Francisco José de Oliveira Vianna (1883-1951) |
Oliveira
Vianna não foi um observador abstrato da sociedade em que vivia. Participou,
como acaba de ser mencionado, do amplo esforço modernizador e centralizador
empreendido pelo Estado getuliano. Mas seria injusto reduzir a obra do pensador
fluminense a um simples comentário tecido ao redor do élan autoritário da década de trinta. Oliveira Vianna pensou de
maneira criativa o autoritarismo e a modernidade do Brasil e fez uma crítica
sistemática aos extremos liberal-oitocentista e patriarcal-clânico em que
naufragaram as nossas reformas desde o Império. Não se pode captar, de forma
adequada, o alcance dos conceitos do sociólogo fluminense, sem atender para a
sua metodologia de trabalho e para a sua idéia de cultura. Por isso, deter-me-ei
nesses aspectos da sua magna obra, após ter feito a exposição dos principais
traços biobibliográficos.
I - ASPECTOS BIO-BIBLIOGRÁFICOS DE OLIVEIRA VIANNA
Francisco
José de Oliveira Vianna nasceu em Saquarema, na antiga Província Fluminense, em
20 de julho de 1883, na Fazenda do Rio Seco, e faleceu em Niterói, no Estado do
Rio de Janeiro, em 27 de março de 1951. O seu pai, fazendeiro, era a encarnação
do paterfamílias. A propósito, frisa
o biógrafo de Oliveira Vianna, Vasconcellos Torres: "A incontrastável
autoridade do paterfamílias dava tons
sublimes ao patriarcado. O núcleo larário tinha muito de templo. Um ambiente
doméstico para melhor sobressair a solidariedade. a sociedade era a fazenda, a
família e os agregados, cujos interesses fora do círculo parental eram ardorosa
e fraternalmente defendidos pelo patrão" [Torres, 1956: 19]. Em que pese a
sua natural inclinação pelo estudo da matemática, o jovem Oliveira Vianna viu
frustrados os seus planos de ingressar na Escola Politécnica do Rio de Janeiro.
Cursou, então, a Faculdade de Direito, tendo-se bacharelado em 1905. Integrou, a seguir, o corpo docente do
Colégio Abílio, de Niterói, como professor de matemática. Já desde os últimos
anos de estudos universitários colaborou ativamente no jornalismo: escrevia no Diário
Fluminense, no jornal A Capital, e logo em outros como A Imprensa,
O Paiz e a Revista do Brasil, de São Paulo. Praticamente não exerceu a
profissão de advogado, tendo preferido se dedicar ao estudo dos problemas
nacionais.
Através da
atividade jornalística entrou em contato com Alberto Torres (1865-1917), de
cuja amizade receberá forte impulso e influência intelectual para escrever o
seu primeiro livro, Populações meridionais do Brasil - volume I: Populações do Centro-Sul, que
terminou em 1918 e publicou em 1920. Em 1916 iniciou o seu trabalho como
professor de Teoria e prática do Processo penal, na Faculdade de Direito do
Estado do Rio de Janeiro (depois denominada de Faculdade de Direito de
Niterói). Por esse tempo, era forte a influência de Ferri, cuja obra admirava o
jovem professor, mais do ponto de vista sociológico do que puramente
criminalístico. A partir da publicação do seu primeiro livro em São Paulo, sob
os auspícios de Monteiro Lobato (com quem o nosso autor teve grande amizade),
tornou-se conhecido a nível nacional e internacional. Sobre o primeiro volume
de Populações
meridionais do Brasil escreveu o argentino José Ingenieros: "Pelo
seu método, pelas suas idéias, pela sua erudição, tem-me parecido uma das obras
mais notáveis no gênero que até agora foi escrita na América do Sul".
A intuição
em que se baseia Populações meridionais consiste em identificar no latifúndio
vicentista as remotas origens patriarcais da organização social brasileira.
