Assim como a
democracia não cai do céu, mas é necessário construí-la, de forma semelhante
não há solução válida para a proliferação das drogas ilícitas, senão aquela que
pacientemente tiver sido equacionada por uma determinada sociedade que sofre
desse flagelo. E todas as sociedades nacionais, no mundo atual, estão
submetidas, em maior ou menor grau, à comercialização e ao consumo das drogas
ilícitas. Depois do mercado do petróleo e das armas, a produção das drogas
ilícitas constitui a terceira grande fonte de riqueza no mundo atual,
estimando-se em 500 bilhões de dólares anuais o dinheiro que circula por conta
desse comércio da morte. É uma verdadeira companhia transnacional, que toma
decisões com base num frio cálculo de ganhos e perdas. Ora, no seio de
determinada sociedade, qualquer solução é incompleta se, no terreno do combate
às drogas, não for involucrada a população. O grande mal do Brasil a respeito
consiste justamente na passividade da sociedade civil em face dessa terrível doença
do mundo globalizado. Daí por que o debate acerca do consumo de entorpecentes é
essencial para a sobrevivência da nossa sociedade.
Recentemente respondi
a uma série de questões que, a respeito do consumo de drogas ilícitas pelos
jovens em Juiz de Fora, foram formuladas pela jornalista Júlia Pessoa da Tribuna
de Minas. Essa enquête serviu de base para extensa matéria que, sobre o
particular, publicou o mencionado diário na sua edição de 29 de Abril.
Considerando que as respostas por mim dadas constituem pontos de reflexão
acerca da mencionada problemática, a fim de estimular o debate, as coloco na
sua totalidade. Levo em consideração que a página do jornal aproveitou em parte,
apenas, as minhas colocações, em decorrência da extensão da matéria publicada,
que focalizou outros aspectos dos tratados por mim e que entrevistou outras
pessoas familiarizadas com o tema.
Em um de seus artigos, publicado no início deste ano, que fala que o
Brasil se tornou uma cracolândia, você diz que a maconha é sim, porta de
entrada para o crack. Por que? Quais as consequências disso?
Infelizmente, sim, o Brasil virou uma grande cracolândia. É de arrepiar
o dado de que mais de 90% dos municípios brasileiros já conhecem essa praga,
bem como as conseqüências de desgarramento do tecido social que isso implica. A
violência, simplesmente, disparou, pelo Brasil afora, punindo especialmente as
pequenas cidades do Interior, menos aparelhadas para o combate à violência
ensejada pelo consumo de drogas pesadas. A maconha, em países que já conheceram
o flagelo do crack (como é o caso do meu país de origem, a Colômbia), foi a
porta natural de entrada para drogas mais pesadas, como a cocaína e o crack,
que é a cocaína dos pobres. Isso já foi estudado estatisticamente no país
vizinho e, entre nós, não será diferente. A maconha tinha penetrado fundo nos municípios
brasileiros, antes de o crack instalar o seu mercado da morte. A principal
conseqüência é o acirramento da violência, ali onde a maconha preparou o
caminho e onde o crack terminou o serviço. Não é alarmismo, é a cruel
realidade.
O que pode ser feito para evitar esse processo?
A primeira coisa, considero, deve ser o estudo aprofundado do processo
causado, nos países vizinhos e em outros países, como os europeus e os Estados
Unidos, pelo consumo de drogas pesadas. O segundo paso, o estudo de como a
maconha foi a porta de entrada para drogas mais pesadas: a análise rigorosa do
que aconteceu na Colômbia é importante, pois se trata de um país bem semelhante
ao nosso, com um povo alegre, que aprecia muito a religião e a vida de família.
O estrago da maconha causado entre os nossos vizinhos precisa ser conhecido em
detalhe. Bem como devem ser conhecidas, também as políticas públicas em
andamento no vizinho país, no que tange a diminuir o consumo de drogas e também
no que diz relação ao combate aos traficantes. Tanto o Exército quanto a
polícia foram aparelhados para fazer frente a esse mal. Em terceiro lugar, deve
ser estudado em detalhe o que está acontecendo no terceiro front
latino-americano da guerra das drogas (o primeiro foi a Colômbia e o segundo
está sendo a América do Sul, com o Brasil como epicentro), no México e na
América Central: a produção de maconha antecedeu a entrada das drogas mais
pesadas, comercializadas por sanguinários cartéis como os Zetas, por exemplo,
que estão semeando o pânico e a morte entre a população. Ciudad Juárez, no
México, com um milhão e trezentos mil habitantes, hoje é a cidade mais violenta
do mundo, mais violenta que as cidades iraquianas e afegãs. Isso por conta da
guerra desatada pelos traficantes.
