Roberto Campos, crítico do Patrimonialismo. Esse constitui um dos
pontos fortes da meditação filosófica e política do nosso autor. Campos foi, ao
meu ver, um dos críticos mais sistemáticos e radicais das práticas
patrimonialistas que estabeleceram, ao longo dos governos petistas, o fenômeno
da “Corrupção Sistémica” na administração republicana, que outra coisa não é do
que gerir a coisa pública como negócio privado, com exclusão de todos aqueles
que se contraponham a essa modalidade de política típica do Patrimonialismo.
Durante décadas, a figura de Roberto Campos tentou ser riscada
pelo establishment no interior do Itamaraty, porquanto representava um
perigo para os que tinham se encastelado no regime de sesmarias, ao redor de
uma opção pelo “socialismo real”, após a derrota dos alemães na Segunda Guerra
Mundial.
Inicialmente, quando nosso autor optou por se habilitar, em
concurso, para trabalhar no Ministério das Relações Exteriores, em pleno Estado
Novo, no ano de 1938, a maior parte dos nossos diplomatas se colocava no
contexto dos interesses do Eixo. Mas, quando as forças de Hitler começaram a
ser detonadas, pelos Aliados, na Segunda Guerra Mundial, os diplomatas correram,
céleres, para se arrumarem em torno aos representantes das democracias ditas “populares”,
chefiadas pela antiga União Soviética. Guinada de 180 graus que deixou intacto,
contudo, o dogmatismo e o gosto pelo “poder total”.
Entre os Aliados, os itamaratianos fizeram a sua escolha: os
Russos, que representavam a nova força que se estabelecia no mundo, contrária
aos Americanos. A respeito do clima que se vivia no Ministério das Relações
Exteriores no contexto dessa arrumação ideológica, escreve Roberto Campos: “O
Itamaraty, situado na avenida Marechal Floriano (a antiga rua Larga de São
Joaquim), era comumente apelidado de Butantã
da rua Larga. – São cobras, mas fingem que são minhocas – dizia-me de seus
colegas o admirável João Guimarães Rosa (1908-1967), que depois se tornaria o
meu escritor preferido”.[1]
Roberto Campos e um grupo minoritário representaram a opção por um
conceito de diplomacia afinado com a democracia ocidental e alheio à busca do
“democratismo”, que terminou vingando no mundo comunista. Como ele mesmo
destacava, virou uma espécie de “profeta da liberdade”, à maneira, aliás, de
Tocqueville (1805-1859), que se descrevia a si próprio como um “João Batista
que prega no deserto”. A respeito da opção liberal, frisava Roberto Campos, na
sua obra autobiográfica, A lanterna na popa: “Em nenhum
momento consegui a grandeza. Em todos os momentos procurei escapar da
mediocridade. Fui um pouco um apóstolo, sem a coragem de ser mártir. Lutei
contra as marés do nacional-populismo, antecipando o refluxo da onda. Às vezes
ousei profetizar, não por ver mais que os outros, mas por ver antes. Por muito
tempo, ao defender o liberalismo econômico, fui considerado um herege
imprudente. Os acontecimentos mundiais, na visão de alguns, me promoveram a
profeta responsável”.[2]
O nosso autor definia o seu compromisso intelectual, com a defesa
de duas variáveis: opulência e liberdade, que deveriam estar estreitamente
ligadas para não degenerarem em populismos irresponsáveis. A respeito, Campos
frisava: “Neste fim de século, ressurgem tendências liberais sob a forma do capitalismo democrático. Este se baseia
na convicção de que somente através do mercado se alcança a opulência, enquanto,
para a preservação da liberdade, o instrumento fundamental é a democracia.
Ambos, opulência e liberdade são valores desejáveis. O mercado pode gerar
opulência sem democracia, e a democracia, sem o mercado, pode degenerar em
pobreza. Conciliar o mercado, que é o voto econômico, com a democracia, que é o
voto político, eis a grande tarefa da era pós-coletivista – o século XXI”.[3]
Talvez o traço mais marcante da personalidade intelectual de
Roberto Campos tenha sido a capacidade de rir de si próprio, estabelecendo uma
saudável relatividade nos seus pontos de vista. Definiu-se a si mesmo, no
primeiro capítulo de sua autobiografia, como o “analfabeto erudito”. Analfabeto
em matéria de especialidades cartoriais, que o habilitariam para um concurso
público. Mas erudito por uma inegável formação humanística, haurida no
Seminário, onde cursou os estudos completos de Filosofia e Teologia, além de
ter recebido as “Ordens Menores” (hostiário, leitor, exorcista, acólito). Lia
com familiaridade o grego e o latim. E, forçosamente, para quem viveu anos a
fio em meio às exigências celibatárias, a iniciação sexual começou bastante
tarde, já na casa dos vinte e tantos anos.[4]
Dessas peripécias dá notícia, com humor, Roberto Campos, na sua obra
autobiográfica.
A formação humanística no
Seminário fez com que o nosso autor tivesse, como pano de fundo da sua vivência
intelectual, a compreensão da complexidade das relações sociais, ancorando o
estudo destas na meditação aprofundada sobre o ser humano. Algo semelhante ao
que motivou o pai do liberalismo, John Locke (1632-1704), a entender as
relações políticas sobre o pano de fundo mais largo das exigências morais, a
partir do imperativo, de inspiração medieval, do controle moral ao poder. Não
em vão o maior vulto do liberalismo inglês frequentou os estudos humanísticos preparatórios
para a clerezia, no Christ Church College, antes de passar pelos estudos da
Medicina em Oxford que o levaram, jovem praticante, a tratar de Antony Ashley
Cooper (1621-1683), 1º conde de Shaftesbury, e virar, pelo seu intermédio, o
principal assessor da liderança parlamentar no desmonte do absolutismo
monárquico.
