O risco do
totalitarismo e do autoritarismo não foi banido da vida política brasileira. É
um risco que está presente, na medida em que perduram, na nossa cultura,
hábitos e convicções que reproduzem esse universo. Esta exposição tem como
objetivo identificar essas variáveis, a fim de estimular a busca de atitudes e
soluções que se lhes contraponham, visando à consolidação da democracia no
Brasil.
Serão desenvolvidos
três pontos: I) os fenômenos totalitário e autoritário, II) formas históricas
autoritárias e totalitárias no século XX e III) análise prospectiva: as
perspectivas autoritárias e totalitárias no Brasil. e no mundo.
I- Os
fenômenos totalitário e autoritário.
A fim de realizar
uma exposição sumária das variáveis totalitária e autoritária no mundo
contemporâneo, torna-se necessário desenvolver os seguintes itens: 1- gênese:
antecedentes culturais e moldura histórica; 2 - similitude e aspectos
diferenciais; 3 - traços comuns aos totalitarismos.
1-
Gênese: antecedentes culturais e moldura histórica.-
No que tange aos antecedentes culturais dos fenômenos totalitário e
autoritário, poderíamos situá-los, do ângulo filosófico, no seio da própria
cultura da Grécia clássica, quando Platão tentou elaborar o modelo de
organização de uma República racional, arquitetada ao redor do rei-filósofo e
fechada à prática do dissenso. A respeito, escreve Maciel de Barros (1990: 30-31) :
“Que dizer, entretanto, do ‘totalitarismo antigo’? E, em primeiro lugar, onde
encontrar manifestações dele? (...) Só seria possível registrar a sua presença
entre os povos que viveram positivamente a experiência da individualização,
aceitando-a. E, entre estes, naqueles
que tiveram a idéia de modelar o homem, apelando para a ciência (naturalmente
para o que o seu tempo considerava ciência), construindo uma espécie de
‘filosofia da história’ que explicaria a degradação do homem em conexão com a
degradação das formas políticas, caracterizando a existência de uma ideologia
(...). Ora, todas essas condições só as encontramos realizadas entre os gregos,
particularmente na teoria política de Platão”. O pensador grego, ainda segundo
Maciel de Barros (1990:32)
, “é um ideólogo que, na elaboração de sua teoria ‘científica’ e
‘maniquéia’ (...) sobre a vida política, teve presente, se não como modelo
perfeito, pelo menos como a forma mais aproximada desse modelo, a experiência
espartana que é (...) uma insólita ‘experiência totalitária’ no mundo antigo”.
Mas, ao lado do
antecedente platônico, que consolidaria o princípio de que “o poder vem do
saber” e da que posteriormente seria denominada por Comte de “ditadura
científica”, há um outro antecedente filosófico do binômio
autoritarismo-totalitarismo: trata-se da gnose ocidental, filha bastarda da tradição
judaico-cristã dessacralizada. Segundo essa tradição gnóstica, a história
humana tem começo, meio e fim, consistindo este último na eclosão definitiva da
razão humana (o “espírito absoluto” de que nos fala o monge calabrês Joaquim de
Fiori, no final da baixa Idade Média) (cf. Lubac, 1978).
Este antecedente cultural do autoritarismo e do totalitarismo é denominado por
Maciel de Barros
(1990: 26) de “totalitarismo do devir”.
Esses dois
antecedentes culturais, de cunho filosófico, do binômio autoritarismo-totalitarismo,
vinculam-se a um arquétipo epistêmico, o da verdade como unanimidade, que se
contrapõe, no terreno da política, a um outro, o da verdade como dissenso a
partir do qual se constrói o consenso. É evidente que se nos situarmos no
primeiro arquétipo, estaremos na República platônica ou no reino da virtude
rousseauniana, que exige unanimidade de todos os cidadãos, a fim de consolidar
a vontade geral.
O estudo dos
antecedentes culturais do binômio autoritarismo-totalitarismo ficaria
incompleto, no entanto, se não fosse levada em consideração a variável
sócio-política. Os estudos mais destacados, nesse terreno, foram os
empreendidos por Max Weber (1944) e Karl Wittfogel (1977),
de um lado, e por Alexis de Tocqueville (1989),
de outro.
Os Estados modernos,
segundo Weber, surgiram de acordo a duas
tipologias: a contratualista e a patrimonialista. A primeira deu-se naquelas
nações que, como a Inglaterra, experimentaram na Idade Média o feudalismo de
vassalagem, fenômeno eminentemente contratualista. Os Estados organizaram-se,
no período moderno, a partir de um
contrato ou pacto entre as classes que se digladiavam pela posse do poder, tendo dado ensejo, no decorrer dos três últimos séculos, à
prática do parlamentarismo. Esse foi o
processo percorrido pelos Estados nacionais na Europa Ocidental, exceptuada a
Península Ibérica.
Nos países ibéricos,
pelo contrário, como também na Rússia, o surgimento e consolidação do Estado
moderno ocorreu de forma bem diversa: ele surgiu da hipertrofia de um poder
patriarcal original, que alargou a sua dominação doméstica sobre territórios,
pessoas e coisas extra-patrimoniais, tratando-os como propriedade familiar (ou
patrimonial). Além dos países mencionados, esse foi o processo percorrido
também, na antiguidade, pelos países
onde se firmou o chamado por Wittfogel “despotismo oriental”, decorrente da
economia hidráulica (Antigo Egito, China, Mongólia, os Califados árabes, além
dos impérios pré-colombianos de Tihuanaco, Inca e Asteca). Patrimonial seria a
herança na formação dos Estados ibero-americanos, após os processos de
independência em relação às metrópoles espanhola e portuguesa. Essa situação
tem sido estudada, entre outros, por Raimundo Faoro (1958),
Antônio Paim (1978),
Fernando Uricoechea (1978), Simon Schwartzman (1982),
Vélez-Rodríguez
(1982) e Meira Penna (1988).
