanto, cabe desde logo registrar a opinião expressa sobre sua personalidade por Jeffrey Sachs, diretor de Instituto da Columbia University (Nova York), que foi acessor dos governos russos naqueles primeiros anos da década de noventa. Afirmou que “Gaidar era o líder intelectual das reformas sociais e econômicas na Rússia e um dos poucos atores principais do período”.

                   Formação acadêmica e atuação
                        anterior ao governo

          Rebento da Faculdade de Economia da Universidade Lomonosov, Yegor Gaidar concluiu a graduação em 1978, aos 22 anos de idade e dedicou-se à pesquisa em diversos institutos acadêmicos.
          Nasceu numa família de escritores, condição dos avós paterno e materno. Seu pai era jornalista e atuava no grupo encarregado do setor militar no órgão oficial do PC (Pravda). Casou-se com a filha de escritor soviético (Arkady Strugastsky).
          Nesse ambiente, como era de praxe no seu grupo social, pertencia ao Partido Comunista da União Soviética (PCUS). Entretanto, somente sob Gorbachov ocupou um posto de destaque na agremiação: editor do órgão teórico (Communist). Nessa fase, aderiu ao grupo de Yeltsin, que despontava como liderança rival de Gorbachov e que revelaria, no curso dos acontecimentos, que adotava posição oposto à do comum dos opositores da Perestroika, que almejavam a reintrodução do tradicional modelo soviético (totalitário). Ao invés disto, Yeltsin promoveria a ruptura com o comunismo e a adesão à economia de mercado.
         É sintomático de que, sob a Perestroika, a filha de Yegor Gaidar (Maria Gaidar) destacava-se entre os líderes da oposição democrática.
         
                Instituto Gaidar  e Fórum Gaidar

              As duas instituições constituem herança de Yegor Gaidar e têm uma grande importância na vida acadêmica, bem como na economia da Federação Russa.
           O  Instituto Gaidar para a Economia foi criada em 1990 como instituição acadêmica independente pelo próprio Yegor Gaidar, que seria o seu primeiro Presidente e Diretor Executivo. Exerceu a função até seu falecimento (dezembro de 2009). Substituiu-o  Serguei Prikhodko (nascido em 1957; diplomata de carreira).
           Desde o início sua Diretoria é constituída por destacados economistas, a saber: Serguei Prikhodko; Alexander Rodygin; Serguei Sinelnikov-Murley e Serguei Probyshevski.
           Suas pesquisas e acompanhamento da economia russa acham-se divididas em cinco áreas, a saber: macroeconomia e finanças; setores econômicos russos; desenvolvimento institucional; propriedade e governança corporativa; e pesquisa legal.
           O staff acadêmico do Instituto é integrado por 140 técnicos, encontre os quais encontram-se membro da Academia de Ciências da Rússia, dez doutores e  trinta e nove mestres.
           Mantém acordos permanentes com universidades na Europa (Kiel, Alemanha; CASE, Polônia e Pierre Mendés-France, França; na Ásia (Taiwan); na América do Norte (Harvard; MIT e Maryland) e Canadá.
           Gaidar Fórum foi estabelecido em 2010, em homenagem a Yegor Gaidar, tendo se tornado no mais destacado Fórum Anual na Rússia destinado a organizar a participação na Reunião de Davos, encontro econômico mundial de maior expressão. Realiza-se algumas semanas antes da reunião de Davos, discutindo-se o posicionamento da Rússia diante das questões a serem ali abordadas. Para exemplificar, vamos resumir a notícia dos temas debatidos no Fórum de 2015, que teve a duração de três dias.
          O primeiro painel de debates obedeceu à seguinte temática: Barreiras para a comercialização de resultados de pesquisas científicas. Indica-se o relator e seus títulos (Alexei Komissarov, Conselheiro da Prefeitura de Moscou) e os debatedores inscritos (membros de institutos de pesquisas; representantes de grandes empresas, entre estas o diretor da Microsoft da Rússia, Pavel Betsis; e o diretor da Associação das Regiões Inovadoras da Rússia (Ivan Botnik). Foram apontados os indícios de que os patrocinadores de pesquisas não confiam uns nos outros; a necessidade de encorajar os cientistas a preocupar-se com a comercialização de seus resultados; e como a prática dessa comercialização pode tornar-se fator de motivação do trabalho dos cientistas.
           O segundo painel tratou da possibilidade de investimentos privados de natureza social, sendo relator o representante de uma fundação de pesquisa (Ruben Vardanyan) que buscou resposta para a seguinte questão: existem na Rússia investidores dispostos a reduzir seus lucros em benefício de resultados que beneficiem a sociedade? É realista apostar em projetos privados de caráter social ou esta seria incumbência exclusiva do governo? São listados os principais participantes da discussão que destacaram a necessidade de criar-se clima atrativo para estimular os que se dispõem a tal e promovê-los como exemplo.
        Por fim discutiu-se o papel da massificação da cultura na sociedade moderna. A abertura do debate ficou a cargo de Daniil Dondurey, editor chefe da revista Magazine da arte cinematográfica. Denominou sua palestra de abertura desta forma: Cultura para a Educação ou Educação para a Cultura? Entre os participantes do debate citam-se Vladimir Tolstoi, presidente do Conselho de Cultura da Presidência da Federação Russa; Yulia Shakhnovskaia, diretora do Museu Politécnico e o diretor de teatro Konstantin Bogomolov.
         Quem se dispuser a acessar o seu site (www.gaidarforum.ru), disponível em inglês a partir de 2014, verá quão impressionante é a lista de participantes, representantes de grandes empresas; de órgãos governamentais e sobretudo do mundo acadêmico..