A formação humanística recebida por Roberto Campos o habilitou para,
sobre esse legado, entender, em profundidade, o mundo econômico, ao ensejo dos
estudos feitos em nível de pós-graduação em Economia, na Escola de Governo da
George Washington University, sob a rigorosa orientação de Edward Champion
Acheson (1893-1971). Na mencionada Universidade, o nosso autor teve contato com
os maiores vultos do pensamento econômico da época, como John Donaldson, Arthur
F. Burns (1904-1987), Gottfried Haberler (1900-1995), Fritz Machlup (1902-1983),
Joseph Alois Schumpeter (1883-1950), que considerou que o montante das
pesquisas feitas por Campos para a tese de mestrado “era suficiente para uma
tese doutoral”, John Maynard Keynes (1883-1946) e o papa da Escola Austríaca,
Friedrich A. Hayek (1899-1992).
Assim, a passagem de Roberto Campos pela divisão de “secos e
molhados” (nome jocoso dado pelo nosso autor à área de Assuntos Econômicos do
Itamaraty) foi bastante profícua, tendo-o colocado, junto com Eugênio Gudin
(1886-1986), na linha de frente da formulação das políticas econômicas, que se
tornariam, após a Conferência de Bretton Woods em 1944, a peça forte das
relações diplomáticas. (Da mencionada Conferência, Roberto Campos participou
como assessor da equipe brasileira, chefiada pelo professor Gudin).
Duas etapas podem ser reconhecidas na formação do liberalismo
econômico no nosso autor: a primeira, onde a influência maior veio de Keynes e
a segunda, já derrubado o Muro de Berlim, com uma aproximação maior ao
pensamento da Escola Austríaca. Mas sempre mantendo atenta a vista na
construção de instituições que conduzissem o Brasil ao pleno desenvolvimento
econômico, com preservação da liberdade.
Desenvolverei o tema da crítica de Roberto Campos ao
Patrimonialismo em três itens: 1 – Um retrospecto melancólico do fracasso para
obter o desenvolvimento sustentado. 2 – Um caso de cegueira patrimonialista: a
política de reserva de informática. 3 – Um caso de hybris patrimonialista: o monopólio da Petrobrás.
I – Um
retrospecto melancólico do fracasso para obter o desenvolvimento sustentado.
A despedida de Roberto Campos da vida parlamentar, depois de 16
anos como congressista (8 no Senado e 8 na Câmara dos Deputados), ocorreu em
discurso pronunciado na quinta-feira 28 de janeiro de 1999, dois anos e meio
antes do seu falecimento, em outubro de 2001. Esse discurso pode ser
considerado, portanto, como o seu testamento político.
Poderia comparar essa circunstância com a vivida por Tocqueville
quando da escrita das suas Memórias de 1848,[5]
terminadas poucos meses antes da sua morte, em 1859. De ambos os escritos (o
discurso de Campos e as Memórias de Tocqueville), os
autores foram partícipes da história política dos seus respectivos países,
tendo sido ministros de Estado e parlamentares. Em ambas as peças, caem os véus
das contemporizações e os seus autores se revelam críticos profundos das suas
respectivas realidades. Em ambos os contextos, a proximidade do fim faz com que
a análise de fatos e pessoas se torne mais despiedada e objetiva e se enxergue,
como única meta, a sorte da Nação.
Campos inicia o seu discurso identificando-o como um retrospecto
melancólico. A propósito frisa: “(...). É tempo de balanço. Balanço tornado
oportuno pela confluência de três eventos: fim de século, começo de milênio e,
proximamente, 500 anos da fundação da brasilidade. Minha melancolia não provém
de saudades antecipadas de Brasília, cidade que considero um bazar de ilusões e
uma usina de déficits. A melancolia provém do reconhecimento do fracasso de
toda uma geração – a minha geração - em
lançar o Brasil numa trajetória de desenvolvimento sustentado. Continuamos
longe demais da riqueza atingível e perto demais da pobreza corrigível. A melancolia
vem também da constatação de nossa insuportável mesmice. Quando cheguei ao Congresso, em 1983, eleito senador por
Mato Grosso, os temas candentes do momento eram a moratória e a recessão.
Dezesseis anos depois, quando me despeço de dois mandatos de deputado pelo Rio
de Janeiro, os temas inquietantes voltam a ser a recessão e a crise cambial.
Isso demonstra que o Brasil, conquanto capaz de saltos de desenvolvimento, não
aprendeu a tecnologia do desenvolvimento sustentado. É um saltador de saltos curtos
e não um corredor de resistência”.[6]
O Brasil, como a Rússia, provoca perplexidade. Porque tanto um
país quanto o outro apresentam-se ligados à modernidade, mas sem quebrar as
amarras que os atam, indefectivelmente, ao passado de atraso. A respeito, frisa
Campos: “Na análise internacional comparativa do desempenho das nações, neste
fim de século, dois países provocam geral perplexidade pela enorme brecha entre
seu potencial, que é cintilante, e seu desempenho, que é fosco: a Rússia e o
Brasil. A Rússia foi uma superpotência que depois submergiu, descobrindo,
afinal, que era apenas um país do terceiro mundo com um exército de primeiro
mundo. O Brasil é uma potência emergente, que ainda não emergiu e que se
surpreende, ao descobrir que continua sendo um pais com um grande futuro no seu
passado. Tendo chegado a produzir o oitavo PIB do Planeta, deixou-se
ultrapassar pela China e a Espanha, declinando para o 10º lugar. Em termos de
renda por habitante, estamos na casa dos quadragésimos e no índice de
desenvolvimento humano da ONU, que mede a qualidade de vida, ficamos no 62º
lugar (dados de 1995). Nosso problema não é só de iniquidade distributiva, mas
também de debilidade produtiva”.[7]
Quais seriam os fatores explicativos para essa complicada
realidade? No sentir do nosso autor, três seriam os pontos que explicam a
paradoxal situação brasileira: em primeiro lugar, as deformações culturais; em
segundo, os erros comportamentais e, em terceiro lugar, a armadilha do
meio-sucesso.
