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sexta-feira, 15 de maio de 2020

Pensadores Brasileiros - VICENTE FERREIRA DA SILVA (1916-1963)



Dividirei este artigo em duas partes: I– Aspectos biobibliográficos de Vicente Ferreira da Silva. II- Perfil antropológico da meditação de Ferreira da Silva.
I - ASPECTOS BIO-BIBLIOGRÁFICOS.
Vicente Ferreira da Silva nasceu em São Paulo, em 10 de janeiro de 1916 e morreu, prematuramente, em acidente de automóvel na mesma cidade, em 19 de julho de 1963, aos 47 anos de idade. Formou-se em Direito na Faculdade do Largo de São Francisco, da sua cidade natal, mas nunca exerceu a profissão de advogado, tendo-se dedicado, inteiramente, à meditação filosófica e à vida acadêmica, atividade que exerceu, aliás, com total desprendimento, através de cursos livres, que oferecia no Colégio Livre de Estudos Superiores, que fundou em São Paulo, no ano de 1945. Nessa instituição, segundo Antônio Paim, "viria a despertar a vocação filosófica de diversos jovens que, mais tarde, se destacaram nessa atividade" [Paim, 1999: 453]. No início da sua atividade acadêmica, em 1940, o nosso autor colaborou com o filósofo americano Willard Quine (1908-2000) que visitou a Universidade de São Paulo. Dessa sua colaboração resultou o livro intitulado: Elementos de Lógica Matemática, publicado nesse mesmo ano. Em 1949, acompanhou Miguel Reale (1910-2006) na fundação do Instituto Brasileiro de Filosofia, centro de estudos que, durante décadas, até o falecimento do seu fundador, em 2006, congregou, como dizia Reale, “pensadores de todas as tendências" [Reale, 1992: 1129].
Vocação filosófica das mais brilhantes no panorama cultural brasileiro, Ferreira da Silva praticou, rigorosamente, ao longo de sua vida, o "amor sapientiae". Alheio a preocupações econômicas, fez do seu centro de estudos, bem como da sua presença no Instituto, polo irradiador da meditação mais rigorosa sobre o mistério do ser  e do homem, ao mesmo tempo que demonstrava grande interesse pelas matemáticas. Eis a forma em que Miguel Reale sintetizou o espírito da sua obra: "Autodidata, aliou à multiplicidade de leituras filosófico-literárias um gosto marcante pela matemática, pela logística e pela problemática metafísica, o que dá um sentido especial às suas meditações, podendo-se dizer que ele soube, com novos termos, enriquecer a linguagem filosófica brasileira" [Reale, 1992: 1129].
Com o intuito de estimular os estudos no campo da estética (aspecto altamente valorizado na meditação de Ferreira da Silva), o nosso autor organizou a Sociedade Cultural Nova Crítica, juntamente com a sua esposa, a poetisa Dora Ferreira da Silva (1918-2006); o órgão da mencionada Sociedade passou a ser a Revista Diálogo. Inúmeros estudos têm sido feitos, ao longo das últimas décadas, sobre o pensamento de Vicente Ferreira da Silva, em que se destaca a vertente da meditação mito-poética, que se situaria na origem da cultura ocidental, numa perspectiva metafísica assaz semelhante à que empolgou a filosofia de Martin Heidegger (1889-1976).
Estudiosos portugueses têm mostrado a proximidade do pensamento ferreiriano com as linhas mestras da meditação lusa, no seio da corrente que se convencionou denominar de "Filosofia Portuguesa". O espírito desta vertente permaneceu vivo na tendência que a pensadora paulista Constança Marcondes Cesar (1945) chamou de "Escola de São Paulo" e que tem Vicente Ferreira da Silva como seu centro inspirador, junto com Eudoro de Sousa (1911-1987), Agostinho da Silva (1906-1994) e Adolpho Crippa (1929-2000).
Salientarei, aqui, a inspiração heideggeriana que anima a meditação de Ferreira da Silva sobre o homem. Alicerçarei a minha análise,  basicamente, em cinco ensaios do pensador paulista: A concepção do homem segundo Heidegger (1951), O Andróptero (1948), Utopia e liberdade (1948), Para uma moral lúdica (1949) e Meditação sobre a morte (1948). Levando em consideração que, no primeiro dos ensaios mencionados, Ferreira da Silva faz um comentário acerca da Carta sobre o Humanismo de Martin Heidegger (1889-1976), acompanharei a análise desse trabalho do pensador paulista com a minha própria leitura do ensaio heideggeriano. Na conclusão desta exposição, farei uma avaliação global acerca do pensamento antropológico-filosófico de Ferreira da Silva, indicando o lugar que esse tema ocupa na evolução da sua filosofia. Espero, assim, contribuir ao estudo de quem já foi considerado, por Miguel Reale, como "a maior vocação metafísica do Brasil".
1) Inspiração de Ferreira da Silva na meditação de Martin Heidegger.
A meditação do pensador paulista sobre o homem é, sem dúvida, de inspiração heideggeriana. No ensaio intitulado: A concepção do homem segundo Heidegger [Silva, 1964: I, 256-264], Ferreira da Silva salienta algumas das principais apreciações feitas pelo filósofo alemão a respeito do homem, na sua Carta sobre o Humanismo. Nessa síntese do pensamento heideggeriano, encontramos explicitados os principais elementos antropológicos que alicerçam as considerações de Ferreira da Silva sobre o homem.  Heidegger inicia a sua carta, que dirige, em 1949, ao filósofo francês Jean Beaufret (1907-1982),  fazendo uma crítica ao falso cientificismo de que se revestiu a Filosofia. Esse vício consiste na caracterização "do pensar como theoria e a determinação do conhecer como postura teórica", fenômeno que se dá no seio de uma interpretação técnica do pensar. Trata-se, segundo Heidegger, de uma "tentativa racional, visando a salvar também o pensar, dando-lhe, ainda, uma autonomia em face do agir e operar". A filosofia é, nesse intento, "perseguida pelo temor de perder em prestígio e importância se não for ciência. (...). Na interpretação técnica do pensar, é abandonado o ser como elemento do pensar" [Heidegger, 1979:  150].  Heidegger situa-se, nessa crítica à interpretação técnica do pensar, no contexto da análise que Edmund Husserl (1859-1938) tinha feito acerca do objetivismo na sua obra: A crise das ciências europeias e a fenomenologia transcendental  [cf. Husserl, 1962]. Longe de ser o pensar uma função puramente teorizante, Heidegger salienta que este ato se firma a partir do Ser "na medida em que o pensar, apropriado e manifestado pelo ser, pertence ao ser" [Heidegger, 1979: 150]. É o próprio ser que, pela sua força, "pelo seu querer, impera com seu poder sobre o pensar e, desta maneira, sobre a essência do homem"; isso significa, frisa Heidegger, que o próprio ser age "sobre a essência do homem (...), sobre sua relação com o ser. Poder algo significa aqui: guardá-lo em sua essência, conservá-lo em seu elemento" [Heidegger, 1979: 151].