                 Obra teórica de Yegor Gaidar

           Obra teórica de Yegor Gaidar, em inglês, consiste de um livro publicado pelo MIT Press (2012), Rússia: A Long View, com prefácio de Anders Aslund, decano da Faculdade de Economia da Universidade Lomonosov; e de ensaios e conferências em revistas e órgãos de instituições acadêmicas norte-americanas. Seriam as seguintes:
          -Russian Reform/International Money. Lionel Robbins Lectures, julho, 1995
          -Ten Years of Russian Economic Reform; março, 1999
           -Days of Defeat and Victory. Jackson School Puiblications in International
             Studies, dezembro, 1999
            -State and Evolution: Russia´Search for a Free Market. agosto, 2003
          -The Economic o f Russian Transition; agosto, 2002
          

             A questão democrática

     Observa-se tendência a ignorar o significado e as dimensões da abertura política sob Gorbachov bem como a proliferação de diversas tendências no período posterior ao fim da União Soviética e o começo de uma experiência de reversão ao capitalismo, em face de todas as evidências de que a tendência dominante seja a sobrevivência de governos autoritários.
      Samuel Huntington aponta entre as condições que assegurariam ser bem sucedida a transição para a democracia a existência de condições favoráveis ao florescimento de cultura democrática. Parece óbvio que entre tais condições deve pesar sobremaneira a existência ou não de tradição democrática. A Rússia singulariza-se, precisamente, pela permanência, ao longo de séculos, de monarquia absoluta e tirânica. Se a compararmos com a Alemanha unificada tardiamente (1870) e sob a hegemonia da Prússia, com “folha corrida” muito parecida com a russa, a “saída do totalitarismo” --aqui nazista, na Rússia, comunista-- seria algo de muito custoso. Vejamos mais de perto essa comparação.
      A Alemanha era um país que não dispunha de maiores tradições nessa matéria e onde floresceu uma forma de totalitarismo (o nazismo) a exemplo do que ocorreria na Rússia.
       A partir das eleições de 1890, a Alemanha marchou seriamente no caminho de criar instituições democráticas. O fato do Partido Social Democrata Alemão haver optado pela saída parlamentar (Lassalle) ao invés da violência armada (Marx), de certa forma há de ter compensado a circunstância de que a hegemonia política achava-se em mãos da Prússia, após a unificação(1870), país de arraigada tradição patrimonialista em economia e monarquia absoluta, infensa a concessões de ordem democrática. Até a década de trinta quando  se dá a ascensão de Hitler ao poder transcorreram nada menos que três decênios de prática democrática, com a singularidade de que os católicos aderiram a essa prática, ao contrário do que ocorria na Europa de um modo geral, na época. Assim, a religião achava-se entre os fatores favoráveis à prática democrática então implementada.
      Apesar deste que seria um trunfo nada desprezível, o Governo de Adenauer sobreviveu graças exclusivamente ao apoio das potências ocupantes do país, após a derrota da Alemanha na Segunda Guerra. Para examinar essa questão, recorreremos mais uma vez a Huntington.
      Nos anos cinqüenta do século passado, a liderança da reconstrução (Adenauer, sobretudo) não dispunha de qualquer espécie de sustentação interna, situação que se prolongou por um grande período. Acrescente-se que, em apoio a idéia de fazê-lo em bases democráticas, criaram-se as Fundações Partidárias, dispondo de recursos abundantes para promover sistemática difusão da importância da democracia para a convivência social. Huntington louva-se da opinião de estudiosos que concluíram ter a sustentação da República Federal (nome da metade ocidental em que o país foi dividido pelos russos ao criar, no Leste, regime comunista) resultado basicamente do ingresso na vida política das novas gerações. O interregno foi, portanto, muito dilatado.
       De todos os modos, os alemães do Oeste tiveram três decênios de experimentação da convivência democrática.
        Ao contrário disto, a Rússia, ao aderir ao comunismo, em fins de 1917, não dispunha de qualquer tradição democrática. Somente depois dos movimentos revolucionários que  convulsionaram o país, em 1905, o czarismo constituiu um órgão chamado Duma, de natureza consultiva. Embora não dispusesse de maiores poderes, no final de contas era eleito. Assim, quando veio a ser derrocada a monarquia, em fevereiro de 1917, a liderança da Duma, proclamando-se novo poder,  assumiu o projeto de criação de governo constitucional, tentando habituar os russos à convivência com partidos políticos. Mas vejam como se dava, na prática, essa história.
        No período fevereiro/novembro (onze meses, aproximadamente), atuaram na cena três partidos: o Partido Constitucional (Cadete, como passou a ser conhecido, nome formado a partir da sigla em russo), sob a liderança de Alexander Kerenski (1881/1970);  o Partido Social Revolucionário (que reunia a liderança camponesa) e o Partido Comunista. Os dois últimos valorizavam não o projeto constitucional mas os seus membros estruturados em soviets (conselhos, em russo), basicamente soldados que retinham em seu poder as armas. De sorte que os onze meses em causa não chegaram a  estruturar um debate de natureza democrática. Sem dúvida que a idéia constitucional encontrou alguma receptividade, a ponto de que os comunistas, ao patrocinar golpe de Estado em fins de novembro e tomar o poder, não tiveram forças para impedir que se processassem as eleições para a Assembléia Constituinte, embora a tivessem dissolvido após apenas poucos dias de funcionamento.
        Portanto, desse ponto de vista (amplitude da tradição democrática), as condições na Rússia pós-comunismo eram muito mais desfavoráveis que as existentes na Alemanha pós-nazismo, sendo  equivocada a expectativa de resultados mais brilhantes em matéria de construção de instituições do governo democrático representativo.
       O certo é que, nos vinte e cinco anos do pós-comunismo, se são bastante fortes os indícios de emergência de vertente liberal em economia, é diametralmente oposto o quadro político. O que se tem salientado é a capacidade aglutinadora do Kremlin, cujo partido (Rússia Unida) detém dois terços das cadeiras na Duma (315 de um total de 450). O PC sobrevive como segunda legenda. Temos aí o que poderia ser classificado como “fantasma do passado”. Esperar resultados melhores, em nosso meio, seria fazer tábua rasa do que obtivemos na matéria nos trinta anos transcorridos desde 1985, data em que retomamos o projeto de dispor de  algo  parecido com o sistema partidário que construímos no interregno democrático 1945/1964, matéria na qual o que temos a apresentar é uma coleção de fracassos.


