Dividirei
este artigo em duas partes: I– Aspectos biobibliográficos de Vicente Ferreira
da Silva. II- Perfil antropológico da meditação de Ferreira da Silva.
I - ASPECTOS
BIO-BIBLIOGRÁFICOS.
Vicente
Ferreira da Silva nasceu em São Paulo, em 10 de janeiro de 1916 e morreu,
prematuramente, em acidente de automóvel na mesma cidade, em 19 de julho de
1963, aos 47 anos de idade. Formou-se em Direito na Faculdade do Largo de São
Francisco, da sua cidade natal, mas nunca exerceu a profissão de advogado,
tendo-se dedicado, inteiramente, à meditação filosófica e à vida acadêmica,
atividade que exerceu, aliás, com total desprendimento, através de cursos
livres, que oferecia no Colégio Livre de Estudos Superiores, que fundou em São
Paulo, no ano de 1945. Nessa instituição, segundo Antônio Paim, "viria a
despertar a vocação filosófica de diversos jovens que, mais tarde, se
destacaram nessa atividade" [Paim, 1999: 453]. No início da sua atividade
acadêmica, em 1940, o nosso autor colaborou com o filósofo americano Willard
Quine (1908-2000) que visitou a Universidade de São Paulo. Dessa sua
colaboração resultou o livro intitulado: Elementos de
Lógica Matemática, publicado nesse mesmo ano. Em 1949, acompanhou Miguel
Reale (1910-2006) na fundação do Instituto Brasileiro de Filosofia, centro de
estudos que, durante décadas, até o falecimento do seu fundador, em 2006,
congregou, como dizia Reale, “pensadores de todas as tendências" [Reale,
1992: 1129].
Vocação
filosófica das mais brilhantes no panorama cultural brasileiro, Ferreira da
Silva praticou, rigorosamente, ao longo de sua vida, o "amor sapientiae".
Alheio a preocupações econômicas, fez do seu centro de estudos, bem como da sua
presença no Instituto, polo irradiador da meditação mais rigorosa sobre o
mistério do ser e do homem, ao mesmo tempo que demonstrava grande
interesse pelas matemáticas. Eis a forma em que Miguel Reale sintetizou o
espírito da sua obra: "Autodidata, aliou à multiplicidade de leituras
filosófico-literárias um gosto marcante pela matemática, pela logística e pela
problemática metafísica, o que dá um sentido especial às suas meditações,
podendo-se dizer que ele soube, com novos termos, enriquecer a linguagem
filosófica brasileira" [Reale, 1992: 1129].
Com o
intuito de estimular os estudos no campo da estética (aspecto altamente
valorizado na meditação de Ferreira da Silva), o nosso autor organizou a Sociedade
Cultural Nova Crítica, juntamente com a sua esposa, a poetisa Dora Ferreira
da Silva (1918-2006); o órgão da mencionada Sociedade passou a ser a
Revista Diálogo. Inúmeros estudos têm sido feitos, ao longo das
últimas décadas, sobre o pensamento de Vicente Ferreira da Silva, em que se
destaca a vertente da meditação mito-poética, que se situaria na origem da
cultura ocidental, numa perspectiva metafísica assaz semelhante à que empolgou
a filosofia de Martin Heidegger (1889-1976).
Estudiosos
portugueses têm mostrado a proximidade do pensamento ferreiriano com as linhas
mestras da meditação lusa, no seio da corrente que se convencionou denominar de
"Filosofia Portuguesa". O espírito desta vertente permaneceu
vivo na tendência que a pensadora paulista Constança Marcondes Cesar (1945)
chamou de "Escola de São Paulo" e que tem Vicente Ferreira da Silva
como seu centro inspirador, junto com Eudoro de Sousa (1911-1987), Agostinho da
Silva (1906-1994) e Adolpho Crippa (1929-2000).
Salientarei,
aqui, a inspiração heideggeriana que anima a meditação de Ferreira da Silva
sobre o homem. Alicerçarei a minha análise, basicamente, em cinco
ensaios do pensador paulista: A concepção do homem segundo Heidegger (1951), O
Andróptero (1948), Utopia e liberdade (1948), Para
uma moral lúdica (1949) e Meditação sobre a morte (1948).
Levando em consideração que, no primeiro dos ensaios mencionados, Ferreira da
Silva faz um comentário acerca da Carta sobre o Humanismo de
Martin Heidegger (1889-1976), acompanharei a análise desse trabalho do pensador
paulista com a minha própria leitura do ensaio heideggeriano. Na conclusão
desta exposição, farei uma avaliação global acerca do pensamento
antropológico-filosófico de Ferreira da Silva, indicando o lugar que esse tema
ocupa na evolução da sua filosofia. Espero, assim, contribuir ao estudo de quem
já foi considerado, por Miguel Reale, como "a maior vocação metafísica do
Brasil".
1)
Inspiração de Ferreira da Silva na meditação de Martin Heidegger.
A meditação
do pensador paulista sobre o homem é, sem dúvida, de inspiração heideggeriana.
No ensaio intitulado: A concepção do homem segundo Heidegger [Silva,
1964: I, 256-264], Ferreira da Silva salienta algumas das principais
apreciações feitas pelo filósofo alemão a respeito do homem, na sua Carta
sobre o Humanismo. Nessa síntese do pensamento heideggeriano,
encontramos explicitados os principais elementos antropológicos que alicerçam
as considerações de Ferreira da Silva sobre o homem. Heidegger
inicia a sua carta, que dirige, em 1949, ao filósofo francês Jean Beaufret
(1907-1982), fazendo uma crítica ao falso cientificismo de que se
revestiu a Filosofia. Esse vício consiste na caracterização "do pensar
como theoria e a determinação do conhecer como postura teórica",
fenômeno que se dá no seio de uma interpretação técnica do
pensar. Trata-se, segundo Heidegger, de uma "tentativa racional, visando a
salvar também o pensar, dando-lhe, ainda, uma autonomia em face do agir e
operar". A filosofia é, nesse intento, "perseguida pelo temor de
perder em prestígio e importância se não for ciência. (...). Na interpretação
técnica do pensar, é abandonado o ser como elemento do pensar" [Heidegger,
1979: 150]. Heidegger situa-se, nessa crítica à
interpretação técnica do pensar, no contexto da análise que Edmund Husserl
(1859-1938) tinha feito acerca do objetivismo na sua obra: A crise das
ciências europeias e a fenomenologia transcendental [cf.
Husserl, 1962]. Longe de ser o pensar uma função puramente teorizante,
Heidegger salienta que este ato se firma a partir do Ser "na medida em que
o pensar, apropriado e manifestado pelo ser, pertence ao ser" [Heidegger,
1979: 150]. É o próprio ser que, pela sua força, "pelo seu querer, impera
com seu poder sobre o pensar e, desta maneira, sobre a essência do homem";
isso significa, frisa Heidegger, que o próprio ser age "sobre a essência
do homem (...), sobre sua relação com o ser. Poder algo significa aqui:
guardá-lo em sua essência, conservá-lo em seu elemento" [Heidegger, 1979:
151].
O pensar, na
dimensão pseudocientífica que o valoriza, exclusivamente, como tekhne, insere-se,
frisa Heidegger, "na singular ditadura da opinião pública" que, numa
clara manifestação do grau de objetivismo em que caiu a linguagem, "decide,
previamente, o que é compreensível e o que deve ser desprezado como
incompreensível". Essa "ditadura da opinião pública" exerce-se
através "da mediação das vias de comunicação" às quais se submete a
linguagem. Trata-se, a meu ver, do fenômeno que Herbert Marcuse (1898-1979)
tinha tipificado no surgimento do "pensamento unidimensional" e que
conduz, segundo Heidegger, ao reinado dos "ismos", que materializam a
caricatura da Filosofia como "técnica de explicação pelas últimas
causas". O filósofo lembra que a temática de "a gente", em Ser
e Tempo, expressa esse esvaziamento da linguagem na opinião pública
[cf. Heidegger, 1979: 151; Marcuse, 1970]. Essa crise da linguagem, salienta
Heidegger, manifesta-se, especialmente, na metafísica moderna da subjetividade,
que se tornou "um instrumento de dominação sobre o ente" [Heidegger,
1979: 152]. Ferreira da Silva expressa este pensamento heideggeriano da seguinte
forma: "A totalidade das formulações e doutrinas sobre a natureza última
do homem, sobre a humanitas do homem, se desenvolveu a partir
da precária base de um profundo esquecimento do Ser. (...). O pensamento
filosófico e humanístico não atendia a esta relação e intimidade do homem com
as potências instituidoras do ser. O pensamento metafísico pensou o homem a
partir da forma do Ente, isto é, a partir de imagens que não eram
suficientemente originais e prévias" [Silva, 1964: I, 256].