O pensar, na dimensão pseudocientífica que o valoriza, exclusivamente, como tekhne, insere-se, frisa Heidegger, "na singular ditadura da opinião pública" que, numa clara manifestação do grau de objetivismo em que caiu a linguagem, "decide, previamente, o que é compreensível e o que deve ser desprezado como incompreensível". Essa "ditadura da opinião pública" exerce-se através "da mediação das vias de comunicação" às quais se submete a linguagem. Trata-se, a meu ver, do fenômeno que Herbert Marcuse (1898-1979) tinha tipificado no surgimento do "pensamento unidimensional" e que conduz, segundo Heidegger, ao reinado dos "ismos", que materializam a caricatura da Filosofia como "técnica de explicação pelas últimas causas". O filósofo lembra que a temática de "a gente", em Ser e Tempo, expressa esse esvaziamento da linguagem na opinião pública [cf. Heidegger, 1979: 151; Marcuse, 1970]. Essa crise da linguagem, salienta Heidegger, manifesta-se, especialmente, na metafísica moderna da subjetividade, que se tornou "um instrumento de dominação sobre o ente" [Heidegger, 1979: 152]. Ferreira da Silva expressa este pensamento heideggeriano da seguinte forma: "A totalidade das formulações e doutrinas sobre a natureza última do homem, sobre a humanitas do homem, se desenvolveu a partir da precária base de um profundo esquecimento do Ser. (...). O pensamento filosófico e humanístico não atendia a esta relação e intimidade do homem com as potências instituidoras do ser. O pensamento metafísico pensou o homem a partir da forma do Ente, isto é, a partir de imagens que não eram suficientemente originais e prévias" [Silva, 1964: I, 256]. 
A crítica a esse vício do pensamento metafísico constitui, no sentir de Ferreira da Silva, "a primeira observação de Heidegger", que se "colige na acentuação de que o pensamento filosófico ocidental, ao pretender determinar a essência do homem, o fez, sempre, a partir de uma determinada interpretação da Natureza, da História e do Ente em geral". Para superar essa crise ou, em palavras do próprio Heidegger, para encontrar "o caminho para a proximidade do ser", o homem deve "antes aprender a existir no inefável (...). Somente assim será devolvido à palavra o valor de sua essência e o homem será gratificado com a devolução da habitação, para residir na verdade do ser". Essa será a base para o ressurgimento do verdadeiro conceito de Humanismo, que consiste, unicamente, nisto: "meditar e cuidar para que o homem seja humano e não desumano, inumano, isto é, situado fora de sua essência". Os humanismos, porém, segundo Heidegger, tanto o marxista quanto o cristão, o greco-romano, o renascentista, ou mesmo o sartreano, "coincidem nisto: que a humanitas  do homo humanus é determinada a partir do ponto de vista de uma interpretação fixa da natureza, da história, do mundo, do fundamento do mundo, e isto significa, desde o ponto de vista do ente em sua totalidade" [Heidegger, 1979: 152].
Indagando pelo fundamento dessa visão parcelada que afeta aos diferentes humanismos, Heidegger frisa que "todo humanismo funda-se ou numa Metafísica ou ele mesmo se postula como fundamento de uma tal" [Heidegger, 1979: 153]. É, portanto, de teor metafísico toda interpretação da essência do homem, que pressuponha a compreensão do ente, mesmo que não leve, explicitamente, em consideração a questão da verdade do ser. Heidegger refere-se, particularmente, ao humanismo romano, cuja interpretação da essência do homem como animal rationale é condicionada pela Metafísica. Referindo-se a esta apreciação de Heidegger, Ferreira da Silva afirma que: "o destino da Metafísica é o de não conseguir pensar o homem em sua verdadeira proveniência" [Silva, 1964: I, 257], pois a sua essência transcende as determinações pressupostas por aquela.
Tentando concretizar as razões que invalidam a Metafísica, Heidegger frisa que ela "realmente representa o ente em seu ser e pensa assim o ser do ente. Mas ela não pensa a diferença entre ambos (...). A Metafísica não levanta a questão da verdade do ser mesmo. Por isso, ela também jamais questiona o modo como a essência do homem pertence à verdade do ser" [Heidegger, 1979: 154]. Referindo-se à afirmação heideggeriana de que "a Metafísica pensa o homem a partir da animalitas; ela não pensa em direção de sua humanitas", Ferreira da Silva expressa, assim, por sua vez, essa parcialidade do pensamento metafísico: "Esta incapacidade da Metafísica radica na impossibilidade do pensamento metafísico para pensar a diferença que vai entre o Ser e o Ente. A Metafísica propende, sempre, a reduzir e a representar o Ser pelo Ente, a substituir a abertura do Ser pelo revelado em tal abertura. A Metafísica vê o Ente e o pensa, mas em pleno esquecimento das potências instituidoras da manifestação do manifestável" [Silva, 1964: I, 257].
A Metafísica, frisa Heidegger, esqueceu o dado fundamental do homem: a sua abertura para o ser. Ela encontra-se fechada "para o simples dado essencial, de que o homem somente desdobra seu ser em sua essência, enquanto recebe o apelo do ser (...). Somente na intimidade deste apelo, já tem ele encontrado, sempre, aquilo em que mora sua essência" [Heidegger, 1979: 154]. Ferreira da Silva salienta, de forma semelhante, esse esquecimento da Metafísica, que se baseia no fato de ela fazer descer o homem ao domínio exclusivo do ente que é, entretanto, "um momento essencial da própria estrutura existencial do homem" [Silva, 1964: I, 258]. Se a essência do homem foi tergiversada, no seio do pensamento metafísico, cumpre aprofundar no sentido do que essa essência é. Heidegger frisa que a essência do homem, ser-aí, reside na sua ec-sistência que descreve como "o estar postado na clareira do ser" e que explica assim: "O homem desdobra-se (...) em seu ser (West) que ele é e , isto é, a clareira do ser. Este ser do aí, e somente ele, possui o traço fundamental da ec-sistência, isto significa, o traço fundamental da in-sistência ec-stática na verdade do ser.  A essência ec-stática do homem reside em sua ec-sistência, que permanece distinta da existentia pensada metafisicamente" [Heidegger, 1979: 155].
Ferreira da Silva, por sua vez, salienta que "o homem é na forma da ek-sistência e este é um modo unicamente humano de ser (...). Não se pode captar o que é o homem, quer colecionando suas qualidades ônticas, quer apelando para um poder interno ou subjetivo; o modo de aproximação da humanitas do homem consiste na visualização da sua dimensão ek-sistencial e transcendente". Ora, essa dimensão consiste no "habitar ek-stático na proximidade do Ser", cuja apreensão, frisa Ferreira da Silva, "cumpre-se na superação e transcendência de todo o Ente, no relacionar-se com essa Abertura, que condiciona todo o ingresso no mundo (Welteingang)" [Silva, 1964: I, 259].
O filósofo paulista sintetiza, assim, as características do ser na concepção heideggeriana, explicando as conseqüências que se derivam, no campo da compreensão filosófica do homem e das possibilidades ek-státicas da sua liberdade: "O Ser é, pois, em sua essência, abertura, desvelamento, descobertura, iluminação projetante, fonte de inteligibilidade. Mas, por outro lado, desvelamento, transcendência significam esboço de um mundo, Weltenwurf, descobertura do Ente. O Ser se dá, continuamente, como esboço de um mundo, como poder instituidor das possibilidades históricas do homem. Esse transcender projetante do Ser manifesta-se como um poder livre, como uma liberdade que funda e institui o espaço de manifestação do Ente. Não se deve, entretanto, confundir essa liberdade individual do eu e do tu, em seu jogo dialético condicionado. É daquela liberdade original que o eu e o tu recebem o espaço de seu movimento optativo. A dimensão do Ser é, justamente, a dimensão desse poder livre e projetante de um mundo, dimensão onde descobrimos uma liberdade mais original que a liberdade do eu singular" [Silva, 1964:  I, 259].
A abertura ao Ser é, assim, o pano de fundo sobre o qual se desenham as possibilidades históricas da liberdade humana. Ferreira da Silva faz ênfase nesse aspecto fundante e primordial da ek-sistência aberta ao Ser. Em virtude dela se constitui a essência verdadeiramente humana. A respeito, frisa o nosso autor: "O homem é sujeito de um Destino instituidor de sua própria realidade histórica, em relação ao qual pode se initimisar. O homem habita um domínio onde, o que está em jogo é algo que supera o homem, mas que o superando, lança-o em sua situação histórica própria" [Silva, 1964: I, 259]. Essa é a forma de interpretar, validamente, a afirmação heideggeriana de que "o homem é o vizinho do ser" [Heidegger, 1979: 164], ou de que "o homem habita, na medida em que é homem, na proximidade de Deus" [Heidegger, 1979: 170].