São Paulo, novembro de 2015.

sexta-feira, 5 de abril de 2013

CURTAS E GROSSAS EM TEMPOS DE OUTONO CHUVOSO



O passarinho de Chávez assoviou no ouvido de Maduro para que continúe com a Revolução Bolivariana.

Não são poucas as (velhas) novidades deste Outono que, como a gestão petista do país, anda de temporal em temporal. Primeira novidade: um passarinho visitou o candidato a sucessor de Chávez na Venezuela, aquela divulgadíssima figura chamada Nicolás Maduro. (“Maduro”, aliás, na vizinha Colômbia, significa “banana no ponto para ser frita”). Pois bem: no contexto da “revolução sentimental” (a expressão é o título da magnífica obra da jornalista Beatriz Lecumberri sobre o chavismo) em que mergulharam os venezuelanos, Maduro inaugura a rápida campanha presidencial dizendo ter visto Chávez, encarnado na figura de um passarinho, que lhe assoviava para continuar com a “revolução bolivariana” do falecido líder. “A história, dizia Marx citando Comte, se repete como farsa”. No caso da visão ornitológico-mística de Maduro, como comédia de botequim caribenho. Chávez foi visitado pelo numen de Bolívar. Maduro, pelo passarinho de Chávez. É de morrer de rir. 


Os salvadores da pátria e os déspotas, na modernidade, passaram a ter esse tipo de visão mística que os confirmou na sua vocação. Napoleão, antes de se coroar Imperador dos Franceses, em 1804, passou uma semana junto ao túmulo de Carlos Magno em Aix-la-Chapelle (hoje Aachen, na Alemanha), recebendo os fluidos metafísicos do fundador do Sacro Império Romano-Germânico. Com isso, o bravo general Bonapartre (que era chamado pelas mocinhas de “gato com botas”, quando o desajeitado tenente de artilharia as convidava para dançar nos arrasta-pés de quartel) sentiu-se legitimado para, como Imperador, mudar a geografia da Europa e constituir o vasto Império que ia da Rússia ao Canal da Mancha e do Mediterrâneo ao Mar do Norte. Simón Bolívar, o impetuoso jovem que assistiu, em Paris, à coroação do Imperador Napoleão, teve também, no final da viagem, o seu transe místico no Monte Sacro, em Roma, onde, diante do seu mestre Don Simón Rodríguez, jurou estender as conquistas da liberdade sobre o continente sul-americano. Mas os tempos são outros e estão mais para as bananásticas revelações de Maduro, do que para os projetos imperiais de Napoleão ou os anseios libertadores de Bolívar.


