O mando político, no
mundo hispânico, foi tradicionalmente entendido como patrimônio pessoal do
governante -- uma extensão do poder
doméstico -- e nisso consiste o aspecto
nuclear da dominação patrimonial. Despojado de sua dimensão pública, o poder, nos moldes do patrimonialismo,
constitui “um direito próprio (do soberano) apropriado em igual forma que
qualquer outro objeto de possessão”(l).
1)
Aspectos estruturais do patrimonialismo o centralismo
Ao analisar o
processo histórico de formação dos Estados modernos, assinala Weber que a
dominação patrimonial tende a florescer nos países de fraca tradição feudal.
Neles, o Estado moderno consolidou-se como poder concentrado nas mãos do
monarca, pela inexistência ou insignificância de poderes paralelos, como na
Rússia ou na China. Diversa é a fisionomia política de países como a
Inglaterra, cujos Estados se organizaram na esteira de uma tradição de desconcentração
do poder, característica do feudalismo (2). Com efeito, o poder feudal dos
grandes proprietários rurais obrigava o monarca a fazer concessões em favor dos
súditos que, em última análise, reduziam
e desconcentravam o poder central, facilitando a futura evolução dessas sociedades ao regime
democrático-representativo. Em países como Espanha e Portugal, e igualmente nas
suas possessões latino-americanas, a nobreza agrária jamais teve força para se contrapor ao poder central; ao
contrário, os senhores de terras
atuavam, a nível local, como delegados
desse poder e com ilimitada autoridade dentro de seus domínios.
A dominação
patrimonial consiste, pois, num tipo de
organização política estruturalmente centralizada. Seu principal alicerce é o estamento
burocrático, segmento social encarregado de assegurar o império do poder, mediante o controle de todos os domínios da
vida social. Dependentes do favor do soberano,
os cargos burocráticos são distribuídos como forma de arregimentação e
apoio ao poder patrimonial, fenômeno que poderíamos chamar de prebendalização
da administração (expressão empregada por Fernando Uricoechea ao referir-se aos
métodos administrativos da Coroa portuguesa no Brasil, na sua obra intitulada O minotauro imperial (3). Como observa
Weber, “toda nova função administrativa apropriada pelo soberano patrimonial
significa uma elevação de seu poderio e da sua importância ideal, e cria ao
mesmo tempo novas prebendas para os seus funcionários”(4).
Dentre os domínios da
vida social a serem controlados pelo
estamento burocrático sobressai o econômico. Complementando e aprofundando os
estudos de Weber, o sociólogo Karl Wittfogel realizou, em l957, uma análise do fenômeno patrimonialista nas
chamadas ”sociedades hidrâulicas”, onde a existência de uma administração
fortemente centralizada está associada à
necessidade de criação de uma infra-estrutura de controle da água e de
irrigação, imprescindível ao desenvolvimento agrícola. Nessas sociedadces,
afirma Wittfogel, a organização política sofreu os influxos do “despotismo
oriental”, com o estabelecimento de uma economia directorial, rigidamente
controlada pelo Estado (5).
Em resumo, as características fundamentais do
patrimonialismo, do ponto de vista estrutural, seriam: a) estrutura política
altamente centralizada; b) burocratização do Estado, de caráter prebendalista,
necessária à sustentação do poder patrimonial; c) organização de uma economia
“directorial” (em grande parte dos Estados patrimonialistas).
2) As relações Estado-Sociedade no
contexto do Patrimonialismo brasileiro: o estatismo
O traço mais evidente no relacionamento entre Estado e Sociedade, no contexto do
Patrimonialismo brasileiro, é o estatismo,
que definimos como a tendência a
considerar o Estado como princípio ordenador da Sociedade . Entregue às
suas próprias forças, a sociedade fatalmente sucumbiria a conflitos e
contradições internas, num processo gradativo de auto-degenerescência. Apenas o
controle exercido por um poder autoritário, de caráter burocrático, poderia
salvá-la do caos e do amorfismo. Dar forma orgânica a uma sociedade informe,
como se fosse a cabeça de um organismo vivo,
eis a suprema função do Estado.
O predomínio do
estatismo no relacionamento entre a Sociedade e o poder vem associado a inúmeros
aspectos de nossa formação social e política. Vejamos alguns deles:
2.1-
Auto-suficiência do poder.-
Exercido como um direito próprio, o poder firma-se como uma instância
auto-suficiente, que prescinde do concurso da nação para afirmar-se como
legítimo. Não representa um desdobramento natural da vontade coletiva, mas uma
realidade que encontra em si mesma a fonte da própria justificação. Raimundo
Faoro, um dos expoentes da escola
weberiana brasileira, assim descreve
o caráter patrimonial de nossa organização política: “O grupo dirigente não
exerce o poder em nome da maioria mediante delegação ou inspirado pela
confiança que do povo, como entidade global, se irradia. É a própria soberania
que se enquista, impenetrável e superior, numa camada restrita, ignorante do
dogma do predomínio da maioria. (...) A minoria exerce o governo em nome
próprio, não se socorre da nação para justificar o poder, ou para legitimá-lo,
jurídica e moralmente” (6).
Nessas
circunstâncias, torna-se inevitável o confronto
entre os donos do poder e as forças ou instituições civis que estejam
eventualmente empenhadas em garantir a própria autonomia em face do Estado. Já
dizia Weber que o soberano patrimonial
“deve suspeitar como anti-autoritária de toda dignidade e de qualquer sentimento
de dignidade proveniente dos ‘súditos’ ”(7).
2.2-
Raquitismo da vida civil.- A
persistência da dominação patrimonial durante séculos seguidos, condenou nossa
vida social ao raquitismo. Acostumada à onipresença de um poder que sempre
primou em tutelar autoritariamente as relações sociais, determinando, de cima para baixo, padrões rígidos de convivência, a nação
acabou perdendo a capacidade de articular os próprios interesses e de criar
expressões políticas condizentes com um projeto de vida coletiva. Assim, o
perfil histórico da sociedade brasileira, configurado desde a época colonial,
assemelha-se a um organismo invertebrado, sem energia e vontade próprias. Ao
verberar a monarquia cartorial portuguesa, lembra Faoro: “Essa monarquia,
acostumando o povo a servir, habituando-o à inércia de quem espera tudo de
cima, obliterou o sentimento instintivo
de liberdade, quebrou a energia das vontades, adormeceu a iniciaitiva; quando
mais tarde lhe deram a liberdade, não a compreendeu; ainda hoje não a compreende, nem sabe usar dela...”(8).
Grandes
transformações sociais e políticas do país foram induzidas pelos grupos
detentores do poder do Estado, ainda que por vezes rotuladas como conquistas
populares: a Independência, a Abolição, aRepública, a Legislação Trabalhista,
entre outras. Trata-se, em síntese, do
fenômeno damonopolização da iniciativa política pelo Estado. “Onde há atividade
econômica -- observa Faoro -- lá estará o delegado do rei, o funcionário,
para compartilhar de suas rendas, lucros, e, mesmo, para incrementá-la. Tudo é
tarefa do governo, tutelando os indivíduos, eternamente menores, incapazes ou
provocadores de catástrofes, se entregues a si mesmos”(9).
2.3-
Insolidarismo.- A reduzida capacidade associativa, fenômeno típico da
nossa história desde os tempos coloniais,
resulta não apenas do isolamento geográfico, mas sobretudo, do estatismo
que domina o meio social brasileiro. A tutela estatal acaba por inibir as
inclinações que levam o indivíduo a associar-se ecriar núcleos comunitários em
defesa de seus interesses. Na medida em que se arroga o direito de controlar as
atividades de grupos e instituições, e até mesmo de dar-lhes origem, o Estado
os converte em meros prolongamentos do oficialismo, desprovidos de efetiva
capacidade de mobilização, de autonomia e vontade própria. Tal seria o caso da
estrutura sindical brasileira, montada pelo Estado a partir dos anos 30.
Há, sem dúvida,
algumas formas de solidariedade praticadas tradicionalmente entre nós, como o
mutirão. Mas são esporádicas e, em geral, revestem-se de caráter afetivo. O
mutirão é representativo de um tipo de solidariedade apenas individual -- ou interindividual - . Não se trata de uma forma de solidariedade
social, que mantém os indivíduos permanentemente vinculados entre si, em
virtude de objetivos comuns. Em sua
obra Raízes do Brasil , Sergio Buarque de Holanda assinala que seria
ilusório querer ver em atividades coletivas como o mutirão “alguma tendência
para a cooperação disciplinada e constante.
De fato, o alvo material do
trabalho em comum importa muito menos,
nestes casos, do que os sentimentos e inclinações que levam um indivíduo
ou um grupo de indivíduos a socorrer o vizinho ou amigo precisando de
assitência”(10).
Por sua vez, ao
estudar a realidade colonial brasileira à luz do pensamento de Ortega y Gasset,
Gilberto de Mello Kuyawski chama a atenção para a limitada vigência de um
“sistema de usos” entre nós: “a sociedade será tanto mais sociedade, quanto
mais integrada estiver em seu sistema de usos, às imposições coletivas,
impessoais, que encerram a substância do social. A coletividade mal integrada
no seu sistema de usos, na qual esse sistema quase não pressiona
espontaneamente os indivíduos e os grupos, cingindo de modo frouxo o corpo
social, será coletividade de estrutura fluida eflexível, sem os traços
essenciais da coação e rigidez que definem o fenômeno social” (ll). Ora, a
inconsistência de usos no Brasil, em particular dos usos mentais, se vincula
justamente ao vezo estatista que afeta historicamente o nosso corpo social.
2.4-
Privatização da coisa pública.- Como
já estabelecemos, o poder do Estado, no contexto do patrimonialismo, é
apropriado como coisa privada. Daí à entronização dos interesses privados na
gestão da coisa pública, vai apenas um passo. Sendo eminentemente pessoal a
forma pela qual são atendidos os interesses,
não se criam condições propícias à sua conciliação no seio das instituições representativas. Quer
dizer: o atendimento aos interesses se faz de modo clientelístico, à margem do
sistema representativo, cuja essência consiste exatamente em estabelecer um
processo legal para convertê-los em decisões públicas. “Em lugar da
objetividade burocrática e do ideal baseado na validez abstrata do mesmo
direito objetivo, que tende a governar sem acepção de pessoas, -- escreve Max Weber -- impõe-se o princípio justamente oposto. Tudo
se baseia então, completamente, em considerações pessoais, quer
dizer, na atitude assumida frente aos
solicitantes concretos e frente às circunstâncias, censuras, promessas e
privilégios puramente pessoais”(12).
A falta de espírito
público tem sido uma constante na nossa vida política. Séculos de estatismo patrimonial tem-nos
dificultado vislumbrar, acima de
particularismos individuais ou grupais, o interesse coletivo. Gilberto de Mello
Kuyawski chama a atenção paraa nossa incapacidade de entender o caráter
impessoal do Estado e das Leis, que nos impele a “conservar em todas as
situações da vida pública a linguagem própria
às relações da vida interindividual, próprias do trato entre parentes, amantes
e amigos (...). Essa resistência íntima do individual a ser absorvido pelo
social resulta em alguns frutos benéficos,
mas atesta, por outro lado, a
incopetência do homem colonial para se realizar com plenitude na vida pública,
sua inaptidão para instalar-se devidamente no seio da vida social, numa palavra,
sua imaturidade histórica e cultural”(13).