Heidegger salienta, na parte central da sua Carta sobre o humanismo, as características de que se reveste o relacionamento entre o Ser e a ec-sistência.  Em primeiro lugar, esta pressupõe que o homem esteja exposto à verdade do Ser. Frisa Heidegger, a respeito: "Ec-sistência nomeia a determinação daquilo que o homem é no destino da verdade (...). A frase: o homem ec-siste, não responde à pergunta se o homem efetivamente é ou não, mas responde à questão da essência do homem" [Heidegger, 1979: 156]. Ferreira da Silva enfatiza esse aspecto da ec-sistência, frisando que "na determinação da essência  ek-sistencial do homem, acontece que não é o homem, ônticamente entendido, o principal,  mas sim a natureza histórica do homem, pensada a partir da verdade desveladora do Ser. Nesta ordem de idéias, é subtraída ao homem qualquer iniciativa ou autodeterminação fundamental, sendo o homem lançado e abandonado em sua situação histórica particular, pelo movimento próprio da liberdade transcendente. O homem é convocado ao núcleo de suas possibilidades históricas próprias, pelas potências ek-stático-projetantes do Ser" [Silva, 1964: I, 260]. Desta forma, no sentir do filósofo paulista, o pensamento heideggeriano tenta superar todo antropocentrismo.
Em segundo lugar, Heidegger se pergunta como o ser se dirige ao homem. Isso se entende se compreendermos "que o homem é enquanto ec-siste". Podemos afirmar que "a ec-sistência do homem é sua substância", ou, em outros termos, que "o modo como o homem se apresenta, em sua própria essência ao ser, é a ec-stática insistência na verdade do ser". Os humanismos, frisa Heidegger, não conseguiram expressar essa dimensão da dignidade humana. Por isso "pensa-se contra o humanismo" [Heidegger, 1979: 157]. No seu ensaio intitulado: O ocaso do pensamento humanístico, Ferreira da Silva amplia essa consideração heideggeriana sobre a influência dos humanismos, diante da dignidade ek-stática do homem, inserindo neles até a própria fenomenologia. Eis as suas palavras a respeito: "Entretanto, poder-se-ia indagar se o tipo de ser da consciência humana ou do ego cogito, eleito pela doutrina husserliana e por tantas outras filosofias de índole humanística, como princípio supremo do pensar, não se reduziria a uma meditação mais radical, como uma forma emergente na sucessão das epifanias do ser. Poder-se-ia propor, ainda, a questão de saber se seria possível remontar  a uma abertura na qual, algo como a consciência subjetivo-transcendental, ocorreu, e não só ocorreu, como foi efetivamente vivida" [Silva, 1964: II, 204-205].
Em terceiro lugar, Heidegger frisa que, em decorrência da supremacia do ser sobre a ec-sistência, deve-se excluir qualquer forma de manipulação do ser por parte do homem. Para ele, "o homem é o pastor do Ser". O homem não decide quando os entes penetram na clareira do Ser. Enquanto ec-sistente, deve ter cuidado, ou seja, deve "vigiar e proteger a verdade do Ser" [Heidegger, 1979: 158]. Ferreira da Silva, por sua vez, explica esse caráter de profundo respeito que deve guiar a atitude ec-stática em relação ao Ser, nos seguintes termos: "O poder ser próprio do homem é, pois, um poder arrojado, uma atividade que se exercita dentro de uma direção e de diretivas já prescritas. O homem, portanto, não é o senhor do Ente (der Herr des Seienden), mas o pastor do Ser (der Hirt des Seins) isto é,  aquele Ente que deve cuidar para que seja preservado o elemento do Ser. Este cuidar se dá como transcendência, em relação a todo o dado e como relação ek-stática, em direção à verdade do Ser" [Silva, 1964: I, 260-261].
Em quarto lugar, o filósofo alemão frisa que o Ser não se revela intuitivamente ao homem como hipostasiado em determinada coisa. A respeito, frisa Heidegger: "O Ser é mais amplo que todo ente e é, contudo, mais próximo do homem que qualquer ente". O homem atém-se primeiro ao ente. "Quando, porém, o pensar representa o ente enquanto ente, refere-se, certamente, ao Ser (...). A questão do Ser permanece sempre a questão do ente". Essa situação de desvelamento do Ser através do ente (e do ente representado pelo pensar enquanto ente), é responsável pela ambiguidade da metafísica mas, ao mesmo tempo,  é a fonte da sua riqueza inesgotável. A verdade do Ser, bem como a clareira mesma, permanece oculta para a metafísica. Mas não é alheia a ela. É, poderíamos dizer, a condição de possibilidade dela. A respeito, frisa Heidegger: "A clareira mesma (...) é o Ser. Ela somente garante, no seio do destino ontológico da Metafísica, a perspectiva a partir da qual as coisas que se apresentam afetam o homem que lhes vem ao encontro. Desta maneira, o próprio homem pode apenas atingir o Ser (...)  na percepção. (...). Somente a perspectiva atrai a visão para si e a ela se entrega, quando o perceber se transformou em propor diante de si, na percepção da res cogitans,  como subjectum da certitudo" [Heidegger, 1979: 158]. 
Essa questão da plenitude do Ser e da complexidade da sua revelação  através dos entes, é retomada por Ferreira da Silva sob o aspecto da essência litigiosa do Ser, que o pensador paulista concebe nestes termos: "O acontecimento da verdade, como traçado ou projeto do ente é, ao mesmo tempo,  revelação e ocultação, e isto em sentido dinâmico, polêmico e histórico. Às coisas e possibilidades que surgem, no horizonte do manifestado, correspondem outras que sucumbem e desaparecem, e isto não por pacífica sucessão, mas como trágica e extenuante luta. A posição do ente se dá como luta; o Ser é, em sua essência, litigioso (streitige) (...). A essência da verdade, isto é, o desvelamento, é dominada por uma recusa. Esta recusa não é, entretanto, uma falta ou privação, como se fosse a verdade um desvelamento total, que pudesse eliminar todo o velado" [Silva, 1964: I, 267].
Em quinto lugar, Heidegger afirma que o relacionamento entre a ec-sistência e o Ser pode explicitar-se à luz da temática do ser-no-mundo, que não deve interpretar-se do ponto de vista vulgar - como se o homem fosse, simplesmente, um ser mundano, ou mesmo como se mundano se contrapusesse a espiritual. A expressão ser-no-mundo significa, fundamentalmente, "a abertura do Ser. O homem é homem enquanto é ec-sistente. Ele está postado, num processo de ultrapassagem, na abertura do Ser, que é o modo como o próprio ser é; este jogou a essência do homem, como um lance, no cuidado de si. Jogado desta maneira, o homem está postado na abertura do Ser. Mundo é a clareira do Ser, na qual o homem penetrou a partir da condição de ser-jogado de sua essência. O ser-no-mundo nomeia a essência da ec-sistência, com vistas à dimensão iluminada, desde a qual desdobra seu ser o ec da ec-sistência. Pensando a partir da ec-sistênciamundo é, justamente, de certa maneira, o outro lado no seio da e para a ec-sistência. O homem jamais é, primeiramente, do lado de cá do mundo como um sujeito, pensa-se este como eu ou como nós (...). O homem primeiro é, em sua essência, ec-sistente na abertura do Ser, cujo (espaço) aberto ilumina o entre, em cujo seio pode ser uma relação de sujeito e objeto" [Heidegger, 1979: 167-168].