Flagramos diversos adolescentes fumando maconha em ambientes públicos, como a porta de suas escolas, nas ruas etc. O uso deixou de ser velado. O que pode ter causado essa postura mais aberta dos usuários, principalmente os mais jovens, em relação a esta droga?
Vários fatores causaram essa epidemia de consumo de droga. O primeiro, a meu ver, foi a irresponsabilidade de alguns dos nossos homens públicos, que não trataram o consumo de drogas como algo sério. A fotografia publicada pela imprensa, há alguns anos, do ex-presidente Lula, no palanque, ao lado do presidente boliviano Evo Morales, ambos ostentando colares de folhas de coca, falou mais do que mil palavras. A mensagem subliminar foi: coca é carnaval! O segundo fator, a meu ver, é a desinformação da sociedade brasileira em relação ao perigo representado pelo consumo de drogas. Campanhas publicitárias de vez em quando, alertando para esse perigo, não bastam. É necessário uma ação diuturna de reflexão dos vários setores sociais sobre o problema. Aqui a questão correu um pouco por conta da nossa tradicional passividade para tratarmos acerca dos problemas que são de todos (buracos na rua, insegurança, depredação dos espaços públicos, drogas...). Nós brasileiros achamos que esses problemas são questões exclusivas do governo, não preocupação nossa. O terceiro fator, foi a publicidade que os produtores internacionais de drogas decidiram fazer no Brasil, já desde finais dos anos oitenta, quando tomaram a decisão de tornar o nosso país fronteira do narcotráfico e espaço para o consumo de tóxicos, ao ensejo do combate que os traficantes sofriam no eixo andino. Os mafiosos italianos, que tinham interesse no desenvolvimento do mercado brasileiro de drogas, decidiram partir para mostrar que consumo de entorpecentes é coisa chique, aproveitando o pouco policiamento das nossas fronteiras e a índole festiva do nosso povo. O resultado está aí: crack em mais de 90% dos municípios brasileiros! Da maconha, amplamente difundida, passou-se às drogas pesadas.
A maconha preocupa mais como problema de saúde ou de segurança pública?
Bem, eu acho que a preocupação deve ser em relação aos dois itens. Tanto em relação à maconha como em face do álcool e do tabaco. Os resultados obtidos diante deste último são amplamente positivos no nosso país. As novas gerações entenderam a mensagem. Os problemas decorrentes do álcool estão sendo debatidos hoje, com motivo da violência do trânsito. Mas a divulgação de dados sobre os estragos da maconha e de outras drogas está na esfera do "políticamente correto". Alguém ja parou para pensar quantos acidentes de trânsito são causados pela maconha e pelas drogas mais pesadas? Não se pode falar dos riscos da maconha sem ser alcunhado de careta. Ora, consumo de maconha traz, sim, riscos para a saúde e para a entrada de outras drogas como a cocaína e o crack. Muitas vezes, esse consumo está associado ao consumo de álcool. O adolescente que se acostumou a viajar com bebida ou com bagulho para esquecer problemas está na autopista das drogas mais pesadas.
Em outros trabalhos,o senhor fala que a descriminzaliação das drogas não resolveria os problemas do tráfico e cita o exemplo da Holanda, onde toda a sociedade passou a sentir os efeitos da violência do tráfico. Como isso aconteceu e o que poderia acontece no Brasil?
Sempre
pensei que para problemas complexos, como o das drogas, não pode haver soluções
simples, mas complexas. Só a descriminalização alicerçada em razões de ordem
econômica, não é suficiente. Foi o arrazoado que conduziu, numa primeira etapa,
à descriminalização das drogas na Suíça, por exemplo e, depois, na Holanda.
Estive, em 1986, na praça vizinha à estação ferroviária central de Zurique, um
espaço liberado para o consumo de drogas. Era um lugar perigoso, de
delinqüência pesada, e teve de ser fechado. O slogan "viciados do mundo
uni-vos" pareceu ser uma voz que percorreu todas as cidades européias,
conduzindo jovens dependentes a esse espaço. Algo semelhante ocorreu nas
cidades holandesas, ao longo dos anos 90 e início deste milênio. A solução não é
liberar o consumo, mas tratar os dependentes. Não se trata, evidentemente, de
puni-los. Mas de tratá-los. As políticas tipo "liberou-geral" trazem
mais problemas do que soluções. Hoje no Brasil estamos na fase da
carnavalização da narco-dependência e do narcotráfico que a alimenta. E já
estamos pagando um alto preço por essa atitude irresponsável.
Porque
descriminalizar as drogas não é solução?
No item anterior já expus o meu pensamento a respeito. Não se trata,
certamente, de punir aqueles que viraram dependentes das drogas. Mas também não
se trata de ver o carnaval passar como se tudo fosse festa. Trata-se, sim, de
formular políticas públicas que conduzam as pessoas dependentes a uma terapia
que as liberte dessa desgraça. Pode-se falar, então, nesse ponto, de
"descriminalização" em relação a esses usuários que viraram vítimas.