Alexis de
Tocqueville analisa a variável sócio-política precursora do binômio
autoritarismo-totalitarismo, enfatizando a base jurídica sobre a qual se
alicerçam as práticas absolutistas. Estas consolidaram-se na Europa, após o
final da Idade Média e ao ensejo da formação dos Estados nacionais, graças ao
esquecimento do direito consuetudinário germânico e à sua substituição
gradativa pelo direito romano. Eis a forma em que Tocqueville (1989:197) explica
esse fenômeno na Alemanha: “No fim da Idade Média, o direito romano tornou-se o
principal e quase o único escudo dos jurisconsultos alemães. Nessa época, a maioria dentre eles estudava fora da
Alemanha, nas Universidades da Itália. Estes jurisconsultos, que não eram os
dirigentes da sociedade política, mas que estavam encarregados de explicar a
aplicar as suas leis, se não puderam abolir o direito germânico, deformaram-no
entretanto de modo a fazê-lo penetrar à força no quadro do direito romano.
Aplicaram as leis romanas a tudo que, na sociedade germânica, pareceria ter
alguma longínqua analogia com a legislação de Justiniano. Introduziram desta
maneira um novo espírito, novos hábitos na legislação nacional; esta foi pouco
a pouco tão transformada que tornou-se irreconhecível e, no século dezessete, por exemplo, quase não
era mais conhecida. Foi substituída por
um não-sei-quê ainda germânico pelo nome,
mas romano de fato”.
Processo semelhante,
no sentir de Tocqueville (1989: 185-189),
ocorreu na França, onde o centralismo alicerçado no direito romano permitiu aos
reis consolidarem a sua posição sobranceira à sociedade, que foi submetida, ao
mesmo tempo, ao absolutismo e ao igualitarismo. Daí emergiu a Revolução de
1789.
A bem da verdade, as
tipologias weberiana e tocquevilliana se complementam, se levarmos em
consideração que o conceito de Estado patrimonial é, para Weber, uma categoria relativa, no sentido de que um regime pode evoluir do
patrimonialismo para o contratualismo, ou vice-versa. As categorias de
Tocqueville se aplicam ao processo assinalado por Weber, da seguinte
maneira: um Estado com alto grau de
centripetismo (ou de patrimonialismo), incorpora o direito romano para garantir
essa situação (isso aconteceu, por exemplo,
em Portugal, quando da Revolução de Avis, em 1385). Um Estado com alto
grau de contratualismo se aproxima mais do direito consuetudinário germânico
(foi o processo que ocorreu nas Ilhas Britânicas, quando da derrota do absolutismo no século XVII).
Já no que diz
relação à moldura histórica dos fenômenos totalitário e autoritário, podemos
frisar que, a partir dos antecedentes culturais atrás pontados, a história é
pródiga em múltiplos exemplos de regimes neles inspirados. Precedidos pela
República platônica e pelo modelo político emergente do direito justiniano
(“non est civitas propter civem, sed cives propter civitatem”) encontramos,
influenciados já diretamente pelos antecedentes culturais citados, os
autoritarismos presentes no precursor
medieval de Maquiavel e Hobbes, Marsílio de Pádua (1275-1342),
como também na Cidade do Sol (1602) do
renascentista Tomás Campanella, no Príncipe
(1517)
do florentino Nicolau Maquiavel e no Leviatã
(1651)
do filósofo da revolução de Cromwell, Thomas Hobbes. Porém, é com a formulação do messianismo
político
(cf. Talmon, 1956, 1969) no pensamento de
Rousseau (1712-1778)
e Saint-Simon (1760-1825),
que se consolida a versão moderna do autoritarismo. Essa será a base sobre a
qual, no século XX, emerge o modelo do totalitarismo.
2
- Similitude e aspectos diferenciais.-
A semelhança que se dá entre o autoritarismo e o totalitarismo é gradual: o
totalitarismo realiza, em grau extremado, o que o autoritarismo consegue apenas
parcialmente. O centripetismo da vida
política, econômica e cultural da sociedade ao redor do Estado, dá-se de forma
limitada nos governos autoritários. Nos totalitários, a realidade do Estado mais forte do que a
sociedade é esmagadora.
Antônio Paim (1994a: 11)
distinguiu da seguinte forma autoritarismo e totalitarismo, referindo-se à
realidade brasileira: “Nosso autoritarismo republicano não pode ser confundido
com o totalitarismo. Mesmo nos períodos de sua maior exacerbação - como na ditadura Vargas ou sob os governos
militares - o regime sempre admitiu
oposição. Pode-se dizer que esta era uma oposição consentida, o que corresponde
à verdade. Oposição consentida era
aquela que aspirava à volta do processo eleitoral normal como forma de
promover-se a alternância dos governantes no poder e de efetivar a renovação
das Assembléias. Havia, em ambas as circunstâncias históricas, grupos que pretendiam fazê-lo pela força e,
contra estes, certamente, foram
empregadas formas odiosas de repressão.
O que distingue o totalitarismo, contudo, é que não é admitida nenhuma
forma de oposição. Toda oposição é catalogada como subversiva (no sentido
próprio e não pejorativo do termo, isto é, recorrendo ao emprego da força) e
como tal ferozmente reprimida”.
Karl Wittfogel, na
sua obra Depotismo
Oriental (1951)
destacou que o modelo patrimonial de Estado constituiu a preparação para a
implantação, na Rússia soviética, do
modelo totalitário comunista. “O socialismo - afirma a respeito Antônio Paim (1994b: 115)
- talvez não tenha passado de uma
virtualidade do Estado patrimonial”. Essa seria uma manifestação da semelhança
gradual apontada entre autoritarismo e totalitarismo.