A crítica a
esse vício do pensamento metafísico constitui, no sentir de Ferreira da Silva,
"a primeira observação de Heidegger", que se "colige na
acentuação de que o pensamento filosófico ocidental, ao pretender determinar a
essência do homem, o fez, sempre, a partir de uma determinada interpretação da
Natureza, da História e do Ente em geral". Para superar essa crise ou, em
palavras do próprio Heidegger, para encontrar "o caminho para a
proximidade do ser", o homem deve "antes aprender a existir no
inefável (...). Somente assim será devolvido à palavra o valor de sua essência
e o homem será gratificado com a devolução da habitação, para residir na
verdade do ser". Essa será a base para o ressurgimento do verdadeiro
conceito de Humanismo, que consiste, unicamente, nisto: "meditar e cuidar
para que o homem seja humano e não desumano, inumano, isto é, situado fora de
sua essência". Os humanismos, porém, segundo Heidegger, tanto o marxista
quanto o cristão, o greco-romano, o renascentista, ou mesmo o sartreano,
"coincidem nisto: que a humanitas do homo
humanus é determinada a partir do ponto de vista de uma interpretação
fixa da natureza, da história, do mundo, do fundamento do mundo, e isto
significa, desde o ponto de vista do ente em sua totalidade" [Heidegger, 1979:
152].
Indagando
pelo fundamento dessa visão parcelada que afeta aos diferentes humanismos,
Heidegger frisa que "todo humanismo funda-se ou numa Metafísica ou ele
mesmo se postula como fundamento de uma tal" [Heidegger, 1979: 153]. É,
portanto, de teor metafísico toda interpretação da essência do homem, que
pressuponha a compreensão do ente, mesmo que não leve, explicitamente, em
consideração a questão da verdade do ser. Heidegger refere-se, particularmente,
ao humanismo romano, cuja interpretação da essência do homem como animal
rationale é condicionada pela Metafísica. Referindo-se a esta
apreciação de Heidegger, Ferreira da Silva afirma que: "o destino da
Metafísica é o de não conseguir pensar o homem em sua verdadeira
proveniência" [Silva, 1964: I, 257], pois a sua essência transcende as
determinações pressupostas por aquela.
Tentando
concretizar as razões que invalidam a Metafísica, Heidegger frisa que ela
"realmente representa o ente em seu ser e pensa assim o ser do ente. Mas
ela não pensa a diferença entre ambos (...). A Metafísica não levanta a questão
da verdade do ser mesmo. Por isso, ela também jamais questiona o modo como a
essência do homem pertence à verdade do ser" [Heidegger, 1979: 154].
Referindo-se à afirmação heideggeriana de que "a Metafísica pensa o homem
a partir da animalitas; ela não pensa em direção de sua humanitas",
Ferreira da Silva expressa, assim, por sua vez, essa parcialidade do pensamento
metafísico: "Esta incapacidade da Metafísica radica na impossibilidade do
pensamento metafísico para pensar a diferença que vai entre o Ser e o Ente. A
Metafísica propende, sempre, a reduzir e a representar o Ser pelo Ente, a
substituir a abertura do Ser pelo revelado em tal abertura. A Metafísica vê o
Ente e o pensa, mas em pleno esquecimento das potências instituidoras da
manifestação do manifestável" [Silva, 1964: I, 257].
A Metafísica,
frisa Heidegger, esqueceu o dado fundamental do homem: a sua abertura para o
ser. Ela encontra-se fechada "para o simples dado essencial, de que o
homem somente desdobra seu ser em sua essência, enquanto recebe o apelo do ser
(...). Somente na intimidade deste apelo, já tem ele encontrado, sempre, aquilo
em que mora sua essência" [Heidegger, 1979: 154]. Ferreira da Silva
salienta, de forma semelhante, esse esquecimento da Metafísica, que se baseia
no fato de ela fazer descer o homem ao domínio exclusivo do ente que é,
entretanto, "um momento essencial da própria estrutura existencial do
homem" [Silva, 1964: I, 258]. Se a essência do homem foi tergiversada, no
seio do pensamento metafísico, cumpre aprofundar no sentido do que essa
essência é. Heidegger frisa que a essência do homem, ser-aí, reside
na sua ec-sistência que descreve como "o estar postado na
clareira do ser" e que explica assim: "O homem desdobra-se (...) em
seu ser (West) que ele é e aí, isto é, a clareira do ser.
Este ser do aí, e somente ele, possui o traço fundamental
da ec-sistência, isto significa, o traço fundamental da in-sistência
ec-stática na verdade do ser. A essência ec-stática do
homem reside em sua ec-sistência, que permanece distinta da existentia pensada
metafisicamente" [Heidegger, 1979: 155].
Ferreira da
Silva, por sua vez, salienta que "o homem é na forma da ek-sistência e
este é um modo unicamente humano de ser (...). Não se pode captar o que é o
homem, quer colecionando suas qualidades ônticas, quer apelando para um poder
interno ou subjetivo; o modo de aproximação da humanitas do
homem consiste na visualização da sua dimensão ek-sistencial e
transcendente". Ora, essa dimensão consiste no "habitar ek-stático na
proximidade do Ser", cuja apreensão, frisa Ferreira da Silva,
"cumpre-se na superação e transcendência de todo o Ente, no relacionar-se
com essa Abertura, que condiciona todo o ingresso no mundo (Welteingang)"
[Silva, 1964: I, 259].
O filósofo
paulista sintetiza, assim, as características do ser na concepção
heideggeriana, explicando as conseqüências que se derivam, no campo da
compreensão filosófica do homem e das possibilidades ek-státicas da
sua liberdade: "O Ser é, pois, em sua essência, abertura, desvelamento,
descobertura, iluminação projetante, fonte de inteligibilidade. Mas, por outro
lado, desvelamento, transcendência significam esboço de um mundo, Weltenwurf,
descobertura do Ente. O Ser se dá, continuamente, como esboço de um mundo, como
poder instituidor das possibilidades históricas do homem. Esse transcender
projetante do Ser manifesta-se como um poder livre, como uma liberdade que
funda e institui o espaço de manifestação do Ente. Não se deve, entretanto,
confundir essa liberdade individual do eu e do tu, em seu jogo dialético
condicionado. É daquela liberdade original que o eu e o tu recebem o espaço de
seu movimento optativo. A dimensão do Ser é, justamente, a dimensão desse poder
livre e projetante de um mundo, dimensão onde descobrimos uma liberdade mais
original que a liberdade do eu singular" [Silva, 1964: I, 259].
A abertura
ao Ser é, assim, o pano de fundo sobre o qual se desenham as possibilidades
históricas da liberdade humana. Ferreira da Silva faz ênfase nesse aspecto
fundante e primordial da ek-sistência aberta ao Ser. Em virtude
dela se constitui a essência verdadeiramente humana. A respeito, frisa o nosso
autor: "O homem é sujeito de um Destino instituidor de sua própria
realidade histórica, em relação ao qual pode se initimisar. O homem
habita um domínio onde, o que está em jogo é algo que supera o homem, mas que o
superando, lança-o em sua situação histórica própria" [Silva, 1964: I,
259]. Essa é a forma de interpretar, validamente, a afirmação heideggeriana de
que "o homem é o vizinho do ser" [Heidegger, 1979: 164], ou de que
"o homem habita, na medida em que é homem, na proximidade de Deus"
[Heidegger, 1979: 170].
