Ortega y Gasset considerava que
os Liberais Doutrinários foram o que de mais interessante
houve no século XIX na Europa. Isso porque eles criaram o marco de referência
para as mudanças políticas ocorridas no seio dos Estados nacionais, na França,
em Portugal, na Espanha e nos países da América Latina. Uma vez consolidadas as
instituições independentes das metrópoles espanhola e portuguesa, os países
ibero-americanos amadureceram no reformismo de inspiração liberal pela mão
dos Doutrinários e dos precursores deles, como Benjamin
Constant de Rebecque. Mas, por outro lado, inspiraram-se também no
republicanismo revolucionário de feição rousseauniana e, nos momentos de
antítese autoritária, no bonapartismo ou no tradicionalismo à la Joseph
de Maistre ou à la Luís de Bonald. Síntese paradoxal da dupla
inspiração em Rousseau e Bonaparte foi, por exemplo, Simón Bolívar, embora ele
pretendesse ser mais discípulo do filósofo de Genebra do que encarnação do Imperador
dos Franceses. As mudanças sociais foram pensadas, outrossim, à luz dos socialistas
utópicos seguidores de Augusto Comte e de Henri-Claude de Saint-Simon,
bem como nos escritores que, no final do século XIX, vulgarizaram os ideais
socialistas, como Zola.
Esta tese
da inspiração estrangeira (ibérica e ibero-americana, especialmente) nos
autores franceses, aliás, não é nova. É do próprio François Guizot, que na
sua Histoire de la civilisation en Europe (capítulo 14), ao
fazer o balanço do que a França significou no contexto da civilização
ocidental, afirma que a marca registrada dessa influência consistiu em ter
realizado, de maneira superlativa, todas as grandes mudanças que foram
concretizadas de forma moderada pela Inglaterra. A França, efetivamente, viu
derrubar-se o mundo feudal muito cedo sob o tacão de Ferro de Filipe o Belo,
deu ensejo ao mais radical dos absolutismos monárquicos que possibilitou a Luís
XIV afirmar "L'État c'est moi", efetivou de maneira cruenta a
revolução burguesa descabeçando literalmente o Ancien Régime,
consolidou um modelo jacobino de República alicerçado no democratismo
rousseauniano, que passou a ser o arquétipo pelo qual se pautaram as novas
Repúblicas surgidas na América Espanhola e Portuguesa, ao longo do século XIX, etc.
A
respeito desse caráter superlativo das realidades e das idéias políticas na
França —e no continente europeu, em contraposição à Inglaterra—, escreveu
Guizot: "Ao contrário, nos Estados do continente, cada sistema, cada
princípio, tendo desfrutado do seu momento e dominado da maneira mais completa,
mais exclusiva, o seu desenvolvimento produziu-se em muita maior escala, com
mais grandeza e brilho. A realeza e a aristocracia feudal, por exemplo,
comportaram-se na cena continental com mais audácia, amplitude e liberdade.
Todos os experimentos políticos (chamemo-los assim) foram mais exteriores e
mais acabados. Daí resultou que as idéias políticas —falo das idéias gerais e
não do bom senso aplicado à direção dos negócios— elevaram-se a maior altura e
desenvolveram-se com mais vigor racional. Cada sistema, pelo fato de ter-se
apresentado, de certa forma, sozinho e de ter permanecido durante muito tempo
em cena, pôde ser considerado no seu conjunto, pôde-se remontar aos princípios,
descer até as suas últimas conseqüências e estabelecer plenamente a sua
teoria" [Guizot, 1864: 383-384].
No que
tange ao liberalismo, a experiência dos doutrinários está bem
mais próxima de nós, ibero-americanos, do que as lições que nos poderiam dar os
ingleses ou os norte-americanos. Isso porque a França do século XIX reproduzia
com grande fidelidade as contradições que vivemos nos nossos países nessa
centúria e ao longo do século XX, como também neste paradoxal início de
milênio. A evolução política contemporânea, na Espanha, em Portugal, na América
espanhola ou no Brasil, processou-se de forma muito mais parecida à França do
século XIX, do que aos Estados Unidos ou à Inglaterra. As idas e vindas da
nossa política oscilaram entre os extremos do mais feroz caudilhismo e do
anárquico democratismo. As lutas dos liberais ibero-americanos em defesa da
liberdade e do governo representativo aproximaram-se muito mais dos ingentes
esforços, feitos por Guizot e pelos demais doutrinários, para
dotar a França de instituições que garantissem a frágil planta da democracia,
do que das reformas racionais efetivadas por Pitt na Inglaterra, a fim de ver
triunfante o Império britânico, alicerçado na livre iniciativa e na tranqüila e
rotineira representação de interesses. A idéia é de José Ortega y Gasset, que
concluía em 1937: "este grupo de doutrinários, de quem todo
mundo riu e fez troça, é, no meu entender, o mais valioso que houve na política
do Continente ao longo do século XIX" [apud Díez, 1984: 19].
A
repercussão das idéias dos doutrinários no mundo ibérico e
ibero-americano começou, aliás, já no século XIX. Os liberais espanhóis,
liderados por Cánovas del Castillo, e que integraram a denominada Geração
dos Doutrinários de 1845, inspiraram-se diretamente nos seus homólogos
franceses, notadamente em Guizot [cf. Díez, 1984: 25]. A influência de Guizot
fez-se sentir, em Portugal, já no pensamento de Alexandre Herculano. Algo
semelhante ocorreu no Brasil entre os denominados por Oliveira Vianna de Homens
de Mil, que constituíram a geração de estadistas formados por dom Pedro II
e que foram os responsáveis pela estabilidade política do Segundo Reinado. Um
desses Homens de Mil foi o visconde de Uruguai, Paulino Soares
de Sousa, que fundamentou boa parte do seu Tratado de Direito
Administrativo nas idéias e nas propostas reformistas de Guizot [cf.
Sousa, 1960]. Outros estadistas como o Conselheiro José Tomás Nabuco de Araújo
e o seu filho, Joaquim Nabuco, confessavam-se seguidores de outro doutrinário,
o mestre de Guizot e seu padrinho político, Pierre-Paul Royer-Collard [cf.
Chacon, 2002: 229].