Segunda novidade deste chuvoso Outono: de acordo com recente estudo de uma rede de institutos de pesquisas de opinião, entre eles o Ibope, que mediu qual é a percepção de 56 países sobre o maior problema enfrentado pelo mundo hoje, o brasileiro é o povo que mais se preocupa com violência e segurança. Também pudera: graças às “políticas” públicas lulopetistas no setor, não viramos craques em matéria de segurança, mas encabeçamos a lista dos países emergentes consumidores de crack. Temos, pelas contas da ONU, um milhão e oitocentos mil viciados, que se espalham por 97% dos municípios brasileiros. Uma verdadeira catástrofe no que tange ao bem-estar coletivo. As estruturas de segurança pública, pelo país afora, implodiram com essa nefasta irrupção do narcotráfico. Numa pacata cidade do interior mineiro, como era, até há alguns anos atrás, Juiz de Fora, a violência turbinada pelo narcotráfico simplesmente quintuplicou. Já não se pode sair mais à noite sem risco de ser assaltado ou sofrer violência pior.


Terceira novidade: na mesma pesquisa apontada atrás, entre os emergentes o Brasil é o país que menos se preocupa com economia, mas o que mais fala em “políticas sociais”. Trocado em miúdos: enquanto a China, a Índia, a Rússia e a África do Sul se preocupam prioritariamente com a produção de riquezas, os brasileiros se preocupam mais com as benesses que podem receber do Estado via bolsa-alguma-coisa. “Tudo pelo social” tinha dito Sarney, quando presidente, há quase três décadas atrás. Todos aspiram a depender do favor oficial: desde os empreiteiros até os pés-de-chinelo. Milagre do lulopetismo que ressuscitou uma parte escondida do nosso DNA, essa mutação formatada no ciclo pombalino e que foi turbinada no modelo patrimonialista de enriquecimento a partir do Estado, apregoado por ícones políticos como Sarney, que passaram a apoiar resolutamente a pregação lulista.

Quarta novidade: o clima de “vade retro” que se instalou na Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados com o deputado-pastor Feliciano, está revelando uma coisa: o mal que afeta à política brasileira, mais do que Satanás, é a velha compulsão patrimonialista de fatiar o poder para auferir benefícios clientelistas em período pré-eleitoral. Feliciano chegou legalmente lá, em virtude dessa perversa engenharia vigente no Legislativo e no Executivo, que distribui cargos não de olho no bem comum, mas no cálculo eleitoral com os partidos da base aliada. Êta visão tacanha!

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

O SOCIALISMO NA FRANÇA E NO BRASIL: UMA ANÁLISE FEITA EM 2002

Em Agosto de 2002 escrevi esta análise acerca das semelhanças entre os socialismos francês e brasileiro. Depois de ver o desempenho do governo Hollande, que não consegue fazer despegar o avião da economia francesa, e depois de ver, por outro lado, o tamanho do "pibinho" com que o terceiro governo petista nos brinda, acho que a minha análise tem plena atualidade.

O que é que a França tem de comum com o Brasil? Poderiamos dizer que, em primeiro lugar, a estrutura centralizada do Estado. Em segundo lugar, poder-se-ia afirmar, validamente, que os nossos marxistas são tão estatizantes e dogmáticos quanto os comunistas franceses. Estalinistas mesmo. Com uma diferença: na França, e talvez em Portugal e na Espanha, esses dinossauros ficaram confinados no PC. No Brasil, mimetizam-se em tudo quanto é partido de esquerda, do PT ao PC do B, ocupando sofregamente o segundo escalão dos Ministérios, quando não a direção das Universidades Federais e as Secretarias Estaduais ou Municipais, nos lugares onde há governantes favoráveis. Das diferentes siglas que integram a fatia ideológica soi disant "progressista", parece que somente uma desencarnou, no Brasil, do velho marxismo-leninismo: o PPS, que se apresenta, no seu programa, como um Partido de inspiração social-democrata.

A recente derrota da esquerda nas eleições presidenciais francesas, talvez deva ser inserida nesse contexto. A sociedade não acredita mais no discurso ideológico tradicional da esquerda. Jospin levou ao seu palanque o nosso bravo Lula, e está provado que isso não melhorou as suas condições eleitorais. Será que Lula é pé frio? Deixemos a resposta a essa pergunta para os que administram bola de cristal. O problema, no plano real, não é esse. O problema radica na semelhança entre as esquerdas francesa e brasileira. Nenhuma das duas conseguiu se modernizar, ao contrário do que fizeram os esquerdistas na Espanha (com Felipe González), na Itália (com Massimo d'Alema) e na Inglaterra (com Anthony Giddens e Tony Blair). Moral da história: por não terem se modernizado, as esquerdas francesa e brasileira metem medo no eleitorado e nos investidores. No caso francês, logo após a eleição de Jospin para o cargo de primeiro-ministro, mais de quinze mil empresas cruzaram o Canal da Mancha, fugindo do espírito orçamentívoro dos socialistas e buscando os ares mais liberais da Grã Bretanha, onde o Novo Trabalhismo teve a sensatez de manter uma política tributária que não desestimulasse os investimentos e a livre iniciativa. Moral da história: a economia francesa estagnou-se e perdeu competitividade, não diminuiu o desemprego, tendo aumentado sensivelmente, em decorrência desses fatores, as tensões sociais e a insegurança geral da população. Até os imigrantes do Centro da Europa preferem se expor aos riscos de fugir dos refúgios para imigrantes construídos no noroeste da França, e se aventuram a percorrer a pé a perigosa rota do Eurotúnel. O clima na Inglaterra é melhor, até para os que não têm nada.