II - Aspectos históricos
1) O Estado português e a colonização
do Brasil
Desde os seus
primórdios, o Estado português se
estruturou como uma organização patrimonial-burocrática de caráter
fiscalista. Suas origens são
essencialmente agrárias: as lutas movidas contra os sarracenos acarretaram a
incorporação das terras reconquistadas ao patrimônio da Coroa, três vezes maior
que o da nobreza. Esse processo de incorporação chamava-se de presúria. Tendo surgido antes mesmo que a sociedade
civil tivesse se desenvolvido e articulado políticamente, o Estado não pôde criar sua burocracia
própria. Teve, assim que recorrer à colaboração da aristocracia agrária para
consolidar seu domínio sobre o território, oferecendo-lhe concessões e
vantagens diversas em troca de seus serviços e, sobretudo, de sua lealdade. Em
conseqüência, os senhores de terras tornaram-se dependentes do rei, e jamais
representaram ameaça séria à sua soberania.
As atribuições desse
rudimentar estamento pré-burocrático, assim cooptado, consistiam na
administraçào das rendas provenientes do
patrimônio rural da Coroa e na cobrança de tributos de toda ordem, destinados
ao consumo ostentatório da corte e dos respectivos áulicos. Esta mentalidade
fiscalista, improdutiva e parasitária
por excelência, uma vez que se limita ao simples ato de recolhimento de rendas
e tributos, permeava todo o expansionismo mercantil de Portugal nas possessões
ultramarinas, como o Brasil.
A colonização
brasileira foi orientada pela Coroa, que inclusive estimulou o povoamento do
território com inúmeros incentivos. A
exploração comercvial , é claro, não foi exercida diretamente pelo rei, mas
atrav’]es de concessões a particulares, que tinham a posse e usufruto perpétuos
sobre prebendas territoriais: as capitanias.
Duas eram as obrigações fundamentais dos capitães-mores (prebendários): proteger
o monopólio real, sem custos para a Coroa, através da administração de suas
terras, obrigação que incluía a organização de milícias patrimoniais e a
exploração econômica das terras. Ao rei cabia, em contrapartida, o direito de
recolher diversas rendas e tributos tanto dos prebendários como de seus
colonos. Os senhores da terra eram, assim, ao menos formalmente,
funcionários reais, com poderes
delegados pela Coroa.
A incapacidade dos
prebendários em manter os bens dacolônia a salvo da cobiça de outrospovos, bem como as tendências privatizantes e
centrífugas manifestadas em alguns deles, forçaram a substituição do sistema de
capitanias hereditárias pelos governos-gerais. Algumas das funções
administrativas foram subtraídas aos senhores de terras -- como as fiscais e judiciárias -- e transferidas ao incipiente estamento
burocrático formado já durante o primeiro governo-geral. As funções militares
de defesa, contudo, continuaram a ser exercidas pelos chefes dascapitanias
(governadores). De certo modo, a instituição dos govenos-gerais correspondeu
à necessidade de maior racionalização e controle das riquezas aqui produzidas.
Como observa Faoro, “(...) olhos
vigilantes, desconfiados, cuidavam para que o mundo americano não esquecesse o
cordão umbilical, que lhe transmitia a força de trabalho e lhe absorviaa
riqueza. O rei estava atento ao seu negócio”(14).
2) O Estado no Brasil
Por tudo
isso, o Estado -- como sistema de poder
organizado -- configurou-se no Brasil
antes que a sociedade civil estivesse sequer fisicamente organizada, quando da
instalação do primeiro governo geral. João Camilo de Oliveira Torres afirma que
tivemos Estado antes de termos povo: “O Brasil oficialmente entrou a existir
quando D. João III, o Povoador, nomeou
Tomé de Souza governador-geral do Brasil.Este fidalgo chegou à Bahia trazendo
uma espécie de Constituição para o país, o famoso Regimento do Governo, um
ministro da Justiça (o ouvidor-mor), um ministro da Fazenda (o provedor-mor), o
poder espiritual, no clero, soldados, e fundou a cidade de Salvador, que logo
passou a ter, inclusive, uma câmara municipal. Era o Estado do Brasil, que
nascia com todos os órgãos que um governo que se preza deve ter. Notava-se,
apenas, uma ligeiraausência, uma sombra no conjunto: não havia povo (...). A
História tem conhecido casos de precedência ontológica do Estado ao povo - mas,
ao povo como entidade organizada, a res publica dos antigos. Sempre havia uma
espécie de miltidão, amorfa e difusa, sobre a qual a autoridade se exerceria,
consolidando o poder. Mas, no Brasil, o fato realmente espantoso era o da
precedência física do Estado ao povo; não havia, a rigor, ninguém para ser
governado pelo nosso estimável Tomé de Souza” (15).
Distante dos
núcleos populacionais que, com o correr dos anos foram-se espalhando pelo
imenso território, o Estado tornou-se uma organização político-burocrática
fria, sem grandes vinculações com a realidadesocial. A legalidade racionalmente
definida pelo Estado contrapunha-se aos usos e costumes locais, um corpo
estranho em relação à “legalidade”consuetudinária imperante nos agrupamentos
sociais dispersosno ambiente geográfico. “Não estranha -- escreve Oliveiros S. Ferreira - que antes de a Nação configurar-se pelo
desenvolvimento da solidariedade e pela eliminação da ‘soledad’, o Estado -- considerado como estrutura de dominação
abarcando todo o território -- tenha
estabelecido sua marca profunda e, ao afirmar a unidade necessária a seus
propósitos europeus, se haja constituído
para cada um desses núcleos, (...) no Objeto negatório e constrangedor”(16).
O fator
básico do mandonismo local era o isolamento em que viviam as comunidades
rurais. As quase intransponíveis dificuldades de comunicação eram ainda
agravadas pela proibição do comércio inter-regional que, se autorizado e
estimulado pela Metrópole, teria contribuído para revigorar os contatos entre
os diversos núcleos populacionais. O que havia, então, era um verdadeiro “arquipélago mudo”, na
expressão de João Camilo.
O poder
político existente a nível local não resultava da vida em sociedade. Era, de um
lado, conseqüência do poderio econômico dos grandes proprietários rurais e, de
outro, da ausência ou rarefação do poder régio. Conhecidos como “homens bons”,
eles controlavam as áreas sob seu domínio através das câmaras municipais. A
respeito, escreve Victor Nunes Leal: “As câmaras municipais exerceram imenso
poder, que se desenvolveu à margem dos textos legais e muitas vezes contra
eles(...). A massa da população,
composta em sua grande maioria de escravos
e de trabalhadores chamados livres, cuja situação era de inteira
dependência da nobreza fundiária, também nada podia contra esse poderio
privado, ante o qual se detinha, por vezes,
a própria soberania da Coroa”(17).
Esta forte
autonomia das câmaras municipais iria perdurar até meados do século XVII,
quando a Coroa, através de seus
agentes -- juízes de fora, ouvidores, governadores -- foi aos poucos submetendo ao seu poder as
diversas formas de mandonismo local. A vinda da família real para o Brasil e a
nossa independência foram fatores que contribuíram decisivamente para arrefecer
o poder privado e, ao mesmo tempo, consolidar o poder do Estado.
Contudo, não
só o governo colonial, mas o imperial e republicano, jamais deixaram de reconhecer, no poder
local, fortes esteios de sustentação
política, aspecto, aliás, típico da feição patrimonialista do Estado
brasileiro, segundo a qual cabia ao chefe local exercer o papel de autoridade
delegatória de funções patrimoniais (18).
Durante o
período da República Velha, marcado pelo fenômeno do coronelismo, reforçou-se a capacidade de barganha dos
grupos oligárquicos locais, em função
dos largos contingentes eleitorais que tinham sob seu domínio. Para Nunes Leal,
em todos os graus das escala política imperava um sistema de reciprocidade: “de
um lado, os chefes municipais e os coronéis
, que conduzem magotes de eleitores,
como quem toca tropa de burros; de outro lado, a situação política dominante no
Estado, que dispõe do erário, dos empregos, dos favores e da força policial,
que possui, em suma, o cofre das graças
e o poder da desgraça”(19).
A formação
política brasileira contrasta com o fenômeno ocorrido nos Estados Unidos da
América. A grande experiência histórica norte-americana, no campo político,
realizou-se no âmbito do governo local, a n[ivel das comunas e dos condados.
Nestes, o poder público estruturou-se
pelo desenvolvimento da capacidade associativa espontânea de seus habitantes,
num sistema de ampla participação política. As autoridades locais, eleitas pelo
voto popular, não constituíam, via de
regra, grupos oligárquicos fechados. Do
crescimento da soberania popular a nível local, regional e finalmente nacional, resultou o
processo de emancipação política norte-americano.
Em 1835,
Alexis de Tocqueville escrevia, na sua obra A
democracia na América : “É nas leis
de Connecticut, como em todas as da Nova Inglaterra, que se vê nascer e
desenvolver essa independência comunal que,
ainda hoje em dia, constitui como
que o princípio da vida e da liberdade americana. Na maior parte das nações européias, a existência política começou pelas regiões
superiores da sociedade e se comunicou, pouco a pouco, e sempre de maneira
incompleta, às diversas partes do corpo
social. Na América, pelo contrário,
pode-se afirmar que a comuna foi organizada antes do condado, o condado antes do Estado, o Estado antes da União. (...) Em torno da
individualidade comunal vêm agrupar-se e ligar-se fortemente interesses, paixões, deveres e direitos. No seio da
comuna, vê-se reinar uma vida política
real, ativa, inteiramente democrática e republicana. As colônias reconhecem
ainda a supremacia da metrópole; é da
monarquia que vem a lei do Estado, mas já se acha a república inteiramente viva
na comuna. A comuna nomeia os seus
magistrados de todos os gêneros; fixa seus próprios impostos, cobra e distribui
a receita. Na comuna da Nova Inglaterra,
a lei de representação jamais é admitida. É em praça pública e no seio da
assembléia geral dos cidadãos que se
debatem, como em Atenas, os assuntos que dizem respeito ao interesse de
todos”(20).
3) A vertente
modernizadora do patrimonialismo
O Estado patrimonial, na tradição
luso-brasileira, modernizou-se a partir de meados do século XVIII. O fenômeno
do patrimonialismo modernizador tem recebido particular atenção de autores
pertencentes à escola weberiana brasileira
, sobretudo de Simon Schwartzman e
Antônio Paim. Raimundo Faoro, na sua
obra, já citada, Os donos do poder, restringiu-se à análise do modelo
patrimonialista tradicional. Já Paim, em A
querela do estatismo, procurou
caracterizar o patrimonialismo modernizador como uma vertente sui generis
da concepção patrimonialista do poder, retomando os elementos fundamentais da
obra de Faoro e Schwartzman. Por esta razão, seguiremos neste estudo as linhas
gerais da obra de Paim.
Também
prevalece, no patrimonialismo modernizador, aquela concepção tradicional de
Estado organizado de forma análoga ao poder doméstico do governante, isto é, o
poder como res privata. A
diferença fundamental entreos dois tipos de patrimonialismo reside no fato de
que o modernizador abriga pressupostos ideológicos que não aparecem no
tradicional, como a crença na possibilidade de uma “política científica” -- uma
nova concepção em termos de organização e exercício do poder.
