Pablo Escobar (1949-1993), o mafioso colombiano que modernizou a "engenharia da corrupção" irrigando, com os "dineros calientes", os vários canais da política colombiana. |
Embora o
Homem do Chapéu pensasse que subverteria, com a CPI do caso Cachoeira, a ordem
natural das coisas no caso do julgamento do Mensalão, considero positivo que se
tenha instaurado a mencionada Comissão Parlamentar de Inquérito.
Uma coisa é
o que acontece na vida real, “na vida como ela é” (citando o título da peça de
Nelson Rodrigues), outra aquilo que imaginam os “engenheiros” da política. A
pretensão de Lula era, certamente, tumultuar as coisas para lançar cortina de
fumaça no caso do julgamento do Mensalão. Mas, certamente, as duas
providências, o julgamento e a CPI, pelo andar da carruagem, avançarão, cada
uma, pela sua via. Uma, no seio do maior Tribunal da República, observados,
esperamos, os ritos da Magistratura, outra, no Congresso, com as surpresas que
podem ocorrer ao ensejo das confissões das testemunhas, das revelações da
imprensa e da polícia, etc. Assim as coisas, é bem provável que a direção da
CPI sobre o contraventor Cachoeira fuja ao controle do PT e Partidos da Base
Aliada.
Uma
cachoeira de dúvidas assalta, no entanto, a cabeça sem pé atrás do cidadão
comum. Primeira dúvida: será que o PT, ligado nas suas origens
paulistas e gaúchas a negócios escusos com o crime organizado, conseguirá,
nesta empreitada de combate à presença de dinheiros escusos na política, sanear
de vez a vida partidária? Se o esquema de financiamento dos Partidos
Políticos, no Brasil, não teve, ao longo das últimas décadas, uma tessitura
transparente que permitisse identificar as fontes, o caso Cachoeira será apenas
mais um a mostrar as duvidosas relações entre políticos e contraventores. Observemos,
de entrada, que o Brasil não está sozinho nessa mistura. É comum, na América
Latina, se ver esse tipo de relação entre contravenção (na melhor das
hipóteses) ou crime organizado (na pior delas), com o mundo dos políticos.
No vizinho
país, a Colômbia, o grande drama da violência política que, no período
1979-2002, chegou ao ápice com a guerra do narcotráfico (em que foram
sacrificadas nada menos do que 450.000 vidas humanas), o concubinato entre
“dineros calientes” e financiamento de eleições foi muito estreito. Já antes
desse período ocorria, ali, original lavagem de dinheiro escuso, patrocinada
pelo próprio governo: existia, no Banco Central colombiano (que ali se chama de
Banco de la República), a denominada
“ventanilla siniestra” (guichê sinistro),
na qual qualquer um poderia trocar a quantidade de dólares que quisesse por
pesos colombianos, sem que ninguém lhe fizesse incômodas perguntas. Destarte, o
Estado colombiano agia como laundry
dos dólares do crime organizado, ao longo das décadas de 60 e 70 do século
passado. Essa foi a base sobre a qual se alicerçou a prática aberta da
violência e a guerra que ceifou a vida de tantos colombianos. Lembro-me de que
os narcos, em meados dos anos 70, fizeram ao então Presidente da República
Alfonso López Michelsen, uma proposta no mínimo original e arrojada: se o
Estado colombiano os deixasse “trabalhar” em paz, os cartéis da cocaína
pagariam, cash, a dívida externa
colombiana que, naqueles tempos, chegava à quantia de 13 e meio bilhões de
dólares. O governo, como era de se esperar, não topou, a aí começou a se
agudizar o confronto entre traficantes e autoridades. Nessa época, em Medellín,
era comum alguém se gabar de ter feito carreira política financiado com os
narcodólares de Don Pablo (o mafioso colombiano Pablo Escobar, abatido pela DEA
em 1993). Famílias ilustres, quatrocentonas (como a do ex-presidente
conservador Mariano Ospina Perez) viram-se envolvidas em negócios com os
traficantes. A própria guerrilha das FARC, terminada a mesada que os cubanos
repassavam, proveniente de Moscou, quando da queda do Muro de Berlim em 1989,
passaram a se financiar com os narcodólares. O narcotráfico contaminou todas as
esferas sociais, até a própria Igreja Católica, que recebeu polpudas doações de
Don Pablo (que cobrou, evidentemente, a fatura) quando o meliante decidiu
peitar abertamente o Estado colombiano, exigindo da Igreja silêncio em face dos
atos terroristas cometidos pelos cartéis da coca. No Brasil não será diferente, se não houver
um basta nesse convívio estreito entre crime organizado e política.