Por essas semelhanças entre a França e o Brasil, certamente será de interesse para os leitores brasileiros a mais recente obra do historiador francês Maurice Druon intitulada: La France aux ordres d'un cadavre (Paris: Editions de Fallois / Editions du Rocher, 2000, 146 pg.), cuja síntese é assim apresentada pelos editores: "Depois do final da Segunda Guerra Mundial, a França vive em regime semi-marxista, sendo o único país da Europa que se encontra nessa situação. O cadáver evocado pelo título é o da União soviética, morta há cerca de dez anos, mas cujas orientações, instruções e consignas dadas ao Partido Comunista Francês e retomadas pelos sindicatos, continuam a se impor à nossa sociedade. Função pública, setor nacionalizado, convenções coletivas, código de trabalho, política fiscal, administração de justiça, ensino e pesquisa, tudo sofre conseqüências dos planos, concertados à época da liberação e durante a guerra fria, que tentavam fazer esmorecer ou desestabilizar nosso país, a fim de alinhá-lo com o modelo soviético. Os efeitos penetraram de tal modo nos nossos costumes que os cidadãos não os percebem. Mas a situação da França tem sido gravemente afetada. Este livro apresenta coisas nunca ditas, nem com tal vigor, por um escritor que tem ocupado altos cargos no Estado, e que está bem informado acerca de todos os aspectos da vida pública" [Apresentação, segunda capa].

Antes de prosseguir, no entanto, falemos um pouco do autor. Maurice Druon, da Academia Francesa, é um escritor conhecido internacionalmente graças à saga histórica intitulada Les rois maudits (cuja última edição apareceu na coleção "Volumes", Paris: Plon, 1999, 7 volumes). Druon é autor também de duas séries de romances históricos, ambas reeditadas pela editora Plon, em 1999: Romans Mithologiques (Les Mémoires de Zeus, Alexandre le Grand, Les Rivages et les Sources) e Romans Contemporains (Les grandes Familles, La chute des corps, Rendez-vous aux enfers, La volupté d'être). Outras obras de Maurice Druon são as seguintes: Mégarée, pièce en trois actes (1944), Lettres d'un Européen (1944), Nouvelles lettres d'un Européen (1970), La dernière brigade (1946), Remarques (1962), Un voyageur (1954), L'Hôtel de Mondez (1956), Tistou, les pouces verts (1957), Des seigneurs de la plaine à l'Hôtel de Mondez (1962), Paris, de César à Saint Louis (1964), Bernard Buffet (1964), Le pouvoir, notes et maximes (1965), Le bonheur des uns (1967), Vézelay, colline éternelle (1968), L'Avenir en désarroi (1968), Une église qui se trompe de siècle (1972), La parole et le pouvoir (1974), Attention la France! (1981), Réformer la démocratie (1982), Lettre aux Français sur la langue et leur âme (1994), Circonstances 1 - Circonstances civiques, du voyage, du gaullisme (1997, prêmio Jules Simon), Circonstances 2 -Circonstances politiques I, 1954-1974 (1998), Circonstances 3 - Circonstances politiques II, 1974-1998 (1999), Le "bon Français" (1999, prêmio Agrippa d'Aubigné).

Voltemos à obra que ora comentamos: La France aux ordres d'un cadavre. O autor inspira-se na famosa sentença de Tocqueville: "Os Franceses querem a igualdade; e quando não a encontram na liberdade, procuram-na na escravidão" [pg. 135]. Como epígrafe, utiliza as palavras de Montesquieu: "Quando se trata de provar coisas tão claras, estamos seguros de que não convenceremos" [pg. 7]. Mesmo que o PC francês, os comunistas portugueses ou os marxistas-leninistas tupiniquins não se convençam muito com as coisas tão claras mostradas pelo autor, são meridianas as ligações que ele estabelece entre o centralismo cartorial francês (que, como mostrou Tocqueville na sua obra L'Ancien Régime et la Révolution tem séculos de história) e o processo de marxistização ocorrido por influência soviética. Não que o primeiro tenha sido causado pelo segundo. Mas a marxistização deitou no leito de Procusto do velho centralismo e lhe forneceu sangue novo. Ou sangue ectoplasmático, já que Druon fala em obediência a um cadáver.

