A obra de Rodrigo Janot intitulada: Nada menos que tudo: bastidores da operação que colocou o sistema político em xeque, (com a colaboração dos jornalistas Jaílton de Carvalho e Guilherme Evelin, São Paulo: Planeta do Brasil, 2019, 256 p.) é um vivo depoimento acerca da Operação Lava-Jato. Testemunho tanto mais valioso quanto que o seu autor foi personagem central da mencionada quadra da nossa evolução política. A avaliação desse momento é de importância capital para o amadurecimento democrático do Brasil. A opinião pública precisa se debruçar sobre essa quadra da nossa história política, justamente para tirar da Lava Jato as lições que podem ajudar a amadurecer as instituições republicanas.
É antiga a tradição do "parquet" ou ministério do Executivo que garante a informação, ao Estado, acerca dos desmandos que acontecem na administração pública. Em épocas de absolutismo, o "parquet" , como nos terríveis tempos do terror jacobino, após a Revolução Francesa (1789), chegou a se mimetizar com os próprios justiceiros. Ocorreu isso por força do pensamento de Rousseau (1712-1778), que, cioso de manter incólume a unanimidade ao redor do poder estabelecido, exagerou na dose da eliminação da dissidência, submetendo à guilhotina todos aqueles que discordassem do núcleo moralizador dos "puros", que encarnavam o interesse público. Os mais de 40 mil guilhotinados e os 300 mil camponeses assassinados pelos jacobinos na Vendeia, nessa época, dão testemunho da irracionalidade que reveste a ação daqueles que querem governar partindo da unanimidade ao redor dos detentores do poder. Saint-Just (1767-1794), o "anjo da morte" e o seu inspirador, Robespierre (1758-1794), foram gestores e vítimas, ao mesmo tempo, da implacável máquina de descabeçar opositores. A tragédia se repetiria, multiplicada em número de vítimas, nas aventuras totalitárias do século XX, ao ensejo do comunismo e do nazi-fascismo.
Mas a tradição do "parquet" encontrou, ulteriormente, na França e alhures, civilizadas modalidades, no seio do constitucionalismo moderno. No Brasil do século XXI, não há dúvida de que a atuação do "parquet", ou Ministério Público, estabelecido pela Constituição de 1988, foi fundamental para o sucesso da Operação Lava-Jato, que desmontou a máquina de corrupção instalada pela engenharia da ladroagem do PT e comparsas.
Mas também é claro que existem, hoje, no panorama político, várias tendências que visam a desmoralizar a Operação Lava Jato, como um entrave à normal evolução da política brasileira. Rodrigo Janot endereça o seu depoimento ao público em geral, com a finalidade de ajudar na reflexão que a sociedade deve fazer em torno ao fenômeno da corrupção. A respeito, frisa: "De toda forma, espero sinceramente que os casos trazidos à luz ajudem na reflexão sobre corrupção, política e responsabilidade individual na construção de uma nova sociedade" [p. 11]. Não se trata, portanto, de invalidar as instituições republicanas, como se pudesse ser erguida uma barreira jurídica contra a prática da política. Trata-se, simplesmente, de uma contribuição à reflexão dos cidadãos sobre as instâncias que possibilitam, no Brasil, o combate à corrupção.
O apoio decidido da opinião pública à Operação Lava-Jato.
A primeira coisa que salta à vista, é que a Operação Lava-Jato foi amplamente apoiada pela opinião pública, até o ponto de que mudou a percepção da tradicional prática política, que fazia da coisa pública uma mistura entre saque ao tesouro e interesses dos atores mais poderosos: políticos profissionais e empresários corruptos. Todos esses atores estavam dispostos a avançar sobre o dinheiro da Nação, mediante fajutas operações nas quais, sob a fachada de obras públicas, disfarçava-se o enriquecimento ilícito, a fim de abastecer os bolsos dos empresários inescrupulosos e de comparsas políticos, dispostos a qualquer coisa para se locupletarem a partir do erário.
A Operação Lava-Jato cercou aqueles que, segundo as provas, participavam do saque indiscriminado ao Tesouro. O ex-presidente da Câmara, Eduardo Cunha, foi, de longe, a figura mais forte em termos dos obstáculos colocados em funcionamento para impedir o avanço das investigações.
A respeito, escreve Janot: "De todos os investigados por nosso grupo de trabalho da Lava Jato em Brasília, Eduardo Cunha foi, de longe, o que mais opôs resistência ao trabalho do Ministério Público. Tivemos dificuldades com Fernando Collor, com Renan Calheiros e com muitos outros. Mas nenhum deles nos pareceu tão atrevido e tão influente quanto Cunha - nem mesmo Temer, investigado e denunciado quando ainda era presidente da República. Ao longo das investigações, Cunha conseguiu colocar contra a Procuradoria-Geral o vice-presidente da República, um ex-presidente da Câmara, um ex-procurador-geral, duas Comissões Parlamentares de Inquérito (CPI da Petrobrás e CPI da JBS) e uma bancada de fiéis e agressivos deputados, boa parte deles do Centrão, que ainda hoje, dá as cartas no Congresso Nacional. Curiosamente, as investigações sobre o ex-deputado foram as mais rápidas e eficientes que fizemos. Em um ano e sete meses de investigação, ele foi afastado da presidência da Câmara, teve o mandato cassado e terminou preso em Curitiba. Foi uma virada de página no caso Petrobrás e uma mudança nos rumos do país" [p. 101].
O papel do Ministério Público é, para Janot, apenas o de um auxiliar da Justiça. Frisa a respeito: "O Ministério Público é o braço acusador do Estado. Nosso papel é investigar, denunciar e brigar pela punição de quem fere a lei. Nada além disso" [p. 251].