Heidegger
salienta, na parte central da sua Carta sobre o humanismo, as
características de que se reveste o relacionamento entre o Ser e a ec-sistência. Em
primeiro lugar, esta pressupõe que o homem esteja exposto à verdade do Ser.
Frisa Heidegger, a respeito: "Ec-sistência nomeia a
determinação daquilo que o homem é no destino da verdade (...). A frase: o
homem ec-siste, não responde à pergunta se o homem
efetivamente é ou não, mas responde à questão da essência do homem"
[Heidegger, 1979: 156]. Ferreira da Silva enfatiza esse aspecto da ec-sistência, frisando
que "na determinação da essência ek-sistencial do
homem, acontece que não é o homem, ônticamente entendido, o
principal, mas sim a natureza histórica do homem, pensada a partir
da verdade desveladora do Ser. Nesta ordem de idéias, é subtraída ao homem
qualquer iniciativa ou autodeterminação fundamental, sendo o homem lançado e
abandonado em sua situação histórica particular, pelo movimento próprio da
liberdade transcendente. O homem é convocado ao núcleo de suas possibilidades
históricas próprias, pelas potências ek-stático-projetantes do
Ser" [Silva, 1964: I, 260]. Desta forma, no sentir do filósofo paulista, o
pensamento heideggeriano tenta superar todo antropocentrismo.
Em segundo
lugar, Heidegger se pergunta como o ser se dirige ao homem. Isso se entende se
compreendermos "que o homem é enquanto ec-siste". Podemos
afirmar que "a ec-sistência do homem é sua
substância", ou, em outros termos, que "o modo como o homem se
apresenta, em sua própria essência ao ser, é a ec-stática insistência
na verdade do ser". Os humanismos, frisa Heidegger, não conseguiram
expressar essa dimensão da dignidade humana. Por isso "pensa-se contra o
humanismo" [Heidegger, 1979: 157]. No seu ensaio intitulado: O
ocaso do pensamento humanístico, Ferreira da Silva amplia essa consideração
heideggeriana sobre a influência dos humanismos, diante da dignidade ek-stática do
homem, inserindo neles até a própria fenomenologia. Eis as suas palavras a
respeito: "Entretanto, poder-se-ia indagar se o tipo de ser da consciência
humana ou do ego cogito, eleito pela doutrina husserliana e por
tantas outras filosofias de índole humanística, como princípio supremo do
pensar, não se reduziria a uma meditação mais radical, como uma forma emergente
na sucessão das epifanias do ser. Poder-se-ia propor, ainda, a questão de saber
se seria possível remontar a uma abertura na qual,
algo como a consciência subjetivo-transcendental, ocorreu, e não só ocorreu,
como foi efetivamente vivida" [Silva, 1964: II, 204-205].
Em terceiro
lugar, Heidegger frisa que, em decorrência da supremacia do ser sobre a ec-sistência,
deve-se excluir qualquer forma de manipulação do ser por parte do homem. Para
ele, "o homem é o pastor do Ser". O homem não decide quando os entes
penetram na clareira do Ser. Enquanto ec-sistente, deve ter cuidado,
ou seja, deve "vigiar e proteger a verdade do Ser" [Heidegger, 1979:
158]. Ferreira da Silva, por sua vez, explica esse caráter de profundo respeito
que deve guiar a atitude ec-stática em relação ao Ser, nos
seguintes termos: "O poder ser próprio do homem é, pois, um poder
arrojado, uma atividade que se exercita dentro de uma direção e de diretivas já
prescritas. O homem, portanto, não é o senhor do Ente (der Herr des Seienden),
mas o pastor do Ser (der Hirt des Seins) isto é, aquele Ente
que deve cuidar para que seja preservado o elemento do Ser. Este cuidar se dá
como transcendência, em relação a todo o dado e como relação ek-stática, em
direção à verdade do Ser" [Silva, 1964: I, 260-261].
Em quarto
lugar, o filósofo alemão frisa que o Ser não se revela intuitivamente ao homem
como hipostasiado em determinada coisa. A respeito, frisa Heidegger: "O
Ser é mais amplo que todo ente e é, contudo, mais próximo do homem que qualquer
ente". O homem atém-se primeiro ao ente. "Quando, porém, o pensar
representa o ente enquanto ente, refere-se, certamente, ao Ser (...). A questão
do Ser permanece sempre a questão do ente". Essa
situação de desvelamento do Ser através do ente (e do ente representado pelo
pensar enquanto ente), é responsável pela ambiguidade da metafísica mas, ao
mesmo tempo, é a fonte da sua riqueza inesgotável. A verdade do Ser,
bem como a clareira mesma, permanece oculta para a metafísica. Mas não é alheia
a ela. É, poderíamos dizer, a condição de possibilidade dela. A respeito, frisa
Heidegger: "A clareira mesma (...) é o Ser. Ela somente garante, no seio
do destino ontológico da Metafísica, a perspectiva a partir da qual as coisas
que se apresentam afetam o homem que lhes vem ao encontro. Desta maneira, o
próprio homem pode apenas atingir o Ser (...) na percepção. (...).
Somente a perspectiva atrai a visão para si e a ela se entrega, quando o
perceber se transformou em propor diante de si, na percepção da res
cogitans, como subjectum da certitudo"
[Heidegger, 1979: 158].
Essa questão
da plenitude do Ser e da complexidade da sua revelação através dos
entes, é retomada por Ferreira da Silva sob o aspecto da essência litigiosa do
Ser, que o pensador paulista concebe nestes termos: "O acontecimento da
verdade, como traçado ou projeto do ente é, ao mesmo
tempo, revelação e ocultação, e isto em sentido dinâmico, polêmico e
histórico. Às coisas e possibilidades que surgem, no horizonte do manifestado,
correspondem outras que sucumbem e desaparecem, e isto não por pacífica
sucessão, mas como trágica e extenuante luta. A posição do ente se dá como
luta; o Ser é, em sua essência, litigioso (streitige)
(...). A essência da verdade, isto é, o desvelamento, é dominada por uma
recusa. Esta recusa não é, entretanto, uma falta ou privação, como se fosse a
verdade um desvelamento total, que pudesse eliminar todo o velado" [Silva,
1964: I, 267].
Em quinto
lugar, Heidegger afirma que o relacionamento entre a ec-sistência e
o Ser pode explicitar-se à luz da temática do ser-no-mundo, que não
deve interpretar-se do ponto de vista vulgar - como se o homem fosse,
simplesmente, um ser mundano, ou mesmo como se mundano se
contrapusesse a espiritual. A expressão ser-no-mundo significa,
fundamentalmente, "a abertura do Ser. O homem é homem enquanto é ec-sistente. Ele
está postado, num processo de ultrapassagem, na abertura do Ser, que é o modo
como o próprio ser é; este jogou a essência do homem, como um lance, no cuidado de
si. Jogado desta maneira, o homem está postado na abertura do
Ser. Mundo é a clareira do Ser, na qual o homem penetrou a
partir da condição de ser-jogado de sua essência. O ser-no-mundo nomeia
a essência da ec-sistência, com vistas à dimensão iluminada, desde
a qual desdobra seu ser o ec da ec-sistência. Pensando
a partir da ec-sistência, mundo é, justamente, de
certa maneira, o outro lado no seio da e para a ec-sistência. O
homem jamais é, primeiramente, do lado de cá do mundo como um sujeito,
pensa-se este como eu ou como nós (...). O
homem primeiro é, em sua essência, ec-sistente na abertura do
Ser, cujo (espaço) aberto ilumina o entre, em cujo seio pode ser uma relação de
sujeito e objeto" [Heidegger, 1979: 167-168].