Entre os
argentinos, para citar apenas um nome, encontramos um importante tributário da
dinâmica histórica idealizada por Guizot em Domingo Faustino Sarmiento, que foi
presidente do seu país e que escreveu essa magnífica obra que faz a história
das origens do patrimonialismo platino, intitulada: Facundo,
civilización o barbarie, publicada em 1846. Efetivamente,
Sarmiento, como já o fizera Guizot em relação à Europa, considerava a formação
argentina como fruto dialético da contraposição de dois princípios: a liberdade
bárbara do gaúcho (encarnado em Facundo Quiroga e em Rosas) e
o princípio centralizador da ordem, que faz uso do direito, construindo o
Estado sobre as leis (papel civilizador que pretendia desempenhar o próprio
Sarmiento e a elite de educadores-políticos por ele inspirada) [cf. Sarmiento,
1996].
Desenvolverei
dois itens nesta apresentação: I – Breve síntese biobibliográfica de Paulino
José Soares. II – O Liberalismo Conservador do mesmo.
I – Breve
síntese biobliográfica de Paulino José Soares de Sousa
Paulino
José Soares, futuro visconde de Uruguai, nasceu em Paris em 1807. Muito jovem
ainda, veio para o Brasil em companhia dos seus pais, José Antônio e Antônia
Madalena Soares de Sousa, tendo fixado residência na Província do Maranhão.
Começou ali a sua formação humanística. Com a idade de quinze anos viajou para
Portugal, a fim de iniciar, na Universidade de Coimbra, os estudos de Direito.
Nessa Universidade cursou até o quarto ano da carreira jurídica. Em decorrência
do fato de ter sido fechada essa Casa de Estudos com motivo da revolução
favorável a Dom Miguel de Bragança, o nosso autor viu-se obrigado a se
transladar ao Brasil, tendo concluído a sua formação superior na Faculdade de
Direito do Largo de São Francisco, na capital paulista. Após o recebimento do
título de bacharel em 1831 ingressou na magistratura, tendo sido nomeado Juiz
de Fora na cidade de São Paulo. Oito meses depois foi transladado à
Corte, no Rio de Janeiro, onde desempenhou inicialmente o cargo de Juiz
criminal e responsável pela Intendência da Polícia. Pouco tempo depois ocupou o
cargo de Juiz cível da segunda vara da Corte. Em abril de 1833, o nosso autor
casou com Ana de Macedo Álvares de Azevedo.
A partir
de 1837, Paulino Soares ingressou na vida política, tendo sido eleito várias
vezes deputado pelo Rio de Janeiro e chegando até o alto cargo de senador do
Império em 1849. Já a partir da sua eleição para a Câmara, o nosso autor
vinculou-se ao Partido Conservador (que tinha sido criado em 1837) ao lado de
Bernardo Pereira de Vasconcelos, marquês de Paraná. Desempenhou em cinco
oportunidades as funções de ministro de Estado, à frente das pastas de Justiça
e dos Estrangeiros. Foi nomeado membro do Conselho de Estado pelo Imperador Pedro
II, tendo sido de grande relevo a sua colaboração na formulação do arcabouço
administrativo do Império, bem como no delineamento da política exterior
brasileira na segunda metade do século XIX. Em dezembro de 1854 recebeu do
Imperador o título de visconde de Uruguai. No ano seguinte, recebeu a missão de
representar o Império perante a corte de Luís Napoleão, ao ensejo da negociação
em torno da espinhosa questão da demarcação de limites com a Guiana Francesa. A
tese sustentada pelo nosso autor (que indicava o rio Oiapoque como marco
divisório dos territórios dos dois países) terminou sendo acolhida pelo governo
francês. Paulino José Soares, que ostentava a comenda de oficial da Ordem
Imperial do Cruzeiro, foi agraciado em 1850 pelo rei de Nápoles com a Grã Cruz
da Ordem de São Genaro. Recebeu, outrossim, do rei da Dinamarca a condecoração
da Ordem Real de Danebrog, em 1852. Nesse mesmo ano foi condecorado com a Ordem
Imperial da Coroa de Ferro pelo Imperador da Áustria e com a da Ordem de Cristo
pelo rei de Portugal. O nosso autor foi membro da Academia Tiberina de Roma, da
Academia Arqueológica da Bélgica, da Academia Britânica de Ciências, Artes e
Indústria, da Sociedade de Zoologia e Aclimatação de Paris, da Sociedade
Animadora das Ciências, Letras e Artes de Dunquerque, do Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro e do Rio da Prata e da Sociedade Auxiliadora da Indústria
Nacional do Rio de Janeiro. Veio a falecer em 15 de Julho de 1866.
O cerne
da produção intelectual de Paulino Soares centrou-se na construção dos
alicerces administrativos do Império, tendo-se colocado decididamente em contra
dos autores que propugnavam por uma organização federativa, enfraquecendo o
poder central. Paulino foi um dos homens públicos que deram corpo à idéia
do regresso, ou seja, de construção das instituições brasileiras ao
redor da figura monárquica. O nosso autor inspirou-se nos doutrinários
franceses, notadamente em François Guizot. No segundo item desta apresentação
será destacada essa faceta do seu pensamento. Se referindo à principal obra de
Paulino José Soares, o Ensaio sobre o Direito Administrativo,
frisou o jurista Themístocles Brandão Cavalcanti: “A obra do Visconde de
Uruguai, modestamente intitulada de Ensaio, tem dois tomos.
Sente-se no autor o político preocupado com os problemas gerais da
administração, com o valor e significação das instituições políticas e
administrativas vigentes e também o estudioso e erudito assoberbado com a
quantidade do material acumulado, material legislativo e doutrinário, precisando
com tudo isso construir uma obra que exprimisse a síntese de toda a doutrina
que então prevalecia. Esta obra teria grandes proporções, e o Ensaio
sobre o Direito Administrativo em dois tomos é apenas a introdução ao
que deveria ser um verdadeiro tratado. O Ensaio contém o
material necessário ao estudo do Direito Administrativo. Ali se estudam os
elementos fundamentais do Direito Administrativo e principalmente a estrutura
do Estado e da Administração, o problema da centralização, do Poder Moderador,
da administração graciosa e contenciosa, do Conselho de Estado”
[Cavalcanti,1960: VII].