A União Soviética aplicou à França as receitas de Sun-Zu (o famoso estrategista chinês contemporâneo de Buda e Péricles, cujos escritos eram uma espécie de catecismo para os serviços secretos soviéticos). A respeito, frisa Maurice Druon: "A arte suprema da guerra, para Sun-Zu, consiste em conquistar o país ou cidades sem ter de dar a batalha, mas debilitando-os no interior, diminuindo os seus recursos e minando-os moralmente, até que fossem incapazes de se defenderem e se pudesse então pegá-los como frutos já podres. Para isso, todos os meios e todos os aliados são bons: a propagação de falsas notícias (ou desinformação), o estímulo às rivalidades internas, o descrédito jogado sobre os chefes por meio de falsas acusações, a infiltração das administrações por agentes da propaganda, a parálise do trabalho, a queda dos rendimentos. Depois de 2500 anos, se os processos são evidentemente diferentes, os princípios e os objetivos permanecem os mesmos" [pg. 14-15].

Em meados de 1920, Lenine tinha formulado e feito adotar pelo Komintern (a Internacional Comunista) as 21 condições que deveriam ser aceitas pelos partidos que quisessem fazer parte dessa Internacional. O Komintern era definido como "o partido internacional da insurreição e da ditadura proletária" [pg. 20-21]. E um dos seus mandamentos era o seguinte: "Em quase todos os países da Europa e da América, a luta de classes entra no período de guerra civil. Os comunistas não podem, nessas condições, confiar na legalidade burguesa. É seu dever criar em todos os lugares, paralelamente à organização legal, um organismo clandestino capaz de cumprir, no momento decisivo, com o seu dever em face da revolução" [pg. 21].

O Partido Comunista constituiria a "seção francesa" da Internacional comunista. Em dezembro de 1920 houve uma polarização das organizações trabalhistas da França ao redor de dois núcleos: a Section Française de l'International Ouvrière (SFIO) e a Section Française de l'Internationale Communiste, que se converteu no Partido Comunista Francês (PCF), com a sua filial sindical, a Confédération Générale du Travail Unitaire (CGTU), alinhadas, estas duas últimas organizações, com os princípios formulados por Moscou. É bom lembrar que o Komintern constituiu, no período estalinista, uma "gigantesca burocracia com vocação mundial para a subversão e a propaganda" [pg. 21], um formidável ordenador ou processador da estratégia, ao mesmo tempo que um formulador de ordens táticas instalado a dois passos do Kremlin, e onde os Partidos Comunistas dos diversos países não existiam senão como "seções".

A respeito da política estalinista, frisa Druon: "A genialidade de Stalin consistiu em construir e sustentar, na mesma mão, de um lado um Estado-partido com todos os traços do nacionalismo, do imperialismo e da ditadura totalitária, mas que era considerado como a fachada do socialismo em construção e, de outra parte, esse estado maior da revolução mundial que, na falta de chegar rapidamente a esta, servia principalmente aos interesses e ao poder da URSS" [pg. 21-22].

O fato de o PC francês não ter conseguido enquadrar todos os ativistas, em decorrência da indisciplina que grassava nos seus quadros, fez com que, no Komintern, a França fosse jogada no saco de lixo dos "países latinos". Mas, devido à importância estratégica do país na Europa, os soviéticos decidiram apostar na marxistização ou sovietização dos quadros, enviando para a França um representante direto, Eugen Fried (judeu húngaro de nascimento, de nacionalidade tcheco-eslovaca, que tinha sido um dos fundadores do PC tcheco e que era um homem sedutor, que falava fluentemente várias línguas, que era, de outro lado, um ativista perfeito, teórico e tático, bom negociador, trabalhador incansável e muito próximo de um dos colaboradores mais íntimos de Stalin). Druon alicerça-se, neste ponto, na obra de Annie Kriegel e Stéphane Courois, intitulada Eugen Fried (Paris: Seuil, 1997). Poucas pessoas sabiam que Fried integrava o bureau político do PC francês, ao lado de Thorez, Duclos, Marty e Frachon, mais precisamente desempenhando as funções de chefia. Fried foi quem expulsou Doriot (que desempenhava as funções de maire em Saint-Denis), pelo crime de "desviacionismo". Foi igualmente Fried quem confirmou Maurice Thorez na chefia do Partido. A respeito, escreve Druon: "Nada de raro que, sob essa férula, o PCF tenha se convertido no mais estalinista dos partidos comunistas e que, por impregnação mental e força de hábito, tenha se conservado tal até os nossos dias, tendo renunciado ao estalinismo apenas de dentes para fora" [pg. 25].