No seu
ensaio intitulado: O homem e sua proveniência, Ferreira da Silva
aprofunda no sentido não mundano da expressão heideggeriana ser no
mundo, salientando que o termo Mundo não remete a uma
dimensão antropocêntrica, mas é a expressão da clareira do Ser, na qual o homem
se situou, graças à sua condição de ser-jogado. Eis as palavras do
pensador paulista a respeito: "Sabemos como o ente intramundano só se
revela, a partir de um sistema de possibilidades inerentes à existência. Estas
possibilidades poderiam ser compreendidas como projetadas pelo homem, sendo o
próprio homem, neste caso, um prius em relação ao aparecimento
do ente intramundano. Porém, a perspectiva em que nos colocamos, procurando
incluir o homem dentro do círculo de um projetar instituidor, atesta-nos que
aquela interpretação antropocêntrica é inexata. A abertura das possibilidades
não diz respeito, unicamente, à esfera do mundo circundante, mas incide na
própria estruturação e constituição do homem. Neste sentido, devemos
compreender a afirmação de Heidegger de que ao traçar o mundo, o homem se vê
traçado no interior do mundo e aí abandonado. O desvelamento do horizonte
mundanal é simultâneo ao desvelamento do próprio homem (...). Se o transcender
instituidor das possibilidades abre campo para a realização histórica, disto
resulta que estamos diante de uma área metahistórica de decisões, que envolve e
condiciona todas as vicissitudes humanas. É o que afirma Heidegger em diversas
passagens da Carta sobre o humanismo" [Silva, 1964: II, 132].
Em sexto
lugar, Heidegger refere-se à manifestação da relação entre Ser e ec-sistência através
da linguagem que, longe de ser um flatus vocis, é, essencialmente,
"a casa do Ser manifestada e apropriada pelo Ser e por ele disposta".
Por isso, frisa o filósofo alemão, deve-se pensar a essência da
linguagem a partir da correspondência desta ao Ser enquanto tal, ou seja,
"como habitação da essência do homem". Isso significa que, na
fundamentação da linguagem, "não é o homem o essencial, mas o Ser enquanto
dimensão do elemento ec-stático da ec-sistência"
[Heidegger, 1979: 159].
Na parte
final da Carta sobre o humanismo, Heidegger frisa que a poesia
"se confronta com as mesmas questões e, da mesma maneira, com o pensar.
Mas ainda vale a pouco meditada palavra de Aristóteles em sua Poética:
que o poematizar é mais verdadeiro que o investigar o ente" [Heidegger,
1979: 174]. Ao mesmo tempo, Heidegger lembra, repetindo as palavras do poeta
romântico Friedrich Hölderlin
(1770-1843), que a linguagem "é o mais perigoso dos bens", porquanto
na expressão do pensamento, através das palavras, esconde-se o risco de
despoetizar a linguagem e torná-la lógica [cf. Heidegger, 1979: 174-175].
Ferreira da Silva adere ao conceito heideggeriano de linguagem, que a pensa não
na sua fria formalidade, mas na dimensão poética que a constitui em casa
do Ser.
O pensador
paulista dedica a este tema as últimas páginas do seu ensaio intitulado: A
concepção do homem segundo Heidegger. Eis as suas palavras a respeito:
"A poesia é o dizer da descobertura do Ente. No dizer poético põe-se em
obra a verdade projetante do Ser. Eis porque podemos dizer que a obra de arte,
cuja essência reside na poesia, funda e institui o mundo, trazendo a um povo o
conceito de sua própria realidade. Assim pois, ela não é - como diz
Heidegger - um simples ornamento que acompanharia a realidade humana,
nem um mero entusiasmo passageiro, como também não é uma simples exaltação ou
um passatempo. A poesia é o fundamento que suporta a História" [Silva,
1964: I, 261].
Ferreira da
Silva termina o seu ensaio fazendo as seguintes considerações, em relação à
Poesia como linguagem primordial: "a) A interpretação falaciosa da
essência da linguagem deve-se ao predomínio da metafísica da subjetividade. b)
Devemos pensar a palavra sob um ponto de vista revolucionário: o homem passa a
ser interior à palavra, instituído em sua configuração histórica particular
pela abertura projetante do dizer poético. c) A palavra (poética) é o jato de
luz que franqueia um mundo à humanidade histórica. d) A linguagem, na acepção
primitiva e original, é portanto um dizer do Ser, a forma em
que o Ser continuamente se põe em obra" [Silva, 1964: I, 262-263].
2) O homem,
irredutível ao geograficamente dado, graças à vivência do mundo eidético.
No seu breve
ensaio intitulado: O Andróptero, o nosso autor formula uma
concepção não determinística do homem, a partir da dimensão de abertura ao Ser,
típica da humanitas do ser humano. Os homens somos
vítimas, frisa o pensador paulista, do provincianismo geográfico que
tinha sido caracterizado por Platão no seu diálogo Fédon. Nele,
escreve Ferreira da Silva, "depois de afirmar que esta terra não corresponde
à imagem que dela fazem os que costumam relatar descrições de sua superfície,
Platão nos diz ser a terra incomensuravelmente grande, possuindo uma infinidade
de lugares maravilhosos, que desconhecemos por habitarmos entre Farsis
e as Colunas de Hércules. Fechados nesse exíguo círculo, entre vales e
escarpas confinantes, não temos muitas vezes sequer o pressentimento das
paragens divinas que nos envolvem, dessa terra pura que domina
a nossa terra. Tendo fixado nossa residência neste solo pedregoso e estéril,
aqui vivemos disseminados pelas praias e costas, como formigas e rãs em
redor de um pântano. Este provincianismo geográfico desastroso e
fatal, que se nos adere, termina por nos cegar, e deixamos, então, de perceber
que a terra que pisamos, estas pedras e todos os lugares que habitamos,
estão inteiramente corrompidos e arruinados como aquilo que jaze no mar o está,
pela acritude dos sais" [Silva, 1964: I, 17].
A ilusão,
frisa o pensador paulista, é a arma que empregamos para nos sentirmos senhores
das alturas e apagar, no seio da nossa consciência, todos os sintomas
de sujeição e abatimento, que produz o provincianismo geográfico. Ferreira da
Silva escreve a respeito: "Escapamos ao nosso cativeiro pelo expediente da
má-fé e falsificação" [Silva, 1964: I, 18]. Platão, num outro
diálogo, Fedro, segundo Ferreira da Silva, caracterizou muito bem a
situação da alma falsamente liberada pela ilusão: "Quando a alma perde
suas asas, roda pelos espaços infinitos até aderir a alguma coisa sólida,
fixando aí sua morada. Essa coisa sólida é constituída pelo
sistema de nossos limites, de tudo quanto é externo, de todo o domínio da
materialidade" [Silva, 1964: I, 17-18].
A doutrina
platônica das idéias aparece, nesse contexto de determinismo e opressão, como
uma filosofia salvadora. "A virtude das asas - afirmava Platão
- consiste em levar o que é pesado para as regiões superiores"
[apud Silva, 1964: I, 19]. Porém, frisa Ferreira da Silva, é preciso
interpretar corretamente as idéias, não como uma cópia exaurida da realidade
sensível, pois perderiam, assim, toda a sua originalidade, e já não seriam Ser
original ou matrizes absolutas. O nosso pensador caracteriza, assim, a
verdadeira essência daquelas: "A Idéia é, justamente, o contrário de um
conceito, que está sempre aquém do sensível, tendo virtudes e propriedades
completamente distintas. Enquanto os conceitos nos encerram no determinado e no
finito, pondo-nos em relação com um dado insuperável, as Idéias nos lançam num
processo infinito de perfeição e de plenitude, fazendo-nos ultrapassar todo o
imediato" [Silva, 1964: I, 19]. Assim, o mundo eidético, "esse Eros
cosmogônico que mantém o universo em existência", exerce um papel
distensivo e libertador, ao permitir-nos a evasão do puramente fático, bem como
do confinamento a que nos reduzem os sentidos e os conceitos. Em que pese o
fato de serem "realizadas, imóveis e estáticas", as Idéias são
"o princípio de todo o movimento no mundo sensível, estando este em
constante radiação para esses paradigmas insuperáveis do Ser" [Silva,
1964: I, 20].