II – O Liberalismo Conservador de Paulino José Soares de Sousa
Destacarei
três aspectos nesta exposição do pensamento do visconde de Uruguai. Em primeiro
lugar, mostrarei de que maneira Guizot foi o inspirador do Liberalismo
Conservador luso-brasileiro. Em segundo lugar, ilustrarei a influência
específica do estadista francês sobre Paulino José Soares de Sousa. Em terceiro
lugar, tecerei algumas considerações acerca do conceito de ética pública em
Paulino e em Guizot, mostrando a profunda semelhança entre ambos os
publicistas.
A - O
pensamento político de Guizot, fonte do Liberalismo Conservador luso-brasileiro.
François
Guizot representou, para o pensamento político luso-brasileiro do século XIX, o
marco de referência conceitual do Liberalismo Conservador, um de cujos máximos
expoentes foi Paulino Soares de Sousa, visconde de Uruguai. A problemática
vivida pelo Império Brasileiro na sua etapa inicial (correspondente ao Primeiro
Reinado e ao Período Regencial, e que se estende entre 1824 e 1840), era bem
semelhante à vivida pela França da época da Restauração (1814-1830). A vida
política decorria, no Brasil, (no período apontado) entre os extremos do
absolutismo e do democratismo rousseauniano. De forma semelhante, na França da
Restauração, os abismos estavam identificados, de um lado, com o espírito
reacionário dos ultras, que aspiravam os ares do Ancien
Régime, e com o bonapartismo, que constituía a versão burguesa do absolutismo;
de outro lado, com o jacobinismo revolucionário e o democratismo rousseauniano,
que tinham ensejado a Revolução de 1789 e o Terror [cf. Macedo e Vélez, 1996].
A queda
do Ancien Régime, ao tirar todo poder à Igreja, colocou no seu
lugar o homem de letras, certamente um intelectual diferente daquele do
Iluminismo, porquanto sensível à realidade histórica de sua época. A sua missão
consistiria em erguer um poder espiritual que iluminasse a sociedade com as
luzes de uma religião civil, diferente por certo da proposta por Rousseau,
porquanto compatível com uma sociedade estruturada em várias ordens de
interesses. Essa nova religião civil deveria garantir a unidade do tecido
social, ao redor de uma gama de interesses comuns a todas as classes e os seus
dogmas seriam objeto de um processo pedagógico ministrado pelos homens de
letras, que teriam, também, funções proféticas (porquanto pregoeiros de uma
nova era) e dirigentes (seriam, ao mesmo tempo, líderes da sociedade da sua
época). Françoise Mélonio sintetizou o perfil desses novos líderes, com as
seguintes palavras: "Saber para poder, superar a filosofia crítica das
Luzes para elaborar os novos dogmas, tal é o objetivo que todos, com não poucas
variações, perseguem, Jouffroi como Guizot, Comte, Hugo, Lamartine, Renan ou
Renouvier" [Mélonio, 1998: 195].
"Passar
a França pós-revolucionária a limpo", esse poderia ter sido o princípio
inspirador dos chamados doutrinários, Guizot à testa. Quanto
ao nome dessa corrente, assim explica Rosanvallon o seu significado: "A
denominação de doutrinários, que parece ter sido utilizada pela
primeira vez em 1817 nos corredores da Câmara dos Deputados, referia-se no
início unicamente a Camille Jordan, de Broglie e Royer-Collard. A expressão
caracterizará em seguida a corrente indissociavelmente intelectual e política
que se estruturará progressivamente ao redor de Guizot, aparecendo este após
1820 como o verdadeiro líder do que no início não era mais do que um pequeno
grupo de parlamentares" [Rosanvallon, 1985: 26, nota 1]. O grupo dos
doutrinários esteve também integrado por Remusat e de Serre. Tocqueville, como
frisa Ubiratan Macedo, "a rigor, não pode ser agregado aos doutrinários,
mas é impensável sem eles e corresponde certamente ao corolário de sua
obra" [Macedo, 1987: 33].
O projeto
político de Guizot correspondia ao ideal de “finalizar a Revolução, construir
um governo representativo estável, estabelecer um regime que, fundado na Razão,
garantisse as liberdades. Esses objetivos definem a tripla tarefa que se impõe
a si mesma a geração liberal nascida com o século. Tarefa indissoluvelmente
intelectual e política, que especifica um momento bem determinado do
liberalismo francês: aquele durante o qual o problema principal é prevenir a
volta de uma ruptura mortal entre a afirmação das liberdades e o
desenvolvimento do fato democrático. Momento conceitual que coincide com o
período histórico (da Restauração e da Monarquia de Julho), no curso do qual
essa tarefa está praticamente na ordem do dia e que se distingue, ao mesmo
tempo, do momento ideológico, que prolonga a herança das Luzes, e
do momento democrático, que se inicia depois de 1848"
[Rosanvallon, 1985: 26].
Tarefa
intelectual e política. Efetivamente, a essência da proposta de Guizot
consistiu em pensar as novas instituições que garantissem, no plano político, o
exercício da liberdade. Esse pensar as novas instituições não era ato de uma
elite intelectual desligada da sociedade. Era função de uma elite, sim, pensar
os novos conceitos. Mas eles deviam se espraiar pelo resto da sociedade. Guizot
apostava num uso social da razão. A propósito, perguntava:
"O que é necessário para que os homens possam fundar uma sociedade um
pouco durável, um pouco regular?" E respondia: "É preciso,
evidentemente, que tenham um certo número de idéias suficientemente
desenvolvidas, para que convenham a essa sociedade, que respondam às suas
necessidades, às suas relações. É preciso, além do mais, que essas idéias sejam
comuns à maior parte dos membros da sociedade; enfim, que elas exerçam um certo
domínio sobre as suas vontades e as suas ações" [Guizot, 1864: 81].
Essa
tarefa político-pedagógica era pensada num pano de fundo histórico, inserindo
as instituições políticas no contexto mais amplo do espírito do tempo. A função
pedagógico-política do intelectual consistia em fazer descobrir aos franceses a
sua própria história. Guizot pretendia cumprir esse papel, em relação ao seu
país, doutrinando as classes médias, as únicas que conseguiriam manter a
unidade nacional, numa perspectiva de não privatização do poder por castas ou
estamentos. O pensador francês estabelecia um estreito elo de ligação entre a
conquista das liberdades individuais e a construção do Estado. Em relação a
esse ponto, escreve Rosanvallon [1985: 199]: "A construção do Estado e o
nascimento do indivíduo vão de mãos dadas: os dois se fundam sobre a destruição
das ordens fechadas".