Parte da crise pela qual enveredou o Ministério Público recentemente decorre, a meu ver, do fato de alguns Promotores - como no caso da Operação Lava-Jato em Curitiba - terem tentando ampliar a sua função para além de ser "o braço acusador do Estado", passando a fixar normas a serem levadas em consideração pelo eleitorado, função que caberia ao Legislativo ou à Justiça Eleitoral. Aqui se inseririam os "dez preceitos" indicados pelos Promotores para moralizar a representação.
"Quem tem medo não pode ser investigador" - Pressão dos corruptos sobre o Ministério Público.
As investigações do Ministério Público contra Cunha não foram fáceis. Rodrigo Janot confessa que ele e os seus colaboradores enfrentaram uma personalidade capaz de qualquer coisa para paralisar os trabalhos. A intimidação provocada por Cunha e os seus sequazes tornou-se visível no caso da advogada Beatriz Catta Preta, a fim de que ela fosse depor em favor de Cunha, na CPI da Petrobrás. Deputados amigos do presidente da Câmara a pressionaram ameaçando-a. "Mesmo sabendo que poderia contar com a proteção do Estado brasileiro, ela preferiu mudar-se com a família para os Estados Unidos, para manter distância de Cunha e seus aliados", frisa Janot [p. 97]. Um dos colaboradores de Cunha, Lúcio Bolonha Funaro, no melhor estilo mafioso, ameaçou tocar fogo no apartamento de Catta Preta, com ela e os filhos dentro.
A pressão sobre os membros do Ministério Público era constante e terminou gerando uma onda de ameaças, que se traduziram em mudança de hábitos dos investigadores e de reforço ao compromisso deles em prol da manutenção das ações iniciadas contra a bandidagem instalada no coração do Estado. Assim se refere Janot a esse clima de insegurança e apreensão: "É preciso ter uma atuação reta. Se começa a colocar outros ingredientes na sua decisão, que não seja a decisão técnica, aquela que deve ser tomada, você se ferra. Se abrir exceção para um, vai ter que abrir exceção para todo mundo. Nós sabíamos que Cunha era ousado e tinha ligações estranhas. Ouvíamos até que ele tinha ligação com um grupo de extermínio do Rio. Por isso, tínhamos porte de arma e andávamos com proteção. Mas receio do ex-deputado? Não. Ninguém da equipe tinha receio dele. É necessário enfrentar esse tipo de problema. Quem tem medo não pode ser investigador" [p. 98].
A verdade é que a atuação dos membros do Ministério Público cobrou deles, na sua vida particular, uma enorme conta, por força das continuadas tensões emocionais vividas ao ensejo da realização das suas várias missões. O próprio Janot dá conta da pesada dívida existencial que teve de pagar, por conta das tensões continuadas à frente da PGR. No capítulo intitulado: "Nada será como antes", o autor afirma: "Em janeiro de 2018, quatro meses depois do fim do meu segundo mandato como procurador-geral, eu estava morando sozinho num apartamento de 57 metros quadrados em Bogotá. Tinha me separado da minha mulher em outubro do ano anterior e resolvera aproveitar um convite da Universidad de los Andes para mudar de ares. Também tinha perdido temporariamente o contato com antigos interlocutores da esquerda, da direita, do centro, de todos os quadrantes políticos. Alguns eram amigos, outros nem tanto. Vários estavam, de algum modo, insatisfeitos comigo. (...). As críticas eram sempre as mesmas, mas com sinais trocados. O rigor deveria ser sempre aplicado aos investigados de campos ideológicos opostos. (...) Infelizmente, o compadrio e o jeitinho ainda são traços fundamentais da nossa cultura" [p. 239].
Arrependimento do trabalho feito na Procuradoria? Não. Janot é enfático a respeito: "Um amigo, que conhece um pouco esse meu ponto de vista (de luta contra a corrupção, qualquer que seja a sua manifestação), me perguntou se, sendo assim, valera a pena tanta luta. Eu digo que sim. Digo mais, até: faria tudo de novo, igualzinho ao que fizemos todos esses anos. E olha que comemos o pão que o diabo amassou. Em quatro anos de Procuradoria Geral, vivemos quatro décadas. Engordei, envelheci e, confesso, perdi e recuperei as esperanças algumas vezes. Era um carrossel sem direito a descanso. (...) No centro do poder, a luta é diária. A trégua é só a preparação para a batalha seguinte. Comigo e com a minha equipe foi assim. Trabalhávamos em média de doze a quatorze horas por dia. Não poucas vezes, o trabalho avançava pelos fins de semana e feriados. A Lava Jato nos absorveu de tal forma que era impossível parar (...). [p. 242-243].
Isso sem levar em consideração a segurança pessoal, que obrigou o Procurador-Geral a fazer curso de tiro, andar armado e se submeter ao tedioso hábito de ele, e a sua família, consultar a equipe de segurança para qualquer deslocamento.