Esta evoluiria, consoante o nosso autor, no decorrer dos séculos XVIII e XIX,
até a consolidação do Estado Nacional no Império e o fortalecimento político
das oligarquias regionais na República Velha. Oliveira Vianna dedicou as suas
obras sociológicas ao estudo monográfico de aspectos essenciais dessa complexa
realidade, nos seguintes livros: O idealismo da Constituição (1920), Pequenos
estudos de psicologia social (1921), Evolução do povo brasileiro (1923),
O
ocaso do Império (1925), Problemas de política objetiva (1930),
Formation
ethnique du Brésil colonial (1932), Raça e assimilação
(1932). Depois da Revolução de 1930 que levou Getúlio Vargas ao poder, Oliveira
Vianna tornou-se consultor da Justiça do Trabalho. Graças a essa posição, o
nosso autor influiu decisivamente na elaboração da nova legislação sindical e
trabalhista. Assinale-se desde logo que a sua influência não foi apenas
técnico-jurídica, abrangendo também o campo dos princípios. Como terei
oportunidade de destacar mais adiante, Oliveira Vianna considerava o insolidarismo
como o traço mais caraterístico dos indivíduos e dos grupos na sociedade
brasileira, razão pela qual defendia o papel coactivo e educador do Estado, na
formação do que ele chamava de um comportamento culturológico, capaz de se
sobrepor ao espírito insolidarista.
Desfrutando
de uma situação em que poderia atuar nessa direção, não deixou de faze-lo, como
se vê da parcela subsequente da sua obra integrada pelos seguintes livros, que
materializam o seu pensamento acerca desse segmento da atuação culturológica: Problemas
de direito corporativo (1938), Problemas de direito sindical (1943)
e a coletânea de ensaios intitulada Direito do trabalho e democracia social (publicada
em 1951). Teve a formação católica de Oliveira Vianna algum peso na elaboração
da sua obra no campo do direito do trabalho, como sugere Vasconcellos
Torres? Provavelmente sim, embora de
forma mitigada. Amigo de Getúlio Vargas, recebeu dela a indicação para ser
ministro do Supremo Tribunal Federal; mas declinou o oferecimento. Alegara razões
de idade para se dedicar ao estudo do direito civil e, além disso, manifestara
a vontade de voltar aos seus estudos sociológicos. Foi-lhe oferecido então
outro importante cargo, o de ministro do Tribunal de Contas da União, em 1940,
que o nosso autor aceitou, movido em parte pelo fato de o novo cargo não lhe
impedir a dedicação às suas pesquisas sociológicas. De fato, a circunstância
permitiu-lhe dar forma acabada à sua meditação, notadamente mediante a
complementação de Populações meridionais do Brasil, com a publicação do segundo
volume, dedicado ao estudo do campeador
rio-grandense. Esta obra foi publicada postumamente em 1952. Outros escritos do período foram
Instituições políticas brasileiras (1949), Problemas de organização e
problemas de direção (1952), Introdução à história social da economia
pre-capitalista no Brasil (livro publicado postumamente em 1958), História
social da economia capitalista no Brasil, História da formação racial do Brasil
e Ensaios (reunião de trabalhos esparsos do autor, como opúsculos e
publicações em revistas especializadas). As últimas três obras ainda não foram
publicadas.
De índole
pessoal tímida e pouco inclinada às manifestações públicas, o nosso autor
praticamente não saiu da sua terra natal. Além de curtas viagens a São Paulo, a
São José dos Campos e às Estâncias hidrominerais de Minas Gerais para
tratamento de saúde, não se afastou do Rio e do cenário fluminense. Declinou
atenciosamente os convites que lhe foram feitos em várias ocasiões; por Getúlio
Vargas em 1928 para pronunciar uma conferência em Porto Alegre; pelo governador
gaúcho Flores da Cunha, alguns anos mais tarde; pelo amigo Afranio Peixoto,
radicado em São Paulo. Igualmente, recusou o convite que lhe fez o chanceler
Oswaldo Aranha, em 1944, para chefiar uma missão de estudos do Itamaraty ao
Paraguai. Oliveira Vianna integrou a
Academia Brasileira de Letras. Pertenceu também, como membro correspondente, às
seguintes entidades culturais: Instituto Internacional de Antropologia,
Sociedade dos Americanistas de Paris, Sociedade Portuguesa de Antropologia e
Etnologia, Academia Portuguesa de História, União Cultural Universal de
Sevilha, Academia de Ciências sociais de Havana, Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro, etc.