O Front Populaire de Léon Blum, com as reformas socialistas em andamento, semeou o terror no seio da burguesia, segundo Druon, em relação à revolução proletária e à sovietização do país. Esse clima abriu a porta ao espírito de colaboracionismo da República de Vichy. No momento de reordenamento das instituições após a Segunda Guerra Mundial, o autor traça o seguinte quadro: "No governo de 1945, no qual de Gaulle deveria abrir espaço aos comunistas, eles teriam querido o exército; mas ficaram com o armamento. Eles desejavam, de outro lado, o ministério do Interior, mas não conseguiram. Em compensação, Maurice Thorez recebeu o ministério da Função Pública. Atribuição sem risco subversivo imediato, mas cujas conseqüências seriam duradouras e significativas. A Função Pública é todo o aparelho do Estado, as suas alavancas e as suas engrenagens" [pg. 47].

Maurice Thorez foi o encarregado, como ministro da Função Pública, de redigir o estatuto do servidor público. A respectiva lei foi promulgada em 5 de outubro de 1946. A respeito dessa legislação, afirma Druon: "Pode-se datar dessa lei a dinossaurização das administrações, a sua tendência a um crescimento pletórico, a lentidão dos seus procedimentos, a incapacidade crônica do Estado para proceder às reformas mais evidentemente necessárias. Essa lei significava a petrificação de tudo!" [pg. 49]. O nosso autor destaca o imobilismo a que conduziu essa nova legislação, com as seguintes palavras: "Pois seja lá o que se queira ou o que se faça, não se pode impedir que, alicerçados no estatuto de 46, os sindicatos controlem o desenvolvimento das carreiras, as promoções, as mudanças, as sanções. Salvo para os postos muito altos, a promoção por mérito ou por eficiência é impossível; os funcionários, bons ou maus, progridem de nível em nível, de forma pouco racional. O absenteísmo é tolerado, senão encorajado, os sindicatos garantindo a freguesia. É necessário que uma falta seja gravíssima, uma desonestidade verdadeiramente enorme ou um escândalo muito patente, para que medidas disciplinares sejam tomadas. O culpável sempre encontra um sindicato para se proteger ou para encontrar situações atenuantes. A preguiça, a lentidão, a falta de atenção, o erro, coisas todas prejudiciais aos cidadãos, são faltas veniais e perdoadas de antemão" [pg. 51-52].

O fato de os comunistas terem se apropriado do Ministério da Função Pública produziu, no seio do Estado francês, um efeito perverso: reforçou a velha tendência estatizante e centralizadora, proveniente do Ancien Régime e mantida inalterada pelo regime napoleônico e pelo republicanismo autoritário. Esse fator é o responsável, nos dias  que correm, pela perda de competitividade da França no seio da União Européia e no plano internacional. Em relação ao inchaço burocrático que essa legislação produz, frisa o nosso autor: "Mas ninguém ousa evocar os 20 mil empregos fictícios que as administrações abrigam. Quando adianto essa cifra de 20 mil, estou seguramente por baixo da conta. Há vinte anos, esses empregos eram calculados entre 16 mil e 18 mil. Pois o número exato jamais consegue ser estabelecido, mesmo que exista um ministério da Função Pública que poderia tratar de sabê-lo. Esse é, ao que parece, um tema tabu, acerca do qual é mantido o mais completo silêncio" [pg. 60].

O engessamento da função pública tem beneficiado, em primeiro lugar, à burocracia improdutiva e corrupta. Druon considera que os Ministérios da Educação e da Justiça foram invadidos, nos últimos 60 anos, por verdadeiros batalhões de burocratas que tinham como única divisa manter os seus privilégios, mesmo que para isso fosse necessário desmontar a instrução pública e a administração de justiça. O ministério da Educação, por exemplo,  tem crescido em burocratas muito mais do que o necessário. Conta atualmente com 1,1 milhão de funcionários, dos quais 900 mil docentes. Nos últimos vinte anos, o número de estudantes aumentou, no entanto, apenas 17%, ao passo que o de docentes cresceu 40%, muito além das necessidades reais.

Mas também têm sido beneficiadas as empresas estatais, verdadeiras massas falidas que custam caro ao tesouro público. "Se o Estado produz - frisa Druon -, ele só pode fá-lo em situação de monopólio. O Estado não saberia se permitir entrar no circuito da concorrência. Isso vai contra a sua dignidade. O Estado está aí para fixar as regras do jogo, não para jogar e muito menos para perder. Ora, o peso dos procedimentos nas empresas públicas, a burocratização do seu pessoal, a irresponsabilidade material dos seus quadros, as vacinam contra a competitividade. E se elas usam procedimentos porventura duvidosos (que às vezes são usados pelas empresas particulares), o descrédito recai sobre o Estado. É só lembrar o escândalo do affaire Elf-Aquitaine" [pg. 66].