3)
Traços comuns aos totalitarismos.- No sentir de Hannah
Arendt (1979:
305-479) e J. L. Talmon (1956),
os traços comuns aos totalitarismos são os seguintes: a) busca da identidade
completa entre o Estado, de um lado, e a
sociedade, a economia e a cultura, de outro; b) unicidade partidária e
sindical, com monopólio da vida política pelo partido único e das atividades
profissionais pelo sindicato único submetido ao partido; c) império de uma única
ideologia, que passa a inspirar a visão de mundo de todos os indivíduos; d)
domínio da propaganda, mediante o controle, pelo Estado, dos mass media;
e) controle absoluto da polícia política sobre todas as atividades da sociedade
e das pessoas; f) geração de um clima de terror permanente por parte do Estado,
como instrumento para destruír a solidariedade social e a capacidade de reagir
dos indivíduos; g) surgimento, nas pessoas assim submetidas, do sentimento da
solidão total. Ninguém melhor do que Mussolini exprimiu a essência do
totalitarismo, quando afirmou: “Tudo dentro do Estado, nada fora do Estado”.
II- Formas históricas autoritárias e
totalitárias no século XX.
Nesta parte serão
desenvolvidos quatro itens: 1- o fascismo e o nazismo; 2- o justicialismo e o
estado-novismo; 3 - o socialismo de modelo soviético e suas variações; 4 - o
fundamentalismo islâmico.
1-
O fascismo e o nazismo.- De acordo com estudiosos do nacional-socialismo (cf.Garmendia, 1986: 803-804; Lipset, 1963:
121-135; Poulantzas, 1971; Bosch, 1976: 49-54; Delgado, 1976: 61-66; Touchard,
1972: 608-616; Sabine, 1972: 657-661), os componentes
fundamentais desta doutrina política são os seguintes: a - exacerbado
nacionalismo que ancora numa ideologia comunitária com base em critérios étnicos
e racistas; b - xenofobia que evoluiu até um anti-semitismo biológico radical
(com base no qual se efetivou o holocausto de milhões de judeus na Segunda
Guerra Mundial); c - idolatria do Estado onipotente segundo um enfoque
absolutista e centralizador; d - socialismo nacionalista, que procurava unir o
romantismo social ao estatismo; e - culto à personalidade e messianismo
carismático, centrados ao redor da figura do III Reich; f - monopólio da
política por parte do partido único controlado com mão de ferro pelo Führer;
g - instauração do terror estatal, mediante a temida polícia secreta do regime
(os SS); h - organização de uma poderosa máquina de propaganda orientada a
efetivar o controle do regime sobre a economia e sobre a consciência dos
cidadãos; i - organização de uma poderosa máquina de guerra, que garantiu os
ideais expansionistas de Hitler.
Já em relação ao
fascismo, os estudiosos (Cf. Cotter, 1986: 463-464; Cambó, 1925; Lipset, 1963:
145-147; Poulantzas, 1971; Cassigoli, 1976:175-180; Pierre-Charles, 1976:
163-174; Hackethal, 1976: 181-186; Sabine, 1972: 632-656; Touchard, 1972:
608-616) destacam as seguintes caraterísticas: a -
composição do Estado como algo absoluto, perante o qual os indivíduos ou os
grupos sociais são relativos, uma vez que só têm sentido se atrelados a ele; b
- caráter autocrático do poder do Estado concentrado no chefe (Mussolini), de
quem emanava, como frisava ele próprio, “uma vontade dirigida para o poder e o
governo: a tradição romana revela-se aqui no ideal da força em ação (...). Para
o fascismo, o crescimento do império era uma manifestação de vitalidade, e o
oposto, um sinal de decadência” (apud Cotter, 1986: 464);
c - subordinação da vida política de toda a sociedade ao Estado, mediante o Partido único; d - monopólio
estatal dos meios militares e das comunicações; e - implantação do terror
estatal, mediante grupos policiais e para-militares (“camisas negras”); f -
ativismo contrário à idéia democrática e à defesa da liberdade perante o
Estado; g - estatismo de inspiração social, que pretendia, mediante a presença
tutora do Estado, equacionar a
problemática da justiça, selecionando o que de real valor houvesse, nesse
ponto, “nas doutrinas liberal, social e
democrata”
(Mussolini, apud Cotter, 1986: 463); h - organização
corporativa das forças econômicas (empresários e trabalhadores).
O
nacional-socialismo e o fascismo revelaram-se como duas modalidades semelhantes
de totalitarismo, que lutaram juntas na Segunda Guerra Mundial e que semearam a
morte e a destruição ao longo da Europa,
como fez também o bolchevismo na União Soviética.
2)
O justicialismo e o “estado-novismo”.- As
caraterísticas doutrinárias fundamentais do justicialismo argentino, base
ideológica do peronismo, são as seguintes (cf. Velasco e Cruz,
1986: 888-889; Crassweller, 1988;
Dechancie, 1987; Touraine, 1989: 291-340; Murmis-Portantiero, 1973):
a - defesa da justiça social sem abolição das relações capitalistas de
produção; b - defesa do intervencionismo do Estado na economia, a fim de
regular o mercado e subordinar a propriedade ao cumprimento da sua função
social; c - organização sindical das forças produtivas (empresários e
trabalhadores), de forma tal que possam se entender de igual para igual, numa
relação a ser arbitrada pelo Estado. Essa organização corporativa visava a
aplacar a luta entre as classes sociais; d - nacionalismo econômico endereçado
a um projeto de desenvolvimento capitalista autônomo da indústria nacional, com
apoio ostensivo do Estado; e -
terceiro-mundismo nas relações internacionais, com denúncia do
imperialismo das nações capitalistas avançadas e uma atitude cautelosa face à
dominação soviética; f - populismo, que se caracteriza pela feição
poli-classista do peronismo e pelo paternalismo do chefe justicialista, face
aos “descamisados” e aos sindicatos operários, amplamente manipulados pelo
regime.