3.1 - Origem e desenvolvimento da vertente
modernizadora: as reformas
pombalinas.- Coube ao Marquês de
Pombal, no século XVIII, o mérito de ter dotado o Estado patrimonial
português de perdurável movimento
modernizador. Sua obra, que teve como finalidade inserir Portugal na
Ilustração, consistiu basicamente em assumir um ponto de vista cientificista, a
partirdo qual se iniciou vasta tarefa reformadora, nos campos econômico, político e do ensino . Assim caracteriza Antônio Paim a obra de
Pombal: “A peculiaridade da mensagem pombalina consiste, em primeiro lugar, em ter difundido a
crença de que a ciência (entendida como
sinônimo de ciência aplicada) é o meio hábil para a conquista da riqueza. E,
além disto, em ter nutrido a
suposição de que a ciência não corresponde
apenas ao processo adequado de gerir e
explorar os recursos disponíveis, mas igualmente de inspirar a ação do governo
(política) e asrelações entre os homens
(moral)” (21).
Considerada a
obra reformadora do Marquês de Pombal, no ãmbito da modernização que incutiu no
seio do Estado português, podemos
avaliá-la como a substituição da
crença nas tradições religiosas (até
então mantidas ciosamente pela Igreja, através das Ordens religiosas e da
Inquisição, e que exerciam as funções de sustentáculo do poder patrimonial do
monarca), pela crença na validade da ciência como fundamento do mesmo poder
patrimonial. Configurar-se-ia, assim, sob Pombal, uma forma de dominação
patrimonial modernizadora, ou, em outros termos, uma modalidade de despotismo esclarecido.
Quatro
elementos podemos salientar no esforço modernizador de Pombal: em primeiro
lugar, a Academia dos Ericieira, a que pertencera Pombal e que desenvolveu, no
seio da mentalidade portuguesa, a idéia da modernização da cultura, mediante uma abertura às demandas da
Ilustração, bem como a preocupação pela modernização da economia, mediante o
desenvolvimento da indústria. Em segundo lugar, cabe mencionar as novas idéias
pedagógicas cujo máximo expoente foi Luiz Antônio Verney, e que contribuíram para difundir
o ideal da reforma do ensino baseada na ciência moderna. Os outros dois
elementos que podemos assinalar na reforma pombalina são de caráter
institucional, e correspondem às duas primeiras realizações do Marquês nos campos educacional e político: de um
lado, temos a reforma da Universidade de Coimbra, que no sentir de Hernani Cidade “foi
verdadeiramente a criação de uma nova Universidade”(22). De outro lado, temos a organização do Colégio dos Nobres de Lisboa
(1761), que correspondeu à exigência de dotar o Estado patrimonial português de
uma elite burocrático-técnica que garantisse a sua modernização.
Em que pese o
caráter modernizador da reforma pombalina, ela em nada modificou o esquema
concentrado do poder patrimonial;não surgira, então, da queda do absolutismo
teocrático um regime de democracia representativa, como tinha acontecido na
Inglaterra após a Revolução Gloriosa de 1688. Apareceu, assim, como alternativa
modernizadora, no seio dacultura lusa, o despotismo ilustrado ou patrimonialismo
modernizador. As idéias fundamentais deste manifestaram-se, ao longo do
Império, principalmente na criação da
Real Academia Militar (1810), cujo artífice foi um ex-aluno da Universidade
pombalina: o conde de Linhares, D. Rodrigo de Souza Coutinho (1755-1812). A
finalidade da Academia consistia em garantir a formação científica deoficiais
do exército e engenheiros. “O curriculo da Academia Militar -- escreve Paim -- e através dela o ideario pombalino , seria
preservado ao longo do Império. Outras influências se fizeram presentes,
sobretudo nas Faculdades de Direito eMedicina, como de resto na esfera
política. Contudo, no estabelecimento que daria origem à Escola Politécnica, mantinha-se o culto da
ciência namesma situação configurada pelo Marquês de Pombal, isto é, nutrindo a suposição de que é competente em
todas as esferas da vida social”(23).
A experiência
parlamentarista ao longo do Império, permitiu uma certa desconcentração do
poder patrimonial, o qual, de outra
parte, deitava profundas raízes na
burocracia crescente, sendo a instituição da GuardaNacional um dos elos
fundamentais. Em que apese essa experiência de governo representativo, a elite
civil e militar que derrubou a Monarquia em 1889 esqueceu sumariamente a
práticada representação, interpretando-a simploriamente como metafísica liberal, dentro dos chavões em voga do
positivismo. O caminho estava, assim, aberto para a retomada da tradição do
patrimonialismo modernizador de inspiração pombalina, ao longo da vida republicana brasileira.
3.2 - O Castilhismo sul-riograndense.- Uma das primeiras manifestações da vertente
modernizadora do Patrimonialismo na República foi a experiência castilhista
sul-riograndense que, inspirando-se na
Constituição que Júlio de Castilhos (1860-1903)
escreveu para o Rio Grande em 1891, vingou ao longo de mais de três
decênios e influenciou definitivamente
na evolução do Estado brasileiro no presente século.
O Castilhismo
constitui fenômeno original de interpretação
da filosofia de Augusto Comte (1798-1857), fundador do Positivismo. A interpretação autoritária dos princípios
sociais e políticos do positivismo, porparte de Júio de Castilhos, se reveste
de especial importância, apartir do momento em que ela constitui um novo ideal
político, que foi testado na prática das instituições governamentais
sul-riograndenses durante três décadas, assumindo finalmente proporções
nacionais com a ascensão de Getúlio Vargas ao poder, em 1930.
A filosofia
política positivista baseia-se no pressuposto de que a sociedade caminha
inexoravelmente rumo à estruturação racional. Esta convicção e osmeios
necessários para a sua realização são alcançados mediante o cultivo da ciência
social. Ante tal formulação, são possíveis duas alternativas: ou empenhar-se na
educação dos espíritos para que o regime positivo se instaure como fruto deum
esclarecimento, ou simplesmente impor a organização positiva da sociedade por parte da minoria
esclarecida. Sustentou a primeira posição, principalmente, Luiz Pereira
Barreto, o que corresponde ao chamado “positivismo ilustrado”. A segunda foi a
alternativa de Júlio de Castilhos, seguido por Borges de Medeiros, no Rio
Grande do Sul, e por Pinheiro Machado e Getúlio Vargas, a nível nacional. Esta
última foi a versão da filosofia política de inspiração positivista que
prevaleceu, cujas repercussões se fazem sentir ainda hoje.
a) A
“pureza de intenções, pré-requisito
moral de todo governante.- Em contraste com a condição estabelecida por
Silvestre Pinheiro Ferreira, no sentido de que o Congresso, como organismo
máximo do governo, devia saber representar corretamente os interesses dos grupos ou classes
existentes na sociedade, Júlio de Castilhos entende como condição fundamental
do governante a absoluta pureza de
intenções , que se traduz numa ausência de interesses materiais. Assim, a moralidade do governante tem valor
de primeira magnitude, valor que é caracterizado por Castilhos como consistindo
numa “imaculada pureza de intenções”, que constitui, sem dúvida, o único mérito do verdadeiro estadista. A
respeito, escrevia Castilhos: “Se porventura me pode ser atribuíodo algum
mérito, este consiste unicamente na imaculada pureza de intenções com que tenho procurado tornar-me órgão
fiel das aspirações republicanas e devoto servidor do Rio Grande do Sul, minha
estremecida terra natal, que me domina pelo mais profundo afeto e que pode
exigir de mim todos os sacrifícios pessoais
pela sua felicidade”(25).
Arthur
Ferreira Filho sintetizou admiravelmente
a concepção castilhista da República como “regime da virtude”, com as
seguintes palavras: “Para Júlio de Castilhos,
a República era o reino da virtude. Somente os puros, os desambiciosos,
os impregnados de espírito público deveriam exercer funções de governo. No seu
conceito, a política jamais poderia
constituir uma profissão ou um meio de
vida, mas um meio de prestar serviços à coletividade, mesmo com prejuízo de
interesses individuais. Aquele que se servisse da política para seu bem-estar
pessoal, ou para aumentar sua fortuna, seria desde logo indigno de exercé-la.
Em igual culpa, no conceito castilhista, incorreria o político que usasse das
posições como se usasse de um bem de família (...). Como governante, Júlio de Castilhos imprimiu
na administração rio-grandense um traço tão fundo de austeridade que, apesar de tudo, ainda não desapareceu”(26).
b) Crítica
ao regime democrático-representativo.- Os castilhistas opõem-se
frontalmente à tradição
liberal-democrática oriunda do Império brasileiro, que privilegiava o exercício
da representação política pelo parlamento. No pensamento castilhista, o
liberalismo vem associado ao capitalismo e, em conseqüência, à excessiva valorização dos interesses
materiais. Como órgão de representação dos grupos que compõem a sociedade, o
parlamento tornaria impossível a realização do bem comum, fragmentando-o em ilimitados
interesses de caráter particularista. Daí a irônica expressão de um
deputado castilhista, chamando o sistema parlamentar de sistema “para
lamentar”. Se a única saída para a estruturação racional da sociedade é a
imposição de uma elite esclarecida, qualquer outro tipo de organização conduziria
ao caos político e social.
Víctor de
Britto caracteriza muito bem a concepção castilhista de política quando diz
que, para essa tradição, “A autoridade saída do consentimento geral dos povos
não passa de uma fórmula grotesca, cuja impotência e incapacidade para a solução dos magnos problemas oferecidos
pela civilização hodierna, dia a dia se vão afirmando na consciência dos
homens esclarecidos. A obsoleta democracia foi-se com a bancarrota da
metafísica. A sociedade precisa ser regida pelas mesmas leis, submetida aos
mesmos métodos positivos das matemáticas e da biologia. Isso de soberania
popular, de governo do povo pelo povo,
são conceitos vãos, criados para
estorvar a ação da autoridade no estudo das questões sociais, cuja solução só
se deve inspirar na necessidade
histórica e na utilidade pública”(27).
c) O bem público como imposição deum governo
moralizante.- À luz dos conceitos que acabamos de expor, estrutura-se o
conceito de bem público, para a
tradição castilhista. Assim como para os pensadores liberais o bem público
dava-se através da conciliação dos interesses individuais, conciliação que se
concretizava no parlamento, como organismo representativo daqueles interesses,
para Castilhos o bem público só poderia encontrar-se onde se achasse a essência
mesma da sociedade ideal, que ele entendia em termos do reinado da virtude. O bem
público confundia-se, para ele, com a imposição de um governo moralizante, que
fortalecesse o Estado em detrimento dos egoístas interesses individuais e que
velasse pela educação cívica dos cidadãos,
origem de toda moral social.
Para alcançar
a moralização da sociedade o governante deve exercer uma tutela sobre a mesma,
a fim de que ela se amolde à procura do bem público. Este papel educativo
caracteriza o estadista conservador ,
que, além de governante exemplar, deve ter a convicção do apóstolo e a
justiça do magistrado, para estabelecer o equilíbrio entre as forças sociais e
conseguir aharmonia entre a liberdade individual e a autoridade. A tradição
castilhista insiste em que opróprio povo procura esta liberdade sob tutoria.