1) As deformações
culturais.
Quanto a este fator, frisa Roberto Campos: “As deformações culturais podem ser
encapsuladas no que costumo chamar de doença dos ismos: o nacionalismo temperamental, que reduz a absorção de
tecnologia e investimentos; o populismo, que é a arte de distribuir riquezas
antes de produzi-las; o estruturalismo, que subestima o papel da desordem
monetária na inflação; o estatismo, que leva o Estado a fazer mais do que pode
no econômico, e menos do que deve, no social; o protecionismo, que castiga o
consumidor sem exigir eficiência do produtor”.
2) Os erros
comportamentais. No que tange ao segundo fator, Roberto Campos destaca: “(...)
vieram em safra abundante na década dos 80, que não por outra razão foi chamada
de década perdida. Os militares
concluíram seu longo reinado com dois erros: o primeiro foi não terem feito a
abertura econômica antes da abertura política; o segundo, foi a política de
reserva de mercado na informática, que atrasou em pelo menos 15 anos nossa
modernização tecnológica. A partir de 1985, paradoxalmente, a civilinização do regime pela
redemocratização, ao mesmo tempo que ampliava as liberdades políticas,
comprimia as liberdades econômicas. Houve os planos heterodoxos de combate à inflação – o Plano Cruzado, o Plano
Bresser, o Plano Verão, todos os quais desorganizaram o sistema de preços,
seguidos do Plano Collor, que desorganizou as poupanças. Proclamou-se, em 1987,
uma moratória unilateral da dívida externa, comicamente apelidada de moratória soberana, que destruiu o
crédito internacional do país e é até hoje marca negativa em nosso prontuário
financeiro. Houve, finalmente, a Constituição de 1988, que documenta os perigos
de uma doença frequente na América Latina – a constitucionalite”.
Esse vício da constitucionalite
foi sofregamente copiado, pelos congressistas brasileiros, das obras Direito
constitucional e Teoria da Constituição (1977) e Constituição
dirigente e vinculação do legislador
(1982)[8] de
autoria do professor português José Gomes Canotilho (1941), que viraram
coqueluche na época. Segundo o mencionado autor, se pode implantar o socialismo
pela via constitucional. Tal vício, pensa Campos, “(...) excita utopias
individuais. Nossa atual Carta Magna é intervencionista no econômico, utópica
no social e híbrida no político (...). No fundo, é mais um ensaio de democratice e demoscopia do que de democracia.
De democratice, porque acentua as liberdades políticas, mas priva o cidadão de
liberdades econômicas ou de opções sociais. É que os monopólios estatais são
uma cassação do direito de produzir, enquanto a legislação trabalhista inibe o
direito de contratar, e a legislação previdenciária, ao tornar obrigatória a
previdência pública, priva o cidadão do direito de escolher o administrador de
suas poupanças. Nossa Constituição é, também, um ensaio de demoscopia, ao facilitar um pluripartidarismo caótico, pela ausência
de instrumentos de compactação partidária, como o voto distrital, a fidelidade
partidária e a cláusula de barreira.
Nascida em outubro de 1988, um ano antes da dramática transformação ideológica
pós Muro de Berlim, nossa Carta Magna é um bebê anacrônico. Levamos 17 meses
para pari-la e estamos gastando uma década para desconstruí-la”.
3) A armadilha do
meio-sucesso. Este empecilho se revela, segundo o nosso autor, em dois
aspectos: na tolerância para com a inflação e no fato de não terem sido equacionados
os passos para garantir o pleno sucesso do Plano Real que buscava, em última
instância, modernizar de vez o nosso arcabouço produtivo..
No relativo à tolerância inflacionária, Roberto Campos frisa:
“Entretivemos (...) anormal tolerância para com a inflação – essa fonte de
injustiças sociais -, porque durante muito tempo logramos a façanha,
aparentemente impossível, de conciliarmos alta inflação e rápido crescimento. E
[adotamos] anormal resistência à privatização, porque criamos estatais que,
ineficientes pelos padrões mundiais, e de inexpressiva rentabilidade para o
Tesouro Nacional, pareciam bem melhor instrumentadas que suas congêneres
latino-americanas”.
O meio-sucesso também esteve presente na adoção do Plano Real, que
Campos define como uma “(...) esplêndida ginástica financeira, com êxito
surpreendente na queda da inflação e insucesso crescente no câmbio e no fisco”.
Isso em decorrência do fato de que o Plano não foi acompanhado das reformas
necessárias para que se conseguisse a plena racionalidade econômica. Essas
reformas seriam as estruturais, para dar embasamento firme à economia,
exorcizando os vícios do estatismo e da inflação.
Em relação a este contexto das reformas necessárias, frisa Campos:
“Quando (o Plano Real) foi lançado, argumentei que houvera uma inversão de
sequencias. A lógica política prevalecera sobre a lógica econômica. Isso era
inevitável à época, mas também perigoso. Segundo a lógica econômica, a reforma
do padrão monetário seria a cumeeira do edifício, cujo alicerce e colunas de
sustentação seriam as reformas estruturais. Tal como se fez na criação do Euro,
na União Europeia. Os critérios severos de disciplina fiscal foram fixados no
Tratado de Maastricht de 1992, enquanto a moeda única se criou em 1999, após
confirmado o saneamento fiscal. A lógica política exigia, ao contrário,
resultados imediatos na decapitação da hidra inflacionária. Até mesmo para
conferir ao governante credibilidade para lancetar mitos e executar reformas de
estrutura. O Plano Real nasceu, assim, como uma esplêndida ginástica aeróbica
num corpo de frouxa musculatura. Trouxe resultados rápidos e surpreendentes.
