Merval Pereira, na sua coluna de O Globo de 1º de Maio,
intitulada: “Novos Tempos”, faz referência a dois pontos de reflexão
importantes sobre a atual situação sociopolítica do país: menciona, em primeiro
lugar, a entrevista concedida pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso à Folha
de S. Paulo e, em segundo lugar, refere-se à recente palestra proferida
pelo historiador Boris Fausto na Academia Brasileira de Letras.
À luz das análises citadas, estaria se consolidando, no nosso
país, nova modalidade de poder vinculada ao capitalismo de Estado,
potencializando o capital especulativo, sob o rígido controle do Executivo
apoiado em “nova classe” (como diria Milovan Djilas). Essa nova elite dirigente
está constituída ao redor da Presidência da República e do seu hipertrofiado Ministério,
pelo sindicalismo emergente e integrada, também, pelos “burgueses do dinheiro
alheio” (na feliz expressão de Reinaldo Azevedo). Ora, essa cúpula da pirâmide controla
os fundos de pensão das estatais e as megaempresas multinacionais e está se
enriquecendo rapidamente, deixando por fora do festim “o resto”, a sociedade
brasileira, que vê despencar tragicamente a sua qualidade de vida, com crianças
morrendo às portas de hospitais públicos pelo Brasil afora, com estradas
intransitáveis e com o drama da insegurança matando cidadãos desarmados, na nova
etapa da guerra do narcotráfico que assola ao nosso país. O festival de viagens
internacionais com políticos e empresários se refestelando em Paris seria a
contracapa da tragédia nacional e uma prova da rápida consolidação desse novo modelito de “peronismo à brasileira” (ao
qual Fernando Henrique fez alusão em artigos anteriores à sua entrevista à
Folha).
Nesta altura do campeonato convém, no entanto, dar nome aos
bois, utilizando a terminologia que a sociologia weberiana cunhou há décadas no
seio da cultura brasileira. Refiro-me especificamente, ao termo “capitalismo de
Estado” com que integrantes da intelligentsia
de esquerda (entre eles Boris Fausto e Fernando Henrique Cardoso) teimam, ainda,
em caracterizar o que está acontecendo no nosso país. Acho muito mais
pertinente falarmos em “neopatrimonialismo” ou em “patrimonialismo modernizador”.
O termo “Capitalismo de Estado” deita, a meu ver, uma cortina de fumaça sobre o
real processo histórico de consolidação das nossas instituições políticas.
Nos anos setenta do século passado, dois pensadores, Antônio
Paim e Simon Schwartzman, consideraram que o que estava acontecendo no Brasil, ao
ensejo do ciclo militar, consistia numa nova etapa do que eles denominavam de “patrimonialismo
modernizador” (Paim) ou “neopatrimonialismo” (Schwartzman). Ora, estes termos,
considero eu, traduzem de forma muito mais adequada o que acontece no seio da
sociedade brasileira, com motivo da atual etapa do nosso “capitalismo
tupiniquim”. Weber deixou elaborada, em Economia e Sociedade, a teoria de
que, ao ensejo do surgimento dos Estados modernos no longo período que vai do
século XIV até o XIX, consolidaram-se dois modelos: contratualista e
patrimonial.
O primeiro, contratualista, teria acontecido ali onde houve “feudalismo
de vassalagem”, tendo permitido a diferenciação da sociedade em classes que
lutavam pela posse do poder, num processo que François Guizot identificou,
pioneiramente, na terceira década do século XIX, como “luta de classes”. Não
tendo resultado dessa luta a aniquilação de uma classe por outra (concretamente,
na Europa Ocidental, a eliminação da nobreza pela burguesia), os litigantes
tiveram de sentar à mesa de negociação e elaborar o “contrato social”: as
antigas inimigas, burguesia e nobreza, no final do século XVII, na Inglaterra,
negociaram a partilha do poder centralizado no Parlamento. Caberia a burguesia
representar os seus interesses na Câmara Baixa, e à nobreza fazer o mesmo na
Câmara Alta, tendo surgido, assim, o modelo de bicameralismo e de governo
representativo, que passou a formar parte do ideário liberal, tematizado por
John Locke nos seus Dois Tratados sobre o Governo Civil (1689). Esses escritos
foram como que o marco teórico com que se encerrou o longo processo de
surgimento do modelo de “monarquia constitucional”, culminado com a Revolução
Gloriosa de 1688.