Eis a forma em que Victor de Britto exprime essa idéia: “(...) O pobre povo (...)
só aspira a que o deixem viver em paz, com as parcelas de autonomia que a organização social lhe permite para a
harmonia possível entre a liberdade individual e a autoridade constituída
(...)”(28).
Os direitos
dos indivíduos estão a todomomento submetidos ao bem público; a legislação
também em função deste, de tal forma
que, nas épocas de perigo para a segurança do Estado no cumprimento da sua
missão moralizadora, o governo deve
orientar a sua conduta “(...) nos princípios fundamentais da ordem, segunrança, salvação, existência da
sociedade”. Segundo estes princípios, a legislação deve ser empregada nos casos
normais. Porém, quando se põe em perigo a segurança pública,
devem-se fechar todos os códigos “(...) para aplicar o texto vigoroso de uma
lei mais alta”, que diz relação à salvação coletiva. Vale a pena citar o texto de Pedro Moacyr, escrito quando
diretor de A Federação e um dos mais ardentes castilhistas. “Seja a
legislação empregada nos casos normais. Quando as situações, porém, se anormalizam,
máxime em caráter extremo, violento e decisivo
dos destinos de um povo, à autoridade é lícito, é indispensável fechar
as páginas de todos os códigos para
aplicar o texto vigoroso de uma lei mais alta, que é a mesma expressão da
harmonia social, a lei da conservação,
da salvação coletiva”(29).
Em
conseqüência, mais que das leis escritas
ou das constituições, a guarda do bem público depende do zelo e do
esclarecimento do governante iluminado pela ciência social e ornado com a pureza de intenções, que lhe permite superar o proveito individual
em prol da coisa pública. Neste sentido, como escreve Victor de Britto, “(...) O povo, dentro do qual estão (as) forças produtoras, é levado a
concluír que a questão de bem governar ou mal
governar não depende das constituições, mas, sim, dos homens, dos governantes; que mais vale agüentar
uma constituição, mesmo defeituosa, ou constituição nenhuma, desde que
o poder esteja nas mão de um homem
honesto, patriota e bem intencionado,
do que a mais bela composição escrita do liberalismo mais puro, entregue
a um ambicioso, a um degenerado, capaz de rasgá-la no primeiro momento de
impulsividade para satisfação de interesses inconfessáveis”(30).
3.3- A consolidação da vertente
modernizadora.
a) Vargas
e a ascenção do Castilhismo ao governo federal.- Getúlio Vargass formou-se
políticamente no seio do castilhismo. Desde muito jovem aderiu
fervorosamente a essa doutrina. É famoso
o seu discurso diante do túmulo de Júlio de Castilhos, em 1903, quando o jovem gaúcho afirmava que Castilhos
épara o Rio Grande um santo. Vargas ingressou na equipe de Borges de Medeiros
aos 26anos, tendo ocupado diversas e importantes posições na administração
gaúcha até 1930, quando ascende à Presidê4ncia da República.
“Todo o
esforço de Vargas -- afirma Antônio Paim
-- vai consistir em criar organismos
onde as questões de alguma relevância passem a ser consideradas do ângulo
técnico. Amadurecido o ponto de vista
dos técnicos, a instituição deve
assegurar a audiência dos interessados.
O govêrno não se identificará com
qualquer das tendências em choque porquanto exercerá as funções de
árbitro”(31). Nesse sentido, é indiscutível a posição de Getúlio no seu
discurso de 4 de maio de 1931, em que afirma: “A época é das assembléias especializadas, dos
conselhos técnicos integrados à administração. O Estado puramente político, no
sentido antigo do termo, podemos
considerá-lo, atualmente, entidade amorfa que, aos poucos, vai perdendo valor e
significação”(32).
Assim, Vargas
conseguiu materializar o princípio do
encaminhamento técnico dos problemas, nos principais campos da administração
pública. No terreno educacional, por
exemplo, promoveu o consenso dos
técnicos, através da Associação Brasileira de Educação. No âmbito da política
salarial, chegou à adoção , por parte do governo, de mecanismos técnicos,
mediante a criação do Ministério do Trabalho; surgiu assim uma legislação
abrangente, que possibilitou a organização da Justiça do Trabalho e dos
sindicatos como peças dessa engrenagem. No campo legislativo, depois de fechado
o Congresso em 1937, realizou-se ampla experiência de legislação , para
elaborar leis e decretos no âmbito do Ministério da Justiça e dos Estados.
O princípio
do encaminhamento técnico dos problemas manifestar-se-ia, finalmente, no campo
econômico, com a atribuição ao Estado, como missão precípua, da promoção da
racionalidade econômica, que implicava
-- dentro da tradição castilhista --
a crescente intervenção direta do Estado na economia (a criação da
Siderúrgica de Volta Redonda, por exemplo, bem como a ingerência do poder
público na negociação da moeda estrangeira, a consolidação da centralização das
emissões pelo Banco do Brasil, a criação da Superintendência da Moeda e do
Crédito, precursora do Banco Central, a criação do Conselho Federal de Comércio
Exterior e a constituição, no interior desse conselho, de uma Comissão Especial
para estudar o problema do aço) (33).
No segundo
governo (1950-1954), Vargas dá continuidade à sua filosofia modernizadora com a
adoção do planejamento econômico, entendido como conjunto de técnicas
destinadas a assegurar a consecução de determinadas metas, no campo da
racionalização da economia. Esse fato
manifestou-se a partir dos trabalhos da Comissão Mista Brasil/Estados Unidos
(1951-1953), que contou com a colaboração de 50 técnicos “senior” do Brasil,
recrutados a partir da elite acadêmica e
a administração. Também merece menção a criação do Banco Nacional de
Desenvolvimento Econômico (BNDE), em 1952,
pois foi o elemento catalisador das novas técnicas e o que permitiu o
teste da sua eficácia nos anos 50. No BNDE se formaria a primeira geração de tecnocratas treinados para a promoção da
racionalidade econômica, sob a intervenção do Estado (34).
b) O
legado atual do patrimonialismo modernizador.- Nos três lustros posteriores
ao fim da Segunda Guerra Mundial, ao lado da crise do liberalismo e das
instituições representativas, aparece na
administração pública brasileira um novo grupo de elementos institucionais
anteriormente inexistentes, que são legítimos herdeiros da tradição
patrimonialista modernizadora: a elite tecnocrática . Estes elementos vão acompanhados de novo
estilo de trabalho, baseado em técnicas neutras e impessoais que, pela sua
natureza, estarão chamadas a ter longa
duração. O novo estilo ganharia mais um componente através do Programa de Metas
do governo Kubitschek.
Com a
emergência de Goulart ao poder, não houve dúvidas acerca da tendência do
governo a favor do patrimonialismo tradicional, com todas as suas
características: empreguismo, burocratização e ineficiência. Comprometer-se-ia o sucesso alcançado em
poucos anos pelo BNDE, que seria sistematicamente esvaziado de recursos. A
vertente modernizadora retomada por Getúlio Vargas na sua última administração, no início da década de 50, parecia ter sido sumariamente esquecida (35).
Por último,
cabe mencionar o movimento de 64, que pode ser caracterizado, do ponto de vista
da evolução da vertente modernizadora do patrimonialismo, como a volta aos
critérios da racionalidade econômica, através da intervenção do Estado e da plena adoção, para isso, da idéia de
planejamento. O patrimonialismo modernizador teria, no regime instaurado em 64,
a sua máxima manifestação, após a reforma administrativa de 67, que enfeixou
nas mãos da elite tecnocrático-militar a formulação da política econômica e da política social,
com a marginalização da classe política.
É importante ainda salientar a contribuição da Escola Superior de Guerra (criada em
1950), que conferiu à idéia de desenvolvimento um caráter científico. Considerando que ao Estado moderno cabe a
realização do ordenamento econômico e social, a Escola acha necessário
eliminar-se toda atuação improvisada,
espúria e emocional, a fim de substituí-la pelo máximo de racionalidade. A ESG, na verdade, acabou por encampar o
projeto modernizador, com a ajuda da
maior parte da elite técnica formada a partir dos anos 50 (36).
4)
Representação X Tecnocracia no Brasil
4.1- O triunfo do estatismo modernizador após
1964.- A partir de 1964 operou-se uma radical
transformação na estrutura do Estado brasileiro, com a concentração da quase
totalidade do poder político no seio da aliança militar-tecnocrática,
fortemente influenciada pela visão tecnicista da vertente modernizadora do
patrimonialismo. Governar passou a ser
mais uma questão de competência técnica e de eficiência administrativa, do que
de habilidade política. E à medida em que
os espaços vitais do Estado iam sendo
ocupados por militares e tecnocratas, reduzia-se o peso político da
representação parlamentar nos processos decisórios. O Congresso não teve outra
alternativa senão contentar-se em exercer um sub-poder periférico e dependente.
Inegavelmente
que o movimento de 1964 assinalou o triunfo da concepção
autoritário-modernizadora, que desde o Castilhismo
ensaiava fundir-se ao poder nacional (lembremos as tentativas efetivadas, nesse
sentido, pelo senador Pinheiro Machado, arauto do republicanismo gaúcho a nível
federal, e quem exercia uma ditadura branca
no governo, segundo denunciava Rui Barbosa).
É bem verdade que Getúlio Vargas já governara sob inspiração
castilhista, sobretudo nos anos do Estado Novo, em que exerceu o poder político
total. Mas seu estilo de governo -- uma
espécie de caudilhismo ilustrado mesclado a um desempenho paternalista e
populista no relacionamento com as
massas -- não foi capaz de superar a
estreita perspectiva autoritária do positivismo sul-riograndense. O varguismo tentou, sim, estabelecer um
diálogo sistemático com as demais tendências autoritárias, para o qual foi
instrumento importante a revista Cultura
Política, dirigida por Almir de Andrade. Diríamos que o varguismo,
com a ajuda da Segunda Geração
Castilhista, se bem não elaborou um
modelo que fugisse à ditadura sul-riograndense,
teve a criatividade suficiente para implantá-lo a nível nacional (37).
Em 1964, o
estamento militar retoma o velho projeto autoritário castilhista. Para essa
retomada foi de inegável importância a
versão militar do catilhismo desenvolvida pelo general Góes Monteiro. Mas a
doutrina de 64 pretendeu superar o autoritarismo gaúcho, inserindo na retórica
governamental os ideais de democracia
e desenvolvimento, que tinham sido inicialmente debatidos no
IBESP-ISEB, e que terminaram sendo encampados pela Escola Superior de Guerra.
Para implementar o novo projeto modernizador, os militares contavam com uma organização
tecnocrático-militar fortemente hierarquizada e burocratizada, que se pretendia
fosse avessa a personalismos e a expedientes de tipo populista. Acrescente-se a
isso, a circunstância de que, mais de uma década após a formação da Comissão
Mista Brasil-Estados Unidos, o país já podia contar com uma elite técnica
suficientemente experimentada no exercício de atividades de política e planejamento econômico.