Uma ironia da história. O bravo Procurador Janot, uma vez relevado do seu cargo, foi vítima, em Bogotá, da traquinagem de reles larápios, os famosos "cacos bogotanos". Eis a narrativa do fato pelo próprio Janot: "Eu acabara de sair do hotel Rosales, onde me hospedara inicialmente, e estava fazendo uma caminhada em direção ao Museu do Ouro. Estava relaxado. Era a primeira vez em muito tempo que caminharia pelas ruas de uma grande cidade sem o risco de ser interpelado por um investigado ou abordado por um jornalista (...). Era a primeira vez em quatro anos que eu poderia andar nas ruas sem segurança e com a tremenda sensação de liberdade. De repente, um transeunte se aproximou de mim e me perguntou, de uma forma confusa, se eu sabia onde poderia fazer 'câmbio'. Ele era da Venezuela e precisava de dinheiro local. Aquilo me soava como o apelo de um refugiado gritando por uma ajuda mínima. Eu respondi que não sabia, que tinha acabado de chegar do Brasil e não conhecia bem a cidade, e segui a minha caminhada. Caminhando ao meu lado, o rapaz apontou para um outro homem parado na esquina, a quem foi pedir informação. 'Onde posso fazer cambio aqui?', o venezuelano perguntou. 'Vocês são estrangeiros? Estão juntos?', respondeu o homem, que sacou uma carteira e se identificou como policial federal. Antes que pudéssemos responder claramente, ele pediu passaportes, fez uma bateria de perguntas e decretou: 'Vocês terão de me acompanhar até a delegacia!' Eu estava em situação regular, mas 'meu amigo venezuelano' não, porque deixara o passaporte no hotel, conforme a versão dele. Portanto, o 'policial federal' teria que registrar o caso numa delegacia a 50 metros dali, e nós deveríamos acompanhá-lo. Achei tudo muito estranho, mas só me dei conta de que tinha caído numa arapuca quando, a caminho da tal delegacia, entramos numa rua secundária e isolada. (...). Antes que eu esboçasse qualquer reação, o 'venezuelano' botou a mão embaixo do casaco para mostrar que estava armado. Entendi que não era o caso de testar a verdade. Eram dois ladrões, e eu não sabia o que poderiam fazer comigo se descobrissem que estavam diante de um 'fiscal da lei'. Sem maiores negociações, eles pegaram as notas de peso e o celular que encontraram no bolso da minha camisa e sumiram em segundos. Voltei à via principal, Carrera Sétima, e relatei o fato a um policial fardado. Ele disse que tentaria localizar os larápios, mas deixou claro que era muito difícil fazer algo contra esse tipo de vigarice. Aquilo era inacreditável. Depois de passar tantos anos enfrentando criminosos no Brasil, eu fora trapaceado por dois malandros de rua em Bogotá. Que humilhação!"[p. 240-242].
Os processos contra os corruptos.
A respeito, escreve Janot: "De todos os investigados por nosso grupo de trabalho da Lava Jato em Brasília, Eduardo Cunha foi, de longe, o que mais opôs resistência ao trabalho do Ministério Público. Tivemos dificuldades com Fernando Collor, com Renan Calheiros e com muitos outros. Mas nenhum deles nos pareceu tão atrevido e tão influente quanto Cunha - nem mesmo Temer, investigado e denunciado quando ainda era presidente da República. Ao longo das investigações, Cunha conseguiu colocar contra a Procuradoria-Geral o vice-presidente da República, um ex-presidente da Câmara, um ex-procurador-geral, duas Comissões Parlamentares de Inquérito (CPI da Petrobrás e CPI da JBS) e uma bancada de fiéis e agressivos deputados, boa parte deles do Centrão, que ainda hoje, dá as cartas no Congresso Nacional. Curiosamente, as investigações sobre o ex-deputado foram as mais rápidas e eficientes que fizemos. Em um ano e sete meses de investigação, ele foi afastado da presidência da Câmara, teve o mandato cassado e terminou preso em Curitiba. Foi uma virada de página no caso Petrobrás e uma mudança nos rumos do país" [p. 101].
O papel do Ministério Público é, para Janot, apenas o de um auxiliar da Justiça. Frisa a respeito: "O Ministério Público é o braço acusador do Estado. Nosso papel é investigar, denunciar e brigar pela punição de quem fere a lei. Nada além disso" [p. 251].
Parte da crise pela qual enveredou o Ministério Público recentemente decorre, a meu ver, do fato de alguns Promotores - como no caso da Operação Lava-Jato em Curitiba - terem tentando ampliar a sua função para além de ser "o braço acusador do Estado", passando a fixar normas a serem levadas em consideração pelo eleitorado, função que caberia ao Legislativo ou à Justiça Eleitoral. Aqui se inseririam os "dez preceitos" indicados pelos Promotores para moralizar a representação.
"Quem tem medo não pode ser investigador" - Pressão dos corruptos sobre o Ministério Público.
As investigações do Ministério Público contra Cunha não foram fáceis. Rodrigo Janot confessa que ele e os seus colaboradores enfrentaram uma personalidade capaz de qualquer coisa para paralisar os trabalhos. A intimidação provocada por Cunha e os seus sequazes tornou-se visível no caso da advogada Beatriz Catta Preta, a fim de que ela fosse depor em favor de Cunha, na CPI da Petrobrás. Deputados amigos do presidente da Câmara a pressionaram ameaçando-a. "Mesmo sabendo que poderia contar com a proteção do Estado brasileiro, ela preferiu mudar-se com a família para os Estados Unidos, para manter distância de Cunha e seus aliados", frisa Janot [p. 97]. Um dos colaboradores de Cunha, Lúcio Bolonha Funaro, no melhor estilo mafioso, ameaçou tocar fogo no apartamento de Catta Preta, com ela e os filhos dentro.
A pressão sobre os membros do Ministério Público era constante e terminou gerando uma onda de ameaças, que se traduziram em mudança de hábitos dos investigadores e de reforço ao compromisso deles em prol da manutenção das ações iniciadas contra a bandidagem instalada no coração do Estado. Assim se refere Janot a esse clima de insegurança e apreensão: "É preciso ter uma atuação reta. Se começa a colocar outros ingredientes na sua decisão, que não seja a decisão técnica, aquela que deve ser tomada, você se ferra. Se abrir exceção para um, vai ter que abrir exceção para todo mundo. Nós sabíamos que Cunha era ousado e tinha ligações estranhas. Ouvíamos até que ele tinha ligação com um grupo de extermínio do Rio. Por isso, tínhamos porte de arma e andávamos com proteção. Mas receio do ex-deputado? Não. Ninguém da equipe tinha receio dele. É necessário enfrentar esse tipo de problema. Quem tem medo não pode ser investigador" [p. 98].