As obras
de caráter histórico de Guizot tinham como finalidade ensinar às classes médias
essa sua importante missão de construir, na França, o Estado e a civilização. O
líder dos doutrinários e primeiro representante da chamada escola
histórica, "quer dar uma memória às classes médias, lhes restituindo a
história" [Rosanvallon, 1985:195]. A inserção da preocupação histórica
como parte essencial da tarefa dos intelectuais, formou parte do clima que se
seguiu na França, e na Europa em geral, à Revolução Francesa. Talvez aí
radicassem as reservas com que Guizot enxergava a obra de Comte, dogmática
demais segundo o seu ponto de vista, em boa medida por não levar em
consideração, suficientemente, os fatos históricos [cf. Littré, 1868: 28]. Ao
passo que os philosophes do século XVIII davam as costas
ostensivamente à realidade, transformando o seu discurso numa abstração,
(Tocqueville aderiria posteriormente, em L'Ancien Régime et la
Révolution, a essa crítica), os doutrinários faziam
questão de se definirem como homens do seu tempo, que buscavam as raízes da
própria sociedade na sua história. Tarefa de evidente inspiração hegeliana, na
qual Guizot, com insuperável maestria de sociólogo e filósofo elaborou as
categorias dialéticas à luz das quais passou a ser entendida a problemática
social no seio do Liberalismo francês. Guizot entendia a sociedade européia
numa dupla perspectiva: socio-política e cultural. Em ambos os contextos
identificava a essência da realidade como fundamentalmente dialética. O
hegelianismo de Guizot não provinha de uma leitura direta de parte do nosso
autor das obras do filósofo alemão, mas da influência de Victor Cousin.
No
terreno da história da cultura, o pensador francês considerava que a
civilização européia era fruto do confronto entre dois princípios que se
contrapunham dialeticamente: o da liberdade e o da ordem. O primeiro,
identificado com o legado dos bárbaros, cujo élan era
constituído por uma liberdade selvagem, vizinha da anarquia; o segundo
princípio, identificado com a ordem imposta pelo Império Romano e pelas
instituições herdadas, dele, pela Igreja. Em relação a este ponto, Guizot
escrevia: "Devemos aos Germanos o sentimento enérgico da liberdade
individual, da individualidade humana. Ora, num contexto de extrema grosseria e
ignorância, esse sentimento é o egoísmo em toda a sua brutalidade, em toda a
sua insociabilidade (....). A Europa tratava de sair desse estado (...).
Restavam, aliás, grandes ruínas da civilização romana. O nome do Império, a
lembrança dessa grande e gloriosa sociedade, agitavam a memória dos homens, dos
senadores das vilas sobretudo, dos bispos, dos sacerdotes, de todos os que
tinham a sua origem no mundo romano. Entre os bárbaros mesmos, ou entre os seus
ancestrais bárbaros, muitos tinham sido testemunhas da grandeza do Império;
tinham servido nas suas legiões, eles o tinham conquistado. A imagem, o nome da
civilização romana impunha-se-lhes; eles sentiam a necessidade de imitá-la, de
reproduzi-la, de conservar alguma coisa dela. Nova causa que os deveria puxar
para fora do estado de barbárie" [Guizot, 1864: 82-83].
Esses
dois princípios, o da liberdade e o da ordem, constitutivos da civilização
européia, precisaram, no entanto, de uma força que os amalgamasse numa
experiência histórica concreta. O pensador francês achava que essa foi a missão
dos grandes homens, que apareceram providencialmente, como é o caso
de Carlos Magno. Em relação a esses importantes atores da história humana,
frisava Guizot: "Há homens aos quais o espetáculo da anarquia e da
imobilidade social golpeia e revolta, que são sacudidos por esses fatores como
se estes constituíssem um fato ilegítimo, e que são invencivelmente possuídos
pela necessidade de mudar esse fato, de colocar alguma regra, algum princípio
geral, regular, permanente, no mundo observado por eles. Poder terrível, amiúde
tirânico, e que comete mil iniqüidades, mil erros, pois é acompanhado pela
fraqueza humana; poder, no entanto, glorioso e salutar, pois ele imprime à
humanidade, pela mão do homem, uma forte sacudida, um grande movimento"
[Guizot, 1864: 84].
No
terreno sócio-político, Guizot considerava que a realidade da Europa era
constituída pela luta de classes. Nada mais alheio, para ele, à realidade
política da França e da Europa, do que o sonho utopista dos que achavam que
seria possível uma espécie de entropia política, como se as relações sociais
pudessem ser reduzidas uni-linearmente a uma única ordem de interesses. Mas, ao
mesmo tempo, o pensador francês tinha consciência de que a época era a
das classes médias, as únicas capazes de dotar a França de
instituições livres e estáveis, superando os excessos da revolução e do
absolutismo. Ora, essas classes médiasidentificavam-se, na França
da Restauração, com a burguesia. Esta devia acordar e despertar a sua
consciência de que se tratava de uma classe chamada a garantir a unidade
francesa, fazendo frente à dissolução do Terror e ao anacronismo do Absolutismo
bonapartista. Eis aí, formulado claramente o conceito da consciência de
classe. Sem dúvida nenhuma que Karl Marx fez uso desse arcabouço conceitual
(luta de classes, consciência de classe, classe habilitada para exercer o
domínio na sociedade). Plekhanov, aliás, tinha destacado esse ponto, com rara
probidade intelectual que reconhecia ser Marx herdeiro de um liberal-conservador
na formulação dos seus conceitos sociológicos chaves. Guizot considerava-se o
profeta dessa situação histórica, o pregoeiro da nova ordem de coisas, de uma
política alicerçada no conceito de luta de classes, e de uma burguesia que era
chamada à responsabilidade histórica, indelegável, de garantir o exercício da
liberdade, mediante a criação de instituições que, salvaguardando a ordem,
possibilitassem o amadurecimento da civilização européia. O pensador francês
atribuía à burguesia o papel de pregoeira da Verdade histórica.