Na nova
correlação de forças que se estabelece no bloco do poder, temos, pois, em primeiro plano, a interação de dois segmentos: o estamento
militar e a tecnoburocracia. Ao primeiro
cabiam as decisões políticas gerais e ao segundo as específicas da área
econômica. Num segundo plano, situava-se a classe político-parlamentar, apartada dos centros
nevrálgicos do poder. Oliveiros S. Ferreira traduziu, de forma clara, as
expectativas ufanistas desse modelo, que Wanderley Guilherme dos Santos
batizou, com propriedade, de autoritarismo
instrumental. Eis os termos em que Oliveiros S. Ferreira exprime o ufanismo tecnocrático-militar, então em
voga: “(...) o Exército só poderia aliar-se à Tecnocracia e nunca à Política, porque ambos são expressão de uma
mesma mentalidade, de uma igual racionalidade. A tecnocracia fornece ao
Exército a possibilidade que lhe é própria. Com isso, as Forças Armadas têm assegurada a
possibilidade de ver corrigidas as distorções econômicas (...) e construir uma indústria capaz de atender
aos reclamos de renovação técnica, sem onerar grandemente a balança de
pagamento. E a Tecnocracia encontra no Exército, além do mesmo espírito voltado
para a ordenação racional e burocrática das coisas, o instrumento apto a assegurar a
tranqüilidade social, capaz de permitir
a reconstrução da economia, sem o perigo
de a demagogia atrapalhar a integração do Brasil, como grande potência, no
mercado mundial”(38).
Essa
reordenação do bloco do poder resultou da intercorrência de inúmeros fatores,
desde as grandes transformações
sócio-econômicas do país nos
últimos cinqüenta anos, até as razões de ordem político-institucional. Tomemos
como ponto de partida o período compreendido entre 1945 e 1964, da chamada Segunda República.
4.2- Natureza da crise política antes de
1964.- No modelo constitucional talhado pela
Constituinte de 1946, reproduziu-se o sistema da Constituição de 1891, no que
concerne às relações entre Executivo e
Legislativo. Coerentes com os ventos liberais que voltaram a soprar, e
temerosos de que um Executivo institucionalmente forte pudesse ensejar o
retorno ao autoritarismo, os
constituintes privilegiaram de tal forma
a participação do Congresso Nacional na política do país, que
não raro ficava inibido o governo na sua ação. Assim é que todas as
decisões politicamente relevantes, vale dizer,
o estabelecimento das prioridades da administração pública, bem como os
meios para implementá-las, dependiam de
aprovação do Legislativo.
Ocorre, contudo, que em termos de nossa realidade
sócio-econômica, Congresso e Presidência
se vinculavam a regiões e setores sociais bastante heterogêneos. A
representação política federal estava
umbelicalmente enraizada nos interesses de grupos oligárquicos, os quais, desde
os tempos do Império, vinham exercendo rígido controle eleitoral sobre as
populações rurais e interioranas. O
antigo PSD, predominante no Legislativo, apesar de seu avançado programa e da adesão
de líderes empresariais nacionalistas,
era controlado por grandes proprietários rurais do Brasil sub-desenvolvido. Já a Presidência
da República, devido ao progressivo crescimento da força eleitoral do Sudeste
(Brasil desenvolvido), era mais sensível às exigências de modernização social e
econômica dos centros urbanos. Assim,
enquanto o Legislativo representava, grosso
modo, o conservadorismo
caraterístico das regiões sub-desenvolvidas do país, o Executivo se comportava perante o
eleitorado como agente reformista e modernizador.
Até o ano de
1962 foi possível preservar o equilíbrio político-institucional, não obstante
as crises que se sucediam de modo intermitente. Esse equilíbrio era viabilizado
por uma espécie de pacto implicitamente estabelecido entre as principais forças
políticas, de modo a conciliar ou
acomodar tanto os interesses das lideranças comprometidas com o Brasil
sub-desenvolvido, como os das lideranças engajadas no projeto de modernização
da estrutura urbano-industrial do país. Segundo Celso Láfer, cabia ao Congresso
“(...) fiscalizar de modo conservador o núcleo inovador representado pelo Executivo e, nesse processo, garantir as
demandas da cultura política do Brasil desenvolvido”(39). A estabilidade
política alcançada ao longo do governo Kubitschek deve ser creditada, em larga medida, à coexistência pacífica entree tão
heterogêneos interesses: prova disso é o
fato de que, embora tivesse empolgado todo o país com a mística
desenvolvimentista impulsionada pelo
Executivo, o Legislativo nada fez
para alterar nossa obsoleta estrutura fundiária
e as relações de trabalho no campo.
De
fundamental importância para a manutenção
desse pacto político foi o papel desempenhado pelo PTB, que, funcionando
como linha auxiliar do PSD, viabilizou a
sustentação político-partidária dos governos Vargas e Kubitschek. Ambas as
agremiações, como se sabe, originaram-se
da mesma matriz getulista. Na coalizão PSD-PTB agregavam-se interesses tanto
daa oligarquias agrárias e de figuras do empresariado nacionalista, (presentes também na direção do PTB), como de
líderes trabalhistas urbanos.
Já os dois
últimos presidentes desse período --
Jânio Quadros e João Goulart -- tiveram
um relacionamento difícil e tenso com o Legislativo, onde, aliás, não dispunham de maioria parlamentar. Com o
agravamento da crise econômica em fins do governo Kubitschek, caracterizada
pela contínua expansão da espiral
inflacionária, crescia dia a dia o volume das demandas dos centros urbanos do
país, consubstanciadas em inúmeros projetos de cunho reformista. A questão agrária,
não resolvida, constituia-se num dos
pontos mais sérios de estrangulamento da nossa economia. Além disso, projetos
de reforma social, tributária ou educacional, enviados pelo Executivo ao
Congresso, raramente tinham conseqüência
nessa casa legislativa. Os conflitos
entre os dois poderes do Estado acabaram gerando impasses insuperáveis no
processo decisório, com danosos reflexos sociais.
Em meio ao
clima de efervescência social então criado,
começaram a radicalizar-se grupos e forças políticas em pólos
antagônicos, à esquerda e à direita do espectro ideolgógico, conforme o seu
posicionamento fosse favorável ou desfavorável às chamadas reformas de base. Esse
processo de radicalização ficou claramente evidenciado nas eleições de 1962:
pela primeira vez não houve coligação entre o PSD e o PTB nas eleições para
governador. A representação do PTB na Câmara Federal crescera vertiginosamente
no período entre 1945 e 1962: em 1945, o total dos parlamentares petebistas
equivalia à apenas 1/7 do PSD; já em 1962, os dois partidos praticamente se
igualavam (40). Ora, o crescimento
eleitoral do PTB resultava, em grande parte,
da insatisfação das massas urbanas com a intransigência da maioria
congressista em relação à questão social. E, a partir daí, aprofundou-se progressivamente o seu
engajamento na política reformista-populista patrocinada por Goulart. Rompida a
histórica aliança eleitoral, visível, aliás, no posicionamento das duas
agremiações face a questões cruciais como reforma agrária e greves, foi-se acentuando cada vez mais o
desequilíbrio que, no plano das
instituições políticas, opunha, à
esquerda, a Presidência e o PTB (além de partidos menores como o PSB) e,
à direita, as demais forças partidárias do Congresso.
Na verdade,
tanto entre as fileiras da direita, como da esquerda, já se generalizara a impressão de que o sistema político então vigente tinha
esgotado todas as suas possibilidades. Conforme frisa o brazilianist Alfred
Stepan, “(...) Os mais capacitados a defender o regime -- os dois últimos presidentes antes do
colapso de 1964, Jânio Quadros e João Goulart -- estavam pessimistas quanto às probabilidades
de funcionamento efetivo do sistema político, e pode-se mesmo afirmar que ambos
trabalharam mais firmemente para mudar o regime , do que para realizar metas dentro dos limites da estrutura existente. De fato,
Jânio Quadros renunciou na
esperança de conseguir um mandato gaullista
para executar importantes reformas de estrutura. Seu sucessor, João Goulart,
freqüentemente falava da sua impotência para governar o país e, na
verdade, segundo parece, permitiu que alguns problemas piorassem
tanto, a fim de reforçar sua afirmação de que o sistema exigia uma mudança
básica”(41). Diferentemente das crises anteriores, onde o que estava em
questão era a figura dos
dirigentes, a crise da antevéspera de 64
envolvia a credibilidade no próprio sistema do poder executivo. Nesse sentido, qualquer facção que conseguisse a plenitude
do mando político, procederia a
reformulações estruturais no plano institucional.
E foi isso,
de fato, o que aconteceu, após a derrubada de Goulart pelos militares que se
opunham à sua política populista-reformista, com o deslocamento do eixo de
gravidade do processo decisório para o Poder Executivo e a conseqënte
marginalização do Congresso.
4.3- O conceito de modernização segundo o
grupo militar-tecnocrático.- A circunstância de militares contrários a
Goulart terem assumido o poder não significou,
a bem da verdade, o triunfo da
resistência conservadora do Congresso, ainda que interesses vitais de grupos
oligárquicos -- como a intocabilidade da
estrutura fundiária do país -- fossem
acolhidos pelo novo grupo dirigente, em virtude do potencial eleitoral eles
possuiam. De outro lado, o que o
estamento militar entendia por
modernização do país, não era seguramente o mesmo que entendiam os defensores
das reformas de base. Para estes, o processo de modernização
deveria ser presidido por critérios eminentemente sociais; seu grande
objetivo seria ampliar a participação dos segmentos médios e inferiores da
sociedade brasileira nos bens culturais e na riqueza produzidos. Abstração
feita dos meios propostos para tal, não há como pôr em dúvida o propósito
último da propaganda reformista, que mobilizava largas camadas sociais.
Para o grupo
militar-tecnocrático que ascendeu ao poder em 1964, o conceito de modernização tinha um sentido
mais preciso: ele era fundamentalmente econômico
e não social. Tratava-se de, em aliança com o empresariado nacional e
multinacional, implementar ambiciosos
projetos de desenvolvimento econômico, que permitissem ao país atingir o status
de potência até o final do século. A realização dessa meta exigiu ao governo a
adoção de uma forte política intervencionista, voltada para a rápida acumulação
dos capitais necessários aos grandes investimentos empresariais no setor
público ou privado, estratégia que significou, na prática, o refreamento da
tendência distributivista existente antes de 1964 e o incremento, de outro
lado, da arcaica tendência cartorial e centralizadora do Estado-empresário, na
materialização das grandes obras de infra-estrutura. Sem ser declaradamente
anti-social, o modelo econômico implementado pelos sucessivos governos
militares, acabou gerando inevitável compressão no nível de rendimento das
classes assalariadas, especialmente nos segmentos mais baixos: prova disso é
que os índices oficiais de atualização
salarial nunca acompanharam, via de regra, o crescimento da inflação
real. Para conter as insatisfações
decorrentes dessa linha de ação, criaram-se instrumentos legais de caráter
coercitivo, como a Lei de Segurança Nacional e inúmeros Atos
Institucionais. Tais instrumentos
permitiram, em primeiro lugar, que o poder permanecesse nas mãos de dirigentes
comprometidos com a continuidade do projeto modernizador de 1964: em segundo, que fosse assegurada a ordem
social imprescindível à consecução das metas estabelecidas.