No seu ensaio intitulado: O homem e sua proveniência, Ferreira da Silva aprofunda no sentido não mundano da expressão heideggeriana ser no mundo, salientando que o termo Mundo não remete a uma dimensão antropocêntrica, mas é a expressão da clareira do Ser, na qual o homem se situou, graças à sua condição de ser-jogado. Eis as palavras do pensador paulista a respeito: "Sabemos como o ente intramundano só se revela, a partir de um sistema de possibilidades inerentes à existência. Estas possibilidades poderiam ser compreendidas como projetadas pelo homem, sendo o próprio homem, neste caso, um prius em relação ao aparecimento do ente intramundano. Porém, a perspectiva em que nos colocamos, procurando incluir o homem dentro do círculo de um projetar instituidor, atesta-nos que aquela interpretação antropocêntrica é inexata. A abertura das possibilidades não diz respeito, unicamente, à esfera do mundo circundante, mas incide na própria estruturação e constituição do homem. Neste sentido, devemos compreender a afirmação de Heidegger de que ao traçar o mundo, o homem se vê traçado no interior do mundo e aí abandonado. O desvelamento do horizonte mundanal é simultâneo ao desvelamento do próprio homem (...). Se o transcender instituidor das possibilidades abre campo para a realização histórica, disto resulta que estamos diante de uma área metahistórica de decisões, que envolve e condiciona todas as vicissitudes humanas. É o que afirma Heidegger em diversas passagens da Carta sobre o humanismo" [Silva, 1964: II, 132].
Em sexto lugar, Heidegger refere-se à manifestação da relação entre Ser e ec-sistência através da linguagem que, longe de ser um flatus vocis, é, essencialmente, "a casa do Ser manifestada e apropriada pelo Ser e por ele disposta". Por isso, frisa o filósofo alemão,  deve-se pensar a essência da linguagem a partir da correspondência desta ao Ser enquanto tal, ou seja, "como habitação da essência do homem". Isso significa que, na fundamentação da linguagem, "não é o homem o essencial, mas o Ser enquanto dimensão do elemento ec-stático da ec-sistência" [Heidegger, 1979: 159].
Na parte final da Carta sobre o humanismo, Heidegger frisa que a poesia "se confronta com as mesmas questões e, da mesma maneira, com o pensar. Mas ainda vale a pouco meditada palavra de Aristóteles em sua Poética: que o poematizar é mais verdadeiro que o investigar o ente" [Heidegger, 1979: 174]. Ao mesmo tempo, Heidegger lembra, repetindo as palavras do poeta romântico  Friedrich Hölderlin (1770-1843), que a linguagem "é o mais perigoso dos bens", porquanto na expressão do pensamento, através das palavras, esconde-se o risco de despoetizar a linguagem e torná-la lógica [cf. Heidegger, 1979: 174-175]. Ferreira da Silva adere ao conceito heideggeriano de linguagem, que a pensa não na sua fria formalidade, mas na dimensão poética que a constitui em casa do Ser.
O pensador paulista dedica a este tema as últimas páginas do seu ensaio intitulado: A concepção do homem segundo Heidegger. Eis as suas palavras a respeito: "A poesia é o dizer da descobertura do Ente. No dizer poético põe-se em obra a verdade projetante do Ser. Eis porque podemos dizer que a obra de arte, cuja essência reside na poesia, funda e institui o mundo, trazendo a um povo o conceito de sua própria realidade. Assim pois, ela não é  - como diz Heidegger - um simples ornamento que acompanharia a realidade humana, nem um mero entusiasmo passageiro, como também não é uma simples exaltação ou um passatempo. A poesia é o fundamento que suporta a História" [Silva, 1964: I, 261].
Ferreira da Silva termina o seu ensaio fazendo as seguintes considerações, em relação à Poesia como linguagem primordial: "a) A interpretação falaciosa da essência da linguagem deve-se ao predomínio da metafísica da subjetividade. b) Devemos pensar a palavra sob um ponto de vista revolucionário: o homem passa a ser interior à palavra, instituído em sua configuração histórica particular pela abertura projetante do dizer poético. c) A palavra (poética) é o jato de luz que franqueia um mundo à humanidade histórica. d) A linguagem, na acepção primitiva e original, é portanto um dizer do Ser, a forma em que o Ser continuamente se põe em obra" [Silva, 1964: I, 262-263].
2) O homem, irredutível ao geograficamente dado, graças à vivência do mundo eidético.
No seu breve ensaio intitulado: O Andróptero, o nosso autor formula uma concepção não determinística do homem, a partir da dimensão de abertura ao Ser, típica da humanitas do ser humano.  Os homens somos vítimas, frisa o pensador paulista, do provincianismo geográfico que tinha sido caracterizado por Platão no seu diálogo Fédon. Nele, escreve Ferreira da Silva, "depois de afirmar que esta terra não corresponde à imagem que dela fazem os que costumam relatar descrições de sua superfície, Platão nos diz ser a terra incomensuravelmente grande, possuindo uma infinidade de lugares maravilhosos, que desconhecemos por habitarmos entre Farsis e as Colunas de Hércules. Fechados nesse exíguo círculo, entre vales e escarpas confinantes, não temos muitas vezes sequer o pressentimento das paragens divinas que nos envolvem, dessa terra pura que domina a nossa terra. Tendo fixado nossa residência neste solo pedregoso e estéril, aqui vivemos disseminados pelas praias e costas, como formigas e rãs em redor de um pântano. Este provincianismo geográfico desastroso e fatal, que se nos adere, termina por nos cegar, e deixamos, então, de perceber que a terra que pisamos, estas pedras e todos os lugares que habitamos, estão inteiramente corrompidos e arruinados como aquilo que jaze no mar o está, pela acritude dos sais" [Silva, 1964: I, 17].
A ilusão, frisa o pensador paulista, é a arma que empregamos para nos sentirmos senhores das alturas e apagar, no seio da nossa consciência, todos os sintomas de sujeição e abatimento, que produz o provincianismo geográfico. Ferreira da Silva escreve a respeito: "Escapamos ao nosso cativeiro pelo expediente da má-fé e falsificação" [Silva, 1964: I, 18]. Platão, num outro diálogo, Fedro, segundo Ferreira da Silva, caracterizou muito bem a situação da alma falsamente liberada pela ilusão: "Quando a alma perde suas asas, roda pelos espaços infinitos até aderir a alguma coisa sólida, fixando aí sua morada. Essa coisa sólida é constituída pelo sistema de nossos limites, de tudo quanto é externo, de todo o domínio da materialidade" [Silva, 1964: I, 17-18].
A doutrina platônica das idéias aparece, nesse contexto de determinismo e opressão, como uma filosofia salvadora. "A virtude das asas  - afirmava Platão -  consiste em levar o que é pesado para as regiões superiores" [apud Silva, 1964: I,  19]. Porém, frisa Ferreira da Silva, é preciso interpretar corretamente as idéias, não como uma cópia exaurida da realidade sensível, pois perderiam, assim, toda a sua originalidade, e já não seriam Ser original ou matrizes absolutas. O nosso pensador caracteriza, assim, a verdadeira essência daquelas: "A Idéia é, justamente, o contrário de um conceito, que está sempre aquém do sensível, tendo virtudes e propriedades completamente distintas. Enquanto os conceitos nos encerram no determinado e no finito, pondo-nos em relação com um dado insuperável, as Idéias nos lançam num processo infinito de perfeição e de plenitude, fazendo-nos ultrapassar todo o imediato" [Silva, 1964: I, 19]. Assim, o mundo eidético, "esse Eros cosmogônico que mantém o universo em existência", exerce um papel distensivo e libertador, ao permitir-nos a evasão do puramente fático, bem como do confinamento a que nos reduzem os sentidos e os conceitos. Em que pese o fato de serem "realizadas, imóveis e estáticas", as Idéias são "o princípio de todo o movimento no mundo sensível, estando este em constante radiação para esses paradigmas insuperáveis do Ser"  [Silva, 1964: I, 20].