Acerca da
influência de Guizot em Marx, escreve Rosanvallon [1985: 394]: "Poderá ser
observada a atração exercida por Guizot sobre certos teóricos de inspiração
marxista, na medida em que ele tinha sido considerado por Marx e Engels como um
dos historiadores burgueses que tinham inventado a noção de
luta de classes". (A respeito, Rosanvallon menciona os seguintes autores,
além de Plekhanov: Robert Fossaert com o seu ensaio intitulado "La théorie
des classes chez Guizot et Thierry", in: La Pensée, jan. -
fev. 1955 e B. Reizou com a obra L'historiographie romantique
française, 1815-1830. Moscou, s. d.). Plekhanov, aliás, na sua obra Os
princípios fundamentais do marxismo, considerava que Marx descobriu a
concepção materialista da história, inspirado em parte nas teorias do interesse
material que movimenta as classes sociais, presentes nas obras de
Guizot, Mignet e Thierry [Plekhanov, 1989: 59].
A
burguesia, no sentir de Guizot, deveria garantir as instituições que
alicerçassem o exercício da liberdade, mediante a organização da representação.
Esta consistia, cumulativamente, na luta em prol dos interesses de classe e na
tentativa de, mediante a explicitação desses interesses no terreno do discurso,
dar ensejo à racionalidade social, que era fruto do entrechoque das opiniões.
Desse processo dialético emergiria o conceito de representação. Esta seria
considerada, quando estabelecido o domínio da burguesia mediante esse processo
de explicitação, como a média da opinião. Não há dúvida de que esses
conceitos entraram fundo no discurso político do século XIX, tanto na França
quanto no Brasil. Só para lembrar um exemplo dessa influência, Assis Brasil
[1896: 81] definia a representação como a média da opinião.
B - A
influência de Guizot no Liberalismo Conservador de Paulino José Soares de Sousa.
O autor
que mais diretamente recebeu a influência de Guizot foi Paulino José Soares de
Sousa. Para ele, a elite imperial tinha uma missão fundamental: garantir a
criação e o funcionamento de instituições que garantissem, no Brasil, o
exercício da liberdade e o progresso da sociedade, a exemplo dos dirigentes
franceses e britânicos. O terreno onde se deveria travar essa luta era, para
Paulino, o do direito administrativo, já que à luz deste poderiam ser pensadas
as instituições do governo, bem como os meios jurídicos e práticos que
garantissem o seu funcionamento. Essa era a finalidade primordial do seu Ensaio
de Direito Administrativo, publicado em 1862. A respeito, escreve
Themistocles Brandão Cavalcanti: "Ali se estudam os elementos fundamentais
do Direito Administrativo e principalmente a estrutura do Estado e da
administração, o problema da centralização, do Poder Moderador, da
administração graciosa e contenciosa, do Conselho de Estado. O conteúdo próprio
das normas administrativas não estava ainda bem caracterizado e, por isso
mesmo, não tinha a doutrina a merecida expansão. Afora, portanto, os elementos
básicos de direito administrativo bem expostos no princípio da obra, o autor
deu singular importância a duas instituições fundamentais da Política
Constitucional do Império e que teriam influência preponderante no
desenvolvimento do nosso direito administrativo e do nosso direito político - o
Poder Moderador e o Conselho de Estado" [Cavalcanti, 1960: VII-VIII].
O
trabalho não foi pura e simples elucubração teórica. Como Guizot em relação à
França, Paulino considerava que deveriam ser pensadas as instituições
brasileiras à luz da história e da cultura nacionais. O Ensaio é
fruto do profundo conhecimento que tinha do país, amadurecido na sua
participação em vários órgãos do Governo Imperial, entre 1840 e 1862. A obra
foi motivada pela viagem que o visconde realizou à Inglaterra e à França, com a
finalidade de estudar o funcionamento das Instituições Públicas. A respeito,
Paulino escreve o seguinte testemunho: "Na viagem que ultimamente fiz à
Europa não me causaram tamanha impressão os monumentos das artes e das
ciências, a riqueza, força e poder material de duas grandes nações: a França e
a Inglaterra, quanto os resultados práticos e palpáveis da sua administração.
Os primeiros fenômenos podemos nós conhecê-los pelos escritos que deles dão
larga notícia. Para conhecer e avaliar os segundos não bastam descrições. Tudo
ali se move, vem e chega a ponto com ordem e regularidade, quer na
administração pública, quer nos estabelecimentos organizados e dirigidos por
companhias particulares. Nem o público toleraria o contrário. As relações entre
a administração e os administrados são fáceis, simples, benévolas e sempre corteses.
Não encontrava na imprensa, nas discussões das câmaras, nas conversações
particulares essa infinidade de queixas e doestos, tão freqüentes entre nós,
contra verdadeiros ou supostos erros, descuidos e injustiças da administração,
e mesmo contra a justiça civil e criminal. A população tinha confiança na
justiça quer administrativa, quer civil, quer criminal. E é sem dúvida por isso
que a França tem podido suportar as restrições que sofre na liberdade
política" [Sousa, 1960: 5].
O
visconde regressa da sua viagem à Europa com o firme propósito de pensar as
instituições que garantissem, no Brasil, o exercício da liberdade. Esse é o seu
imperativo categórico, que o distancia da pura teoria e da pura prática, e que
o aproxima do ideal dos doutrinários. Eis a forma em que ele entende o seu
propósito: "Convenci-me ainda mais de que se a liberdade política é
essencial para a felicidade de uma nação, boas instituições administrativas
apropriadas às suas circunstâncias, e convenientemente desenvolvidas não o são menos.
Aquela sem estas não pode produzir bons resultados. O que tive ocasião de
observar e estudar produziu uma grande revolução nas minhas idéias e modo de
encarar as coisas. E se quando parti ia cansado e aborrecido das nossas lutas
políticas pessoais, pouco confiado nos resultados da política que acabava de
ser inaugurada, regressei ainda mais firmemente resolvido, a buscar
exclusivamente no estudo do gabinete aquela ocupação do espírito, sem a qual
não podem viver os que se habituaram a trazê-lo ocupado" [Sousa, 1960:
5-6].