Mas tomando medidas para que efetivamente se tratem e não voltem a consumir
drogas. E confrontando com denodo e com todos os instrumentos do Estado de Direito
aqueles que se aproveitam dos que viraram dependentes. O combate aos
traficantes que espalham o comércio da morte acho que tem de continuar. Falar
em descriminalização em face deles é uma irresponsabilidade.
Em um artigo o senhor diz que "(...) restabelecer a credibilidade da Justiça, mediante uma legislação mais dura para com os criminosos" é essencial. Ao falar dos criminosos, o senhor se refere somente aos traficantes ou também aos usuários? Como "endurecer" a legislação? Iso ajudaria a reduzir o cosumo?
Bem, acho que nas minhas duas respostas anteriores já respondi a esta pergunta.
Em outro ponto do artigo, o senhor diz que "Não se trata de criminalizar sumariamente os usuários, mas eles devem ser enquadrados nas suas responsabilidades como dependentes químicos, ajudando-os a superar a dependência." O senhor concorda com a legislação atual, em que os usuários deixaram de ter pena de prisão? Acredita que, pelo fato de usuários não serem presos ou receberem punição mais "severa", o consumo aumentou?
Acho que usuário dependente tem de ser tratado. E não deve ser estimulado o consumo de drogas em festas universitárias, por exemplo. E faço referência, aqui, também ao consumo de álcool e drogas, que já virou epidemia entre os estudantes. A imprensa noticiou que, há algumas semanas, uma menina de 17 anos foi estuprada numa festinha de estudantes da UFJF. Pelo teor do relato que foi veiculado pela imprensa, ela estava bêbada e, certamente, os que praticaram o crime deveriam estar bêbados, pelo menos. Festinhas dessa natureza não podem ocorrer numa instituição de ensino.
O que pode ser feito, em relação às drogas, em termos de segurança pública e em sua faceta como problema social?
A polícia, a meu ver, precisa de uma preparação para fazer frente ao combate aos traficantes e ao mercado da morte. Um trabalho essencial, que foi desenvolvido na Colômbia, é o de inteligência. Forças policiais precisam de uma infraestrutura de inteligência que lhes indique os objetivos das suas intervenções, que devem respeitar os direitos dos cidadãos. Em segundo lugar, as nossas forças policiais têm de estar bem treinadas e com armamento moderno. Faltam ainda aos policiais, em geral, no Brasil, mais completo treinamento e dotação de armamentos adequada. A segurança pública é questão de sobrevivência da sociedade. Portanto o seu equacionamento tem de ser amplamente coberto pelo orçamento da Nação. Ainda muita gente acha que com policiais mal-pagos, mal-treinados e mal-armados pode haver segurança para os cidadãos. Vale a pena ver o que foi realizado nas cidades colombianas para fazer refluir a onda de brutalidade dos narcotraficantes. As cidades, como Bogotá (5 milhões de habitantes) e Medellín (3 milhões) passaram a ser vigiadas vinte e quatro horas por dia, com câmeras ligadas às delegacias de polícia. Isso é caro, certamente menos do que vermos uma geração de jovens mortos ou mutilados pela violência das drogas. As nossas Forças Armadas, notadamente o Exército, tentam cumprir com a sua missão de proteger fronteiras, para que por elas não entrem os insumos para o refino de coca ou armamentos. Temos mais de 16 mil quilômetros de fronteira seca com países da América do Sul, por onde entram drogas e insumos para o seu refino, além de armas ilegais. O Exército solicitou um orçamento de 9 bilhões de Reais, para serem aplicados nos próximos 10 anos, com a finalidade de melhor policiar esse espaço enorme, ampliando para 38 o número de pelotões de fronteira, com a infraestrutura necessária. O que fizeram os políticos em Brasília? "Contingenciaram" os dinheiros solicitados pelo nosso Exército, ao passo que a festança com o dinheiro público corre solta pelo Brasil afora. São mais de 70 bilhões de Reais mal-gastos, anualmente, com corrupção e roubalheira de falsas ONGs. Isso é conspirar contra o combate às drogas e agir contra a segurança dos brasileiros. Um dado estarrecedor: a guerra das drogas, na Colômbia (entre 1979 e 2002), matou 450 mil colombianos. Vamos esperar que desgraça semelhante aconteça no Brasil? Violência que, infelizmente, cidades como BH ou Rio de Janeiro já conhecem, com toda a desgraça que isso implica. Lembremos que, há alguns meses, foi noticiado que o Rio é a capital brasileira de consumo de diazepam e outros tranqüilizantes. A violência do narcotráfico cobra o seu preço.
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