O segundo modelo de Estado moderno, o patrimonial, segundo
Weber, surgiu ali onde o poder central se consolidou ao ensejo da hipertrofia
de um poder patriarcal original, que alargou a sua dominação doméstica sobre
territórios, pessoas e coisas extrapatrimoniais, passando a administrá-los como
propriedade familiar (patrimonial). Esse foi o modelo de Estado que vingou na
Rússia, nos Califados árabes, na Península Ibérica, na China, na Índia, etc., e
que perpetuou o antigo arquétipo de “despotismo hidráulico” (estudado
detalhadamente por Karl Wittfogel na sua obra, dos anos 50 do século passado,
intitulada: Despotismo oriental). O “despotismo oriental” se manifestou muito
cedo nos impérios da antigüidade (Egito, Mesopotâmia, Pérsia, China e impérios
ameríndios pré-colombianos inca e asteca), ao ensejo da necessidade do controle
da água por uma pre-burocracia central (o que levou Wittfogel a denominar esses
regimes, também, de “hidráulicos”). O Império Romano sofreu a influência deles,
notadamente daquele que vingou no Egito dos Faraós, na fase de influência
macedônica (no longo ciclo que vai do III século antes de Cristo até o século
IV da nossa era).
Ora, conforme mostraram inicialmente Alexandre Herculano (na
sua História
de Portugal) e, posteriormente, no caso brasileiro, Gilberto Freyre (em
Casa
grande e senzala), Oliveira Vianna (em Instituições políticas
brasileiras e Populações meridionais do Brasil) e Raymundo
Faoro (em Os donos do poder), o modelo político que terminou vingando, na
metrópole portuguesa e entre nós, não foi certamente o contratualista, mas o
patrimonial. O poder no Brasil, como diz Faoro, “sempre teve donos”. Houve,
certamente, momentos de modernização (e na análise deles aprofundaram Paim com A
querela do estatismo, de 1978 e Schwartzman, com São Paulo e o Estado nacional,
de 1975, e Bases do autoritarismo brasileiro, de 1982). Os principais
momentos de modernização foram o Segundo Reinado e o Estado getuliano, sendo
que o Império introduziu e consolidou a prática da representação, ao passo que
Getúlio elaborou eficaz sistema de gestão tecnocrática, substituindo a
representação pela cooptação.
O mérito de Juscelino consistiu em ter adotado como parâmetro
o modelo de modernização getuliano, mas preservando a representação. Algo
semelhante pode-se afirmar do regime militar, no qual, em que pese o viés
autoritário decorrente da gestão do Estado manu
militari, no entanto foi construída uma base de representação ao redor do
bi-partidarismo (lembrando a última fase do getulismo). Com o petismo, certamente,
temos a volta do patrimonialismo menos modernizador (como destacou, com
pertinência, mestre Antônio Paim no seu livrinho, de 2002, intitulado: Para
entender o PT). Na atual quadra da vida política brasileira, a
representação foi trocada pela cooptação e as agências reguladoras tornaram-se
objeto de barganha política. Assim, o capitalismo sindical e estatizante que
ora nos assoberba é mais um modelo de patrimonialismo que derrapa para um viés
arcaico, pelo fato de gerir a economia como “obra do príncipe” (ou do “novo
príncipe”, no jargão gramsciano). Os novos “donos do poder”, o Executivo
hipertrofiado e os seus asseclas encarapitados nos 43 ministérios da era
petista, distribuem os benefícios do enriquecimento entre os amigos da classe
política, os membros da elite sindical e os megaempresários escolhidos a dedo pelo
Estado, deixando a ver navios o resto da sociedade. Esta é contemplada com as
sobras do banquete mediante as “bolsas” dos programas sociais, que garantem
eleições e reeleições e tornam a iniciativa privada refém da máquina do Estado
e eterna pagadora de escorchantes impostos. Tornamo-nos, assim, cronicamente, retomando
o título da obra de Stefan Zweig escrita nos anos 40 do século passado, o “país
do futuro”.
Obrigado, mestre. Fez-me lembrar suas estupendas aulas.
ResponderExcluirCaro Selvino, obrigado digo eu, você é um fiel e construtivo leitor dos meus artigos, é bom te reencontrar por aqui!
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