A verdade é que a atuação dos membros do Ministério Público cobrou deles, na sua vida particular, uma enorme conta, por força das continuadas tensões emocionais vividas ao ensejo da realização das suas várias missões. O próprio Janot dá conta da pesada dívida existencial que teve de pagar, por conta das tensões continuadas à frente da PGR. No capítulo intitulado: "Nada será como antes", o autor afirma: "Em janeiro de 2018, quatro meses depois do fim do meu segundo mandato como procurador-geral, eu estava morando sozinho num apartamento de 57 metros quadrados em Bogotá. Tinha me separado da minha mulher em outubro do ano anterior e resolvera aproveitar um convite da Universidad de los Andes para mudar de ares. Também tinha perdido temporariamente o contato com antigos interlocutores da esquerda, da direita, do centro, de todos os quadrantes políticos. Alguns eram amigos, outros nem tanto. Vários estavam, de algum modo, insatisfeitos comigo. (...). As críticas eram sempre as mesmas, mas com sinais trocados. O rigor deveria ser sempre aplicado aos investigados de campos ideológicos opostos. (...) Infelizmente, o compadrio e o jeitinho ainda são traços fundamentais da nossa cultura" [p. 239].
Arrependimento do trabalho feito na Procuradoria? Não. Janot é enfático a respeito: "Um amigo, que conhece um pouco esse meu ponto de vista (de luta contra a corrupção, qualquer que seja a sua manifestação), me perguntou se, sendo assim, valera a pena tanta luta. Eu digo que sim. Digo mais, até: faria tudo de novo, igualzinho ao que fizemos todos esses anos. E olha que comemos o pão que o diabo amassou. Em quatro anos de Procuradoria Geral, vivemos quatro décadas. Engordei, envelheci e, confesso, perdi e recuperei as esperanças algumas vezes. Era um carrossel sem direito a descanso. (...) No centro do poder, a luta é diária. A trégua é só a preparação para a batalha seguinte. Comigo e com a minha equipe foi assim. Trabalhávamos em média de doze a quatorze horas por dia. Não poucas vezes, o trabalho avançava pelos fins de semana e feriados. A Lava Jato nos absorveu de tal forma que era impossível parar (...). [p. 242-243].
Isso sem levar em consideração a segurança pessoal, que obrigou o Procurador-Geral a fazer curso de tiro, andar armado e se submeter ao tedioso hábito de ele, e a sua família, consultar a equipe de segurança para qualquer deslocamento.
Uma ironia da história. O bravo Procurador Janot, uma vez relevado do seu cargo, foi vítima, em Bogotá, da traquinagem de reles larápios, os famosos "cacos bogotanos". Eis a narrativa do fato pelo próprio Janot: "Eu acabara de sair do hotel Rosales, onde me hospedara inicialmente, e estava fazendo uma caminhada em direção ao Museu do Ouro. Estava relaxado. Era a primeira vez em muito tempo que caminharia pelas ruas de uma grande cidade sem o risco de ser interpelado por um investigado ou abordado por um jornalista (...). Era a primeira vez em quatro anos que eu poderia andar nas ruas sem segurança e com a tremenda sensação de liberdade. De repente, um transeunte se aproximou de mim e me perguntou, de uma forma confusa, se eu sabia onde poderia fazer 'câmbio'. Ele era da Venezuela e precisava de dinheiro local. Aquilo me soava como o apelo de um refugiado gritando por uma ajuda mínima. Eu respondi que não sabia, que tinha acabado de chegar do Brasil e não conhecia bem a cidade, e segui a minha caminhada. Caminhando ao meu lado, o rapaz apontou para um outro homem parado na esquina, a quem foi pedir informação. 'Onde posso fazer cambio aqui?', o venezuelano perguntou. 'Vocês são estrangeiros? Estão juntos?', respondeu o homem, que sacou uma carteira e se identificou como policial federal. Antes que pudéssemos responder claramente, ele pediu passaportes, fez uma bateria de perguntas e decretou: 'Vocês terão de me acompanhar até a delegacia!' Eu estava em situação regular, mas 'meu amigo venezuelano' não, porque deixara o passaporte no hotel, conforme a versão dele. Portanto, o 'policial federal' teria que registrar o caso numa delegacia a 50 metros dali, e nós deveríamos acompanhá-lo. Achei tudo muito estranho, mas só me dei conta de que tinha caído numa arapuca quando, a caminho da tal delegacia, entramos numa rua secundária e isolada. (...). Antes que eu esboçasse qualquer reação, o 'venezuelano' botou a mão embaixo do casaco para mostrar que estava armado. Entendi que não era o caso de testar a verdade. Eram dois ladrões, e eu não sabia o que poderiam fazer comigo se descobrissem que estavam diante de um 'fiscal da lei'. Sem maiores negociações, eles pegaram as notas de peso e o celular que encontraram no bolso da minha camisa e sumiram em segundos. Voltei à via principal, Carrera Sétima, e relatei o fato a um policial fardado. Ele disse que tentaria localizar os larápios, mas deixou claro que era muito difícil fazer algo contra esse tipo de vigarice. Aquilo era inacreditável. Depois de passar tantos anos enfrentando criminosos no Brasil, eu fora trapaceado por dois malandros de rua em Bogotá. Que humilhação!"[p. 240-242].
Os processos contra os corruptos.