Seus componentes foram a âncora cambial, a política monetária restritiva de
juros altos, a abertura às importações e apenas um mini ajuste fiscal – o Plano
Social de Emergência”.
Em termos gerais, ficou faltando desestatizar mais a economia,
pois é da presença orçamentívora do Estado que surge a inflação, o pior dos
males sociais. “Procurei ser, – confessa Roberto Campos – por assim dizer, a
consciência liberal do PPB, partido do qual nunca me afastei, acompanhando-o em
todas as suas metamorfoses, exemplo comovente de fidelidade partidária”.
Na última parte da sua fala, o ex-parlamentar identifica quais são
os grandes inimigos do Brasil. A respeito, escreve: “Sempre achei que um dos
mais graves problemas dos subdesenvolvidos é a sua incompetência na descoberta
dos verdadeiros inimigos. Assim, por exemplo, os responsáveis pela nossa
pobreza não são o liberalismo, nem o capitalismo, em que somos noviços
destreinados, e sim a inflação, a falta de educação básica, e um
assistencialismo governamental incompetente, que faz com que os assistentes
passem melhor que os assistidos. Os inimigos do desenvolvimento não são os
entreguistas que, aliás, só poderiam entregar miséria e subdesenvolvimento, e
sim os monopolistas, que cultivam ineficiências e criaram uma nova classe de
privilegiados – os burgueses do Estado. Os promotores da inflação não são a
ganância dos empresários ou a predação das multinacionais e sim esse velho
safado, que conosco convive desde o albor da República – o déficit do setor
público”.
E conclui Roberto Campos, centrando as baterias da sua diatribe
parlamentar no verdadeiro inimigo: o mercantilismo patrimonialista. Frisa a
respeito: “É mais fácil dizer o que o Brasil não deve temer do que o que o
Brasil deve fazer. O Brasil não deve temer as ameaças do neoliberalismo, já
que, segundo análise comparativa de graus de liberdade por vários institutos
econômicos internacionais, ainda somos um país de baixo grau de liberdade,
comparativamente não só a vizinhos da América Latina como Chile, Argentina e
Peru, mas até mesmo a ex-membros da Cortina de Ferro como Hungria e República
Tcheca. Temos ainda graves resquícios dirigistas, com limitações à ação
empresarial, um regime tributário complexo e punitivo, uma legislação
trabalhista minudente e tutelar e até recentemente profusos controles cambiais.
Nem sequer se pode dizer que o país seja vítima do capitalismo selvagem, pois
não saímos ainda do mercantilismo patrimonialista (...). No máximo, poderíamos
dizer que estamos num estágio pós-dirigista e pré-liberal, numa lenta transição
de um capitalismo de estado para um capitalismo competitivo”.
Nas várias globalizações que a Humanidade conheceu desde o Império
Romano, a atual, centrada na universalização comercial, tecnológica e
financeira, pode ser encarada de forma positiva pelo Brasil, desde que as suas
elites façam o dever de casa. Os países vítimas da volatilidade são aqueles que
não se prepararam e que “(...) tinham desequilíbrios fundamentais, seja no
setor privado, como na Ásia, seja no setor público, como na América Latina. No
continente asiático escaparam do vendaval Cingapura, Taiwan, Austrália e Nova
Zelândia. Em nosso continente, Chile e Argentina, que tinham razoável
equilíbrio fiscal e orientação exportadora. No Brasil, os desequilíbrios eram
evidentes, quer no tocante à taxa cambial, quer no tocante à desordem no setor
público. Os descontentes com a globalização se esquecem de que nunca na
história humana tanta gente conseguiu escapar da miséria, sobretudo na Ásia
(...)”.
II – Um caso de
cegueira patrimonialista: a política de reserva de informática.
Um ataque coletivo de burrice, vinculada a uma opção pelo atraso:
assim se pode descrever o clima que tomou conta da alta cúpula do Estado
brasileiro, quando das discussões ensejadas pelo projeto de criação da
Secretaria Especial de Informática, ao longo do período que se estende de 1975
até 1986. Em tumultuadas deliberações, que mais pareciam sessões inquisitoriais
contra o progresso da tecnologia, num terreno tão sensível como a informática,
o Brasil fez uma opção clara pelo atraso.
Gilberto Paim (1919-2013), economista e jornalista que acompanhou
Roberto Campos nessas jornadas, na qualidade de secretário-parlamentar,
descreve, assim, o clima de xenofobia monopolística que se instalou no alto
escalão do governo, em 1975, lembrando a arcaica mentalidade de patrimonialismo
pombalino: “Por mais que sejam proclamados como reflexo do interesse nacional,
certos atos administrativos se acham tão distanciados da realidade, que
acabarão colidindo com esse interesse imaginário. Assim pode ser descrita a
trajetória da política nacional de informática, oficialmente lançada em 1975,
mas sem uma clara definição das linhas principais da política do setor. Essa
definição não demoraria a aparecer, ganhando a marca da intolerância e
intransigência, impregnada de fanatismo. Na residência de um jovem ministro do
governo Geisel, reuniram-se, em 1976, algumas figuras do primeiro escalão, para
deliberar a respeito da intenção da IBM de produzir no país um microcomputador
que fazia sucesso no mercado externo. Era o IBM-32, que acabou sendo rejeitado
pela maioria dos presentes àquele encontro. Em busca de conciliação, a empresa
propôs que o computador fosse fabricado no Brasil, apenas para a venda no
mercado externo, assumindo compromisso por escrito de que nenhuma de suas
unidades seria colocada no país. Nova rejeição, apesar de a proposta, se
aceita, render divisas em uma fase em que enfrentávamos sérios problemas de
balanço de pagamentos. A IBM foi produzi-lo no Japão, onde o mini ganhou o nome
de IB-36, vendido no mercado interno japonês e no resto do mundo. Foi um
tremendo sucesso de vendas. O mesmo ocorreu com a proposta da Hewlett Packard
de fabricar, aqui, o seu HP 3000, cuja produção foi finalmente transferida para
o México, a Coreia do Sul e a China comunista. Estava consagrada a rejeição.