Só existe, para Ferreira da Silva,  um caminho que conduz à verdadeira libertação: a abertura para o pensamento eidético, que é a abertura para o Ser e que exige de nós um duro sacrifício, a saber,  "o da entrega a uma perfeição que não solicita o nosso consentimento para a sua constituição, exigindo a genuflexão da nossa vontade (...). Quando entramos em cena, o drama do ser já se cumpriu, pois está realizado desde todo o sempre e o nosso único papel seria o de reconhecer, ou não, a legitimidade de sua soberania" [Silva, 1964: I, 20]. Fora dessa perspectiva de abertura ao plano eidético, tudo é "mímesis, cópia, mera reprodução".  Nesse contexto de inautenticidade, o real se nos apresenta "como pensamento pensado e não como pensamento pensante". Caímos, então, numa posição metafísica, a cujas dificuldades não conseguiu escapar o próprio Platão, "quando este se defronta, na República, com o problema de explicar por que devem voltar a este mundo, para desempenhar o seu papel de mentores e governantes, aqueles que fixaram sua morada no templo das Idéias. Compreende-se, pois, perfeitamente, a pergunta de Glauco a Sócrates: Por que condená-los a uma vida miserável, se eles podem desfrutar de uma vida mais feliz?"
O filósofo paulista conclui o seu ensaio O Andróptero com esta pergunta, que traz até nós a preocupação do interlocutor de Sócrates, no diálogo platônico: "Se a felicidade e o objetivo da vida estão além da história, se o tempo e o curso das coisas humanas não constituem um fator substancial da realidade, por que exigir de quem se elevou a uma ordem superior de existência que se ocupe e se responsabilize pela gestão das sombras?" [Silva, 1964: I, 21].
3) O homem, irredutível às utopias, graças à fundação poética da sua essência.
Ferreira da Silva reconhece, no seu ensaio intitulado: Utopia e Liberdade, duas formas de utopismo que afetam ao homem: a normal, e a construtível. A primeira faz ênfase no fato de existir uma norma canônica de ser humano, "um regime definitivo, em que o homem entraria em plena congruência com o seu desenho essencial" [Silva, 1964: I, 61]. Nesse utopismo deitam raízes as idéias de uma idade de ouro ou de uma nova Atlântida. A segunda forma de utopismo baseia-se no reconhecimento de que "o homem, em sua natureza, é um ser construtível, tanto do ponto de vista interior, como do ponto de vista exterior, e que, portanto, pode ser conduzido ou reconduzido à sua forma normal".
O filósofo paulista salienta que o homem, nas utopias, é tomado como um objeto destituído de qualquer dialética interna. Trata-se, sem dúvida, de um vulgar determinismo, cuja essência é assim explicada pelo nosso autor: "Se considerássemos o homem como um simples sistema de necessidades ou como uma ordem de apetites psicossomáticos, seríamos forçados a admitir, sempre, uma proporção direta entre o sentimento de poder interno, de plenitude e satisfação humana, e o aumento das condições e dos meios externos de satisfação desses apetites". Contudo, frisa Ferreira da Silva, a reflexão patenteia que o homem é um puro imprevisível, que não pode ser construído ou programado por um conjunto de técnicas sofisticadas em poder do Estado.  
A propósito, afirma: "A mais sumária reflexão nos mostra, entretanto, quão negligente à realidade é essa pretensa proporção que comanda esta forma de pensamento: num certo aspecto, o homem é um puro imprevisível, sendo a sua coerência de ordem mais profunda do que entende o utopismo. A utopia social implica, evidentemente, uma certa ordem no suceder das coisas, exige que a um mais corresponda sempre um mais e a um menos sempre um menos, pois não teria sentido trabalhar numa certa direção se não estivesse garantido o resultado. A própria idéia de construtividade, no sentido utópico, que envolve todo um conjunto de técnicas que facultaria a um poder estatal a construção de um determinado tipo de sociedade e, ipso facto, de uma certa figura antropológica, viria a perder seu sentido se puséssemos em relevo esta rebeldia metafísica da consciência humana" [Silva, 1964: I, 62].
O utopismo peca, justamente, por desconhecer esta rebeldia metafísica essencial ao homem, ao tentar quantificá-lo em resultados mensuráveis. Ferreira da Silva refere-se a esse aspecto nestes termos: "O utopismo está baseado numa versão muito superficial do que poderíamos denominar a lógica existencial do homem, a sua coerência interna e não podemos fugir à impressão de que lida com o homem, como se este fosse uma quantidade fixa, um termo que se manteria constante em todas as suas operações. Sob um outro ângulo, o utopismo não considera a variação histórica dos desiderata, impulsos e idéias humanas e toda a fluente e incoercível realidade da história".
Ferreira da Silva assinala um aspecto muito importante dessa rebeldia metafísica do homem: a liberdade. Aí deita raízes a distinção profunda entre o homem e as coisas que podem ser programadas: "A escolha, no homem, é sempre seleção, alternativa, privação, o que o distingue, essencialmente, de todas as coisas que podem passar por diversas fases de elaboração, permanecendo sempre aptas a serem conduzidas à perfeição previamente estabelecida. Ao optar, o homem cria condições novas e particulares, novas determinações do seu ser, que passam a limitar e cercear as novas opções, apresentando à sua vida um conjunto circunstancial sempre diferente". O filósofo paulista exprime a absoluta  originalidade humana, em palavras que lembram o pensamento de Heidegger: "O homem assemelha-se a um viandante que, ao se perder numa floresta, fosse destruindo todas as pontes e passagens que o ligavam ao ponto de partida, não lhe restando, portanto,  outro recurso senão marchar para a frente" [Silva, 1964: I, 63].
O utopismo, pelo contrário, frisa Ferreira da Silva, pressupõe que o projeto humano pode ser decomposto em etapas quantificáveis, numa alusão às teorias desenvolvimentistas que apregoam o planejamento da sociedade e do homem, do estritamente econômico e material e do propriamente humano. A respeito, o nosso pensador escreve: "O pensamento utópico, entretanto, julga que o problema humano pode ser decomposto em fatores particulares, podendo uma parte esperar a solução da outra e afirmando ipso facto que a sociedade se pode dedicar, primeiro, a salvar os seus problemas materiais mais urgentes, para depois enfrentar tarefas de mais alto significado. Esta crença vemo-la despontar quando ouvimos dizer que tal ou qual país está sacrificando uma ou duas gerações na construção de uma infraestrutura incomovível que lhe possibilite, depois, um apogeu espiritual" [Silva, 1964: I, 64]. Essa falsa suposição do utopismo inspira-se numa visão simplista do homem, que pretende ser a pessoa a mesma, do ângulo espiritual, ainda que manipulada extrinsecamente pelos processos produtivos e de reforma social. O filósofo paulista levanta duas objeções contra essa pretensão que, mesmo que não a identifique explicitamente, no Brasil materializou-se nas várias tendências determinísticas que, como o positivismo, inspiraram, em boa medida, as idéias desenvolvimentistas postas em marcha nas últimas décadas do século XX.
A propósito, Vicente Ferreira da Silva escreve: "Porém, uma vez criada essa ordem econômica perfeita, estaria ainda o homem na mesma disposição em relação aos seus antigos ideais? Permaneceria intacta a sua fé, através desses períodos de transformações unilaterais? Estas seriam duas das objeções possíveis ao dogma da construtibilidade parcelada do homem, que se inspira, evidentemente, numa apreensão objetivante e desmerecedora do homem. Um pequeno número de idéias simplistas e ingênuas orientam este modo de pensamento. Conhecidas as cadeias causais próprias dessa coisa que é o homem, poderíamos, então, submetê-lo a uma manipulação racional e científica (métodos pedagógicos, higiênicos, biológicos, eugênicos, reflexológicos, etc.), em analogia com os processos usados na criação de animais domésticos" [Silva, 1964: I, 64].