A
primeira convicção que tem o visconde de Uruguai —como de resto os demais
estadistas da sua época— é a de que a monarquia constitucional é o regime que
melhor se adaptava às necessidades brasileiras. Essa convicção é bem verdade, tinha
sido sedimentada pela obra pioneira de Silvestre Pinheiro Ferreira. Mas o
interessante é que Paulino encontra no próprio Guizot um arrazoado claro e
favorável à monarquia brasileira. Efetivamente, o pensador francês, na nona
lição da sua Histoire de la Civilisation en Europe, tinha deixado
claro que a monarquia foi, na Europa e notadamente na França, a primeira
garantia de legalidade no início da modernidade, por cima da turbulenta
atmosfera de particularismos em pugna. Referindo-se especificamente ao Brasil,
escrevia Guizot: "Abri a obra onde M. Benjamin Constant tem representado
de forma tão engenhosa a realeza como um poder neutro, um poder moderador,
elevado por cima dos acidentes, das lutas da sociedade e somente intervindo nas
grandes crises. Não é essa, por assim dizer, a atitude do soberano de direito
no governo das coisas humanas? É necessário que haja nessa idéia algo de muito
especial que chame a atenção das pessoas, pois ela passou com extraordinária
rapidez dos livros aos fatos. Um soberano fez dessa idéia, na constituição do
Brasil, a base mesma do seu trono; a realeza é ali representada como um poder
moderador, elevado por cima dos poderes ativos, como um espectador e um juiz
das lutas políticas" [Guizot, 1864: 256].
Paulino
era consciente da complexidade da tarefa empreendida. Pensar as instituições do
direito administrativo era algo mais do que conceber os termos de uma
Constituição Política. Implicava, também, criar os caminhos jurídicos e
institucionais que permitissem a boa administração e que se enraizassem,
portanto, na cultura e nos hábitos do país. É significativo dessa preocupação o
texto de Guizot (tirado da obra L'Église et la Societé Chrétiennes,
publicada em 1861) que serve de epígrafe à obra de Paulino, e que
reza assim: "Não basta estabelecer num país eleições, câmaras e o governo
parlamentar, para libertá-lo dos seus males, dar a todos os bens que lhes são
prometidos e poupá-los das funestas conseqüências de todos os erros que ali se
cometem. As condições do bom governo dos povos são mais complicadas; não se
satisfaz a todos os interesses, não se garantem todos os direitos colocando uma
constituição no lugar de um velho poder, e não se pode ter instituído em Turim
um parlamento italiano sem ter fundado na Itália a liberdade" [apud Sousa,
1960: folha de rosto].
Paulino
Soares de Souza considerava que, no processo de construção das instituições que
garantiam no Brasil o exercício da liberdade, as condições assemelhavam-se
muito às da França pós-revolucionária. A experiência inglesa de self-government era
mais distante. A nossa prática do municipalismo esteve sempre vinculada à
garantia da legislação e das instituições por um poder central, que se soerguia
por sobre o universo de particularismos e castas predispostos à privatização do
poder. A prática do direito administrativo inspirou-se, no caso de Portugal e
no do Brasil, na tradição francesa, centralizadora, diferente da tradição
anglo-saxã, eminentemente descentralizadora.
A
propósito, escreve Paulino: "O sistema francês, inteiramente diverso do
anglo-saxônio, mais ou menos modificado, é o mais simples, mais metódico, mais
claro e compreensivo, e o que mais facilmente pode ser adotado por um país que
arrasa, de um só golpe todas as suas antigas instituições, para adotar as constitucionais
ou representativas, e isto muito principalmente quando esse país larga as
faixas do sistema absoluto, e abrindo pela primeira vez os olhos à luz da
liberdade, está mal, ou não está de todo preparado para se governar em tudo e
por tudo a si mesmo. (...) Adotados em um país, como nós adotamos, os pontos
cardeais desse sistema, organizado o país segundo o seu espírito em geral, não
é possível proscrevê-lo, sem adotar o contrário, e sem a completa mudança de
toda a organização existente. O sistema administrativo francês concede pouco
ao self government, é um e muito uniforme, preventivo e muito
centralizador. Alarga muito a direção, tutela a fiscalização do Governo. Admite
largamente a hierarquia. Reduz o Poder Judicial ao Civil e Criminal. (...) Este
sistema é muito ligado, lógico e harmônico, e tem incontestáveis vantagens.
Depois de bem montado e desenvolvido é o que apresenta melhores condições de
resistência e estabilidade. (...). Cada indivíduo tem menos ingerência nos
negócios públicos, porém o seu direito está mais bem resguardado e garantido do
que em muitos países que se dizem livres. Bem desenvolvido e executado, como o
é na França, não se dão as violências, e as injustiças flagrantes, das quais
apresentam não raros exemplos países que aliás gozam de liberdade. A França não
goza de uma completa liberdade política, mas não há talvez país melhor
administrado, e onde a segurança pessoal, o direito de propriedade, e a
imparcialidade dos tribunais sejam melhor assegurados e garantidos" [Sousa,
1960: 417].
Paulino
Soares de Sousa não renunciava à prática do self government. Não
escondia a sua admiração por essa forma de governo, na forma em que foi
belamente descrita por Tocqueville na sua Democracia na América. É
explícita a admiração de Paulino pelo regime de self government que
Tocqueville encontrou na América, e que ele aproxima do regime de liberdade
municipal. A respeito, escreve o visconde: "Um povo, diz Tocqueville, pode
sempre estabelecer Assembléias políticas, porque ordinariamente encontra no seu
seio certo número de homens nos quais as luzes substituem até certo ponto a
prática dos negócios... A liberdade municipal escapa, para assim dizer, aos
esforços do homem. É raro que seja criada pelas leis; nasce por algum modo por
si mesma. São, a ação contínua das leis e dos costumes, as circunstâncias e,
sobretudo o tempo, que conseguem consolidá-la. De todas as nações do continente
da Europa, não há talvez uma só que a conheça. É, contudo, na Municipalidade
que reside a força dos povos livres. As instituições municipais são para a
liberdade o que as escolas primárias são para a ciência: põem a liberdade ao
alcance do povo, fazem com que aprecie o seu gozo tranqüilo, e habituam-no a
servir-se dela. Sem instituições municipais pode uma nação dar-se um governo
livre, mas não tem o espírito da liberdade" [Sousa, 1960: 405].
Mas, à
semelhança de Guizot, Paulino era consciente de que a liberdade democrática
requeria uma base moral, que não estava suficientemente consolidada entre nós.
Para atingir o estágio da plena democracia, seria necessário primeiro educar o
povo nos hábitos do respeito ao bem público e da participação na gestão
responsável da res publica. A tirania é a conseqüência da
construção afoita da democracia, sem as bases morais que tornam o self
government uma instituição a serviço da liberdade e não do despotismo.