O peronismo
constituiu, sem dúvida, junto com o
getulismo brasileiro e o porfiriato mexicano, um dos “modelitos” mais
importantes do velho patrimonialismo ibérico em que, por baixo das feições
doutrinárias atrás apontadas, esconde-se sorrateira a realidade de um Estado
centrípeto e familístico, mais forte do que a sociedade insolidária. Nesse
contexto, a res publica
é administrada pelos donos do poder como coisa nossa.
Segundo frisou Crassweller (1988: 14),
“A civilização de Perón é a culminância da cultura e dos valores legados por
Roma, pelos mouros que dominaram a Península Ibérica durante muitos séculos e
pela Castela da antiga Espanha, valores que foram todos corrigidos e reforçados
durante os quatro séculos de história do Novo Mundo”.
As caraterísticas
doutrinárias do “estado-novismo” de Vargas são as seguintes (cf.
Vélez-Rodríguez, 1980, 1982, 1983, 1994a, 1994b, 1994c, 1994d; Paim, 1978;
1994b; Paim-Barretto, 1994; Tavares, 1986: 517-520):
a - integração do proletariado à sociedade, mediante a legislação trabalhista
que tornava os sindicatos dos trabalhadores e empresários simples caudatários
do Estado paternalista; b - defesa do intervencionismo do Estado como
empresário na economia; neste ponto, o getulismo deu continuidade à velha
tendência pombalina, consolidada em Portugal na segunda metade do século XVIII.
O getulismo alicerçou-se doutrináriamente, outrossim, na versão política do
positivismo brasileiro, sendo a ideologia castilhista a fonte imediata de
inspiração do ideal de “ditadura científica” que o Estado Novo pretendeu
encarnar; c - organização corporativa das forças produtivas, tendo sido adotado
o modelo do sindicato único para trabalhadores e empresários. Os sindicatos
terminaram sendo controlados pelo Executivo forte, no que passou a ser chamado
de “peleguismo”. Instrumento importante dessa política “soft” foram o
Ministério do Trabalho e a Justiça do Trabalho, que passaram a equacionar, a
partir do Estado e com critérios técnicos, os conflitos trabalhistas, de forma
a impedir as reivindicações políticas e a luta revolucionária; d - nacionalismo
econômico centrado ao redor do Estado dirigido por um Executivo forte,
auxiliado pelos conselhos técnicos integrados à administração. O autoritarismo
getuliano tolerava, como no caso do peronismo, o sistema capitalista,
acomodado, evidentemente, à dinâmica do Estado patrimonial, ou seja, a uma
forte tutela da iniciativa privada pelo governo; e - pragmatismo nas relações internacionais
(de fato, Getúlio acenou com simpatia para os países do Eixo, ao longo da
década de 30, mas quando pressentiu a iminente derrota do nazismo e do
fascismo, não duvidou em se entender com os Aliados). Na fase posterior ao
estado-novismo, o getulismo evoluiu em direção ao terceiro-mundismo e às
conseqüentes denúncias anti-imperialistas, como revela a Carta-testamento do
líder são-borjense; f - populismo, que se caracterizava pela existência de
partidos políticos controlados pelo governo (PTB e PSD) e dirigidos à cooptação
política dos trabalhadores, dos empresários e outras lideranças da sociedade
civil; g - forte aparelho propagandista e repressor, centrado na DIP e na
polícia política; h - feição conservadora, expressa nas máximas getulianas “deixar
como está para ver como é que fica” e “não fazer inimigos que não se possa
converter em amigos”; i - forte preconceito contra a democracia representativa,
alcunhada depreciativamente pelo getulismo de “metafísica liberal”; j -
utilização, pelo getulismo, da retórica liberal para angariar apoio popular nos
momentos de crise, sem no entanto aderir praticamente aos ideais democráticos
do liberalismo.
Como se pode
observar, múltiplos fatores aproximavam o estado-novismo getulista do
peronismo, sendo aspecto diferenciador o cientificismo de origem castilhista
(e, portanto, positivista) de Getúlio.
3)
O socialismo de modelo soviético e as suas variações.-
Poderíamos arrolar como caraterísticas do socialismo de modelo soviético as
seguintes (cf.
Boer, 1982; Paim, 1981: 88-118; Wittfogel, 1977) :
a - hipertrofia do Estado em relação à sociedade, na trilha do velho despotismo
mongólico e do absolutismo czarista, seu herdeiro; b - controle da máquina do
Estado pela nomenklatura,
ou cúpula dirigente do Partido Comunista da União Soviética. Essa nova classe,
substrato político do “socialismo real”, “constitui o desmentido histórico da
utopia marxista da sociedade sem classes” (Boer, 1982: X);
c - fé messiânica no papel salvífico do comunismo soviético. Essa fé ancora no
velho messianismo poítico russo, na versão do ideólogo de Ivã o Terrível,
Filofei de Pskov, segundo o qual Moscou é a Terceira Roma, chamada a unificar e
salvar a Humanidade (cf. Voegelin, 1981: 85 seg.);
d - igualitarismo, que apregoa o fim da luta de classes e da diversificação da
sociedade, fato que contrasta com o reconhecimento, pela própria ideologia
soviética, da existência de três “estratos”: operariado, campesinato e intelligentsia
(Cf.
Trotsky, 1977); e - abolição da propriedade
privada em todas as suas manifestações, especialmente dos meios de produção.