Os indícios contra Eduardo Cunha foram assim sintetizados por Janot: "(...) No início, quando o ministro Teori Zavascki autorizou a abertura do primeiro inquérito contra Cunha, tínhamos apenas o depoimento em que o doleiro Alberto Youssef relatava o pagamento de US$ 5 milhões a Cunha a pedido do lobista Júlio Camargo. Parte do pagamento teria sido intermediada pelo lobista Fernando Baiano, inclusive com remessas ao exterior. A confissão do doleiro era explosiva, mais do que o necessário para abrir um inquérito, mas não suficiente para sustentar uma acusação formal. Youssef tinha falado sobre um requerimento de informação usado na Comissão de Fiscalização da Câmara para pressionar Camargo a pagar parte da propina a Fernando Baiano. O suborno total seria de US$ 40 milhões. Era a 'comissão' cobrada para induzir a diretoria internacional, comandada por Nestor Cerveró, a adquirir, sem licitação, dois navios-sondas da Samsung Heavy Industries, um negócio de 1,2 bilhão. Detalhe: Cerveró fechou o negócio sem o devido estudo de comprovação da necessidade dos dois navios. Ou seja, ao que tudo indica, a compra bilionária seria um meio de justificar a propina (partilhada entre Cunha, Baiano, Cerveró e Júlio Camargo), e não o contrário. Enfim, uma estranha inversão de prioridade, inclusive nesse mundo pantanoso da corrupção" [p. 101-102].
A prova necessária para instruir o processo contra Cunha foi a cópia do requerimento de informação usado na Comissão de Fiscalização da Câmara, que teria saído do computador do presidente da Casa. O diretor da Câmara recebeu, então, a visita dos membros do Ministério Público. Tentou obstaculizar a entrega da cópia, alegando que precisaria dar ciência a Eduardo Cunha. O chefe da equipe do Ministério Público orientou, então, o oficial de Justiça a registrar detalhadamente o que estava acontecendo "porque aquilo poderia dar ensejo a um pedido de prisão". Com medo das sanções penais, o diretor da Câmara entregou o documento requerido.
A respeito, Janot frisa: "Diante do requerimento de chantagem, Júlio Camargo, que praticamente ignorou Cunha na delação, decidiu refrescar a memória e, num detalhado depoimento, confirmou a tentativa de extorsão, o pagamento da propina e a agressividade do deputado na cobrança do suborno. Pelo que entendi, o lobista tinha medo físico do parlamentar. A delação de Camargo foi ampliada com a colaboração de Fernando Baiano, que, espremido pelas evidências, também concordou em contar como se utilizara dos serviços de Cunha para cobrar o restante da propina de Camargo" [p. 105].
Apesar das articulações efetivadas pelo deputado Eduardo Cunha para paralisar as investigações do Ministério Público, foi possível enquadrá-lo dentro dos rigores da lei. A propósito, frisa Janot: "Apresentamos a primeira denúncia contra Cunha por corrupção e lavagem de dinheiro em 20 de agosto de 2015. Quatro meses depois, com mais informações coletadas, pedimos o afastamento do deputado da presidência da Câmara. Em março, o STF abriu processo contra o presidente da Câmara. Três meses depois, ele foi afastado da presidência" [p. 107].
A prisão de Cunha mudou radicalmente o panorama político. "Com Cunha na Câmara, frisa Janot, Bolsonaro não seria presidente". O ex-diretor da Procuradoria Geral arrisca a seguinte hipótese: "Se tivesse sobrevivido à investigação, Eduardo Cunha, e não Jair Bolsonaro, teria sido eleito presidente do Brasil nas eleições de 2018" [p. 98]. Janot explica o seu palpite da seguinte forma: "Agora, quando escrevo este livro [entre dezembro de 2018 e o primeiro semestre de 2019], ninguém mais parece se lembrar, mas em 2015, antes de receber o carimbo de corrupto e mentiroso, Cunha vinha recebendo crescente apoio do empresariado, dos evangélicos e dos grupos de direita que lideravam grandes manifestações contra a corrupção. Bolsonaro só passou a catalisar o sentimento anti-PT, que se traduzia nos protestos contra a corrupção na Petrobras, depois que Cunha perdeu o mandato, foi preso e saiu de cena. Nesse sentido, não seria errado dizer que Bolsonaro também deve parte da vitória na eleição presidencial ao sucesso da investigação contra Cunha, o que não deixa de ser um contrassenso no contexto geral. Isso porque o PP, onde militou Bolsonaro por longos anos, foi o partido, em termos numéricos, mais atingido pela Lava Jato. Foi o PP quem indicou Paulo Roberto Costa para a diretoria de Abastecimento e, com isso, instituiu na Petrobrás a cobrança sistemática da propina vinculada a contratos da estatal e empreiteiras. Parlamentares do partido recebiam regularmente uma mesada, que em alguns casos chegava a R$ 150 mil, en troca do apoio a Costa. Bolsonaro foi um dos poucos do partido não mencionados nas delações do ex-diretor e do doleiro Alberto Youssef" [p. 98-99].
O autor expõe em detalhe os processos levantados contra figuras importantes da política brasileira como o senador Delcídio do Amaral e o ex-presidente Lula. As diferenças com a equipe de Procuradores da Lava Jato em Curitiba (chefiada por Deltan Dallagnol) ocorreram pelo fato de eles terem desconhecido a ordem expressa do ministro Teori Zavascki, do STF, no sentido de excluir a possibilidade de a equipe de Curitiba investigar e denunciar Lula por crime de organização criminosa, que seguia no Supremo. Ora, a denúncia por organização criminosa era essencial para Lula ser acusado de lavagem de dinheiro, como queriam Dallagnol e a sua equipe.
Em que pese essa diferença entre a PGR e a turma de procuradores de Curitiba, a equipe de Janot continuou com o seu trabalho. A respeito, frisa o ex-procurador: "(...) Fiz as denúncias conforme os critérios estabelecidos inicialmente, embora a ordem das acusações tenha sofrido uma ligeira alteração. E, em 1º de setembro de 2017, denunciamos o quadrilhão do PP. Quatro dias depois, fizemos uma denúncia por organização criminosa contra Lula e outros do PT, ou seja, quase um ano após a denúncia da força-tarefa de Curitiba. Em 8 e 14 de setembro, protocolizamos as denúncias contra o PMDB do Senado e da Câmara. A troca da ordem, uma diferença de poucos dias, se deveu tão somente ao andamento natural das investigações" [p. 185]. "Em suma - conclui Janot -, eu não poderia corrigir uma falha de Curitiba colocando em risco meu trabalho e, mais do que isso, quebrando a máxima de nunca tomar qualquer decisão que não fosse amparada na regra geral, técnica e impessoal" [p. 185-186].