Importante
frisar, ainda, que o engajamento dos militares no processo de modernização do
país, terminou por esvaziar a tradição
legalista que, até 1930, havia
sido a tendência predominante no seio das Forças Armadas. Já na década de 20, a
jovem elite militar brasileira, influenciada não apenas pelo ideal
desenvolvimentista herdado do positivismo, mas também pelo intercâmbio de
idéias mantido com instrutores militares estrangeiros, entendia como
imprescindível a participação dos militares na luta contra o atraso econômico e
social do país. Conhecidos como
“tenentes”, lideraram movimentos contra os grupos oligárquicos no poder antes
da Revolução de 1930. A partir daí, a
oficialidade militar brasileira, tornou-se cada vez mais empolgada com a
mística desenvolvimentista, ao mesmo tempo que se generalizava a convicção de
que a classe política civil, herdeira dos velhos hábitos do patrimonialismo
tradicional, estaria moral e técnicamente desqualificada para liderar o
processo de modernização do país. Assim
é que, a partir de 1964, não hesitaram os militares em assumir diretamente o
controle do processo político. Até então, como é sabido, o estamento militar vinha desempenhando o
papel de árbitro do jogo político, limitando-se a interferir, como uma espécie
de poder moderador, nos momentos em que os conflitos desaguavam em impasses
insuperáveis.
4.4- A representação política após
1964.- Um exame superficial
da situação do Congresso nacional após 1964, face aos super-poderes enfeixados
na mão pelo Executivo, aponta distorções alarmantes, que passam a ser
diagnosticadas nas próximas linhas. Convém destacar, no entanto, que em que
pese as múltiplas causas ideológicas e estruturais do movimento militar
modernizador, o cerne da influência, ou melhor, o arquêtipo predominante foi o
castilhista-getuliano, que aliás tinha sido incorporado na mentalidade militar
a partir da mediação, já mencionada, do general Góes Monteiro. Diríamos que, se
em 30 o getulismo cooptou o elemento militar, em 64 este, tendo incorporado o modelito
castilhista-getuliano,
cooptou o elemento civil.
a) A marginalização do legislativo.- A política
econômica, sem dúvida o ponto nevrálgico de qualquer programa de governo, ficou inteiramente confinada à esfera do
Executivo. Por força do disposto no parágrafo 1 do artigo 65 da Constituição de
1967, os parlamentares estavam virtualmente impedidos de introduzir
modificações nas leis orçamentárias -- exatamente as que estabeleciam a
destinação dos recursos fornecidos pela sociedade --. Era-lhes vedado apresentar “emenda de que
decorra aumento da despesa global (...) ou que vise a modificar-lhe o montante,
a natureza ou o objetivo”. Ora, ainda
que em sua elaboração o recurso a meios técnicos seja imprescindível, o orçamento não deixa de
ser, do ponto de vista dos efeitos que
gera, uma peça essencialmente política.
Daí a necessidade da participação da representação política da
sociedade, ao menos na definição de suas
prioridades.
O
esvaziamento do Congresso foi de tal ordem, que até o clássico princípio de não
haver imposição de tributos sem o consentimento dos representantes dos cidadãos
tributados, acabou sendo atropelado (No
taxation without representation).
Impostos e taxas das mais diferentes naturezas foram criados, por vezes
de surpresa, mesmo após ter sido
elaborado e aprovado o orçamento fiscal. O Banco Central, criado nos primeiros
anos dos governos militares, logo perdeu a sua independência face às pressões
dos generais, abrindo assim as portas para a espiral inflacionária. O fundador
do Banco, que se opunha à perda da independência da entidade, foi obrigado a
exonerar-se. Por não figurarem na lei orçamentária, os recursos extraordinários
arrecadados de forma compulsória ficavam sem uma destinação definida, vale
dizer, ao inteiro arbítrio do Executivo. Isso tudo sem falar do orçamento
monetário, que abrigava somas substancialmente superiores às do orçamento
fiscal, e que não era submetido à apreciação do Legislativo.
Outro aspecto
extremamente grave do problema diz respeito à impossibilidade prática de ser
exercido, pelo Congresso, o controle
político da administração direta e indireta, função essencial da representação
popular. O artigo 45 da Constituição de 1967 estabelecia que “a lei regulará o
processo de fiscalização, pela Câmara dos Deputados e pelo Senado Federal, dos
atos do Poder Executivo, inclusive os da administração indireta”. Não obstante
dezenas de projetos de lei regulamentando a citada disposição constitucional terem sido apresentados ao
Legislativo, desde os primeiros anos
dos governos militares, nenhum deles conseguiu chegar a plenário, retidos que
ficaram nas comissões técnicas, por determinação do governo. Ora, o controle
mediato da sociedade civil sobre o Estado constitui imperativo ético, do qual é
impossível fugir sem quebra da legitimidade política. Ao lado do controle
contábil executado pelo Tribunal de Contas,
o controle político do desempenho administrativo do Executivo, através
da representação, pode reduzir
consideravelmente, por exemplo, os abusos e excessos de toda ordem praticados
pelas empresas estatais, em conseqüência da incúria, incompetência ou da corrupção
administrativa.
Houve,
finalmente, além das restrições infligidas ao instituto da inviolabilidade
parlamentar, a aberração da legislação a
prazo fixo, em que consistia a lei aprovada por decurso de prazo. Matérias de
relevantes efeitos políticos, sociais e econômicos, enviadas pelo Executivo ao
Congresso, acabaram sendo aprovadas sem
o mais superficial exame por parte dos representantes do povo. O fato de não se conhecer, no mundo, nenhum
país onde leis entrem em vigor por simples decurso de prazo, ilustra bem a
precariedade da situação do Legislativo, no ciclo autoritário militar.
b) A falta
de modernização da classe política.- Mas à própria representação política
cabe ponderável parcela da responsabilidade pela sua marginalização do processo decisório. Governar é tarefa
extremamente complexa, que requer amplo
domínio de técnicas e informações resultantes do desenvolvimento científico e
tecnológico. Todos os grandes problemas nacionais revestem-se de componentes
técnicos, exigindo, para seu equacionamento, o concurso de especialistas de
alta capacitação profissional. Ora, não há como negar o gritante descompasso
existente, sob tal aspecto, entre a classe política e a elite tecnocrática no
poder. A falta de modernização do Legislativo brasileiro, desprovido de
informações e quadros técnicos que dêem o necessário respaldo ao seu desempenho
como órgão do Estado, é uma das deficiências mais gritantes da realidade
política das últimas décadas.
O Brasil do
ciclo militar carecia de lideranças políticas modernizadas, capazes
decontrapor às omissões ou desacertos
governamentais, projetos alternativos viáveis, bem como de desempenhar, em toda a sua plenitude, a função de órgão
fiscalizador dos atos do Executivo. Do Congresso Nacional não partiram propostas
concretas e coerentes com vistas a, por exemplo, reformular o sistema
tributário ou a estrutura fundiária do país. Pouco fizeram os partidos
políticos para se adaptarem à época atual,dominados em geral por considerações
imediatistas e arrraigados a vícios históricos darepresentação, como o
carreirismo, o oportunismo e, principalmente, o clientelismo.
Em suma, a
classe política brasileira menosprezou, ela própria, as funções legislativas. Como afirma Antônio
Paim, “(...) a classe política brasileira não constituiu em seu seio nenhum
agrupamento modernizador, familiarizado com a evolução da prática e da doutrina
do sistema representativo. O mínimo que se poderia exigir de uma elite com tais características é que
fosse conhecedora do processo adaptativo experimentado pelo Parlamento, em especial na grande democracia
presidencialista que são os Estados Unidos; que dominasse a experiência de
superação das crises entre Legislativo e Executivo, como a que viveu a França,
e as soluções superadoraas adotadas (...). A liderança de nossa elite política
não foi capaz de dar esse passo, por si mesma, ancorada que ficou no
patrimonialismo tradicional, identificando poder com Executivo, tendo como meta
sobretudo alcançá-lo e, por isto mesmo, transformando a função representativa
numa simples ponte e a instituição em mero elemento de barganha”(42).
A criação de
quadros técnicos especializados dentro do Legislativo, com a função de
assessorar os parlamentares quanto ao exame e elaboração de matérias de
interesse público, possibilitaria a tão almejada colaboração entre técnicos e
políticos. Levando-se em conta que uma
solução técnica comporta normalmente várias alternativas, caberia aos
políticos, possuidores de uma visão global da sociedade e conhecedores dos seus
anseios fundamentais, fazer a escolha mais acertada. Em outras palavras, o
papel do político seria justamente o de saber interpretar as expectativas e
preocupações do meio social, face às soluções apresentadas pelos técnicos. Um
exemplo poderia ilustrar melhor esse papel. Na crescente oposição que há, a
nível mundial, contra a instalação de centrais nucleares, corresponderia aos
políticos, de um lado, canalizar até o Estado e à elite técnica que o
assessora, as inquietações da população e, de outro, “traduzir” ao cidadão
comum os riscos e as vantagens da solução técnica pretendida pelo Estado.
c) A crise
do estatismo.- A marginalização do Legislativo e a falta de modernização da
classe política foram, a bem da verdade, induzidas pelo regime militar, que numa paradoxal estratégia apontou as suas
baterias para a destruição da elite liberal.
Grandes líderes civis terminaram sendo ilhados e perseguidos pelo
autoritarismo castrense. Antônio Paim
considera que esse constituiu o pior descaminho do movimento de 64 que, por essas ironias da história, acabou pondo em prática a teoria stalinista do
“golpe principal”.
Eis as
palavras de Paim a respeito: “Como se explica que a Revolução de 64 -- que era um movimento de inspiração
liberal, destinado a impedir que o país se transformasse numa república
sindicalista, presidida pelo jubileu da incompetência nacional encarnado na
dupla Jango/Brizola -- tenha chegado a
tão melancólico resultado (...)? “ .
Muitas seriam as explicações a respeito, a primeira das quais apontaria
para a perpetuação do nosso autoritarismo republicano. Mas, considera Paim, o
fato é que o grupo que terminou
empolgando o poder, dentro do Exército, após a morte do marechal Castelo
Branco, decidiu aplicar a teoria
stalinista do “golpe principal”, que consistia em ferir de morte, não o inimigo
principal, mas aquela força capaz de impedir que os comunistas (no caso de
Stalin), ou os militares (no caso brasileiro) conquistassem o seu
objetivo. Ora, essa força, na nossa
conjuntura histórica, seriam os liberais. “No caso brasileiro --escreve Paim-- a força
capaz de impedir que a Revolução empreendesse o caminho do franco
autoritarismo era a liderança liberal. Convencidos que estavam os seus chefes
de que somente com censura à imprensa, prisões e outras ilegalidades seriam
liquidados os terroristas, trataram de abrir o caminho ao sistema de seus
sonhos, eliminando a liderança liberal. Os liberais não eram certamente os
inimigos mortais da Revolução de 64. Mas acabaram sendo tratados como tais. A partir
de determinado momento, as cassações voltaram-se contra esse segmento. Rolaram
cabeças de homens como Milton Campos, Carlos Lacerda e tantos outros. De sorte
que as dificuldades presentes resultam desse legado de 64, isto é, o país
perdeu a sua liderança liberal. Tivéssemos hoje uma liderança liberal
competente e as dificuldades da transição certamente seriam minimizadas”(43).