Concentração de todas as propriedades nas mãos do Estado; f - culto à
personalidade e bonapartismo: tudo gira ao redor do líder revolucionário
(Lenine) ou dos secretários todo-poderosos do Partido (Stalin, Kruschev,
Breshnev, etc.), cuja figura foi bem definida por Lenine (1982):
“um poder não limitado por leis”; g - terror policial exercido pela temida KGB
e cuja expressão foram os Gulags, destino forçado dos dissidentes; h - regime
de propaganda maciça, graças ao controle do Estado soviético sobre os meios de
informação; i - expansionismo, graças à fabulosa máquina de guerra fabricada
pela União Soviética; j - cientificismo, que considera conforme à razão científica
a organização e funcionamento do sistema soviético; k - regime de partido único
e de sindicato único, este submetido ao primeiro.
A caraterística mais
marcante que salta à vista, ao comparar os itens doutrinários enunciados com o
real funcionamento da máquina soviética são as contradições, que aparecem em
vários aspectos. Talvez foi L. Trotsky (1977: 272)
quem melhor as traduziu: “O cesarismo -
ou a sua forma burguesa, o bonapartismo -
entra em cena na História quando a áspera luta entre dois adversários
parece elevar o poder acima da Nação e assegura aos governantes uma
independência aparente relativamente às classes, não lhes deixando, na
realidade, mais do que a liberdade de que precisam para defender os
privilegiados. Elevando-se acima de uma sociedade politicamente atomizada,
apoiando-se na polícia e no corpo dos oficiais, sem tolerar controle algum, o
regime stalinista constituiu uma variedade manifesta do bonapartismo, de novo
tipo, até hoje sem precedentes. O cesarismo nasceu de uma sociedade fundada
sobre a escravatura e abalada por lutas intestinas. O bonapartismo foi um dos
instrumentos do regime capitalista nos seus períodos mais críticos. O
stalinismo é uma variedade, mas assenta nas bases do Estado operário,
dilacerado pelo antagonismo entre a burocracia soviética organizada e armada e
as massas laboriosas desarmadas”.
Karl Wittfogel (1977: 529-530),
por sua vez, caracterizava da seguinte forma o regime soviético, dez anos
depois do assassinato de Trotsky a mando de Stalin: “Assim, na medida em que os
dirigentes da Rússia soviética perpetuam um dos traços-chave da sociedade
agro-estatal, a saber, a posição monopolista de sua burocracia dominante,
faziam mais do que a simples perpetuação dessa sociedade. Mesmo antes da coletivização da agricultura,
os aparatchiki (=integrantes da
máquina burocrática) soviéticos dispunham de um sistema mecanizado de
comunicação e de produção industrial que os colocava numa posição superior à
alcançada pela burocracia agro-hidrâulica. O aparelho industrial estatizado
lhes fornecia armas novas de organização, propaganda e coerção, aptas a
permitir a liquidação dos pequenos produtores agrícolas enquanto categoria
social. A coletivização transforma os camponeses em trabalhadores agrícolas
submetidos a um único patrão: o novo aparelho do Estado. O despotismo agrário
da antiga sociedade aliava o poder político total a um controle social e
intelectual limitado. O despotismo industrial da sociedade de aparelho estatal
total alia o poder político absoluto ao integral controle social e intelectual”.
O regime soviético
revelou-se, destarte, como a forma mais agressiva e extremada do
Patrimonialismo (cf.
Paim, 1981: 117 seg.), característica que ainda
preservam outros regimes comunistas sobreviventes à queda do Muro de Berlim,
como o chinês ou o cubano. A derrubada do regime soviético pode-se interpretar
validamente como decorrência das contradições apontadas por Trotsky e
Wittfogel. Os regimes comunistas constituíram-se, aliás, nos totalitarismos
mais violentos do século XX, contando-se em dezenas de milhões as suas vítimas
e chegando a superar o número de mortos do totalitarismo nazi-fascista, que já
era estarrecedor.
4 - O
fundamentalismo islâmico.- Embora seja difícil caracterizar em poucas
palavras a doutrina político-religiosa do islamismo na sua versão
contemporânea, não podemos deixar, mesmo
com risco de simplificação, de indicar as notas que nos parecem mais marcantes
dessa cultura (cf.
Jomier, 1993; Sánchez-Albornoz, 1974; Cruz Hernández, 1981; Azis, 1978; Corbin,
1964; Arberry, 1956; Menéndez Samará, 1940).
Não pretendemos, aqui, desconhecer a
riquíssima tradição civilizatória que o Islã representou para nós, através da
Espanha muçulmana e do Portugal mouro. Mas queremos, unicamente, lembrar os
principais itens da política islâmica no mundo atual.