Só existe,
para Ferreira da Silva, um caminho que conduz à verdadeira
libertação: a abertura para o pensamento eidético, que é a abertura para o Ser
e que exige de nós um duro sacrifício, a saber, "o da entrega a
uma perfeição que não solicita o nosso consentimento para a sua constituição,
exigindo a genuflexão da nossa vontade (...). Quando entramos em cena, o drama
do ser já se cumpriu, pois está realizado desde todo o sempre e o nosso único
papel seria o de reconhecer, ou não, a legitimidade de sua soberania"
[Silva, 1964: I, 20]. Fora dessa perspectiva de abertura ao plano eidético,
tudo é "mímesis, cópia, mera reprodução". Nesse contexto
de inautenticidade, o real se nos apresenta "como pensamento pensado e não
como pensamento pensante". Caímos, então, numa posição metafísica, a cujas
dificuldades não conseguiu escapar o próprio Platão, "quando este se
defronta, na República, com o problema de explicar por que devem voltar
a este mundo, para desempenhar o seu papel de mentores e governantes, aqueles
que fixaram sua morada no templo das Idéias. Compreende-se, pois, perfeitamente,
a pergunta de Glauco a Sócrates: Por que condená-los a uma vida
miserável, se eles podem desfrutar de uma vida mais feliz?"
O filósofo
paulista conclui o seu ensaio O Andróptero com esta pergunta,
que traz até nós a preocupação do interlocutor de Sócrates, no diálogo
platônico: "Se a felicidade e o objetivo da vida estão além da história,
se o tempo e o curso das coisas humanas não constituem um fator substancial da
realidade, por que exigir de quem se elevou a uma ordem superior de existência
que se ocupe e se responsabilize pela gestão das sombras?" [Silva, 1964:
I, 21].
3) O homem,
irredutível às utopias, graças à fundação poética da sua essência.
Ferreira da
Silva reconhece, no seu ensaio intitulado: Utopia e Liberdade, duas
formas de utopismo que afetam ao homem: a normal, e a construtível.
A primeira faz ênfase no fato de existir uma norma canônica de ser humano,
"um regime definitivo, em que o homem entraria em plena congruência com o
seu desenho essencial" [Silva, 1964: I, 61]. Nesse utopismo deitam raízes
as idéias de uma idade de ouro ou de uma nova Atlântida. A segunda forma de
utopismo baseia-se no reconhecimento de que "o homem, em sua natureza, é
um ser construtível, tanto do ponto de vista interior, como do
ponto de vista exterior, e que, portanto, pode ser conduzido ou reconduzido à
sua forma normal".
O filósofo
paulista salienta que o homem, nas utopias, é tomado como um objeto destituído
de qualquer dialética interna. Trata-se, sem dúvida, de um vulgar determinismo,
cuja essência é assim explicada pelo nosso autor: "Se considerássemos o
homem como um simples sistema de necessidades ou como uma
ordem de apetites psicossomáticos, seríamos forçados a admitir, sempre, uma
proporção direta entre o sentimento de poder interno, de plenitude e satisfação
humana, e o aumento das condições e dos meios externos de satisfação desses
apetites". Contudo, frisa Ferreira da Silva, a reflexão patenteia que o
homem é um puro imprevisível, que não pode ser construído ou programado por um
conjunto de técnicas sofisticadas em poder do Estado.
A propósito,
afirma: "A mais sumária reflexão nos mostra, entretanto, quão negligente à
realidade é essa pretensa proporção que comanda esta forma de
pensamento: num certo aspecto, o homem é um puro imprevisível, sendo a sua
coerência de ordem mais profunda do que entende o utopismo. A utopia social
implica, evidentemente, uma certa ordem no suceder das coisas, exige que a um
mais corresponda sempre um mais e a um menos sempre um menos, pois não teria
sentido trabalhar numa certa direção se não estivesse garantido o resultado. A
própria idéia de construtividade, no sentido utópico, que envolve todo um
conjunto de técnicas que facultaria a um poder estatal a construção de um
determinado tipo de sociedade e, ipso facto, de uma certa figura
antropológica, viria a perder seu sentido se puséssemos em relevo esta rebeldia
metafísica da consciência humana" [Silva, 1964: I, 62].
O utopismo
peca, justamente, por desconhecer esta rebeldia metafísica essencial
ao homem, ao tentar quantificá-lo em resultados mensuráveis. Ferreira da Silva
refere-se a esse aspecto nestes termos: "O utopismo está baseado numa
versão muito superficial do que poderíamos denominar a lógica existencial do
homem, a sua coerência interna e não podemos fugir à impressão de que lida com
o homem, como se este fosse uma quantidade fixa, um termo que se manteria
constante em todas as suas operações. Sob um outro ângulo, o utopismo não
considera a variação histórica dos desiderata, impulsos e idéias
humanas e toda a fluente e incoercível realidade da história".
Ferreira da
Silva assinala um aspecto muito importante dessa rebeldia metafísica do
homem: a liberdade. Aí deita raízes a distinção profunda entre o homem e as
coisas que podem ser programadas: "A escolha, no homem, é sempre seleção,
alternativa, privação, o que o distingue, essencialmente, de todas as coisas
que podem passar por diversas fases de elaboração, permanecendo sempre aptas a
serem conduzidas à perfeição previamente estabelecida. Ao optar, o homem cria
condições novas e particulares, novas determinações do seu ser, que passam a
limitar e cercear as novas opções, apresentando à sua vida um conjunto
circunstancial sempre diferente". O filósofo paulista exprime a
absoluta originalidade humana, em palavras que lembram o pensamento
de Heidegger: "O homem assemelha-se a um viandante que, ao se perder numa
floresta, fosse destruindo todas as pontes e passagens que o ligavam ao ponto
de partida, não lhe restando, portanto, outro recurso senão marchar
para a frente" [Silva, 1964: I, 63].
O utopismo,
pelo contrário, frisa Ferreira da Silva, pressupõe que o projeto humano pode
ser decomposto em etapas quantificáveis, numa alusão às teorias
desenvolvimentistas que apregoam o planejamento da sociedade e do homem, do
estritamente econômico e material e do propriamente humano. A respeito, o nosso
pensador escreve: "O pensamento utópico, entretanto, julga que o problema
humano pode ser decomposto em fatores particulares, podendo uma parte esperar a
solução da outra e afirmando ipso facto que a sociedade se
pode dedicar, primeiro, a salvar os seus problemas materiais mais urgentes,
para depois enfrentar tarefas de mais alto significado. Esta crença vemo-la
despontar quando ouvimos dizer que tal ou qual país está sacrificando uma ou
duas gerações na construção de uma infraestrutura incomovível que lhe
possibilite, depois, um apogeu espiritual" [Silva, 1964: I, 64]. Essa
falsa suposição do utopismo inspira-se numa visão simplista do homem, que
pretende ser a pessoa a mesma, do ângulo espiritual, ainda que manipulada
extrinsecamente pelos processos produtivos e de reforma social. O filósofo
paulista levanta duas objeções contra essa pretensão que, mesmo que não a
identifique explicitamente, no Brasil materializou-se nas várias tendências
determinísticas que, como o positivismo, inspiraram, em boa medida, as idéias
desenvolvimentistas postas em marcha nas últimas décadas do século XX.
A propósito,
Vicente Ferreira da Silva escreve: "Porém, uma vez criada essa ordem
econômica perfeita, estaria ainda o homem na mesma disposição em relação aos
seus antigos ideais? Permaneceria intacta a sua fé, através desses períodos de
transformações unilaterais? Estas seriam duas das objeções possíveis ao dogma
da construtibilidade parcelada do homem, que se inspira, evidentemente, numa
apreensão objetivante e desmerecedora do homem. Um pequeno número de idéias
simplistas e ingênuas orientam este modo de pensamento. Conhecidas as cadeias
causais próprias dessa coisa que é o homem, poderíamos, então,
submetê-lo a uma manipulação racional e científica (métodos pedagógicos,
higiênicos, biológicos, eugênicos, reflexológicos, etc.), em analogia com os
processos usados na criação de animais domésticos" [Silva, 1964: I, 64].