Nenhuma das grandes empresas mundiais de informática conseguiu autorização para
fabricar aqui micro ou minicomputadores. Estava firmado o grande princípio da
autonomia tecnológica a ser alcançada por meios próprios, terminantemente
excluída a colaboração estrangeira. Seus iniciadores foram ministros civis. Os
militares se encantaram com essa decisão e assumiram o comando da política,
criando, em 1978, a Secretaria Especial de Informática (SEI), órgão
caracterizado pela sua intransigência na condução dos mais variados assuntos da
infinita área da eletrônica”.[9]
Roberto Campos e Gilberto Paim defendiam, claramente, um ponto de
vista liberal: sim à livre empresa! Não ao protecionismo e ao obscurantismo
patrimonialista! O seu ponto de vista representava a sensatez e a modernidade,
em meio à maré de ignorância e protecionismo que se levantava contra as
liberdades econômicas. O sensato seria colocar o Brasil num nicho de mercado
possível, na dura competição que se estabelecia nos quatro cantos do planeta,
no terreno da informática.
A respeito, escrevia Gilberto Paim: “Como secretário-parlamentar
do senador Roberto Campos pude acompanhar, de perto, a luta que a clarividência
do pensador brasileiro o levou a travar contra o obscurantismo. Na essência,
defendia o senador a instauração de uma política de estímulo à produção de software, deixando livre a fabricação de
computadores, pequenos ou grandes. Aproveitando e enriquecendo a capacidade
nacional de operar no desenvolvimento de soft,
abreviaríamos o tempo necessário no domínio da parte principal da computação. O
país dispunha de massa crítica de nível universitário, para ocupar lugar
privilegiado na produção mundial de programas de computador. Fabricar as
máquinas representaria um espaço em que fabricantes brasileiros deveriam
disputar, com concorrentes estrangeiros, os mercados interno e externo,
ganhando terreno, certamente, as empresas nacionais que fossem mais ágeis na
busca de associação com empresas estrangeiras de vanguarda, na aplicação de
tecnologias de ponta. Nos países desenvolvidos, o computador já era peça
obrigatória nas escolas de todos os níveis. Nos Estados Unidos, até crianças
nos cursos de alfabetização aprendiam a lidar com essas máquinas. No Brasil dos
anos 1980, não havia computador em nenhuma escola primária ou secundária”.[10]
Gilberto Paim recordava a fina ironia do senador Campos, quando,
comentando a recusa do governo brasileiro à entrada da indústria cibernética,
assinalava os “(...) benefícios que o fechamento do mercado brasileiro trazia a
várias nações, por terem um concorrente a menos. Pois a Escócia, a Irlanda, a
Espanha e outras nações chegavam a subvencionar a implantação de indústrias de
alta tecnologia, sem se preocuparem com a origem dos capitais”.[11]
O problema, certamente, não era, apenas, do governo brasileiro.
Era, também, das elites pensantes. Associações de profissionais liberais, de
docentes e de pesquisadores fecharam com as propostas retrógradas do governo.
Parece como se a consigna do dia fosse: “O atraso é nosso!”
A respeito, escrevia Gilberto Paim: ”Roberto Campos parecia uma
voz solitária, em meio à fanfarra do nacionalismo tecnológico. A Secretaria
Especial de Informática está atrasando o desenvolvimento nacional de forma
criminosa, dizia ele. Mas quem abafava o seu discurso? Não eram uns poucos
militares, mas, pasmem, a Associação Nacional dos Docentes em Ensino Superior,
de braços dados com a União Nacional dos Escritores e a Sociedade Brasileira de
Estudos Interdisciplinares de Comunicação! Como fora criada por decreto
inconstitucional, a SEI precisava de uma lei para sancionar seus atos
antediluvianos, todos formando um modelo de intransigência hitlerista. Cerca de
duas centenas de entidades profissionais suplicavam, ao Congresso Nacional, a
urgente aprovação do projeto de lei, que dava amplos poderes aos coronéis que
dominavam a Secretaria, agindo como verdadeiros proprietários de um feudo
administrativo. Entre essas entidades, além das já supracitadas, estavam a
Associação Brasileira de Imprensa, a Sociedade Brasileira para o Progresso da
Ciência, a Sociedade Brasileira de Computação, a Federação Nacional dos
Engenheiros, a Coordenação Nacional dos Geólogos, a Sociedade Brasileira de
Genética, a Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisas em Ciências
Sociais, a Federação Nacional dos Médicos, a Federação Nacional dos Jornalistas
e muitas e muitas outras entidades altamente representativas de segmentos da
sociedade. Eram inumeráveis os sindicatos de trabalhadores de todo o país que
aplaudiam os atos do nacionalismo eletrônico”.[12]
A decisão errática do governo, dos parlamentares e das agremiações
profissionais e sindicatos foi tanto maior, quanto que não se viu sinal algum de
arrependimento, em face dos resultados negativos que advieram, para o progresso
tecnológico e educacional do país. A respeito, escreveu Gilberto Paim: “(...) O
Brasil estava diante de uma campanha de porte igual à do petróleo é nosso.