Ferreira da Silva salienta que a afirmação da homogeneidade absoluta do real é a premissa básica da construtibilidade utópica. A respeito, frisa: "Uma premissa se esconde sob a crença da construtibilidade utópica do homem: é a afirmação da homogeneidade absoluta do real. O real se poria como uma extensão homogênea de entidades físicas e naturais que absorveriam em si a totalidade do conhecido. Nenhuma negatividade interna conturbaria a organização dessa massa inerte. Uma vez conhecido o determinismo intrínseco do real, poderíamos afeiçoa-lo ao nosso gosto, dando-lhe a forma mais conveniente ao seu funcionamento natural, aos objetivos postos". A visão utópica da realidade teve uma origem filosófica: a República platônica. Em relação a este ponto, o nosso autor escreve: "Platão consagrou, definitivamente, a crença de que o homem tem uma medida a cumprir em todos os seus atos e de que o ideal de uma vida justa consiste na participação de um modelo essencial. Esta República ideal de Platão não seria uma invenção arbitrária dos legisladores, nem uma imposição de uma elite de força, mas sim um teorema da razão, uma exigência da natureza inteligível do homem" [Silva, 1964: I, 64-65]. Contudo, apesar desse caráter puramente teorético que tipifica a República platônica, o seu utopismo não pode se justificar sem a materialização de um regime universalmente válido, "que polarize todos os espíritos numa mesma conexão racional e que imponha uma mesma meta a todos os esforços".
A utopia pode-se situar no passado, como um paraíso perdido, ou num futuro longínquo, como um regime ideal a ser atingido. Porém, frisa o filósofo paulista, "é a utopia sempre a mesma representação de um regime idealmente necessário dos homens e das coisas, a equação da vida com um código eterno da natureza. Um tal sistema, pelo seu próprio caráter, faz tabula rasa do tempo, pois é a fórmula política de todos os tempos. É o próprio testemunho da História que demonstra o caráter sofístico desta carta política ideal e utópica, dessa legislação universal superior aos tempos e aos lugares" [Silva, 1964: I, 65].
O autor sintetiza, assim, a problemática debatida por ele nas páginas do seu ensaio Utopia e liberdade: "O que está em jogo aqui é, evidentemente, uma questão de ordem metafísica, a saber: se o homem tem uma medida invariável através dos tempos, um modelo essencial, ou se, pelo contrário, o homem é o fruto de seu fazer histórico, de sua liberdade e inventividade fundamentais". E salienta, para terminar, a sua concepção de inspiração heideggeriana em relação à caraterística ontológica fundante do homem: "Parece-nos que o mais íntimo do homem consiste, justamente, nessa fundamentação poética de sua essência, nessa autoprojeção de sua fisionomia humana; e assim não se pode reger por sistema de fins dados de uma vez para sempre. Este regime definitivo da utopia nada mais é do que uma ilusão constante do espírito, propenso a dar valor permanente aos tipos de conduta e aos valores históricos sempre contingentes e gratuitos" [Silva, 1964: I, 65].
4) A moral lúdica, na superação do mito do progresso indefinido.
A crise do homem contemporâneo é caracterizada por Ferreira da Silva, no seu ensaio intitulado: Para uma moral lúdica, da seguinte forma: "um veneno insidioso foi se infiltrando, lentamente, no corpo da sociedade atual, um veneno estranho e invisível, cujos sintomas, tornando-se cada vez mais nítidos, incapacitaram o homem para as suas mais autênticas realizações. Uma atmosfera de constrangimento e de frustração circunscreve o campo da consciência e, por todos os lados, a expectativa do que está por vir tinge de cores carregadas as perspectivas vitais" [Silva, 1964: I, 137].
Esse veneno e essa atmosfera de constrangimento estão identificados, a partir do século XIX, com o mito do progresso indefinido, que, infelizmente, e sem que a Humanidade tivesse consciência da frustração existencial, degredou a transcendência numa transdescendência, ofuscando o propriamente humano.
A respeito, o nosso pensador escreve: "O mito do progresso contínuo (estabeleceu-se) invertendo a ordem dos meios e dos fins, numa caça exaustiva de recursos que nunca desembocavam numa promoção da vida por si mesma. A transcendência original do viver transmudou-se numa transdescendência, isto é, num aprofundamento material cada vez mais acentuado, toda ação passando a ser interpretada unicamente como ação transitiva, utilitária ou econômica, como transformação das coisas e do mundo, mas perdendo-se de vista o escopo de todo o movimento. A ordem sem fim dos meios, o mal infinito dos instrumentos ofuscou a alma e, ato fundamental, o exercício ético das virtudes propriamente humanas" [Silva, 1964: I, 137-138].
O conhecimento operacional, frisa o nosso autor, é uma "visão subsidiária e não teoria filosófica total". Por pretender sê-lo, tornou-se conhecer monstruoso, repetindo aqui o termo cunhado por Sören Kierkegaard (1813-1855). E afirma, a seguir: "O que negamos é que esse conhecimento operacional, visão subsidiária e não teoria filosófica total, possa nos instruir no tocante à forma última de nossa vida" [Silva, 1964: I, 138-139]. Na hipertrofia da atividade produtiva do homem atual, a sociedade perdeu o controle dos mecanismos que pôs em movimento. O efeito mais grave dessa hipertrofia, consiste no fato de que os colossos nacionais da técnica encheram o coração do homem de mais apreensões e temores. A solução adequada para esse conflito consiste na modificação simultânea do homem e de suas condições naturais de vida, com ênfase numa inflexão do comportamento moral. Essa será a única forma de superar o caráter para, absolutamente utilitário, da ação moderna, que conduz a uma transitividade insubstancial. Nesse esforço de reivindicação do autenticamente humano, colabora conosco a noção de espírito do cristianismo, que nos capacita para valorizar as coisas em si mesmas.
A propósito, afirma Ferreira da Silva: "Para Aristóteles, que vivia no âmbito do intelectualismo grego, somente a contemplação e a filosofia respondiam a tais exigências. Nós, entretanto, educados numa tradição cristã, não necessitamos limitar às virtudes dianoéticas este poder de salvação, pois a nossa noção de espírito é muito mais ampla. O amor, as livres atividades criadoras, são também coisas que se buscam por si mesmas" [Silva, 1964: I, 141]. Encontramos neste aspecto da meditação ferreiriana, uma inovação em relação à perspectiva heideggeriana que, na Carta sobre o Humanismo ao menos, enxerga o fenômeno cristão simplesmente como mais um humanismo que limita as livres atividades criadoras do homem.
O nosso autor salienta o valor do jogo como símbolo da conduta ética que dá valor às coisas em si mesmas. A respeito, escreve Ferreira da Silva: "O objetivo do jogo é o jogo, é a ação da ação, o ato do ato. Como símbolo de uma conduta que encontra o deleite no completo, a atividade lúdica é o mais próximo paradigma de um sentido da felicidade que o homem moderno perdeu quase inteiramente". O nosso autor termina o seu ensaio Para uma moral lúdica, destacando o que considera a única seriedade que vale a pena. Eis as suas palavras a respeito: "Varrer da nossa consciência o inessencial, o que não se relaciona com a ação que se busca por si mesma, votando à sátira, à ironia e ao escárnio todos os falsos ídolos. Só há uma seriedade séria; mas esta não é lúgubre e taciturna, crispada e sofredora, mas sim vivificante, generosa e criadora" [Silva, 1964: I, 141].