Mas sejamos
sinceros: o PT, já desde as suas andanças que o levaram ao poder estadual no
Rio Grande do Sul, com Olívio Dutra[1], tinha
estreitas relações de financiamento com o jogo do bicho. Os episódios
posteriores de corrupção com empresas de colheita de lixo, em São Bernardo do
Campo e em outras cidades paulistas, em cujo contexto ocorreram os escuros
assassinatos de dois prefeitos petistas (Celso Daniel e Toninho do PT),
confirmam essa proximidade entre política e crime organizado. E o esquema do
Mensalão (que está prestes a ser julgado pelo STF) sinaliza no mesmo sentido.
Será que o PT estaria disposto a ressuscitar todos esses fantasmas, a fim de
fazer frente, de forma corajosa e definitiva, às relações entre crime
organizado e política? A tentativa de alguns parlamentares petistas, no sentido
de restringir ao Estado de Goiás a CPI do Cachoeira parece indicar que o
partido do governo não quer mexer nesse vespeiro.
Em todo este
episódio do Cachoeira, a impressão que o cidadão comum tem é de que o PT quer a
CPI para se vingar de dois inimigos declarados do Lula: um ex-membro do
Democratas (Partido que foi condenado à extinção por Lula, num dos seus
incontáveis palanques, em Santa Catarina) e o governador goiano Marconi
Perillo, que entrou em via de atrito com Lula, ao ensejo do episódio do
Mensalão. Diferentemente do que François Guizot dizia de Luís XIV da França, no
sentido de que, a partir do seu reinado, somente passaram a ser tomadas
decisões de Estado (ou seja, em benefício estratégico da França, não apenas em
função de vinganças pessoais ou rixas de família), as decisões do PT parecem
responder a dois imperativos: dar curso às vinganças prometidas por Lula contra
desafetos especiais e, em segundo lugar, conquistar a almejada hegemonia
partidária, destruindo ou cooptando os Partidos da oposição. Perde-se, assim,
uma oportunidade de ouro para que o Partido do governo estimule a efetiva
realização da nossa reforma política, que garantiria, às futuras gerações, um
caminho aberto e desimpedido para aperfeiçoar as instituições do governo
representativo, condição sine qua non
da prática da democracia no mundo atual.
Segunda dúvida: será que o PT, após
as repetidas declarações do ex-presidente Lula, de que “não houve mensalão”
estará disposto a enquadrar alguns dos seus membros (como o governador de
Brasília), no esquema do “mensalinho” do Cachoeira? Ora, se o chefe supremo das hostes
petistas afirma que Mensalão não houve, para que, então, deitar uma cortina de
fumaça reconhecendo que houve o “mensalinho” do Cachoeira, que favoreceu
petistas como o governador de Brasília? Não seria menos arriscado fechar
fileiras ao redor do chefe supremo e simplesmente dizer, com a maior cara de
pau, que a questão do Mensalão é simples invenção da imprensa burguesa,
seguindo, nesse item, as declarações do presidente da agremiação Rui(m) Falcão,
que falou como ventríloquo do patrão?
Terceira dúvida: A mulher do
Carlinhos Cachoeira já avisou: o seu marido pode “explodir” e contar tudo. Será
que não vai acontecer com o contraventor o mesmo que aconteceu com PC Farias? (No episódio que acompanhou a
defenestração do ex-presidente Collor de Mello, lembremos que o ex-tesoureiro
do mandatário se tornou uma bomba ambulante, que precisou ser desmontada pelos
políticos alagoanos antes que fizesse mais estragos). Não correrá risco
semelhante, nas atuais circunstâncias, Carlinhos Cachoeira?
Quarta dúvida: Após a mais recente
sessão do STF que julgou a constitucionalidade das cotas nas Universidades (que
terminou como comício aplaudido pela platéia), será que os ilustres magistrados
vão agir na forma da lei e enquadrar os que tiverem de ser punidos no crime do
Mensalão, sem levar em consideração pressões do público? Pelo bem da democracia no nosso país,
esperamos que o STF tome decisões movido unicamente pelo espírito patriótico, visando apenas a
manutenção da ordem jurídica assinalada na Constituição e nas leis que vigem no
Brasil, sem se deixar influenciar por platéias que batem palmas no recinto da mais
alta corte da nossa Magistratura.
[1]
O Ministério Público Federal pediu em 17/02/2002 ao STJ (Superior Tribunal de
Justiça) que indiciasse penalmente o então governador Olívio Dutra (PT-RS), por
acusação de prevaricação apontada pelas investigações feitas pela CPI da
Segurança Pública, da Assembléia Legislativa gaúcha. Olívio era acusado de ter
se omitido na repressão ao jogo do bicho. Na CPI, foi apresentada fita na qual
o então militante petista Diógenes de Oliveira pedia à chefia da Polícia Civil
que não fosse rigorosa no combate aos bicheiros. Oliveira era presidente do
Clube de Seguros da Cidadania, uma entidade ligada ao PT, que arrecadou fundos
para o partido em 1998 e que teria recebido dinheiro do jogo do bicho. A
acusação de prevaricação, por ser crime comum atribuído a um governador, é de
competência do STJ.
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