Durante a tramitação do projeto de lei da informática, proposição de todo
obscurantista, em 1984, centenas de organizações de todo tipo fizeram chover
sobre o Congresso Nacional memoriais de apoio à política retrógrada da SEI. O
atraso cultural brasileiro pode também ser demonstrado com o fato de que
nenhuma das entidades referidas jamais deu um balanço, no rol de prejuízos que
a alucinada política de informática trouxe ao país, como prova de
arrependimento por ter contribuído para causa-los. Os brasileiros provocaram o
atraso e, apesar de comprovado esse fato, os Estados Unidos foram muitas vezes
acusados de não desejarem o progresso do Brasil na área da eletrônica digital”.[13]
Exceção gloriosa ao lado de Roberto Campos e Gilberto Paim, foi o
constitucionalista Manoel Gonçalves Ferreira Filho (1934), o “Maneco”,
carinhosamente chamado assim pelos seus discípulos da Universidade de São
Paulo. O cerne do arrazoado jurídico que considerava inconstitucional a lei de
informática foi sintetizado assim por Gilberto Paim: “Observava esse respeitado
especialista (...) que, em todas as Constituições brasileiras, está consagrada
a liberdade de trabalho, indústria e comércio, ou o livre exercício de qualquer
espécie de atividade socialmente útil, ou, enfim, a liberdade de iniciativa.
Como primeiro princípio na ordem econômica, acrescentava, a liberdade de
iniciativa significa liberdade de trabalhar em um determinado campo ou de se
associar para trabalhar em determinada atividade. O primado da iniciativa
privada sobre a atuação econômica do Estado é um preceito constitucional
(...). No entanto, dizia o
constitucionalista, o projeto de lei mandado pelo Poder Executivo ao Congresso,
sobre informática, procedia de uma inspiração oposta à decorrente dos
princípios constitucionais apontados”.[14]
O senador Roberto Campos leu o parecer do jurista Ferreira Filho
perante a Comissão Mista do Congresso, que examinou o projeto de lei de
informática. Foi boicotado pelos próprios congressistas que se recusavam a
escutar as razões bem ponderadas por Campos. Gilberto Paim sintetizou, assim, a
triste circunstância: “Acreditando, não obstante, que os deputados e senadores,
membros da Comissão, ainda poderiam colher o benefício de algum esclarecimento
com a leitura que se fizesse do parecer, o senador Campos pediu e obteve
permissão para ler o documento. Foi instintiva e instantânea a resposta dos
congressistas presentes: os 16 que votaram contra a proposição anterior fizeram
o possível para provar o seu desinteresse pela leitura feita pelo senador
mato-grossense. Todos passaram a falar em voz alta, ou a produzir ruídos
propositais, de costas para o orador. Alguns se movimentavam na direção dos
parelhos telefónicos, com isso tornando ostensivo o desinteresse pela leitura
penosa das 48 laudas em que se exauria Roberto Campos. Ninguém quis ouvir uma
frase sequer (...). O projeto ganhou
força de lei, dando cobertura plena aos insensatos da SEI”.[15]
Não foi por acaso que na obra intitulada: Guia para os perplexos, Roberto
Campos deixou registrada esta definição de informática: “Aliança entre
militares, esquerdistas e empresários antidarwinianos. Estes acreditam que deve
sobreviver não o mais apto, e sim o mais protegido da concorrência alheia.
Artifício usado para induzir a maioria -
centenas de milhares de usuários – e se subordinar aos interesses de uma minoria – poucas dezenas – de
industriais do setor. Também usado para garantir privilégios aos que copiaram
equipamentos estrangeiros antes dos outros. Segundo a seita, produzir no país
só é bom se o produtor tiver certificado de batismo local, sendo, em caso
contrário, preferível importar”.[16]
III – Um caso de hybris patrimonialista: o monopólio da
Petrobrás.
Roberto Campos, no prefácio que escreveu para a obra do seu
secretário-parlamentar e amigo Gilberto Paim intitulada: Petrobrás: um monopólio em fim
de linha, afirmou acerca da natureza obsoleta da empresa petrolífera
brasileira: “Atrasada em quase tudo, a América Latina foi precoce na criação de
monopólios estatais de petróleo. A primeira foi a Argentina, em 1922, que é
também hoje a mais radical na privatização. Seguiu-se lhe o México, em 1938. A
Petrossauro só foi criada em 1953. Um fato curioso é que, tanto na Argentina
quanto no Brasil, os ideólogos principais do estatismo foram generais: lá o
general Enrique Mosconi (1877-1940) e aqui, o general Júlio Caetano Horta
Barbosa (1881-1965). Partilharam, ambos, duas qualidades encontradiças nos
militares latino-americanos – nacionalismo raivoso e incompetência treinada.
Ambos esses cidadãos viam no petróleo não uma commodity econômica, e sim um misto de símbolo político e unguento
religioso. Se os dinossauros biológicos foram destruídos por um meteoro
cósmico, os dinossauros burocráticos entram em extinção pelo impacto de dois
meteoritos e um meteoro econômico. Os meteoritos foram os dois choques do
petróleo (1973 e 1979). O meteoro, que mudou o clima mundial em desfavor do
estatismo, foi o colapso do socialismo, em 1989. Os meteoritos tiveram dois
efeitos: deslanchar a busca de novas fontes de petróleo, flexibilizando-se,
para isso, as restrições nacionalisteiras, e promover a conservação de energia,
reforçada esta por preocupações ecológicas”.[17]
Para o nosso pensador, de nada vale um país ter recursos naturais
se as suas lideranças não possuem inteligência para geri-los e se as pessoas
que integram a Nação não têm disposição para agir e produzir riquezas, a partir
das benesses recebidas da Natureza. Roberto Campos lembra o princípio formulado
pelo empresário japonês Akio Morita (1921-1999), presidente da SONY, que
conheceu em 1964: “O que conta no desenvolvimento são três coisas: matéria
cinzenta no cérebro, portos profundos no mar e (...) ameaças à sobrevivência
(...)”.[18]
Às vésperas do movimento militar que depôs João Goulart
(1919-1976) em 1964, Campos considerava que a grande crise nacional decorria do
viés estatizante impingido na gestão do Estado, a partir do ciclo getuliano,
vício que tinha sido exacerbado por Goulart, com os agravantes do descaso para
com as contas públicas e da gestão irracional do Estado, que fez proliferarem
os conflitos no seio deste.