Conclusão: o que esperarmos do papel do Ministério Público em face da Operação Lava Jato?
A minha posição em face desse aspecto é clara: a Operação Lava Jato foi uma grande realização do Ministério Público, que em muito ajudou a clarear o nosso ambiente político, delimitando, com meridiana claridade, os lindeiros do que é permitido por lei e do que constitui prática criminosa.
O Ministério Público, ao ensejo dessa operação, agiu rigorosamente dentro dos marcos assinalados pela Lei, apresentando à Justiça provas para o julgamento de agentes públicos suspeitos e ulteriormente acusados de corrupção. Mas, de outro lado, teria faltado, aos arquitetos da Operação, fixar os limites temporais desse conjunto de ações.
O próprio Rodrigo Janot assinala este aspecto, no seguinte comentário por ele tecido na Apresentação da obra: "Lembro-me (...) de uma profética conversa que tive com a deputada italiana Marina Sereni num jantar na embaixada da Itália, em 2015. Ela me fez três perguntas: 1 - 'O senhor ou alguém de sua equipe pretende disputar algum cargo político?'; 2 - 'O senhor já definiu o limite descendente, ou seja, até onde vão descer as investigações?' 3 - 'Já sabe quando o senhor vai terminar essa investigação?' - À primeira pergunta eu respondi com firmeza. Não me candidataria a nada, nem a síndico de prédio. As duas outras perguntas me pareceram estranhas. Como assim, definir limite de uma investigação? Como estabelecer prazo para concluir as apurações? A deputada me disse, então, que, ao ampliar demais as investigações e atingir pessoas comuns, a Operação Mãos Limpas, da Itália, perdeu o apoio da opinião pública, inflamada por 14 suicídios. Disse também que, se não encerrássemos de forma planejada a Lava Jato, uma 'mão externa' o faria por nós. Só hoje consigo entender o alcance daquelas palavras. Agora que vejo que esse movimento vasto, de múltiplas procedências, para 'estancar a sangria com o Supremo, com tudo' " [p. 10-11].
Os atuais movimentos do Supremo, no sentido de acabar com a prisão após a segunda instância, faz parte, certamente, desse "movimento vasto" a que se referia Janot. O caminho, hoje, para voltar à normalidade, parece complexo. Passa, a meu ver, pela ação dos freios e contrapesos do Congresso da República sobre o Supremo, no caso específico da decisão de acabar com a prisão após a segunda instância. Só assim se garantiria a ação já executada pela Operação Lava Jato, sem anular os seus efeitos benfazejos ao atacar a corrupção no seu nascedouro. E se abriria a porta, também, para a definição de um limite temporal para a mesma. Nos atuais momentos, de perda de credibilidade do Supremo, esses limites temporais teriam de ficar por conta do Legislativo, que é o poder constitucional chamado a corrigir os desvios do STF.
Mesmo com as idas e vindas da política, uma lição ficou clara, para Janot, a partir da Operação Lava-Jato: nunca a vida será a mesma, de agora em diante, para os corruptos. A respeito, frisa: "A Lava Jato não acabou com a corrupção, mas mexeu significativamente em feudos políticos e econômicos. Os donos do poder foram tirados da eterna zona de conforto em que se encontravam. Não há, é verdade, a certeza de que todo poderoso que cometa um crime sofrerá algum tipo de punição. Mas também não há mais certeza de que não terá nenhum incômodo. O próprio Temer passou dois anos se escudando na Presidência da República, mas, tão logo deixou o cargo, foi preso duas vezes. Isso, para mim, é uma mudança clara de paradigma. Uma mudança que, no futuro, será vista como um salto histórico. É perceptível também que o discurso da moralidade no serviço público foi incorporado por parte expressiva da população. Não existe mais espaço para velhos bordões do tipo 'rouba, mas faz', a expressão máxima do cinismo que predominava na velha política. O 'roubo' pode até acontecer, mas ninguém teria mais a coragem de se vangloriar publicamente de uma desonestidade operativa. O lema agora poderia ser outro. 'Faça e não roube', porque ninguém poderá alegar inocência. Ninguém poderá dizer que foi seduzido ou constrangido. O empresário não poderá culpar o político. O político não poderá culpar o financiador de campanha. Se uma empresa não puder ganhar uma concorrência, que mude de ramo. Se um político não consegue dinheiro legalmente para sua campanha, que não se candidate. Caso contrário, que admita o risco permanente da virada do jogo. Porque, depois de tudo que foi feito nos últimos cinco anos, nada será como antes" [p. 252-253].
Apesar das articulações efetivadas pelo deputado Eduardo Cunha para paralisar as investigações do Ministério Público, foi possível enquadrá-lo dentro dos rigores da lei. A propósito, frisa Janot: "Apresentamos a primeira denúncia contra Cunha por corrupção e lavagem de dinheiro em 20 de agosto de 2015. Quatro meses depois, com mais informações coletadas, pedimos o afastamento do deputado da presidência da Câmara. Em março, o STF abriu processo contra o presidente da Câmara. Três meses depois, ele foi afastado da presidência" [p. 107].