II - BASES GNOSEOLÓGICAS PARA O ESTUDO DA REALIDADE
BRASILEIRA
Embora
sempre tivesse observado rigorosa fidelidade em face dos conceitos relacionados
ao papel e abrangência da sociologia e do direito, muito tardiamente, porém, o
ensaista fluminense preocupou-se com uma explicitação sistemática dos mesmos.
Apenas em 1949, com a primeira edição de Instituições políticas brasileiras, Oliveira
Vianna expôs sistematicamente as que podemos considerar como suas bases
gnoseológicas para o estudo da realidade brasileira. Para que o leitor possa
apreender de modo pleno esse aspecto de sua meditação, cumpre desdobrá-lo deste
modo: 1) o primado da objetividade científica na obra de Oliveira Vianna;
2) a presença dessa objetividade na
própria atividade intelectual do escritor; 3) a perspectiva gnoseológica de
Oliveira Vianna: a culturologia do Estado num contexto pluridimensional;
4) os complexos culturais e a morfologia
do Estado, segundo o ensaista fluminense.
1) A questão da objetividade científica. - No prefácio
à quarta edição da obra Evolução do povo brasileiro, (cuja
primeira edição foi de 1937), Oliveira Vianna reage contra a forma unilinear de
entender a evolução das sociedades, como se houvesse leis gerais que a comandassem. Acolhendo os conceitos de Gabriel
Tarde, o nosso autor considera que existem múltiplas tendências na evolução das
sociedades, e que é impossível reduzi-las a um único esquema. Existe, hoje, à
luz das ciências sociais, o heterogêneo
social de que fala Gabriel Tarde, contraposto ao homogêneo social de Spencer [cf. Vianna, 1956: 26-27].
No estudo
das sociedades podemos encontrar, segundo Oliveira Vianna, multiplicidade de
linhas de evolução e de fatores que intervêm nessas linhas. Para essa
multiplicidade de tipos - frisa o nosso autor -, para essa variedade de linhas
de evolução, para este heterogenismo inicial contribui um formidável complexo
de fatores de toda ordem, vindos da Terra, vindos do Homem, vindos da
Sociedade, vindos da História: fatores étnicos, fatores econômicos, fatores
geográficos, fatores históricos fatores climáticos, que a ciência cada vez mais
apura e discrimina, isola e classifica. Estes predominam mais na evolução de
tal agregado; aqueles, mais na evolução de outro, mas, qualquer grupo humano é
sempre conseqüência da colaboração de todos eles; nenhum há que não seja a
resultante da ação de infinitos fatores, vindos, a um tempo, da Terra, do
Homem, da sociedade e da História. Todas as teorias, que faziam depender a
evolução das sociedades da ação de uma causa única, são hoje teorias
abandonadas e peremptas: não há
atualmente monocausalismos em ciências sociais".
Entre todos
esses fatores e sem pretender ensejar uma explicação monocausalista, Oliveira
Vianna considera de alta importância o elemento por ele chamado de ambiente cósmico, ligado basicamente às
condições do solo. Acha que em seu tempo prevaleciam em ciências sociais os
trabalhos monográficos, que tentam identificar os elementos específicos que
intervêm em determinado meio cósmico.