Ferreira da
Silva salienta que a afirmação da homogeneidade absoluta do real é a premissa
básica da construtibilidade utópica. A respeito, frisa: "Uma premissa se
esconde sob a crença da construtibilidade utópica do homem: é a afirmação da
homogeneidade absoluta do real. O real se poria como uma extensão homogênea de
entidades físicas e naturais que absorveriam em si a totalidade do conhecido.
Nenhuma negatividade interna conturbaria a organização dessa massa inerte. Uma
vez conhecido o determinismo intrínseco do real, poderíamos afeiçoa-lo ao nosso
gosto, dando-lhe a forma mais conveniente ao seu funcionamento natural, aos
objetivos postos". A visão utópica da realidade teve uma origem
filosófica: a República platônica. Em relação a este ponto, o nosso autor
escreve: "Platão consagrou, definitivamente, a crença de que o homem tem
uma medida a cumprir em todos os seus atos e de que o ideal de
uma vida justa consiste na participação de um modelo essencial. Esta República
ideal de Platão não seria uma invenção arbitrária dos legisladores, nem uma
imposição de uma elite de força, mas sim um teorema da razão,
uma exigência da natureza inteligível do homem" [Silva, 1964: I, 64-65].
Contudo, apesar desse caráter puramente teorético que tipifica a República
platônica, o seu utopismo não pode se justificar sem a materialização de um
regime universalmente válido, "que polarize todos os espíritos numa mesma
conexão racional e que imponha uma mesma meta a todos os esforços".
A utopia
pode-se situar no passado, como um paraíso perdido, ou num futuro longínquo,
como um regime ideal a ser atingido. Porém, frisa o filósofo paulista, "é
a utopia sempre a mesma representação de um regime idealmente necessário dos
homens e das coisas, a equação da vida com um código eterno da natureza. Um tal
sistema, pelo seu próprio caráter, faz tabula rasa do tempo,
pois é a fórmula política de todos os tempos. É o próprio testemunho da
História que demonstra o caráter sofístico desta carta política ideal e
utópica, dessa legislação universal superior aos tempos e aos lugares"
[Silva, 1964: I, 65].
O autor
sintetiza, assim, a problemática debatida por ele nas páginas do seu ensaio Utopia
e liberdade: "O que está em jogo aqui é, evidentemente, uma questão de
ordem metafísica, a saber: se o homem tem uma medida invariável
através dos tempos, um modelo essencial, ou se, pelo contrário, o homem é o
fruto de seu fazer histórico, de sua liberdade e inventividade
fundamentais". E salienta, para terminar, a sua concepção de inspiração
heideggeriana em relação à caraterística ontológica fundante do homem:
"Parece-nos que o mais íntimo do homem consiste, justamente, nessa fundamentação poética
de sua essência, nessa autoprojeção de sua fisionomia humana; e assim não se
pode reger por sistema de fins dados de uma vez para sempre. Este regime
definitivo da utopia nada mais é do que uma ilusão constante do espírito,
propenso a dar valor permanente aos tipos de conduta e aos valores históricos
sempre contingentes e gratuitos" [Silva, 1964: I, 65].
4) A moral
lúdica, na superação do mito do progresso indefinido.
A crise do
homem contemporâneo é caracterizada por Ferreira da Silva, no seu ensaio
intitulado: Para uma moral lúdica, da seguinte forma:
"um veneno insidioso foi se infiltrando, lentamente, no corpo da sociedade
atual, um veneno estranho e invisível, cujos sintomas, tornando-se cada vez
mais nítidos, incapacitaram o homem para as suas mais autênticas realizações.
Uma atmosfera de constrangimento e de frustração circunscreve o campo da consciência
e, por todos os lados, a expectativa do que está por vir tinge de cores
carregadas as perspectivas vitais" [Silva, 1964: I, 137].
Esse veneno
e essa atmosfera de constrangimento estão identificados, a partir do século
XIX, com o mito do progresso indefinido, que, infelizmente, e sem que a
Humanidade tivesse consciência da frustração existencial, degredou a transcendência numa transdescendência,
ofuscando o propriamente humano.
A respeito,
o nosso pensador escreve: "O mito do progresso contínuo (estabeleceu-se)
invertendo a ordem dos meios e dos fins, numa caça exaustiva de recursos que
nunca desembocavam numa promoção da vida por si mesma. A transcendência original
do viver transmudou-se numa transdescendência, isto é, num
aprofundamento material cada vez mais acentuado, toda ação passando a ser
interpretada unicamente como ação transitiva, utilitária ou econômica, como
transformação das coisas e do mundo, mas perdendo-se de vista o escopo de todo
o movimento. A ordem sem fim dos meios, o mal infinito dos
instrumentos ofuscou a alma e, ato fundamental, o exercício ético das virtudes
propriamente humanas" [Silva, 1964: I, 137-138].
O
conhecimento operacional, frisa o nosso autor, é uma "visão subsidiária e
não teoria filosófica total". Por pretender sê-lo, tornou-se conhecer
monstruoso, repetindo aqui o termo cunhado por Sören Kierkegaard
(1813-1855). E afirma, a seguir: "O que negamos é que esse conhecimento
operacional, visão subsidiária e não teoria filosófica total, possa nos
instruir no tocante à forma última de nossa vida" [Silva, 1964: I,
138-139]. Na hipertrofia da atividade produtiva do homem atual, a sociedade
perdeu o controle dos mecanismos que pôs em movimento. O efeito mais grave
dessa hipertrofia, consiste no fato de que os colossos nacionais da técnica
encheram o coração do homem de mais apreensões e temores. A solução adequada
para esse conflito consiste na modificação simultânea do homem e de suas
condições naturais de vida, com ênfase numa inflexão do comportamento moral. Essa
será a única forma de superar o caráter para, absolutamente
utilitário, da ação moderna, que conduz a uma transitividade insubstancial.
Nesse esforço de reivindicação do autenticamente humano, colabora conosco a
noção de espírito do cristianismo, que nos capacita para
valorizar as coisas em si mesmas.
A propósito,
afirma Ferreira da Silva: "Para Aristóteles, que vivia no âmbito do
intelectualismo grego, somente a contemplação e a filosofia respondiam a tais
exigências. Nós, entretanto, educados numa tradição cristã, não necessitamos
limitar às virtudes dianoéticas este poder de salvação, pois a nossa noção de
espírito é muito mais ampla. O amor, as livres atividades criadoras, são também
coisas que se buscam por si mesmas" [Silva, 1964: I, 141]. Encontramos
neste aspecto da meditação ferreiriana, uma inovação em relação à perspectiva
heideggeriana que, na Carta sobre o Humanismo ao menos,
enxerga o fenômeno cristão simplesmente como mais um humanismo que limita as
livres atividades criadoras do homem.
O nosso
autor salienta o valor do jogo como símbolo da conduta ética que dá valor às
coisas em si mesmas. A respeito, escreve Ferreira da Silva: "O objetivo do
jogo é o jogo, é a ação da ação, o ato do ato. Como símbolo de uma conduta que
encontra o deleite no completo, a atividade lúdica é o mais próximo
paradigma de um sentido da felicidade que o homem moderno perdeu quase
inteiramente". O nosso autor termina o seu ensaio Para uma moral
lúdica, destacando o que considera a única seriedade que vale a pena. Eis
as suas palavras a respeito: "Varrer da nossa consciência o inessencial, o
que não se relaciona com a ação que se busca por si mesma, votando à sátira, à
ironia e ao escárnio todos os falsos ídolos. Só há uma seriedade séria; mas
esta não é lúgubre e taciturna, crispada e sofredora, mas sim vivificante,
generosa e criadora" [Silva, 1964: I, 141].