A prisão de Cunha mudou radicalmente o panorama político. "Com Cunha na Câmara, frisa Janot, Bolsonaro não seria presidente". O ex-diretor da Procuradoria Geral arrisca a seguinte hipótese: "Se tivesse sobrevivido à investigação, Eduardo Cunha, e não Jair Bolsonaro, teria sido eleito presidente do Brasil nas eleições de 2018" [p. 98]. Janot explica o seu palpite da seguinte forma: "Agora, quando escrevo este livro [entre dezembro de 2018 e o primeiro semestre de 2019], ninguém mais parece se lembrar, mas em 2015, antes de receber o carimbo de corrupto e mentiroso, Cunha vinha recebendo crescente apoio do empresariado, dos evangélicos e dos grupos de direita que lideravam grandes manifestações contra a corrupção. Bolsonaro só passou a catalisar o sentimento anti-PT, que se traduzia nos protestos contra a corrupção na Petrobras, depois que Cunha perdeu o mandato, foi preso e saiu de cena. Nesse sentido, não seria errado dizer que Bolsonaro também deve parte da vitória na eleição presidencial ao sucesso da investigação contra Cunha, o que não deixa de ser um contrassenso no contexto geral. Isso porque o PP, onde militou Bolsonaro por longos anos, foi o partido, em termos numéricos, mais atingido pela Lava Jato. Foi o PP quem indicou Paulo Roberto Costa para a diretoria de Abastecimento e, com isso, instituiu na Petrobrás a cobrança sistemática da propina vinculada a contratos da estatal e empreiteiras. Parlamentares do partido recebiam regularmente uma mesada, que em alguns casos chegava a R$ 150 mil, en troca do apoio a Costa. Bolsonaro foi um dos poucos do partido não mencionados nas delações do ex-diretor e do doleiro Alberto Youssef" [p. 98-99].
O autor expõe em detalhe os processos levantados contra figuras importantes da política brasileira como o senador Delcídio do Amaral e o ex-presidente Lula. As diferenças com a equipe de Procuradores da Lava Jato em Curitiba (chefiada por Deltan Dallagnol) ocorreram pelo fato de eles terem desconhecido a ordem expressa do ministro Teori Zavascki, do STF, no sentido de excluir a possibilidade de a equipe de Curitiba investigar e denunciar Lula por crime de organização criminosa, que seguia no Supremo. Ora, a denúncia por organização criminosa era essencial para Lula ser acusado de lavagem de dinheiro, como queriam Dallagnol e a sua equipe.
Em que pese essa diferença entre a PGR e a turma de procuradores de Curitiba, a equipe de Janot continuou com o seu trabalho. A respeito, frisa o ex-procurador: "(...) Fiz as denúncias conforme os critérios estabelecidos inicialmente, embora a ordem das acusações tenha sofrido uma ligeira alteração. E, em 1º de setembro de 2017, denunciamos o quadrilhão do PP. Quatro dias depois, fizemos uma denúncia por organização criminosa contra Lula e outros do PT, ou seja, quase um ano após a denúncia da força-tarefa de Curitiba. Em 8 e 14 de setembro, protocolizamos as denúncias contra o PMDB do Senado e da Câmara. A troca da ordem, uma diferença de poucos dias, se deveu tão somente ao andamento natural das investigações" [p. 185]. "Em suma - conclui Janot -, eu não poderia corrigir uma falha de Curitiba colocando em risco meu trabalho e, mais do que isso, quebrando a máxima de nunca tomar qualquer decisão que não fosse amparada na regra geral, técnica e impessoal" [p. 185-186].
Ponto alto das investigações da PGR foi a gravação que o empresário Joesley Batista fez do Presidente Temer no Palácio Jaburu. A respeito, escreve Janot: "Com a artilharia crescendo em nossa direção, tivemos que trabalhar em dobro, a inda mais rápido. Rocha Loures e outros réus estavam presos. Tínhamos prazos curtos a cumprir. Rocha Loures foi preso em 3 de junho [de 2017], depois que perdeu a vaga a deputado com o retorno de Osmar Serraglio à Câmara. Em 26 de junho, pouco mais de um mês depois das primeiras buscas, denunciamos o presidente da República e o ex-assessor especial por corrupção. Para nós, o crime estava devidamente caracterizado nas imagens de Rocha Loures recebendo a mala com R$ 500 mil de Ricardo Saud. A entrega da mala era o primeiro resultado concreto da conversa de Temer com Joesley Batista no Jaburu e das incursões de Loures pelo governo para atender os interesses do empresário. Era um caso com ciclo completo Na primeira cena, o presidente se reúne com um empresário às escondidas e indica um interlocutor de confiança, autorizado a tratar de qualquer assunto. No momento seguinte, o empresário se encontra com o assessor e apresenta um pedido de favores para uma de suas empresas. Na terceira etapa, o assessor recebe uma mala de dinheiro e sai correndo com a fortuna pelas ruas de São Paulo. Um roteiro de cinema não poderia ser mais completo e simples".
"Como se não bastasse - continua Janot -, relatório da Polícia Federal sobre a primeira fase do inquérito contra Temer seguia na mesma direção. 'Diante do silêncio do mandatário maior da Nação (Michel Temer) e de seu ex-assessor especial (Rocha Loures), resultam incólumes as evidências que emanam do conjunto informativo formado nestes autos a indicar, com vigor, a prática de corrupção passiva', concluiu o delegado Marlon Cajado. A denúncia teve forte impacto. Afinal, pela primeira vez na história, um presidente da República era denunciado por corrupção em pleno exercício do mandato. Alguns diziam que a acusação formal da Procuradoria-Geral seria o fim do governo. Outros insistiam na tese do açodamento. Outros ainda diziam que o procurador-geral deveria ter esperado um pouco mais (quanto tempo?) para fazer uma denúncia de tamanha envergadura. (...) Temer chegou a insinuar que minha atuação tinha como objetivo final alguma vantagem financeira (...)" [p. 218-219].