Esses itens são, ao
nosso modo de ver, os seguintes: a - união estreita entre religião e política,
desde a época do fundador da Religião Islâmica, Maomé, no século VII; b -
divisão do Islamismo em duas grandes vertentes: sunitas (moderados), que
representam hoje 90% do mundo islâmico e que defendem a natural evolução
histórica das suas lideranças políticas e xiitas (radicais), que representam
hoje 10% dos islâmicos. Eles somente reconhecem a legitimidade dos primeiros 7
ou 12 dirigentes políticos, descendentes diretos de Ali e Fátima, filha de
Maomé e sustentam a tese do Imã Oculto (ou líder missiânico) que aparecerá no
final dos tempos para conduzir os seguidores de Alá ao triunfo definitivo
contra o Grande Satã, personificado nas potências capitalistas do Mundo
Ocidental; c - intolerância com quem professa outras religiões ou credos
políticos. Essa intolerância varia de grau, indo dos sunitas (menos
intolerantes) até os xiitas (radicais), que levam a extremos terroristas o
conceito mais largo, e originariamente moral, de jihad
(guerra santa); d - autoritarismo como forma geralmente aceita de organização
do poder político, que oscila entre o
modelo ditatorial (de Kadhafi, Saddam Hussein ou dos Mulahs iranianos),
passando por monarquias familiares (como as que imperam nos Emirados árabes, na
Jordânia ou na Arábia Saudita) e indo até formas republicanas mais ou menos autocráticas
(como no Egito ou na Turquia, respectivamente); e - expansionismo, no sentido
de que o Islamismo é considerado pelos seus seguidores como uma religião de
missão, que visa a conquistar espiritual e políticamente o mundo, mediante a
implantação do Alcorão como Constituição universal; f - reação fundamentalista
a partir dos anos 70, decorrente de vários fatores: derrota do mundo árabe na
Guerra dos Seis Dias (1967), decepção diante da política de socialismo árabe de
Abd-en-Nasser, bem como diante da sua aliança com os países comunistas,
excessiva ocidentalização de regimes como o do Xá do Irã, crise do petróleo,
Guerra do Golfo e derrota de Saddam Hussein, desconhecimento da vitória dos
fundamentalistas na Argélia, nas eleições de 1993, crescimento da onda
anti-islâmica em países como a França e a Alemanha, guerra de “limpeza étnica”
dos sérvios contra os muçulmanos na ex-Yugoslávia, etc. A convicção
generalizada é a de que os islâmicos estão sendo vencidos por não terem posto
em prática com suficiente devoção o Alcorão; g - fundação, nos anos 60 e
70, dos grandes organismos muçulmanos
internacionais com as suas reuniões periódicas. Os mais importantes organismos
são a Liga Islâmica Mundial e a Conferência Islâmica. Atualmente há uma forte
tendência, no mundo muçulmano, para a canalização de recursos - notadamente os petrodólares - na criação de um banco islâmico e na
organização de uma espécie de Liga das Nações Muçulmanas, que contrarreste a
excessiva ocidentalização da ONU; h - criação de organismos muçulmanos não
governamentais (como os “Irmãos Muçulmanos”) e de partidos radicais (como o Hezbolah
ou Partido de Deus), que visam a
manter viva a pureza da fé islâmica e a defender os interesses das nações nela
inspiradas, face ao mundo ocidental. Não
faltam mártires e profetas para essas iniciativas, como o egípcio Sayyid Qotb,
como o escritor Abul Ala al-Mawdûdi e o próprio Aiatolá Ruola Khomeini.
III- Análise prospectiva: as perspectivas
autoritárias e totalitárias no Brasil e no mundo
Tentando fazer um
balanço prospectivo dos riscos autoritários e totalitários no Brasil e no
mundo, neste final de milênio, poderíamos identificar três tendências para cada
um desses fenômenos.
1 - Tendências
totalitárias.- Referir-nos-emos,
brevemente, às seguintes: a - o
comunismo, no seio do despotismo oriental (China); b - o islamismo, na versão
xiita; c - os movimentos neo-nazistas.
Convém salientar que
essas tendências ou são hoje regimes totalitários (como nos casos de China e de
Cuba), ou ao menos contam com os elementos potenciais necessários ao
desenvolvimento de formas totalitárias de governo.
a - O comunismo, no seio do despotismo
oriental (China).- Se bem é certo que o
comunismo soviético se desmanchou como castelo de cartas, o mesmo não acontece
com o comunismo chinês, que vai muito bem de saúde e que consegue fazer engolir
ao Ocidente a sua visão totalitária dos direitos humanos e da política
internacional. A queda do Muro de Berlim em nada abalou o controle totalitário
do regime de Pequim sobre os seus cidadãos.
Se alguém tinha ilusões acerca de uma descompressão política na China,
os tanques da Praça da Paz Celestial se encarregaram de esmagá-las junto com as
centenas de ativistas que foram literalmente varridos do mapa em 1989. As
reações do Ocidente perante a brutalidade do velho despotismo oriental foram
pouco mais que protocolares. Prova vivencial de que o regime de Pequim não
brinca em serviço, tiveram as 20 mil delegadas ao Forum das Organizações
Não-governamentais, que se reuniram no estadio olímpico da capital chinesa,
para influenciar na IV Conferência Mundial sobre a Mulher, a reunião promovida
pela ONU em setembro de 1995. O governo chinês impôs uma série de regulamentos
restritivos à realização das reuniões preparatórias em Huairou, a 55 kilômetros
da capital. Dos 3 mil jornalistas credenciados em Pequim, apenas 300 tiveram
permissão para assistir à cerimônia de abertura. Muitas pessoas foram
revistadas como suspeitas; o governo chinês negou ou atrasou vistos e as
participantes frisaram que foram tratadas como invasoras hostis, apesar da
alegação de que o espaço do Forum era território da ONU (cf. O Globo,
Rio de Janeiro, 31/08/95). Certamente o
totalitarismo do regime de Pequim sobrevive à derrubada do totalitarismo
soviético e à crise em que entrou o regime castrista, que muito provavelmente,
após o evidente fracasso revolucionário de Castro, terá um desfecho gradual à la
espanhola ou à la`mexicana (cf. Oppenheimer,
1992: 411 seg).
Os simpatizantes
brasileiros do totalitarismo chinês e cubano não parecem ter força suficiente
para ameaçarem a democracia e instaurarem no país um regime de poder total, em que pese o esforço feito por Lula para a criação, no início dos anos noventa, do Foro de São Paulo, com a finalidade de dar sobrevida ao comunismo, que já estava morto e sepultado na Europa após a queda do Muro de Berlim.