5) A morte
como sucesso que transcende a pura fenomenalidade.
O filósofo
paulista considera que o silêncio que traduz a inoperância da nossa lógica, é a
reação mais adequada perante a morte. A respeito, escreve no seu ensaio
intitulado Meditação sobre a morte: "A conseqüência mais
própria do evento da morte é compelir-nos ao silêncio, cortando a palavra, pois
sentimos anulada a nossa lógica e ultrapassado o mundo de significação que
fundamentam os nossos juízos e conceitos. As palavras desmaiam em sons, pois
o resto é silêncio" [Silva, 1964: I, 23]. Também desaparecem, perante
a morte, as diferenças entre os homens. Diante dela, frisa o nosso autor,
"não existem reis ou mendigos do conhecimento e todos submergem nas trevas
finais na mesma expectativa desarmada e ansiosa". A morte é, assim,
uma situação limite, porquanto é a barreira que se ergue perante a
nossa liberdade. Ferreira da Silva enfatiza a dimensão que poderíamos chamar de transcendente da
morte, como acontecimento que supera a pura fenomenalidade perceptiva. É o
término de um vínculo intersubjetivo entre duas almas; a solidão e a ausência
daí decorrentes são os fatos que o homem procura explicar quando se lança à
reflexão sobre a morte e a sobrevivência. Nesse esforço explicativo, surgem as
que o filósofo denomina de visões objetivantes da morte, que a
consideram como "um simples fato intramundano, como a corrupção de um
corpo, ou o desmoronamento de uma estrutura biofísica, (e que) desprezando a
relação pessoal interrompida, não respeitam a totalidade de sua natureza"
[Silva, 1964: I, 25].
O Reino
dos vivos opõe-se radicalmente à morte. Aquele é constituído pela
"assembleia daqueles que pela determinação do seu amor" geram sempre
mundo ao seu redor. A morte constitui a interrupção dessa "comunidade de
libido e de cuidado", mediante a destruição do vínculo exteriorizado dessa
co-participação. A morte do próximo é, assim, uma "infidelidade
trágica" de sua parte, na expressão cunhada por Paul-Ludwig Landsberg
(1901-1944), que Ferreira da Silva faz sua. Existe uma dualidade trágica entre
a morte e a vida, entre a nossa natureza (que implica movimento, atividade e
superação) e o confinamento, o ensimesmamento definitivo dos mortos. Trata-se,
considera Ferreira da Silva, de uma "luta entre a fidelidade ao passado e
à pessoa do morto, e os novos anseios de vida". Assim, o acontecimento
objetivo da morte e o fato subjetivo não se correspondem. Em decorrência da
minha morte dilui-se a minha circunstância mundanal, devido ao desmoronamento
da base da minha encarnação. Ferreira da Silva destaca o caráter misterioso da
morte. Tal caráter deita raízes no fato de que ela nos liberta da esfera
fenomênica, constituindo, assim, para nós, um mistério que não pode ser
analisado por nenhuma ciência. De acordo com esse caráter, a nossa atitude
diante da morte deve ser de confiança no mistério.
Eis a forma
em que o pensador caracteriza essa atitude: "O que pode existir, sim, é
uma confiança no mistério, um sentimento efusivo de que o inteligível não é
tudo e que podemos abandonar-nos mesmo àquilo que não pode ser vertido nos
diagramas do conhecimento. Esta confiança é contrária ao desafio do
conhecimento, é o sentimento esperançoso e tranquilo do que, como o núcleo do
nosso ser, se opõe ao terror do aniquilamento" [Silva, 1964: I, 28].
Conclusão
Segundo
salientou Benedito Nunes (1929-2011), a obra filosófica de Heidegger pode-se
dividir em duas etapas: um primeiro ciclo que "é preenchido pela
influência da Ontologia Fundamental, recebida como expressão de uma filosofia
que centralizava as várias tendências existenciais até então dispersas, ratificando
a transformação da metafísica numa antropologia filosófica, preconizada, antes
de Ser e Tempo, por Max Scheler (1874-1928)" [Nunes,
1980: 6]. Esse primeiro ciclo estaria representado pela obra que acaba de ser
mencionada, devendo ser levado em consideração, contudo, o caráter não fechado
da mesma, que é testemunhado pelo seu inacabamento.
Já o segundo
ciclo da meditação heideggeriana começa com a rejeição, por parte do filósofo
alemão, do paralelo que alguns críticos pretendiam estabelecer entre o seu
pensamento e o existencialismo, particularmente a meditação sartreana. O início
desta segunda etapa estaria marcado pela sua Carta sobre o Humanismo (escrita
em 1949), endereçada a Jean Beaufret, e que foi provocada, em parte, pela
conferência de Sartre (1905-1980) intitulada: L'existencialisme est un
humanisme. Heidegger, porém, já tinha feito, anteriormente, algumas
ressalvas quanto ao caráter não existencialista de sua meditação, no seu
ensaio Filosofia da Existência [cf. Nunes, 1980: 6].
Benedito
Nunes caracteriza, assim, o cerne do pensamento heideggeriano nesta
etapa: "Questão de fundo, interesse, encargo ou destino do
pensamento - seu assunto e seu tema únicos - o Ser
torna-se, como matéria exclusiva da indagação heideggeriana, menos um centro de
especulação teórica do que o alvo de uma prática meditante, concernida com o
objeto de sua busca desde o plano da linguagem, caminho
preferencial, ao plano histórico, quer na época da cultura grega, em que
despontou a metafísica, enquanto forma dominante de concepção do ocidente
europeu, quanto na época atual, caracterizada pela expansão planetária da
técnica, em que se prenuncia a superação da mesma metafísica" [Nunes,
1980: 7].
Nesta
segunda etapa da obra heideggeriana dá-se uma inversão na sua temática, em que
é privilegiada a posição do Ser como norte único de toda a meditação
filosófica. O dizer poético será o veículo de comunicação
da ec-sistência, devendo-se "pensar a essência da linguagem a
partir da correspondência ao Ser" [Heidegger, 1979: 159], como foi
destacado no início desta exposição. Assim, podemos caracterizar a obra
filosófica de Martin Heidegger citando as palavras de Benedito Nunes, como
sendo "uma investigação extremada que tenta falar daquilo mesmo que o
discurso filosófico especulativo condenou ao esquecimento, o Ser, o tempo e a
linguagem, e que por isso não se detém nos limites onde o pensamento deve
silenciar. A prática meditante heideggeriana, já excedentária à filosofia e
laborando na sua negação, alcança, enfim, pelo dizer poético que procura
liberar na linguagem, a inversão do Ser e Tempo para Tempo e Ser, como virada
do idioma metafísico. Expressão tateante e sondagem antecipadora de um
pensamento por vir, a virada prenuncia a possibilidade de uma mudança profunda
nas próprias relações do homem com o Ser e dos homens entre si. A revolução da
linguagem, consumada no dizer poético, tornar-se-ia, com
a obra inteira do filósofo, o prólogo interrogativo e perplexo dessa mudança
possível, entreaberta na cena revolta da nossa época, onde se joga, num lance
decisivo, o destino do mundo e do homem postos em questão" [Nunes, 1980:
7].
Vale a pena
salientar que, na obra filosófica de Vicente Ferreira da Silva, deu-se uma
evolução semelhante à do filósofo alemão. Miguel Reale assinala três etapas na
evolução do pensamento ferreiriano: a) de formalização linguístico-matemática,
b) etapa existencial e c) etapa de compreensão poético-religiosa da história e
do cosmo. A primeira etapa manifestou-se no ensaio intitulado: Elementos
de Lógica Matemática, que o nosso autor escreveu em 1940. A etapa
existencial caracteriza-se, no dizer de Reale, pelo "interesse
compreensivo e desvelado amor pelo significado pleno da existência humana, do
que é exemplo magnífico o seu belo livro: Dialética das Consciências (1950),
o mais perfeito ensaio em língua portuguesa sobre os problemas da
intersubjetividade e da alienação, onde demonstra que a atuação do espírito se
dá na forma do encontro e da comunicação existencial, remontando às fontes
primordiais da sociabilidade como concreção e concreação" [Reale, 1964: I,
11]. A esta segunda etapa pertencem a maior parte dos trabalhos de Ferreira da
Silva que foram objeto de análise nestas páginas, como O Andróptero (1948), Utopia
e Liberdade (1948), Para uma moral lúdica (1949)
e Meditação sobre a Morte (1948). Os estudiosos
franceses Sylvie e Zdenek Kourim chegam a considerar esta etapa do pensamento
ferreiriano tão importante que, no sentir deles, o cerne deste seria o tema
antropológico.