Esses trabalhos devem ter como ponto de partida uma única preocupação:
conhecermo-nos a nós mesmos, deixando de lado as tentativas de acomodar a nossa
realidade a modelos preexistentes. A
respeito, Oliveira Vianna é taxativo em Evolução
do povo brasileiro: "Desde o momento em que a ciência
confessava a sua ilusão e reconhecia que as leis gerais, a que havia chegado,
não correspondiam à realidade das formas infinitas da vida, compreendi que a
melhor coisa a fazer não era insistir por encerrar a nossa evolução nacional
dentro dessas fórmulas vãs ou querer subordinar nosso ritmo evolutivo a um
suposto ritmo geral da evolução humana - ao evolucionismo spenceriano, como fez
Sílvio Romero, à teoria filogenética de Haeckel como fez Fausto Cardoso, ou à
lei dos três estados de Comte, como têm feito os positivistas sistemáticos.
Pareceu-me trabalho inútil esforçar-me por descobrir nos acontecimentos da
nossa história a revelação dessas leis gerais, de que a própria ciência acabava
de instaurar o processo de falência. O mais sábio caminho seria tomar para
ponto de partida o nosso povo e estudar-lhe a gênese e as leis da própria
evolução. Se estas coincidissem com as supostas leis gerais, tanto melhor para
a ciência e para nós; se não, ficaríamos, pelo menos, conhecendo-nos a nós mesmos -
o que já seria alguma coisa, porque valeria o consolo de estarmos com a
sabedoria dos antigos" [Vianna,
1956: 37].
Só assim,
renunciando de início a qualquer esquematismo preestabelecido, é possível
contribuir para a ciência social e para a materialização de uma política orgânica. Unicamente a história
(e Oliveira Vianna segue aqui o pensamento de Ranke e de Mommsen) é capaz de
nos ajudar a reconstruir as diversas fases evolutivas de um povo determinado,
chegando assim a desvendar o seu modo de ser próprio. A preservação dos valores
da Civilização do Ocidente no nosso meio dependeria desse trabalho de pesquisa
histórica. Referindo-se aos nossos velhos
historiadores, Oliveira Vianna salienta que lhes faltam dois elementos
essenciais: o povo, que ele chama de massa
humana e o meio cósmico. Eis as suas palavras a respeito: "Duas
coisas, realmente, não aparecem nas obras dos nossos velhos historiadores senão
furtivamente e a medo, duas coisas sem as quais a história se torna defectiva e
parcial. A primeira é o povo, a massa humana sobre que atuam os criadores
aparentes da história: vice-reis, governadores gerais, tenentes-generais,
funcionários de graduação, diretamente despachados da metrópole. A segunda é o
meio cósmico, o ambiente físico em que todos se movem, o povo e os seus
dirigentes, e onde um e outros haurem o ar que respiram e o alento que lhes
nutre as células, e que age como o seu relevo, a sua estrutura, o seu subsolo,
a sua hidrografia, a sua flora, a sua fauna, o seu clima, as suas correntes
atmosféricas e as suas intempéries. Tudo isto influi, tudo isto atua, tudo isto
determina as ações dos homens na vida cotidiana - e, entretanto, nada disto
parece se refletir na explicação da nossa gente" [Vianna, 1956: 48].
Oliveira
Vianna afirma que nesse trabalho de pesquisa sobre a nossa gente, inspira-se no mesmo espírito de objetividade e
imparcialidade com que os técnicos agrícolas estudam, por exemplo, os problemas
do café. A respeito, escreve: "Estudando as nossas realidades históricas e
sociais, o nosso povo, a sua estrutura, a sua psicologia, e a vida, a estrutura
e a psicologia dos grupos regionais, que o compõem, faço-o com o mesmo espírito
de objetividade e a mesma imparcialidade com que os técnicos do Serviço de
Defesa Agrícola estão agora estudando a praga
vermelha dos cafezais da Paraíba ou os sábios de Manguinhos estudaram,
entre as populações do planalto e da costa, a função patogênica do necator americanus (...). O meu grande,
o meu principal empenho é surpreender o Homem, criador da história, no seu meio
social e no seu meio físico, movendo-se e vivendo neles, como o peixe no seu
meio líquido" [Vianna, 1956: 50].