O ponto alto
do autoritarismo castrense foi, do
ângulo do processo estatizante, o
governo Geisel (1973-1979). Dois fatores estatizantes foram acelerados nesse
período: o crescimento das empresas do Estado, que chegaram a 485, e a
manipulação da representação política pelo poder central, ao privilegiar -- no pacote de abril de 1977-- o norte e o nordeste no Congresso, justamente
as regiões que mais dependiam dos favores do Executivo.
Em relação ao
primeiro aspecto, um indicador que mostra claramente o gigantismo e a baixa
produtividade estatal no periodo militar é o seguinte: segundo dados da Gazeta Mercantil, enquanto os gastos calculados para as 485
empresas estatais cresceram 153%, o lucro líquido negativo de 13 das 50
maiores equivalia, em 1985, a 37,58% do
líquido global. Diversamente, o lucro líquido negativo de 52 das 500 maiores
empresas privadas, em 1985, chegava apenas a 5,81% do lucro líquido
total. De outro lado, como destacou o
ex-ministro Mário Henrique Simonsen, o grau de estatização sofrido pelo Brasil
no período apontado foi o maior ocorrido no hemisfério ocidental, ao longo
deste século (44).
Em relação ao
segundo aspecto, ao longo das últimas
décadas houve séria distorção da representação política, em conseqüência da desastrada emenda
constitucional do governo Geisel que, como frisa Miguel Reale, “(...) para
asegurar-se maioria no famigerado colégio eleitoral, conferiu o mínimo de oito
representantes a a cada Estado, ainda
que não chegasse a ter duzentos mil eleitores”. Essa medida, aliada à que
consagrava o máximo de 60 deputados (atribuído a S. Paulo), terminou por dar
mais peso representativo aos Estados menos desenvolvidos (os que dependiam em
maior grau do poder central).
Em que pese o
fato de, numa das mais tumultuadas sessões da Constituinte, ter sido aprovada emenda aumentando o limite máximo de deputados federais por
Estado para 70, tendo sido conservado o mínimo de oito, não foi corrigida a
distorsão que confere, por exemplo, 20
vezes maior valor a um eleitor de Roraima, em relação ao que vota em S. Paulo.
A respeito, Miguel Reale alertava:
“(...) se considerarmos que se pretende criar mais quatro unidades
federativas, fácil é compreender que serão atingidos ainda mais os médios e
grandes Estados, com absoluto predomínio, na Câmara dos Deputados, das regiões econômica e culturalmente menos desenvolvidas (...)”(45).
Estes dados
nos permitem avaliar o grau do impacto prejudicial que teve, para o futuro
político do país, a deformação impingida à representação pelo governo
Geisel. Na trilha dessa deformação,
elegeu-se para o parlamento uma classe política vinculada aos interesses do
Brasil mais arcaico, que é responsável, sem dúvida, pelas contradições da
Constituinte e da Constituição de 1988. Os efeitos nocivos da ditadura,
fazem-se sentir ainda hoje.
A
Constituição de 1988 reforçou o traço estatizante do período militar, ao adotar
mecanismos intervencionistas exagerados como o tabelamento de juros, a reserva
de mercado e um estreito conceito de empresa nacional. De outro lado, a
xenofobia presente no texto constitucional abre as portas perigosamente para a
fuga dos capitais estrangeiros de que tanto precisa a nossa economia. Parece
que os constituintes brasileiros optaram por remar contra a corrente, num
momento em que crescem os incentivos ao capital externo, mesmo em economias
tradicionalmente fechadas como a chinessa ou a russa. A errada política
tributária adotada pela Constituição, se bem consolidou a descentralização das
receitas, não conseguiu a descentralização das atribuições, com o que o cidadão ficou submetido a uma tripla carga
tributária.
A visão
terceiro-mundista, aliada a um provincianismo canhestro, terminou conduzindo a
política econômica do país a um isolacionismo perigoso. Parece que o Brasil fez
uma opção pela pobreza e pelo atraso, ao
rejeitar a integração ao mercado mundial.
d) Panorama do atual Estado patrimonial
brasileiro.- O Estado patrimonial brasileiro, em que pese o processo modernizador nele
presente, não tem conseguido, no entanto,
evoluir até a plena prática da
democracia. Max Weber considerava que é possível passar de Estados com forte
tradição patrimonial, para organizações políticas mais afinadas com o modelo
contratualista, em que o Estado não se consolida -- como no caso do patrimonialismo -- a partir da hipertrofia de um poder
patriarcal original, mas em que o Estado surge a partir da negociação entre as
diversas ordens de interesses presentes na sociedade. Os processos ocorridos,
ao longo dos últimos vinte anos, em países de longa tradição patrimonial como
Espanha e Portugal -- e, no caso
latino-americano, a démarche modernizadora e democrática de países como
Chile, México e Argentina -- confirmam
a validade da previsão weberiana.
No Brasil,
contudo, as forças de sustentação deo Estado patrimonial parecem ainda muito
fortes. A herança cartorial portuguesa revelou-se, no nosso caso, muito mais
duradoura do que o centralismo hispânico. Isso porque, talvez, foi Portugal um
país em que a raison d’état se mostrou muito mais viva do que na Espanha,
o que possibilitou, diga-se de passagem, que se conservasse unido o vasto
império luso- americano, ao passo que a parte hispânica se esfacelou em
múltiplas repúblicas. Nesse ponto, o
nosso patrimonialismo foi muito mais eficaz. Contrastando com um Continente em
que cada vez entram mais fundo as idéias neo-liberais, “(...) no caso
brasileiro, -- observa Meira Penna
-- o que está ocorrendo é um fenômeno
inverso. Em que pese as tímidas privatizações empreendidas pelo governo federal
e o de São Paulo, a opressão do setor público sobre a economia tende a crescer.
Aumentam os impostos precisamente sobre o único setor produtivo da Nação: o
privado (...). Para esse lastimável resultado contribui não só a classe
propriamente política, que detém o poder em Brasília, e a burocraciade cerca de
8milhões deindivíduos que (mal)
administram o País, na União, nos Estados e nos municípios, mas entidades
corporativas interessadas ideologicamente na manutenção de seus privilégios
patrimonialistas,parasitários do Estado. A CUT, a UNE, a Justiça do Trabalho,
os escalões inferiores na redação dos grandes jornais, o meio universitário
docente e discente, o clero dito progressista (...), todos se esmeram na
preservação da estrutura intervencionista do Estado brasileiro -- herdada da Colônia, revigorada pelo
positivismo e corporativismo getuliano e consolidada pelo marxismo que
contaminou a cultura brasileira depois da II Guerra Mundial --” (46).
A situação do
Estado patrimonial brasileiro não mudará, enquanto a sociedade não tiver
consciência de que quem mais se representa, hoje, no Congresso, não são os
cidadãos e os seus interesses, mas a nomenklatura patrimonialista que tomou conta do Estado.
“A elite burocrática estatal, --
escreve Antônio Paim -- que sempre foi
a classe dominante, conseguiu aumentar espantosamente o seu poder sob os
governos militares, ao multiplicar empresas estatais e empregos rendosos”(47).
Nesse contexto, a adoção do voto distrital é o instrumento legal mais
importante para dar base firme à prática da representação no Brasil. Somente
aproximando o eleito dos interesses do eleitor, será possível moralizar o
Congresso. Estudos e propostas não faltam. Falta, sim vontade política do
Congresso e do governo para efetivar essas reformas (48).
A mais
recente prova da inoperância da
representação no Brasil, foi o fracasso estrondoso que a classe política
protagonizou na reforma da Constituição de 1988. As soi-disants “forças
progressistas” obstruíram sistematicamente os trabalhos da revisão
constitucional, que se alastraram
penosamente ao longo do primeiro semestre de 1994. E o resto do Congresso -- a situação
--
afinou-se com a hipócrita atitude do governo Itamar Franco, que falava
da importância da revisão, mas que sistematicamente a sabotava, pois não
interessava aos seus anseios estatizantes e à sua compulsão clientelista.
Essa situação
levou Adolpho Crippa a escrever: “Conduzido de maneira descoordenada, sem
contar com a força e o brilho de personalidades marcantes, enfrentando o
desinteresse e o temor de uma maioria amorfa e pulverizada em partidos pouco ou
nada expressivos euma minoria orquestrada e agressiva e, por fim, relegado à
pouco importância pelo presidente da República e a quase totalidade dos
ministros de Estado, o processo revisor só poderia terminar como está
terminando. Um enorme e humilhante
malogro. Perdeu-se mais uma oportunidade derecoloar o país nos caminhos do
progresso e da moralidade. Como tributo à mediocridade de uns e à
inconsciênciade outros, ao atraso mental
de uns e à prepotência de outros, aos erros do passado e aos equívocos do
presente, o país terá de continuar
pagando a pesadacarga da desorientação, da miséria, da desumana distribuição de renda e da
estagnação por mais alguns anos”(49).
Outra
exigência imperiosa para a superação do estatismo patrimonialista
brasileiro, diz relação à educação para
a cidadania. Odramático desmantelamento do ensino básico levou, no Brasil, ao
longo dos últimos 30 anos, ao absoluto
descuido na formação da consciência cidadã. Esta deve ocorrer no ciclo inicial
do ensino primário. Sem se equacionar esse grande problema, não serápossível
aspirar a construír uma moderna democracia. A discussão atual acerca do
problema tem sido efetivada, principalmente,
no contexto do pensamento liberal por Antônio Paim (50).
Exigência
inadiável para atingirmos a modernidade, consiste na formulação de uma moral
social de tipo consensual. A outra
cara da moeda do paternalismo estatal é o filhotismo da sociedade. Espera-se
tudo do Estado, até o equacionamento das questões morais e políticas. Lembremos
que isso formava parte da aritmética
política dePombal. A moral não se
discute: já está pautada institucionalmente. É questão de ciência, a ser
solucionada pelos que mandam.
A crise
brasileira hodierna pode ser caracterizada como essencialmente moral. Não há
consenso acerca do minimum comportamental a ser exigido socialmente
de cadaum dos habitantes deste país. Por inexistir esse tipo de consenso falham
as relações comerciais, num ambiente de calote generalizado;inexiste confiança
entre empresários, para o andamento dos negócios: uns e outros sentem-se livres
das obrigações dapalavra empenhada; desapareceu a seriedade e a meritocracianas
instituições deensino, cujo corpo discente gasta toda a energia mental no
desenvolvimento das técnicas da “cola”; desestrutura-se o edifício social pelo
espírito de bandalaheira, delevarvantagem em tudo; osestamentos burocráticos do
Estado arvoram-se em moralizadores da sociedade, numa paradoxal rotina de
intervencionismo, violência, confisco, inoperância e corrupção.
Somente a
formulação de uma moral social de tipo consensual, como lembra Antônio Paim
(51), permitiria à nossa sociedade superar esse impasse. Lei nenhuma, nem mesmo
anova Constituição, terá eficácia, na ausência desse fundamento moral. Não se
trataria, evidentemente, de
desconhecer o imperativo moral do foro
íntimo. Trata-se, sim, de reconhecé-lo, inserido na dinâmica histórica da
sociedade. No convívio civilizado deindivíduos de diversas formação (um
convívio eminentemente pluralista), é necessário fixar por consenso o minimum
a ser exigido,a título moral,
de todos os cidadãos. É evidente que a prática desse consenso abre a porta para a sociedade democrática.