O crescimento descontrolado do pessoal vinculado ao Ministério da Função Pública custa caro aos cofres da nação. A carga tributária que pagam os contribuintes franceses é, sem sombra de dúvida, a mais alta da Europa Ocidental. E explica o fenômeno de que mais de 15 mil empresas tenham cruzado, nos últimos cinco anos, o Canal da Mancha, para se estabelecerem na Inglaterra, país que goza de uma política tributária muito mais favorável aos investimentos e à geração de empregos. A respeito, afirma Druon: "As cargas que pesam sobre o contribuinte francês, imposto sobre a renda, taxas, quotas, retenções obrigatórias, transferências sociais (saúde, família, desemprego, velhice) elevam-se, todas compreendidas, a 62% do ganho individual médio. Dizemos médio. Como um número importante de cidadãos, levando em consideração a franqueza dos seus ingressos, são livres de algumas dessas contribuições, é apenas lógico que os outros assumam encargos tributários que oscilam entre 70% e 100%. A Grã Bretanha conheceu há trinta anos esse tipo de excesso. A vida ali era sinistra; as lojas, desertas, faliam umas após outras, e todo o país periclitava. Hoje, é um país próspero e atraente; o desemprego caiu ali a 5,9% e Londres é uma festa. A carga fiscal média foi reduzida a 40%" [pg. 90].

Para ilustrar um pouco o pessimismo do nosso autor, vale a pena lembrar os números do gigantismo estatal francês. No ano de 1998, segundo pesquisa desenvolvida pelo jornal Le Figaro [cf. Nirascou, 1998: 10], calcula-se que foram criados ao redor de 15 a 16 mil cargos públicos suplementares. Isso, num país que conta com uma significativa população de empregados públicos (5,1 milhões) e de funcionários das empresas estatais (1,2 milhões), é realmente um exagera e sinaliza de forma negativa à sociedade uma falsa saída: tudo se resolve pelo Estado encostando nele mais gente. Esse é muito provavelmente o combustível que alimenta as freqüentes passeatas pelas avenidas parisienses dos chamados "excluídos", ou seja, dos que não gozam das benesses do funcionalismo e que gostariam de participar do bolo nacional. O tamanho do funcionalismo público francês (equivalente a 25% da população economicamente ativa) contrasta com o de outros países desenvolvidos: 15% nos Estados Unidos e na Alemanha, 19% na Bélgica, 18.4% em Portugal, 17,8 % na Itália, 17% na Irlanda, 14,8% na Espanha, 14,4% no Reino Unido, 12% nos Países Baixos, 11% em Luxemburgo, 9,8% na Grécia, etc.

As benesses do funcionalismo público francês são, aliás, nada desprezíveis. Com exceção dos altos cargos públicos (ao redor de 25 mil funcionários, cujos salários são inferiores aos do setor privado em aproximadamente 25 ou 30%), todas as outras categorias ganham melhor do que no setor privado. Do ponto de vista da distribuição do bolo orçamentário que chegou em 1998 a 1.550 bilhões de francos (258 bilhões de dólares), o funcionalismo público abocanha ao redor de 40%, equivalentes a 650 bilhões de francos (103,3 bilhões de dólares). Longe de gerar essa situação a paz social, constitui motivo de perturbação universal. O funcionalismo, ao que tudo indica, quer mais. Calcula-se que as greves no setor público eqüivalem a 60% dos movimentos sociais na França. os outros 40% devem corresponder aos protestos dos que se consideram excluídos da festança oficial [cf. Vélez, 2000:  16-17].

A burocracia alimentada pelos regulamentos favoráveis do Ministério da Função Pública garante, no sentir de Druon, que tal estado de coisas se mantenha inalterado. O sistema tributário repousa num verdadeiro cipoal de leis e regulamentos que ninguém consegue entender. A última edição do Code général des impôts conta com 2.097 páginas. Mas isso não é tudo. A Documentation fiscale de base, publicada em 1999 pela Direção Nacional de Impostos (a temida DGI, uma espécie de Big Brother fiscal) tem 5.948 páginas, exatamente 2.170 páginas a mais do que a publicação correspondente ao ano de 1990! Verdadeiro monumento digno do mais perfeito colbertismo, em pleno século XXI. Para garantir a tortura aos contribuintes, a DGI conta com nada menos do que com 80 mil funcionários. Esse emaranhado de burocratas e de leis produz no cidadão francês uma terrível doença, segundo Druon: "le Français ne comprend rien à la fiscalité qui l'accable" [pg. 91]. Atrever-me-ia a dizer que talvez não se trate de uma doença, mas de um expediente dos atribulados cidadãos para poder conservar a saúde mental, algo assim como o espírito carnavalesco brasileiro em face da irracionalidade do Leviatã orçamentívoro, que là-bas, no Brasil tropical, cobra mais de 50 impostos em cascata, além de contribuições compulsórias como a CPMF e os impostos disfarçados como o ICMS.

Bibliografia citada

NIRASCOU,  Gérard. "Fonctionnaires: le trop-plein (Enquete)". In Le Figaro, Paris, 12 de fevereiro de 1998, pg. 10.

VÉLEZ Rodríguez, Ricardo. "O gigantismo estatal francês: aspecto político". In:  Ubiratan Macedo (organizador), Avaliação crítica da social-democracia - o exemplo francês. São Paulo: Massao Ohno / Instituto Tancredo Neves, 2000, pg. 15-36.