Janot relata a perseguição de que foi vítima, através de ataques contra a honra do irmão falecido e contra a filha Letícia, cheias de insinuações maldosas. "Num dos momentos de dor aguda - confessa -, de ira cega, botei uma pistola carregada na cintura e por muito pouco não descarreguei na cabeça de uma autoridade de língua ferina que, em meio àquela algaravia orquestrada pelos investigados, resolvera fazer graça com a minha filha. Só no houve o gesto extremo porque, no instante decisivo, a mão invisível do bom senso tocou meu ombro e disse: não" [p. 216]. Pouco antes do lançamento do seu livro, no segundo semestre de 2019, o próprio Janot, em entrevista à imprensa, confessou que a mencionada autoridade era o ministro Gilmar Mendes.
Para Janot, tentar jogar pelo chão a denúncia do Ministério Público contra o Presidente Temer, equivaleria a rasgar o Código Penal. Resume assim as provas levantadas e sustentadas pela PGR: "Tínhamos a gravação da conversa incriminadora entre Temer e Joesley Batista na calada da noite no Jaburu. Tínhamos a gravação de Batista e Rocha Loures acertando o uso da estrutura do governo em benefício do empresário. E, por fim, tínhamos a corridinha com a mala de dinheiro pelas ruas de São Paulo. Se aquelas conversas escabrosas e aquela fuga do assessor do presidente com uma mala com R$ 500 mil não eram 'indícios' suficientes para se abrir um processo por corrupção, o crime deveria ser excluído do Código Penal" [ p. 221].
Conclusão: o que esperarmos do papel do Ministério Público em face da Operação Lava Jato?
A minha posição em face desse aspecto é clara: a Operação Lava Jato foi uma grande realização do Ministério Público, que em muito ajudou a clarear o nosso ambiente político, delimitando, com meridiana claridade, os lindeiros do que é permitido por lei e do que constitui prática criminosa.
O Ministério Público, ao ensejo dessa operação, agiu rigorosamente dentro dos marcos assinalados pela Lei, apresentando à Justiça provas para o julgamento de agentes públicos suspeitos e ulteriormente acusados de corrupção. Mas, de outro lado, teria faltado, aos arquitetos da Operação, fixar os limites temporais desse conjunto de ações.
O próprio Rodrigo Janot assinala este aspecto, no seguinte comentário por ele tecido na Apresentação da obra: "Lembro-me (...) de uma profética conversa que tive com a deputada italiana Marina Sereni num jantar na embaixada da Itália, em 2015. Ela me fez três perguntas: 1 - 'O senhor ou alguém de sua equipe pretende disputar algum cargo político?'; 2 - 'O senhor já definiu o limite descendente, ou seja, até onde vão descer as investigações?' 3 - 'Já sabe quando o senhor vai terminar essa investigação?' - À primeira pergunta eu respondi com firmeza. Não me candidataria a nada, nem a síndico de prédio. As duas outras perguntas me pareceram estranhas. Como assim, definir limite de uma investigação? Como estabelecer prazo para concluir as apurações? A deputada me disse, então, que, ao ampliar demais as investigações e atingir pessoas comuns, a Operação Mãos Limpas, da Itália, perdeu o apoio da opinião pública, inflamada por 14 suicídios. Disse também que, se não encerrássemos de forma planejada a Lava Jato, uma 'mão externa' o faria por nós. Só hoje consigo entender o alcance daquelas palavras. Agora que vejo que esse movimento vasto, de múltiplas procedências, para 'estancar a sangria com o Supremo, com tudo' " [p. 10-11].
Os atuais movimentos do Supremo, no sentido de acabar com a prisão após a segunda instância, faz parte, certamente, desse "movimento vasto" a que se referia Janot. O caminho, hoje, para voltar à normalidade, parece complexo. Passa, a meu ver, pela ação dos freios e contrapesos do Congresso da República sobre o Supremo, no caso específico da decisão de acabar com a prisão após a segunda instância. Só assim se garantiria a ação já executada pela Operação Lava Jato, sem anular os seus efeitos benfazejos ao atacar a corrupção no seu nascedouro. E se abriria a porta, também, para a definição de um limite temporal para a mesma. Nos atuais momentos, de perda de credibilidade do Supremo, esses limites temporais teriam de ficar por conta do Legislativo, que é o poder constitucional chamado a corrigir os desvios do STF.
Mesmo com as idas e vindas da política, uma lição ficou clara, para Janot, a partir da Operação Lava-Jato: nunca a vida será a mesma, de agora em diante, para os corruptos. A respeito, frisa: "A Lava Jato não acabou com a corrupção, mas mexeu significativamente em feudos políticos e econômicos. Os donos do poder foram tirados da eterna zona de conforto em que se encontravam. Não há, é verdade, a certeza de que todo poderoso que cometa um crime sofrerá algum tipo de punição. Mas também não há mais certeza de que não terá nenhum incômodo. O próprio Temer passou dois anos se escudando na Presidência da República, mas, tão logo deixou o cargo, foi preso duas vezes. Isso, para mim, é uma mudança clara de paradigma. Uma mudança que, no futuro, será vista como um salto histórico. É perceptível também que o discurso da moralidade no serviço público foi incorporado por parte expressiva da população. Não existe mais espaço para velhos bordões do tipo 'rouba, mas faz', a expressão máxima do cinismo que predominava na velha política. O 'roubo' pode até acontecer, mas ninguém teria mais a coragem de se vangloriar publicamente de uma desonestidade operativa. O lema agora poderia ser outro. 'Faça e não roube', porque ninguém poderá alegar inocência. Ninguém poderá dizer que foi seduzido ou constrangido. O empresário não poderá culpar o político. O político não poderá culpar o financiador de campanha. Se uma empresa não puder ganhar uma concorrência, que mude de ramo. Se um político não consegue dinheiro legalmente para sua campanha, que não se candidate. Caso contrário, que admita o risco permanente da virada do jogo. Porque, depois de tudo que foi feito nos últimos cinco anos, nada será como antes" [p. 252-253].