Frisava, a respeito, Roberto Campos, no balanço que intitulou: “A
crise brasileira e diretrizes de recuperação econômica”, publicado às vésperas
da derrubada, pelos militares, do governo populista: “Entre os fatores
político-institucionais, notem-se os seguintes: a – A constante tensão
política, criada pela desarmonia entre o Executivo Federal de um lado, e o
Congresso Nacional e governos estaduais de outro, suspeitando estes intenções
continuístas e anticonstitucionais do presidente Goulart; b – A propensão estatizante,
criando contínuo desestímulo e ameaça aos investidores privados; c –
Infiltração comunista, gerando apreensões quanto à subversão da ordem econômica
e social; d – As paralisações sucessivas de produção pelos comandos de greve,
frequentemente com objetivos claramente políticos”.
Acrescentava-se, a esses
entraves ao desenvolvimento, “(...) O clima de xenofobia, estatismo e
regulamentação restritiva da Lei de Remessa de Lucros [que] fez cessar
virtualmente o ingresso de capitais estrangeiros de investimento, com dois
efeitos depressivos: de um lado, retraíram-se, também, os capitais de
empréstimo, que tendem a se mover na mesma direção dos capitais de
investimentos, dificultando, assim, o acesso dos próprios investidores
nacionais a financiamentos estrangeiros; de outro, deixaram de surgir
indústrias nacionais ou atividades de distribuição complementares dos
investimentos estrangeiros (...). O vácuo deixado pela retração de
investimentos privados, nacionais e estrangeiros, não podia ser preenchido por
investimentos governamentais, devido à falta de planejamento e à exaustão dos
recursos financeiros governamentais, no simples atendimento do custeio da
administração central e dos déficits de empresas do Estado, ou no atendimento
do acréscimo inflacionário dos projetos em andamento”.[19]
O mal radicava, para Campos, no clima de estatismo herdado por
Goulart dos governos de Getúlio Vargas. Uma das piores manifestações desse mal
foi o ambiente nacionalisteiro
(mistura de dois vícios: nacionalismo exacerbado e populismo) em que o
getulismo embalou, desde o começo, o projeto da Petrobrás. Roberto Campos, à
luz da experiência tida nos foros internacionais, achava que o caminho para
dotar um país de recursos energéticos não era necessariamente o da criação de
estatais improdutivas e monopolísticas. O que uma grande potência mundial (como
os Estados Unidos) fazia era dinamizar uma política clara e objetiva de
exploração de recursos naturais, com abertura para capitais internacionais.
“Convenci-me, então, - frisa o nosso autor – da extrema urgência do
desenvolvimento do petróleo nacional, no prazo mais curto possível, pouco
importando a origem dos capitais”.[20]
Ora, o clima de nacionalismo barato em que o varguismo naufragou
era o menos apropriado para equacionar o problema de suprimento de petróleo. A
respeito, escreve Campos: “A experiência de Washington vacinou-me, assim,
contra o nacionalismo petrolífero que
seria, mais tarde, objeto de passionais debates, ao longo de trinta anos da
história brasileira. Para mim, a substituição do petróleo importado era tarefa prioritária,
mas dentro de um modelo de mobilização, e
não de restrição. Em outras palavras,
dever-se-iam mobilizar todos os capitais – nacionais e estrangeiros –
parecendo-me ridícula a ideia do monopólio estatal, que implicaria, na
realidade, em monopolizar riscos. Em conferência proferida em São Paulo, em
1955, pouco depois da implantação da Petrobrás, e que se intitulava: ‘As
falácias do momento brasileiro’, eu defendia a tese de que o nacionalismo
petrolífero, levado ao extremo de vedar a participação de capitais de risco
estrangeiro, era insensato. A tese correta era apoiarmos a Petrobrás, pois
nunca poderíamos ter certeza de que as empresas estrangeiras conferissem
adequada prioridade à pesquisa de petróleo nacional, de custo notoriamente alto
em comparação ao do petróleo do Oriente Médio, mas sem excluir capitais
estrangeiros que desejassem participar da tarefa. Estatal sem monopólio, era o meu lema da época. Os modelos de
mobilização restritiva nunca foram, aliás, de minha simpatia. Lutei contra o
monopólio da Petrobrás por julga-lo um modelo de mobilização restritiva. Lutei
depois contra a Lei de Informática, de 1984, porque se baseava no mesmo
princípio de rejeição de capitais estrangeiros, numa pretensão irrealista de
autonomia tecnológica. Descambamos para uma espécie de isolacionismo
tecnológico extremante detrimentoso. Lutei, também, na Constituinte de 1988,
contra o terceiro modelo excludente – a exigência de maioria de capitais
nacionais na exploração mineral. Essa exigência é particularmente irrealista em
face de pesquisa, extremamente arriscada e pouco atraente”.[21]
Conclusão.
Concluo estas páginas destacando um fato inquestionável: se
Roberto Campos pareceu ter sido derrotado pelos seus contemporâneos, no entanto
venceu o seu ponto de vista liberal de crítica ao patrimonialismo e de defesa
dos ideais liberais da livre empresa e da responsabilidade na gestão do Estado,
abrindo caminho para a democracia econômica que, somada à reformulação das
instituições políticas, garantirá, às próximas gerações, ver concretizado o
ideal da modernização plena do Brasil.