Mas, certamente, reforçam as tendências autoritárias. Porisso, o risco por eles
representado será objeto de análise no próximo item, que analisa as tendências
autoritárias.
b - O islamismo, na versão xiita.- O
regime iraniano pode evoluir, caso se sinta encurralado, até formas de
exercício do poder total. De outro lado, podem surgir novos governos
fundamentalistas islâmicos. O advento dos xiitas ao poder na Argélia, por
exemplo, parece questão de tempo. O golpe dos generais argelinos retrasou, não
eliminou esse desfecho. E a França, que apoiou a drástica medida dos militares
de Argel, está pagando um alto preço com as ações terroristas praticadas pelo
grupo GIA (e mais recentemente pelo autodenominado Estado Islâmico)
em Paris e em outras cidades francesas. Países como os Estados Unidos têm
também sofrido as conseqüências do terrorismo xiita, que não está longe das
fronteiras do Brasil. Lembremos a explosão que derrubou, há alguns anos, em
Buenos Aires, o Centro Israelense,
causando dezenas de vítimas. De outro lado, o processo de paz do Oriente Médio
está sendo torpedeado pelos xiitas, em que pese o empenho das autoridades
israelenses e do falecido líder palestino Yasser Arafat.
c - Os movimentos neo-nazistas.- Representam,
sobretudo na Alemanha, uma tendência de
inspiração totalitária. É necessário, a respeito, chamar a atenção para o fato de que o regime
soviético congelou, na antiga Alemanha do Leste, não eliminou, a velha
ideologia totalitária nazista. Muitos dos atentados dos neo-nazistas têm sido
perpetrados em cidades da antiga Alemanha democrática. A eliminação dessas
tendências somente ocorre graças à maciça crítica cultural, que certamente não
se dava no leste submetido ao controle ideológico do Partido Comunista.
A agressividade dos
movimentos tupiniquins de inspiração nazista (a versão brasileira dos skinheads)
ocupou, há alguns anos atrás, as primeiras páginas dos jornais. Parece que este
início de milênio fizesse ressurgir esses fantasmas do passado. Práticas de
feição nazista são adotadas hoje por narco-traficantes que pretendem controlar
as torcidas organizadas. Não se trata de movimentos com uma explícita armação
doutrinária. Na tendência geral de banditização dos conflitos que afeta ao novo
século, não é raro descobrir velhas práticas intimidatórias, de que nazistas e
fascistas foram mestres.
2
- Tendências autoritárias.- Referir-nos-emos,
de forma sumária, a quatro tendências: a - narco-terrorismo, b - novas formas
de fundamentalismo, c - a pervivência, na América Latina especialmente, do velho patrimonialismo ibérico e d - a
presença das velhas ideologias totalitárias.
a - Narco-terrorismo.-
O que aconteceu na Colômbia nas duas décadas passadas, onde o Presidente da
República, o Judiciário - não poucos dos
seus magistrados - e boa parte dos
congressistas viraram reféns dos traficantes,
é uma triste realidade e um alerta diante de um perigo que, infelizmente, começa
a aparecer hoje no Brasil. (cf. Vélez-Rodríguez, 1988 e 1993).
A situação do Rio de Janeiro, onde a população se vê obrigada a conviver com a
violência imposta pelos traficantes e onde a própria polícia perdeu terreno
para os bandidos, é uma prova do risco
que a narco-ditadura representa para a segurança do país. Não há dúvida de que
o Brasil passou da condição de entreposto para o tráfico de cocaína à de
produtor e consumidor. Informações do chefe do órgão de combate aos narcóticos
nos Estados Unidos no início deste milênio, Lee Brown, revelavam que o Brasil e
o México despontavam como os principais fornecedores mundiais de cocaína, já
competindo com a Colômbia e os outros países andinos produtores de folha de coca.
A solução é a que
esboçava o secretário de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro no anos
noventa: a ocupação dos espaços dos traficantes pelo governo. Bastou o general
Cerqueira interpelar, na época, no centro da cidade, os apontadores de uma
banca de jogo-do-bicho, para que em poucos minutos toda a bicharada das
redondezas desbandasse despavorida (cf. O Globo, Rio de Janeiro, 30/08/1995).
A solução não era tão complicada, mas exigia a firme vontade política de
colocar os agentes da ordem nas ruas e nos morros.
Falta ainda no
Brasil a formulação e a posta em prática de uma política coerente de combate ao
narcotráfico. Exemplo dessa carência foi o fato, registrado pela imprensa, de
os candidatos à presidência da República nas elieções presidenciais ocorridas
ao longo deste século, não conferirem importância ao problema do narcotráfico.
A questão do combate aos traficantes aparece infelizmente, hoje, como solução
que não dá certo. Até um magistrado do Supremo Tribunal Federal se pronunciou a
favor da descriminalização do narcotráfico como forma de combater a drogadicção!
Uma pseudo-solução que, onde foi adotada (como na Holanda, nos países nórdicos
e em Portugal) não deu certo.
b - Novas formas de fundamentalismo.-A
explosão da bomba que, no centro da pacata cidade de Oklahoma, deitou por terra
o prédio do Governo Federal, fazendo dezenas de vítimas fatais, no final do século
passado, foi uma prova da força de intimidação que possuem grupos de
fundamentalistas wasp na sociedade
americana. Parece um fenômeno apenas deles, mas nos enganamos se não ficarmos
atentos à entrada maciça no Brasil de pastores eletrônicos. A liberdade deve
ser defendida em todos os terrenos. A manipulação do fator religioso por
líderes inescrupulosos e radicais é um risco concreto. Ontem foram os padres de
inspiração marxista-leninista, que defendiam as formas violentas da luta dos
oprimidos, na chamada teologia da libertação.