A terceira
etapa da evolução filosófica de Ferreira da Silva é, segundo Reale, a da
compreensão poético-religiosa da história e do homem. A esta etapa, que se
inicia em 1951, o nosso autor dedicou os últimos doze anos de sua vida,
"ofertando-nos ensaios esparsos, como intuições poderosas, numa linguagem
que se tornou cada vez mais apurada e pessoal, e às vezes enigmática, que
lembra a do último Heidegger, mas que com ela não se confunde". Alguns dos
trabalhos pertencentes a esta terceira etapa são, por exemplo, Filosofia
da Mitologia e da Religião (1954), Sociologia e Humanismo (1958), O
Homem e a Liberdade na Tradição Humanística (1961), O Ocaso do
Pensamento Humanístico (1960) e Natureza e Cristianismo (1957).
Porém, a mais importante obra deste período é, ao meu modo de ver, o
ensaio Idéias para um Novo Conceito de Homem (1951) que inclui
o escrito intitulado: A concepção do Homem segundo Heidegger, que
comentei atrás e que constitui o ponto de partida para a última fase da
meditação ferreiriana.
Assim como o
segundo Heidegger não nega o primeiro, antes, pelo contrário, projeta uma luz
esclarecedora sobre o autor de Ser e Tempo, da mesma forma
encontramos um nexo estreito entre as diferentes etapas da meditação
ferreiriana, especialmente entre as duas últimas. Segundo Reale, nos ensaios de
Ferreira da Silva intitulados: Idéias para um novo
conceito do homem e Teologia e Antihumanismo, este último
de 1953, é onde o pensador paulista exprime, de forma mais explícita, o cerne
da terceira etapa de sua meditação, que consiste em pensar "o homem e as
coisas a partir de Deus, pondo-se o pensador, ousadamente, na perspectiva
original do divino" [Reale, 1964: I, 12]. Em linguagem heideggeriana
diríamos, melhor, que o pensador paulista se coloca, nesta segunda etapa, na
perspectiva original da ec-sistência, para pensar o homem e as
coisas a partir do Ser.
Em relação
ao estreito nexo que existe entre as etapas do pensamento ferreiriano,
especialmente entre as duas últimas, a humanística e a ec-sistencial,
Miguel Reale anota que com os ensaios Idéias para um novo conceito de
homem e Teologia e Antinhumanismo, "Vicente supera,
sem a eliminar, (...) a dialética das consciências (...),
para elevar-se às fontes projetantes e condicionadoras da intersubjetividade,
concluindo que, na base da liberdade individual do eu e do tu, em seu jogo
dialético condicionado, está o Ser como liberdade, que funda e institui o
espaço de manifestação do homem e de suas possibilidades históricas contingentes.
O segundo Heidegger, cujas obras ninguém soube interpretar melhor que ele no
Brasil, propicia-lhe o encontro de suas perspectivas originais, o que, diga-se
uma vez por todas, para prevenir críticas superficiais, nunca o impediu de
viver intensamente os problemas brasileiros, como o demonstrarão os seus
penetrantes estudos sobre política, educação e sociologia" [Reale, 1964:
I, 12].
Reale frisa
que a meditação ferreiriana, em virtude do princípio herdado de Heidegger
"de que o homem não é o senhor do Ente, mas o pastor do Ser", concebe
a filosofia intramundana como momento da filosofia transmundana ou Filosofia da
Religião e da Mitologia, ou melhor, da Filosofia da Religião como Mitologia,
"à qual corresponde um novo humanismo, não apenas teocêntrico (referido a
Deus) mas teogônico (como projeção do divino)" [Reale, 1964: I, 12]. Essa
orientação anti-historicista (porquanto não limitada à dimensão intramundana) é
o ponto de partida, na meditação de Vicente, para uma nova visão da história e
da gênese do processo gnoseológico, que se alicerça na abertura ao Ser e não na
manipulação dos Entes e que inspira a sua crítica ao Ocidente, num paradoxal
esforço por salvá-lo de si mesmo" [Reale, 1964: I, 13].
A meditação
ferreiriana apontaria, assim, em último termo, para o reconhecimento de
uma historicidade transcendente que nos permita voltar às
origens, no reconhecimento do Ser. Eis a forma em que Reale tipifica essa
finalidade última da filosofia do nosso autor: "Sua preocupação pelas
origens e o valor do infra estrutural, quer na raiz da personalidade, como o
demonstra o ensaio intitulado: Uma interpretação do
sensível, quer no evolver das idéias, como o revela a sua nota sobre
Heráclito, ou no estudo sobre a origem religiosa da cultura, tem, com efeito, o
alcance de uma historicidade transcendente, de uma volta às
origens, para dar começo a um diverso ciclo de história, diferente deste em que
o homem estaria divorciado da natureza e das partes do divino; para um retorno,
em suma, ao ponto original donde emergem todas as possibilidades naturais
espontâneas, libertas das crostas opacas do experimentalismo tecnológico assim
como das objectivações extrínsecas platônico-cristãs" [Reale, 1964: I,
13].
Em Ferreira
da Silva encontramos, pois, um elo fundamental que unifica toda a sua
meditação, ao longo das etapas assinaladas: a abertura para o Ser, o
reconhecimento da essência do homem como ec-sistência (ek-sistência,
diz o nosso autor), no melhor sentido heideggeriano. O homem é, para o filósofo
alemão, e também para o pensador paulista, "o vizinho do Ser", ou, em
palavras do próprio pensador paulista, citadas atrás, "o homem é o sujeito
de um destino instituidor de sua própria realidade histórica, em relação ao
qual pode se intimisar. O homem habita um domínio onde, o que está em jogo é
algo que supera o homem, mas que o superando, lança-o numa situação histórica
própria" [Silva, 1964: I, 259]. A idéia de ek-sistência, e não
o conceito de símbolo (como pretendem Silvie e Zdenek Kourim),
é a peça chave da filosofia ferreiriana. Essa perspectiva de abertura ao Ser,
que funda a historicidade transcendente, em que se desenvolve a meditação do
nosso autor, é o elo que unifica os diferentes aspectos da reflexão sobre o
homem, que foi estudada ao longo deste ensaio. Porque é ek-sistente,
o homem está aberto à vivência do mundo eidético e é irredutível ao geograficamente
dado. Porque é ek-sistente, o homem é irredutível às utopias,
graças à fundação poética da sua essência. Porque é ek-sistente, é
possível, para o homem, viver uma moral lúdica, na qual supere o mito do
progresso indefinido. Porque é ek-sistente, a morte é, para o homem,
um sucesso que transcende a pura fenomenalidade perceptiva e que enseja, nele,
a confiança no mistério.
BIBLIOGRAFIA
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de Vicente Ferreira da Silva sobre o homem". In: Revista
Brasileira de Filosofia. São Paulo, vol. 31, no. 123 (julho /
setembro 1981): pg. 198-222.
[O presente trabalho fui preparado, especialmente,
para o Proyecto Ensayo, www.ensayistas.org da Universidade de Georgia
(USA). A parte correspondente ao estudo da meditação antropológica de Ferreira
da Silva fui publicada, inicialmente, na Revista Brasileira de
Filosofia, São Paulo, vol. 31, no. 123, julho / setembro de 1981, pgs.
198-222]. Junho 2003.
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