Essa
preocupação com a objetividade científica, comprometida com a observação
paciente de todos os detalhes do fenômeno social, tentando chegar a categorias
que expressem aquela realidade, faz-se presente em todas as obras de Oliveira
Vianna. Mesmo em pontos altamente discutidos e discutíveis - como na questão da
superioridade organizacional da raça ariana -
não podemos deixar de reconhecer um grande esforço de observação da
realidade social. Ao expor, por exemplo, a progressiva arianização da população
brasileira, o autor procura alicerçar todas as suas afirmações em dados
estatísticos, hauridos dos recenseamentos oficiais [cf. Vianna, 1938: 127-165;
1956: 186-191]. E não deixa de reconhecer, com inegável sensibilidade de
cientista, o caráter hipotético das suas afirmações, abertas sempre à discussão
pela comunidade científica e ao confronto com a realidade [Cf. Vianna, 1956:
5-6].
2) Testemunhos biográficos. - Essa preocupação
pela objetividade condicionou, aliás, a metodologia de trabalho do nosso autor.
Segundo testemunho de seu biógrafo, Vasconcellos Torres, o sociólogo fluminense
tinha uma definida disciplina intelectual: "Quem visse as pequeninas
folhas de seu fichário, fichário no sentido de coleção porque as suas notas
eram apenas amarradas num barbante e separadas por assunto, não suspeitaria
que, na aparente desorganização com que se apresentava, possuíam extraordinária
unidade. Ele sabia encontrá-las no instante preciso. De ver o carinho que
nutria por esses papagaios, como os
denominava. Quando começava a escrever o livro, a atividade era febricitante e
ininterrupta. Na segunda leitura dos originais incluía ou retirava trechos e,
digno de referência, era a papelada, um pedaço menos para outro duas vezes
maior que uma folha de almaço, colada e com tiras laterais que mais pareciam
serpentinas. A datilografia não representava o fim. O processo continuava. (...).
De quando em quando examinava recortes de jornais que lhe interessavam,
beneditinamente conservados numa pasta" [Torres, 1956: 79-80].
O autor de Populações
meridionais não escrevia por escrever. Amadurecia pausadamente uma
idéia, até que a encontrava suficientemente clara para divulgá-la. A carta que
endereçou ao chanceler Oswaldo Aranha em 1944, recusando o convite que lhe
formulara para chefiar uma missão do Itamaraty no Paraguai é bem significativa,
porque revela, numa confissão autobiográfica, a medida do seu compromisso como
intelectual: "O apelo de V. Exa. me encontra no momento justo, exato de um
verdadeiro demarage literário: o do
recomeço da elaboração de uma obra, cuja conclusão há pouco mais de dez anos
fui forçado a interromper e que por sua vez representa o labor de vinte anos de
intensas leituras e penosas pesquisas arquivais sobre o Brasil. São nada menos
que quatro volumes, já compostos, embora em escorço grosseiro e despolido
(...). Estes quatro volumes eu os havia composto no período que vai de 1924 a
1932, depois de ter concluído o primeiro das Populações meridionais e
a Evolução
do povo brasileiro (...). Não se admire, meu caro chanceler de ter eu
tantos livros no estaleiro, elaborados, mas inéditos. É isto conseqüência do
meu método um tanto extravagante de trabalho: planejando o livro, escrevo-o
logo (...), sem lavor literário (...); feito isto guardo-o; e só depois de
vários anos é que o retomo para os trabalhos definitivos de refusão,
atualização e polimento" [apud Torres, 1956: 80].
Hélio
Palmier, o último secretário particular de Oliveira Vianna, deu o seguinte
testemunho acerca da rigorosa disciplina científica do mestre: "Seu método
de trabalho era uma prova da sua probidade intelectual. Confessou-me, certa vez,
jamais ter idéia preconcebida de escrever um livro. Anotava fatos ou observações
em pequenos pedaços de papel - papagaios
chamava-os - reunia-os, depois de certo
tempo, e, verificando a interrelação dos fenômenos observados, deduzia fatos,
estabelecia leis, e só então ia procurar
os livros dos estudiosos - dos sabidos,
como dizia. Ditava-me, então, os originais. Recebendo-os de volta,
datilografados, na ânsia da perfeição recortava-os, emendava-os ou
inutilizava-os, mandando-me fazê-los de novo; e repetia essa operação várias
vezes. Elaborado o livro guardava-o, para, mais tarde, anos depois verificar se
os fatos estavam a confirmar as suas teses. Caso contrário, eliminava,
sumariamente, os pontos falhos. Na revisão das provas tipográficas, ainda não
satisfeito, fazia alterações, acrescentava frases, suprimia parágrafos"
[apud Torres, 1956: 80].