Hoje podem ser grupos de evangélicos exaltados. De outro lado, o Brasil não
parece alheio ao fundamentalismo islâmico, como foi destacado anteriormente.
c - A pervivência, na América Latina
especialmente, do velho patrimonialismo ibérico.-
A tendência, muito presente na nossa cultura política, a privatizar o Estado
para favorecer amigos e lascar inimigos, é de nítida inspiração autoritária. É
evidente que o autoritarismo tem revertido em todo o continente, graças aos
processos de democratização em curso. Mas continua presente nos hábitos de
muita gente que utiliza o Estado como bem de família e que pretende pagar
rombos bancários ou previdenciários com o dinheiro do contribuinte. A dupla
saga do Mensalão e do Petrolão, hoje combatido este último pela Operação
Lava-Jato, revelou até que ponto o Estado Patrimonial brasileiro foi capaz de
cooptar a cúpula das grandes empresas brasileiras da área da engenharia, a fim
de assaltar o Estado e distribuir o dinheiro público entre amigos e apaniguados
da Presidência da República e do Partido no poder, no longo ciclo lulopetista. Somente
a crítica política, a liberdade de imprensa,
a pressão da sociedade e, de forma especial, a educação para a
cidadania, conseguirão erradicar de vez esse fantasma autoritário do patotismo e
da corrupção que sufocam o patriotismo.
d - A presença das velhas ideologias
totalitárias.- Em que pese o fato da
derrubada do Muro de Berlim, não se pode desconhecer o fato de que ainda restam
saudosistas na sociedade brasileira, as chamadas por Meira Penna de “viúvas da
Praça Vermelha”. Essas viúvas, saudosistas do stalinismo e do trotskismo,
certamente não têm poder suficiente para implantar no Brasil um regime
totalitário. São tradicionalmente ruins de voto. Só galgariam o poder na trilha
de um golpe armado contra as instituições democráticas, que parece pouco
provável nas atuais circunstâncias, após o corajoso desmonte da pretensa
hegemonia partidária do PT pelo Judiciário, pela Imprensa e pela massa dos
cidadãos que saíram às ruas ao longo dos últimos três anos, exigindo o fim da
corrupção sistêmica que tomou conta do Estado.
Mas os totalitários continuam
a defender com unhas e dentes a ditadura castrista e as aventuras guerrilheiras
que ainda subsistem em alguns cantos da América Latina. Nesse contexto, as
“viúvas da Praça Vermelha” reforçam as tendências autoritárias da nossa
tradição patrimonialista. Não deixam de ser preocupantes as notícias veiculadas
pelos jornais (cf., por exemplo, O Globo, Rio de Janeiro, 10 e 11 de Outubro de 1995),
no sentido de que o Movimento dos Sem Terra montou uma estrutura dirigente na
clandestinidade, seguindo à risca o modelo adotado pelos guerrilheiros
centro-americanos e colombianos. Em anos anteriores circularam rumores de que guerrilheiros do
Sendero Luminoso e das FARC estariam infiltrados no mencionado Movimento, e
houve até, no início do governo de Fernando Henrique Cardoso, um informe da
Secretaria de Assuntos Estratégicos, destacando a organização guerrilheira dos
Sem Terra. Independentemente da questão da infiltração de guerrilheiros
estrangeiros, o certo é que o Movimento dos Sem Terra adotou uma organização de
tipo paramilitar, com uma liderança que reconhecidamente entrou na
clandestinidade e que desafia de forma aberta as autoridades constituídas,
promovendo a violenta ocupação de fazendas produtivas e manipulando grupos de
camponeses, de forma a induzir choques com a força pública, de que tem havido
vítimas, muitas vezes fatais.
Esse tipo de
radicalização representa, sem dúvida, um risco para a democracia brasileira, e
preocupa na medida em que as autoridades têm agido até agora com excessiva
tolerância, não deflagrando as ações preventivas cabíveis. A defesa das
instituições de direito é o primeiro compromisso do poder constituído com a
democracia. Não é democrático, certamente, agir com excesso de tolerância face
a essas lideranças, que deliberadamente promovem o desrespeito às leis e o
conflito armado no campo.
Para terminar,
convém destacar a importância do debate cultural, no esforço em prol de superar
os riscos do totalitarismo e do autoritarismo na sociedade brasileira. A
herança tradicional do patrimonialismo age como segunda natureza e emperra o
esforço de modernização do país. A mentalidade mercantilista e o corporativismo
freiam qualquer processo de racionalização. As dificuldades vividas pelo país
após o término do ciclo de autoritarismo militar, reforçam essa apreciação. A
tendência a privatizar o Estado em benefício próprio, não é apenas mal do
aparelho estatal; constitui, infelizmente, também, a base culturológica a
partir da qual os próprios cidadãos enxergam as instituições governamentais. As
repetidas fraudes previdenciárias, a corrupção que grassa em inúmeros setores
da burocracia, a sonegação, o nepotismo, em suma, a falta de espírito público,
são males da nossa cultura macunaímica, que levamos introjetados e que somente
mediante um longo processo de conversão cultural será possível eliminar.
O debate cultural
deve-se realizar à sombra das idéias liberais, as únicas que permitem fazer uma
crítica adequada ao totalitarismo e ao autoritarismo. A situação brasileira,
quanto a essa tarefa, é preocupante, pois o liberalismo foi banido da nossa
cultura por décadas de prática autoritária e pelo positivismo marxista que
invadiu os centros de ensino superior e as universidades. A respeito, escrevia
Antônio Paim (1995:
13): “A tarefa mais importante com a qual se
defronta a liderança brasileira consiste em retomar os laços com o pensamento
liberal dos principais países. Desde o seu nascedouro até mais ou menos os anos
trinta, mantivemos estreito contato com a temática e os autores liberais
destacados. A partir de então o ideário patrimonialista tradicional assumiu
feição socialista e ocupou todos os espaços e os postos relevantes da cultura.
De seu largo predomínio, durante cerca de meio século, resultou a virtual
esterilização das mentalidades, cujo patrimônio intelectual reduz-se hoje a
meia dúzia de lugares comuns. Apanhados de surpresa com o fim da experiência
socialista européia, teimam em desconhecer a obsolescência do marxismo. Assim, a
linha de frente de nossa intelectualidade está completamente perdida, voltada e
devotada ao passado e às suas propostas ultrapassadas. Somente o liberalismo
tem algo a dizer à nossa juventude e às gerações do futuro.”
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