5) A morte como sucesso que transcende a pura fenomenalidade.
O filósofo paulista considera que o silêncio que traduz a inoperância da nossa lógica, é a reação mais adequada perante a morte. A respeito, escreve no seu ensaio intitulado Meditação sobre a morte: "A conseqüência mais própria do evento da morte é compelir-nos ao silêncio, cortando a palavra, pois sentimos anulada a nossa lógica e ultrapassado o mundo de significação que fundamentam os nossos juízos e conceitos. As palavras desmaiam em sons, pois o resto é silêncio" [Silva, 1964: I, 23]. Também desaparecem, perante a morte, as diferenças entre os homens. Diante dela, frisa o nosso autor, "não existem reis ou mendigos do conhecimento e todos submergem nas trevas finais na mesma expectativa desarmada e ansiosa". A morte é, assim, uma situação limite, porquanto é a barreira que se ergue perante a nossa liberdade. Ferreira da Silva enfatiza a dimensão que poderíamos chamar de transcendente da morte, como acontecimento que supera a pura fenomenalidade perceptiva. É o término de um vínculo intersubjetivo entre duas almas; a solidão e a ausência daí decorrentes são os fatos que o homem procura explicar quando se lança à reflexão sobre a morte e a sobrevivência. Nesse esforço explicativo, surgem as que o filósofo denomina de visões objetivantes da morte, que a consideram como "um simples fato intramundano, como a corrupção de um corpo, ou o desmoronamento de uma estrutura biofísica, (e que) desprezando a relação pessoal interrompida, não respeitam a totalidade de sua natureza" [Silva, 1964: I, 25].
Reino dos vivos opõe-se radicalmente à morte. Aquele é constituído pela "assembleia daqueles que pela determinação do seu amor" geram sempre mundo ao seu redor. A morte constitui a interrupção dessa "comunidade de libido e de cuidado", mediante a destruição do vínculo exteriorizado dessa co-participação. A morte do próximo é, assim,  uma "infidelidade trágica" de sua parte, na expressão cunhada por Paul-Ludwig Landsberg (1901-1944), que Ferreira da Silva faz sua. Existe uma dualidade trágica entre a morte e a vida, entre a nossa natureza (que implica movimento, atividade e superação) e o confinamento, o ensimesmamento definitivo dos mortos. Trata-se, considera Ferreira da Silva, de uma "luta entre a fidelidade ao passado e à pessoa do morto, e os novos anseios de vida". Assim, o acontecimento objetivo da morte e o fato subjetivo não se correspondem. Em decorrência da minha morte dilui-se a minha circunstância mundanal, devido ao desmoronamento da base da minha encarnação. Ferreira da Silva destaca o caráter misterioso da morte. Tal caráter deita raízes no fato de que ela nos liberta da esfera fenomênica, constituindo, assim, para nós, um mistério que não pode ser analisado por nenhuma ciência. De acordo com esse caráter, a nossa atitude diante da morte deve ser de confiança no mistério.
Eis a forma em que o pensador caracteriza essa atitude: "O que pode existir, sim, é uma confiança no mistério, um sentimento efusivo de que o inteligível não é tudo e que podemos abandonar-nos mesmo àquilo que não pode ser vertido nos diagramas do conhecimento. Esta confiança é contrária ao desafio do conhecimento, é o sentimento esperançoso e tranquilo do que, como o núcleo do nosso ser, se opõe ao terror do aniquilamento" [Silva, 1964: I, 28].
Conclusão
Segundo salientou Benedito Nunes (1929-2011), a obra filosófica de Heidegger pode-se dividir em duas etapas: um primeiro ciclo que "é preenchido pela influência da Ontologia Fundamental, recebida como expressão de uma filosofia que centralizava as várias tendências existenciais até então dispersas, ratificando a transformação da metafísica numa antropologia filosófica, preconizada, antes de Ser e Tempo, por Max Scheler (1874-1928)" [Nunes, 1980: 6]. Esse primeiro ciclo estaria representado pela obra que acaba de ser mencionada, devendo ser levado em consideração, contudo, o caráter não fechado da mesma, que é testemunhado pelo seu inacabamento.
Já o segundo ciclo da meditação heideggeriana começa com a rejeição, por parte do filósofo alemão, do paralelo que alguns críticos pretendiam estabelecer entre o seu pensamento e o existencialismo, particularmente a meditação sartreana. O início desta segunda etapa estaria marcado pela sua Carta sobre o Humanismo (escrita em 1949), endereçada a Jean Beaufret, e que foi provocada, em parte, pela conferência de Sartre (1905-1980) intitulada: L'existencialisme est un humanisme. Heidegger, porém, já tinha feito, anteriormente, algumas ressalvas quanto ao caráter não existencialista de sua meditação, no seu ensaio Filosofia da Existência [cf. Nunes, 1980: 6].
Benedito Nunes caracteriza, assim,  o cerne do pensamento heideggeriano nesta etapa: "Questão de fundo, interesse, encargo ou destino do pensamento  - seu assunto e seu tema únicos -  o Ser torna-se, como matéria exclusiva da indagação heideggeriana, menos um centro de especulação teórica do que o alvo de uma prática meditante, concernida com o objeto  de sua busca desde o plano da linguagem,  caminho preferencial, ao plano histórico, quer na época da cultura grega, em que despontou a metafísica, enquanto forma dominante de concepção do ocidente europeu, quanto na época atual, caracterizada pela expansão planetária da técnica, em que se prenuncia a superação da mesma metafísica" [Nunes, 1980: 7].
Nesta segunda etapa da obra heideggeriana dá-se uma inversão na sua temática, em que é privilegiada a posição do Ser como norte único de toda a meditação filosófica. O dizer poético será o veículo de comunicação da ec-sistência, devendo-se "pensar a essência da linguagem a partir da correspondência ao Ser" [Heidegger, 1979: 159], como foi destacado no início desta exposição. Assim, podemos caracterizar a obra filosófica de Martin Heidegger citando as palavras de Benedito Nunes, como sendo "uma investigação extremada que tenta falar daquilo mesmo que o discurso filosófico especulativo condenou ao esquecimento, o Ser, o tempo e a linguagem, e que por isso não se detém nos limites onde o pensamento deve silenciar. A prática meditante heideggeriana, já excedentária à filosofia e laborando na sua negação, alcança, enfim, pelo dizer poético que procura liberar na linguagem, a inversão do Ser e Tempo para Tempo e Ser, como virada do idioma metafísico. Expressão tateante e sondagem antecipadora de um pensamento por vir, a virada prenuncia a possibilidade de uma mudança profunda nas próprias relações do homem com o Ser e dos homens entre si. A revolução da linguagem,  consumada no dizer poético, tornar-se-ia, com a obra inteira do filósofo, o prólogo interrogativo e perplexo dessa mudança possível, entreaberta na cena revolta da nossa época, onde se joga, num lance decisivo, o destino do mundo e do homem postos em questão" [Nunes, 1980: 7].
Vale a pena salientar que, na obra filosófica de Vicente Ferreira da Silva, deu-se uma evolução semelhante à do filósofo alemão. Miguel Reale assinala três etapas na evolução do pensamento ferreiriano: a) de formalização linguístico-matemática, b) etapa existencial e c) etapa de compreensão poético-religiosa da história e do cosmo. A primeira etapa manifestou-se no ensaio intitulado: Elementos de Lógica Matemática, que o nosso autor escreveu em 1940. A etapa existencial caracteriza-se, no dizer de Reale, pelo "interesse compreensivo e desvelado amor pelo significado pleno da existência humana, do que é exemplo magnífico o seu belo livro: Dialética das Consciências (1950), o mais perfeito ensaio em língua portuguesa sobre os problemas da intersubjetividade e da alienação, onde demonstra que a atuação do espírito se dá na forma do encontro e da comunicação existencial, remontando às fontes primordiais da sociabilidade como concreção e concreação" [Reale, 1964: I, 11]. A esta segunda etapa pertencem a maior parte dos trabalhos de Ferreira da Silva que foram objeto de análise nestas páginas, como O Andróptero (1948), Utopia e Liberdade (1948), Para uma moral lúdica (1949) e Meditação sobre a Morte (1948). Os estudiosos franceses Sylvie e Zdenek Kourim chegam a considerar esta etapa do pensamento ferreiriano tão importante que, no sentir deles, o cerne deste seria o tema antropológico.