O professor Reginaldo Teixeira Perez sintetizou, de forma correta,
a meu ver, o legado imorredouro de Roberto Campos, quando escreveu as seguintes
linhas, pouco depois do desaparecimento do grande pensador liberal: “As ideias
de Campos tiveram pouca ressonância em um momento de grande comoção pública com
o retorno da democracia. Mas a persistência da crise, na segunda metade da
década de 80, já estando o país em mãos civis, propiciou, aos novos
controladores do Estado brasileiro, um olhar menos preconceituoso ao
receituário ortodoxo do economista. A adoção, pelo governo Collor, no início
dos anos 90, de parte das ideias de Campos foi, segundo o próprio,
catastrófica; para ele, o neoliberalismo teria sido desacreditado – devido às
carências éticas do referido governo – sem ter sido praticado. Entretanto, dos
anos 80 aos 90 houve uma verdadeira revolução ideológica: a crise do bloco
socialista levou à hegemonia do ideário liberal. Agora, não apenas a direita defendia a sociedade de mercado,
mas também os partidos de centro.
Campos foi um vencedor. Sua morte, aos 84 anos, talvez auxilie – agora de modo
menos estereotipado – na definição da qualidade do seu estadismo”.[22]
A atual crise do Mensalão e do Petrolão, que nos jogou na vala
comum da corrupção sistêmica, ensejou a resposta corajosa de segmentos da sociedade
brasileira e a volta aos ideais liberais de controle do gasto público, de
seriedade fiscal e de valorização da livre iniciativa, aliados às urgentes
reformas ora em curso, que visam a colocar, definitivamente, o Estado a serviço
da sociedade, abandonando a prática secular de se servir das instituições
republicanas para enriquecimento próprio. Nesse magno esforço voltam a brilhar,
por entre as névoas destes tempos confusos e tumultuados, as ideias de Roberto
Campos como a “lanterna na popa” que nos guia nas águas tempestuosas deste
milênio.
BIBLIOGRAFIA
CAMPOS, Roberto.
A despedida de Roberto Campos. O Estado de São Paulo, 31/01/1999,
p. A8.
CAMPOS, Roberto. A
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um monopólio em fim de linha. Rio de Janeiro: Topbooks, 1994.
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(Introdução de Renato Janine Ribeiro; prefácio de Fernand Braudel; tradução de
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Gilberto. O filósofo do pragmatismo –
Atualidade de Roberto Campos. (Prefácio de Francisco de Assis Grieco.
Rio de Janeiro: Editorial Escrita, 2002.
PEREZ, Reginaldo
Teixeira. O legado de Roberto Campos. In: Informativo do Instituto Liberal do Rio Grande
do Sul. Porto Alegre, vol. VII, nº 18 (novembro de 2001).
NOTAS
[1] CAMPOS,
Roberto. A lanterna na popa – Memórias. Rio de Janeiro: Topbooks, 1994,
p. 31.
[2] CAMPOS,
Roberto. A lanterna na popa – Memórias. Ob. Cit., p. 20
[3] CAMPOS,
Roberto. A lanterna na popa – Memórias, ob. cit., p. 21.
[4] Sinto-me irmanado com o grande pensador
nestes aspectos da sua biografia, pois percorri todas essas etapas clericais,
tendo inclusive recebido, além da tonsura, as “Ordens Menores”. Pulei fora
quando chegou a hora do subdiaconato, com a renúncia definitiva ao casamento.
[5] Cf.
TOCQUEVILLE, Alexis de. Lembranças de 1848 – As jornadas
revolucionárias em Paris. (Introdução de Renato Janine Ribeiro;
prefácio de Fernand Braudel; tradução de Modesto Florenzano). São Paulo:
Companhia das Letras, 2011.
[6] CAMPOS,
Roberto. A despedida de Roberto Campos. O Estado de São Paulo, 31/01/1999,
p. A8.
[7] CAMPOS,
Roberto. A despedida de Roberto Campos. Ob. cit., p. A8.
[8] Cf.
CANOTILHO, José Gomes. Direito Constitucional e Teoria da
Constituição.7ª edição. Lisboa: Almedina, 2003. Do mesmo autor, Constituição
dirigente e vinculação do legislador. 3ª edição. Coimbra: Coimbra
Editora, 2001.
[9] PAIM,
Gilberto. O filósofo do pragmatismo –
Atualidade de Roberto Campos. (Prefácio de Francisco de Assis Grieco.
Rio de Janeiro: Editorial Escrita, 2002, p. 79.
[10] PAIM,
Gilberto. O filósofo do pragmatismo –
Atualidade de Roberto Campos. Ob. Cit., p. 80.
[11] PAIM,
Gilberto. Computador faz política. Rio de Janeiro: Associação Promotora
de Estudos Econômicos, 1986, p. 76.
[12] PAIM,
Gilberto. Computador faz política. Ob. Cit., p. 79.
[13] PAIM,
Gilberto. Computador faz política. Ob. Cit., p. 82.
[14] PAIM,
Gilberto. Computador faz política. Ob. Cit., p. 85.
[15] PAIM,
Gilberto. Computador faz política. Ob. Cit., p. 83-84.
[16] CAMPOS,
Roberto. Guia para os perplexos.
Rio de Janeiro: Nórdica, 1988, p. 16.
[17] CAMPOS,
Roberto. Prefácio. In: PAIM, Gilberto. Petrobrás: um monopólio em fim de linha.
Rio de Janeiro: Topbooks, 1994, p. 10.
[18] CAMPOS,
Roberto. A lanterna na popa – Memórias. Ob. Cit., p. 546, nota 232.
[19] CAMPOS,
Roberto. A lanterna na popa – Memórias. Ob. Cit., p. 1355.
[20] CAMPOS,
Roberto. A lanterna na popa – Memórias. Ob. Cit., p. 75.
[21] CAMPOS,
Roberto. A lanterna na popa – Memórias. Ob. Cit., p. 75.
[22] PEREZ,
Reginaldo Teixeira. O legado de Roberto Campos. In: Informativo do Instituto Liberal
do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, vol. VII, nº 18 (novembro de 2001),
p. 2.
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