Em relação a esse ponto, escreve o visconde: "Assim é e deve ser, ao menos
a certos respeitos, naqueles afortunados países, onde o povo for homogêneo,
geralmente ilustrado e moralizado, e onde a sua educação e hábitos o habilitem
para se governar bem a si mesmo. Quais e quantas são as nações entre as quais
se tem podido estabelecer o self government? Ide estabelecê-lo
em certos lugares da Itália, entre os Lazzaroni, no México, e nas Repúblicas da
América Meridional! O pobre Soberano, o povo, deixar-se-á iludir, e será vítima
do primeiro ambicioso esperto (....). Nos países nos quais ainda não estão
difundidos em todas as classes da sociedade aqueles hábitos de ordem e
legalidade, que únicos podem colocar as liberdades públicas fora do alcance das
invasões do Poder, dos caprichos da multidão, e dos botes dos ambiciosos, e que
não estão portanto devidamente habilitados para o self government,
é preciso começar a introduzi-lo pouco a pouco, e sujeitar esses ensaios a uma
certa cautela, e a certos corretivos. Não convém proscrevê-lo, porque, em
termos hábeis, tem grandes vantagens, e nem o Governo central, principalmente
em países extensos e pouco povoados, pode administrar tudo. É preciso ir
educando o povo, habituando-o pouco a pouco, a gerir os seus negócios"
[Sousa, 1960: 404-405].
Sintetizando:
Paulino advogava por um direito administrativo centralizador, como o francês,
que na sua aplicação, no entanto, estivesse pedagogicamente aberto à prática
do self government. "Isto não tira que seja possível e
muito conveniente, —frisava o estadista do Império—, no desenvolvimento e
reforma das nossas instituições administrativas, ir dando (à sociedade), (a)
parte de self government que (as instituições) encerram, mais
alguma expansão temperada com ajustados corretivos, habituando assim o nosso
povo ao uso de uma liberdade prática, séria e tranqüila, preservando sempre o
elemento monárquico da Constituição, porque, por fim de contas, é para aqueles povos
que nela nasceram e foram criados, essa forma de governo, rodeada de garantias
e instituições livres, a que melhor pode assegurar uma liberdade sólida,
tranqüila e duradoura" [Sousa, 1960: 412]. Proposta de autêntico liberalismo
conservador, como a defendida pelos doutrinários, notadamente Guizot.
Na sua
análise da realidade brasileira, Paulino Soares de Sousa adotava como pano de
fundo a perspectiva histórica proposta por Guizot. O grande problema no estudo
da nossa realidade, considerava Paulino, é o fato de os estudiosos
esquecerem-se da própria realidade. A propósito, escreve: "Tive muitas
vezes ocasião de deplorar o desamor com que tratamos o que é nosso, deixando de
estudá-lo, para somente ler superficialmente e citar coisas alheias, desprezando
a experiência que transluz em opiniões e apreciações de estadistas nossos"
[Sousa, 1960: 8]. A perspectiva histórica identificada com o conhecimento das
próprias raízes (que, como vimos no item 1, inspirou a Guizot na elaboração das
soluções institucionais para a França do seu tempo), era também a perspectiva
adotada por Paulino. "É preciso, frisava ele, primeiro que tudo estudar e
conhecer bem as nossas instituições, e fixar bem as causas porque não
funcionam, ou porque funcionam mal e imperfeitamente. Convém muito o estudo e o
conhecimento todo que sobre elas pensaram os nossos homens de Estado, e o dos
fatos próprios do país que podem esclarecer o assunto" [Sousa, 1960: 12].
Sobre esta base histórica de conhecimento das próprias origens, ardentemente
defendida por Paulino Soares de Souza e os demais estadistas do Império,
alicerçar-se-ia a etapa posterior da emergência da sociologia brasileira, com
Silvio Romero e Oliveira Vianna, na adoção do método monográfico. Paulino e os
restantes "homens de mil" do Segundo Reinado foram, assim, os
precursores da ciência social desenvolvida pelos seguidores do
"culturalismo sociológico".
De forma
semelhante a como Guizot entendia a civilização ocidental como uma luta entre
os princípios de liberdade e de ordem, Paulino concebia a nossa vida política
como pautada por dois grandes princípios jurídicos, contrapostos, mas
complementares: aquele que consolidava os direitos individuais em face do
Estado (chamado de direito público interno ou constitucional) e aquele que garantia
o funcionamento do Estado (chamado de direito administrativo). Paulino definia
o direito constitucional oupolítico como aquele
que compreendia "aquelas matérias que constituem o chamado direito público
propriamente dito" e que tem como finalidade garantir "a
inviolabilidade dos direitos civis e políticos, que têm por base os direitos
absolutos que derivam da mesma natureza do homem, e se reduzem a três pontos
principais, a saber: liberdade, segurança individual e propriedade". Já
o direito administrativo era definido por ele como "a
ciência da ação e da competência do Poder Executivo, das administrações gerais
e locais, e dos Conselhos Administrativos, em suas relações com os interesses ou direitos dos
administrados, ou com o interesse geral do Estado" [Sousa,
1960: 18-19].