A terceira etapa da evolução filosófica de Ferreira da Silva é, segundo Reale, a da compreensão poético-religiosa da história e do homem. A esta etapa, que se inicia em 1951, o nosso autor dedicou os últimos doze anos de sua vida, "ofertando-nos ensaios esparsos, como intuições poderosas, numa linguagem que se tornou cada vez mais apurada e pessoal, e às vezes enigmática, que lembra a do último Heidegger, mas que com ela não se confunde". Alguns dos trabalhos pertencentes a esta terceira etapa são, por exemplo, Filosofia da Mitologia e da Religião (1954), Sociologia e Humanismo (1958), O Homem e a Liberdade na Tradição Humanística (1961), O Ocaso do Pensamento Humanístico (1960) e Natureza e Cristianismo (1957). Porém, a mais importante obra deste período é, ao meu modo de ver, o ensaio Idéias para um Novo Conceito de Homem (1951) que inclui o escrito intitulado: A concepção do Homem segundo Heidegger, que comentei atrás e que constitui o ponto de partida para a última fase da meditação ferreiriana.
Assim como o segundo Heidegger não nega o primeiro, antes, pelo contrário, projeta uma luz esclarecedora sobre o autor de Ser e Tempo, da mesma forma encontramos um nexo estreito entre as diferentes etapas da meditação ferreiriana, especialmente entre as duas últimas. Segundo Reale, nos ensaios de Ferreira da Silva intitulados: Idéias para um novo conceito do homem Teologia e Antihumanismo, este último de 1953, é onde o pensador paulista exprime, de forma mais explícita, o cerne da terceira etapa de sua meditação, que consiste em pensar "o homem e as coisas a partir de Deus, pondo-se o pensador, ousadamente, na perspectiva original do divino" [Reale, 1964: I, 12]. Em linguagem heideggeriana diríamos, melhor, que o pensador paulista se coloca, nesta segunda etapa, na perspectiva original da ec-sistência, para pensar o homem e as coisas a partir do Ser.
Em relação ao estreito nexo que existe entre as etapas do pensamento ferreiriano, especialmente entre as duas últimas, a humanística e a ec-sistencial, Miguel Reale anota que com os ensaios Idéias para um novo conceito de homem e Teologia e Antinhumanismo, "Vicente supera, sem a eliminar, (...)  a dialética das consciências (...), para elevar-se às fontes projetantes e condicionadoras da intersubjetividade, concluindo que, na base da liberdade individual do eu e do tu, em seu jogo dialético condicionado, está o Ser como liberdade, que funda e institui o espaço de manifestação do homem e de suas possibilidades históricas contingentes. O segundo Heidegger, cujas obras ninguém soube interpretar melhor que ele no Brasil, propicia-lhe o encontro de suas perspectivas originais, o que, diga-se uma vez por todas, para prevenir críticas superficiais, nunca o impediu de viver intensamente os problemas brasileiros, como o demonstrarão os seus penetrantes estudos sobre política, educação e sociologia" [Reale, 1964: I, 12].
Reale frisa que a meditação ferreiriana, em virtude do princípio herdado de Heidegger "de que o homem não é o senhor do Ente, mas o pastor do Ser", concebe a filosofia intramundana como momento da filosofia transmundana ou Filosofia da Religião e da Mitologia, ou melhor, da Filosofia da Religião como Mitologia, "à qual corresponde um novo humanismo, não apenas teocêntrico (referido a Deus) mas teogônico (como projeção do divino)" [Reale, 1964: I, 12]. Essa orientação anti-historicista (porquanto não limitada à dimensão intramundana) é o ponto de partida, na meditação de Vicente, para uma nova visão da história e da gênese do processo gnoseológico, que se alicerça na abertura ao Ser e não na manipulação dos Entes e que inspira a sua crítica ao Ocidente, num paradoxal esforço por salvá-lo de si mesmo" [Reale, 1964: I, 13].  
A meditação ferreiriana apontaria, assim, em último termo, para o reconhecimento de uma historicidade transcendente que nos permita voltar às origens, no reconhecimento do Ser. Eis a forma em que Reale tipifica essa finalidade última da filosofia do nosso autor: "Sua preocupação pelas origens e o valor do infra estrutural, quer na raiz da personalidade, como o demonstra o ensaio intitulado: Uma interpretação do sensível, quer no evolver das idéias, como o revela a sua nota sobre Heráclito, ou no estudo sobre a origem religiosa da cultura, tem, com efeito, o alcance de uma historicidade transcendente, de uma volta às origens, para dar começo a um diverso ciclo de história, diferente deste em que o homem estaria divorciado da natureza e das partes do divino; para um retorno, em suma, ao ponto original donde emergem todas as possibilidades naturais espontâneas, libertas das crostas opacas do experimentalismo tecnológico assim como das objectivações extrínsecas platônico-cristãs" [Reale, 1964: I, 13].
Em Ferreira da Silva encontramos, pois, um elo fundamental que unifica toda a sua meditação, ao longo das etapas assinaladas: a abertura para o Ser, o reconhecimento da essência do homem como ec-sistência (ek-sistência, diz o nosso autor), no melhor sentido heideggeriano. O homem é, para o filósofo alemão, e também para o pensador paulista, "o vizinho do Ser", ou, em palavras do próprio pensador paulista, citadas atrás, "o homem é o sujeito de um destino instituidor de sua própria realidade histórica, em relação ao qual pode se intimisar. O homem habita um domínio onde, o que está em jogo é algo que supera o homem, mas que o superando, lança-o numa situação histórica própria" [Silva, 1964: I, 259]. A idéia de ek-sistência, e não o conceito de símbolo (como pretendem Silvie e Zdenek Kourim), é a peça chave da filosofia ferreiriana. Essa perspectiva de abertura ao Ser, que funda a historicidade transcendente, em que se desenvolve a meditação do nosso autor, é o elo que unifica os diferentes aspectos da reflexão sobre o homem, que foi estudada ao longo deste ensaio. Porque é ek-sistente, o homem está aberto à vivência do mundo eidético e é irredutível ao geograficamente dado. Porque é ek-sistente, o homem é irredutível às utopias, graças à fundação poética da sua essência. Porque é ek-sistente, é possível, para o homem, viver uma moral lúdica, na qual supere o mito do progresso indefinido. Porque é ek-sistente, a morte é, para o homem, um sucesso que transcende a pura fenomenalidade perceptiva e que enseja, nele, a confiança no mistério.

BIBLIOGRAFIA

HEIDEGGER, Martin [1979]. "Carta sobre o Humanismo". In: Martin Heidegger, Conferências e escritos filosóficos. (Tradução, introdução e notas de Ernildo Stein). São Paulo: Abril Cultural, pgs. 149-175, coleção "Os Pensadores".
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[O presente trabalho fui preparado, especialmente, para o Proyecto Ensayo, www.ensayistas.org da Universidade de Georgia (USA). A parte correspondente ao estudo da meditação antropológica de Ferreira da Silva fui publicada, inicialmente, na Revista Brasileira de Filosofia, São Paulo, vol. 31, no. 123, julho / setembro de 1981, pgs. 198-222]. Junho 2003.

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