Por último, a
pedra de toque do processo demodernização corresponde, hoje, à plena adoção da economia de mercado.
Uma economia, como a brasileira, controlada em 70% pelo Estado, pende mais para
o socialismo. A grande questão consiste em saber se os 30% restantes conseguem ainda erguer um
modelo de economia de mercado, eficiente, produtivo, aberto ao risco e à livre
iniciativa. Não nos enganemos: as travas colocadas pela Constituição de 1988 à
representação dos Estados mais modernizados, constituem um sério empecilho para
essa tarefa. São travas especialmente o
préconceito xenófobo contra o capital estrangeiro, o estreito conceito de
empresa nacional, bem como as disposiçõescartoriais do tipo de tabelamento de
juros. Impõe-se ainda, mesmo após o fracasso da revisão, uma reformulação
urgente da Constituição em vigor, principalmente no que tange a esses itens.
A fome, o
subdesenvolvimento, a falta de respeito que o Brasil sofre no plano
internacional, devemser tributados na conta da nossa estrutura econômica
pré-capitalista, que não é,aliás,
fenômeno recente, como já o tinha salientado Oliveira Vianna (52).
Enquanto não se estimular a produtividade, enquanto se tributar exclusivamente
o capital que gera empregos e o trabalho, enquanto a burocracia orçamentívora
for o negócio mais rentável (a política é, no Brasil, segundo Simon
Schwartzman, o grande negócio) (53), não sairemos do atraso. não adianta chorar
lágrimas terceiro-mundistas, atribuíndo aos países ricos a nossa desgraça.
É bem verdade
que se torna necessária uma nova ordem econômica internacional, consentânea com
a nova aglutinação geo-política do mundo após o ciclo da guerra fria. Mas o
Brasil não terá autoridade moral paraa levantar a sua voz nos foros
internacionais, enquanto aqui campearem o burocratismo orçamentívoro e a
incompetência. O único item positivo da hodierna economia brasileira, o
superávit da nossa balança comercial, ameaça ir por água abaixo, na medida em
que não for superada a mentalidade de quebra-galho e a falta de
competitividade, causadas pela defasagem tecnológica e o paternalismo estatal.
Segundo estudo sobre a situação da indústria brasileira, elaborado
pelo Long-Term Credit Bank of Japan (LTCB) (54), um dos maiores bancos de financiamento de
empreendimentos em todo o mundo, o
Brasil possuía, em 1988, a oitava economia mundial, com o setor industrial
respondendo por 33% do seu Produto Interno Bruto. Mas, na fortemente
competitiva corrida das exportações, ocupava um modestíssimo 19 lugar, atrás de Cingapura, Hong-Kong e
Austria. A eficiência da produção brasileira é bem inferior `a da
Coréia do Sul e de Formosa, do
ponto de vista dos seguintes itens:
introdução de componentes eletrônicos; preços para a exportação;
rendimento do combustível; espessura e qualidade dos laminados de aço;
introdução de robôs; automação das linhas de produção; padrões de qualidade e
segurança; capacidade de desenvolvimento de novos modelos e produção de
computadores. Isso em virtude do protecionismo e da pouca exigência do mercado
interno.
NOTAS
1) Weber, Max. Economía y sociedad.
Primeira edição em espanhol. (Tradução de J. Medina Echavarría, et
alii). México: Fondo de Cultura Económica, 1944, lo. vol., p. 241.
2) Cf. Weber,
Max. Economía
y sociedad. Ob cit., vol IV, pp. 139-140.
3) Cf.
Uricoechea, Fernando. O minotauro
imperial. Rio de JaneiroSão Paulo:
Difel, 1978, pp. 31 seg.
4) Weber,
Max. Economía y sociedad. Ob. cit., vol. IV, p. 249.
5) Wittfogel,
Karl. Le despotisme oriental. (Tradução ao francês de M. Pouteau).
Paris: Minuit, 1977, p. 1.
6) Faoro,
Raimundo. Os donos do poder. 5a. edição.Porto Alegre: Globo, 1979, vol. I,
pp. 88-89.
7) Weber,
Max. Economía y sociedad. Ob. cit.,, vol. IV, p. 249.
8) Faoro,
Raimundo. Os donos do poder. Ob. cit., vol. I, pp. 86-87.
9) Faoro,
Raimundo. Os donos do poder. Ob. cit., vol. I, p. 85.
10) Holanda,
Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 6a. edição, Rio de Janeiro: José Olympio,
1971, p. 30.
11) Kujawski,
Gilberto de Mello. “Meditação sobre o homem colonial”. Convivium, no. 4 (1977): p.
393.
12) Weber,
Max. Economía y sociedad. Ob. cit., vol. IV, p. 172.
13) Kujawski,
Gilberto de Mello. “Meditação sobre o homem colonial”. Art. cit., p. 395.
14) Faoro,
Raimundo. Os donos do poder. Ob. cit., vol. I, p. 133.
15) Torres,
João Camilo de Oliveira. Interpretação da
realidade brasileira. Rio de Janeiro: José Olympio, 1973,, pp. 28-29.
16) Ferreira,
Oliveiros S. Nossa América: Indo-América.
São Paulo: Pioneira, 1971, p. 20.
17) Leal,
Victor Nunes. Coronelismo, enxada e
voto. São Paulo: Alfa-Omega, 1975,
pp. 65-66.
18) Cf.
Uricoechea, Fernando. O minotauro
imperial. Ob. cit., p. 49.
19) Leal,
Victor Nunes. Coronelismo, enxada e
voto. Ob. cit., p. 43.
20)
Tocqueville, Alexis de. A democracia na
América. (Tradução,prefácio e notas
de N. Ribeiro daSilva). Belo Horizonte:
Itatiaia: São Paulo: Edusp, 1977, pp.
39-40.
21) Paim,
Antônio. A querela do estatismo. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1978, pp.
24-25.
22) Cit. por
Antônio Paim, in: A querela do estatismo. ob. cit., p. 21.
23) Paim,
Antônio. A querela do estatismo. ob. cit., p. 29.
24) Cf. para
o castilhismo, de Ricardo Vélez Rodríguez, Castilhismo,
uma filosofia da República. Porto
Alegre: EST; Caxias do Sul: Universidade de Caxias do Sul, 1980.
25)
Castilhos, Júlio de. “Mensagem à Assembléia do Rio Grande”, in: A Federação. 27-09-1897.
26) Ferreira
Filho, Arthur. História geral do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Globo, 1958, p. 149.
27) Britto,
Victor de. Gaspar Martins e Júlio de
Castilhos: estudo crítico de psicologia política. Porto Alegre: Livraria Americana, 1908, pp.
48-49.
28) Britto,
Victor de. Gaspar Martins e Júlio de
Castilhos. Ob. cit., p. 51.
29) Moacyr,
Pedro. Editorial, in: A Federação. 4-9-1893.
30) Britto, Victor de. Gaspar Martins e Júlio de Castilhos.
Ob. cit., pp. 52-53.
31) Paim,
Antônio. A querela do estatismo. Ob. cit., p. 74.
32) Cit. por
Antônio Paim, in: A querela do estatismo.
Ob. cit., p. 59.
33) Cf. Paim,
Antônio. A querela do estatismo. Ob. cit., pp. 81-83.
34) Cf. Paim,
Antônio. A querela do estatismo. Ob. cit., pp. 85 seg.
35) Cf.Paim,
Antônio. A querela do estatismo. Ob. cit., pp. 110 seg.
36) Cf. Paim,
Antônio. A querela do estatismo. Ob. cit., pp. 114 seg.
37) Na
análise do esforço modernizador, de cunho autoritário, empreendido por Vargas,
é interessante levar em consideração aforma em que se processou o debate dos
mais importantes temas políticos, entre as correntes conservadoras, ao redor da
Revista Cultura Política ,
dirigida por Almir de Andrade. Cf., a respeito, Congresso Nacional,
Câmara dos Deputados. Cultura Política e
o pensamento autoritário.
(Introdução de Ricardo Vélez Rodríguez). Brasília: Câmara dos Deputados,
1983. Biblioteca do Pensamento Político Republicano, 21.
38) Ferreira,
Oliveiros S. O fim do poder civil. São Paulo: Convívio, s/d., p. 16.
39) Lafer,
Celso. O sistema político
brasileiro. São Pualo: Perspectiva,
1975, p. 70.
40) Cf.
Soares, Gláucio Ary Dillon. Sociedade e
política no Brasil. São Paulo:
Difel, 1973, pp. 175 e 190.
41) Stepan,
Alfred. Os militares na política. (Tradução de I. Tronca). Rio de Janeiro:
Artenova, 1975, p. 111.
42) Paim,
Antônio. A querela do estatismo. Ob. cit., pp. 130-131.
43) Paim,
Antônio. “O defeito capital da Revolução de 64 e a tarefa magna dos próximos
anos”. In: O que mudou nestes 25 anos? -
Convivium 30, no. 3 (1987): p. 279.
44) Cf. “As
estatais”. Relatório da Gazeta Mercantil,
05-01-84, pp. 2-3. De Mário Henrique Simonsen, cf. Brasil 2001. Rio de
Janeiro: Apec, 1966.
45)
Reale, Miguel. Ävaliação da
Constituinte”. Jornal do Brasil, 25-02-88, 1o. Caderno,
p. 11.
46) Penna,
José Osvaldo de Meira. “A morte lenta da galinha dos ovos de ouro”. Boletim
Planalto. São Paulo, Boletim B, no.
34 (1994): pp. 4-5.
47) Paim,
Antônio. “Falta nitidez ao Congresso”. Boletim Planalto. São Paulo, Boletim B,
No. 34 (1994):p. 2.
48) Cf. de
Antônio Paim, “A democratização do
sufrágio”. Carta Mensal. Rio de
Janeiro, vol. 36, no. 426 (1990): pp 19 seg.
49) Crippa,
Adolpho. “O despertar da cidadania”. Boletim
Planalto. São Paulo,
Boletim A,
no. 31 (1994): p. 1.
50) Cf. de
Antônio Paim, “A educação liberal”, in”Carta Mensal. Rio de Janeiro, vol. 36, no. 424 (1990): pp.
29 seg.
51) Cf. de
Antônio Paim. Modelos éticos: introdução
ao estudo da moral. São Paulo: Ibrasa; Curitiba: Champagnat, 1992.
52) Cf. de
Oliveira Vianna, Introdução à história social da economia
pré-capitalista no Brasil. Rio de
Janeiro: José Olympio, 1958.
53)
Schwartzman, Simon. Bases do
autoritarismo brasileiro.la. edição. Rio de Janeiro: Campus, 1982.
54) Anónimo.
“Nossos tropeços lá fora”. Jornal do
Brasil . 31-07-88, Caderno
B-Especial, pp. 4-5.
BIBLIOGRAFIA
Nota: Além da
Bibliografia citada no texto, aparecem, nesta Bibliografia, asprincipais obras, editadas no Brasil, sobre
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BARRETTO,
Vicente; PAIM, Antônio; VÉLEZ RODRÍGUEZ, Ricardo et alii. Evolução do pensamento político brasileiro. São Paulo: Edusp. Belo
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BRASIL. CONGRESSO
NACIONAL. CÂMARA DOS DEPUTADOS. Cultura
política e o pensamento autoritário. (Introdução de Ricardo Vélez Rodríguez).
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