O
equilíbrio entre ambas as ordens de direito, a constitucional e a
administrativa, exige que, do ponto de vista da legislação, não se fixem apenas
os direitos dos cidadãos, mas também os seus deveres (correspondentes aos
direitos da sociedade). A respeito deste atualíssimo ponto (o problema da nossa
Constituição de 1988 é justamente a hipertrofia dos direitos do cidadão
esquecendo os seus deveres), escrevia Paulino: "É necessário também que a
legislação não se limite a estabelecer e a proteger direitos, é também preciso
que fixe e defina bem as obrigações. Um dos grandes erros observa Laferrière,
da Assembléia Constituinte da França, seguido em outros países inexperientes
que a tomaram por modelo, consistiu em ter protegido mais os direitos do homem
do que os da sociedade, e em ter desconhecido e estabelecido com timidez a
união indispensável e fundamental do direito e do dever. É agradável ter
somente direitos, e os aduladores do povo fogem de falar-lhe em deveres. A
legislação inglesa e americana ocupam-se especialmente em fixar os
deveres" [Sousa, 1960: 406-407].Na formulação dessa dupla vertente
(direitos e deveres do cidadão), Paulino alicerça-se em Guizot, fazendo
referência ao seguinte texto extraído de Mémoires pour servir à l'histoire
de mon Temps: "Duas idéias constituem os dois grandes caracteres da
civilização moderna e lhe imprimem o seu formidável movimento; sintetizo-os
nestes termos: —há direitos universais inerentes unicamente à condição humana e
que nenhum regime pode legitimamente recusar a homem nenhum—; há direitos
individuais que decorrem unicamente do mérito pessoal de cada homem, sem levar
em consideração as circunstâncias exteriores do nascimento, da fortuna, ou da
posição social, e que todo homem que os porta em si mesmo deve ter a
possibilidade de desenvolver. O respeito legal aos direitos gerais da
humanidade e o livre desenvolvimento das capacidades naturais, desses dois
princípios, bem ou mal entendidos, têm decorrido ao longo do último século os
bens e os males, as grandes ações e os crimes, os progressos e os descaminhos
que ora as revoluções, ora os governos mesmos têm feito surgir no seio das
Sociedades Européias" [Sousa, 1960: 448, nota 8].
Fazendo-se
eco do hegelianismo soft que inspirava a Guizot, Paulino
considera que os grandes atores da história não são, no século XIX, apenas os
indivíduos, mas também, e de forma decisiva, as massas. Um governo que olhe
apenas para a perspectiva individual, não consegue atingir o seu escopo. A nota
caraterística da política moderna consiste em levar em consideração a
perspectiva das massas, pois é nelas que passou a residir a força e a
legitimidade dos governos.
Eis a
forma em que o estadista brasileiro fundamentava o seu pensamento a respeito
deste ponto: "Os seguintes profundos trechos de M. Guizot —Des moyens
de gouvernement— explicam e completam o meu pensamento. Quando se
considera o poder, não isolado e em si mesmo, mas na sua relação íntima com a
sociedade, a sua ação apresenta-se sob um duplo aspecto. Ele deve tratar, de um
lado, com essa massa geral de cidadãos que ele não vê, mas que o sofrem, o
sentem e o julgam; de outro lado, com indivíduos que tal ou qual causa aproxima
de si e que estabelecem com ele uma relação pessoal ou direta, já se trate de
que eles lhe sirvam nas suas funções, ou de que ele próprio sinta necessidade
de se servir de sua influência. Agir sobre as massas e agir através dos
indivíduos, é isso que se chama governar. Dessas duas partes do governo, o
poder é inclinado a negligenciar a primeira. Fraco e pressionado, é absorvido
pelo trabalho de tratar com os indivíduos. Nada mais comum do que vê-lo
esquecer que há um povo no qual vai terminar parando tudo quanto ele faz. Dos
erros do poder, esse é sobre tudo o mais fatal, pois é nas massas, no povo
mesmo que ele deve encontrar a sua força principal, os principais meios de
governo. O público, a nação, o país, é lá que reside a força, lá que é possível
conseguí-la. Tratar com as massas, essa é a grande mola do poder. Em seguida
vem a arte de tratar com os indivíduos; arte necessária, mas que, sozinha, de
nada vale e produz pouco efeito" [apud Sousa, 1960: 502-503].
C - A
ética pública de Guizot e de Paulino José Soares de Sousa.
Não são
poucas as novidades que nos apresentam Guizot e os doutrinários, no seu
arrazoado acerca das condições históricas da França de meados do século XIX. Da
mesma forma, são muitas as lições de ciência política que podemos tirar da
leitura do Ensaio sobre o Direito Administrativo de Paulino Soares
de Sousa. Gostaria de terminar estas reflexões destacando um ponto que me
parece essencial no pensamento de ambos os autores: o seu conceito de ética
pública. Quatro aspectos podem ser assinalados (tanto em Guizot como em
Paulino):
Em
primeiro lugar, o imperativo categórico do governante consiste em transformar
as instituições do seu país, para garantir aos seus concidadãos, de maneira
eficaz, o exercício da liberdade, no contexto do estudo diuturno das tradições
históricas da nação.
Em
segundo lugar, é necessário que o governante, na sua ação, não se perca na
perspectiva individual, mas que enxergue sempre e sem vacilação o fundo que
constitui a essência da legitimidade política: a vontade das massas. O folclore
político resumiu esse ideal no princípio de "ouvir o clamor das
ruas".
Em
terceiro lugar, cabe ao governante o compromisso pedagógico de formar, mediante
a educação cívica, a consciência do bem público nos seus governados, de forma
que eles não reivindiquem apenas os seus direitos, mas que acordem, também,
para os seus deveres. No sentir de Guizot, essa tarefa traduzia-se em acordar
nas classes médias a consciência da sua responsabilidade histórica. Algo
semelhante pensava o visconde de Uruguai: tratava-se de formar, a partir de um
eleitorado censitário, um núcleo disciplinado ao redor da idéia de nação e
sensível às demandas do bem público.
Em quarto
lugar, não há na caminhada histórica da sociedade um final utópico, em que
todas as contradições sejam resolvidas. O processo de luta de classes permanecerá
como caraterística essencial à vida política. O que Guizot e Paulino destacam é
que essa luta pode ser civilizada pelo debate parlamentar e pela prática, cada
vez mais aperfeiçoada, da representação. Aqui radica a diferença fundamental
entre liberais e socialistas. Estes últimos terminaram acreditando no "fim
utópico da história", na conquista de um paraíso em que desaparecesse a
luta pela defesa dos próprios interesses.
Muitas
coisas poderíamos escrever acerca da tremenda atualidade da ética pública
apresentada por Guizot e adotada por Paulino José Soares de Sousa. Reste
apenas, expressar o nosso sentimento de admiração em face desses grandes
pensadores-estadistas, que conseguiram encarnar o princípio da moral de
responsabilidade no momento histórico em que viveram.
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[Este texto fui
especialmente elaborado, em 2004, para o Proyecto Ensayo Hispánico, da
Universidade de Georgia, Estados Unidos. A parte correspondente ao pensamento
de François Guizot fui tirada do artigo de Ricardo Vélez Rodríguez titulado:
“François Guizot e a sua influência no Brasil”, publicado em Carta Mensal, Rio de
Janeiro, vol. 45, no. 536, novembre de 1990: pg.41-60].
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