3) Perspectiva gnoseológica de Oliveira Vianna: a
culturologia do Estado num contexto poliédrico ou pluridimensional. - Em Instituições
políticas brasileiras Oliveira Vianna firma o que pode ser chamado de
bases gnoseológicas para o estudo da sociedade brasileira. O autor salienta, em
primeiro lugar, a presença do direito costumeiro do povo-massa. direito que é geralmente desconhecido pelos
legisladores. A respeito, frisa: "Há, por exemplo, um largo setor do nosso
direito privado que é inteiramente costumeiro, de pura criação popular, mas que
é obedecido como se fosse um direito codificado e sancionado pelo Estado. Quero
me referir ao direito que chamo esportivo
e que só agora começa a ser anexado
pelo Estado e reconhecido por lei. Este direito (...) organizou instituições
suas, peculiares, que velam pela regularidade e exação dos seus preceitos. Tem
uma organização também própria de Clubes, Sindicatos, Federações,
Confederações, cada qual com administração regular (...) e um Código Penal seu
(...). Direito vivo, pois. Dominados pela preocupação do direito escrito e não vendo nada mais além da lei, os nossos juristas esquecem este
vasto submundo do direito costumeiro do nosso povo (...)" [Vianna, 1974:
I, 22-23]. Logo a seguir, na mesma obra, o nosso autor aponta uma outra
manifestação desse direito costumeiro.
Trata-se do que ele chama de direito
social operário, que é caracterizado nos seguintes termos: "Todo um
complexo de normas e regras (...), objetivado em usos, tradições, praxes, costumes, mesmo instituições
administrativas oficiosas. Era todo
um vasto sistema, que regulava as atividades (...), a vida produtiva de milhões
de brasileiros, mas cuja existência os nossos legisladores não haviam sequer
pressuposto. Sistema orgânico de normas fluidas, ainda não cristalizadas ou
ossificadas em códigos; mas, todas provindas da capacidade criadora e da
espontaneidade organizadora do nosso próprio povo-massa, na sua mais autêntica expressão" [Vianna, 1974: I,
27].
Exemplo
desse direito social operário
costumeiro seria o conjunto de normas práticas que nortearam, ao longo de
quatro séculos, o trabalho marítimo e da estiva. Indica que os técnicos do
Ministério do Trabalho, respeitando as tendências do povo massa, com muito bom senso simplesmente incorporaram esse
direito ao texto legal. Acha ainda que preocupação idêntica orientou os
técnicos do Ministério na elaboração da legislação sindical, embora não
pretenda negar a inspiração forânea.
Tema predileto do pensador fluminense seria justamente a afirmativa de
que direito semelhante do nosso povo-massa
vingou no terreno constitucional. Ignorando que o nosso povo sempre teve o seu
direito público próprio, costumeiro, a elite intelectual elaborou outro
direito, teórico, que sempre entrou em atrito com o primeiro. Oliveira Vianna
sintetiza assim os traços fundamentais desse direito público do povo-massa: "1) Na vida política do
nosso povo, há um direito público elaborado pelas elites e que se acha
concretizado na Constituição. 2) Este
direito público elaborado pelas elites, está em divergência com o direito
público elaborado pelo povo-massa e,
no conflito aberto por esta divergência, é o direito do povo-massa que tem
prevalecido praticamente. 3) Toda a dramaticidade da nossa história política
está no esforço improfícuo das elites para obrigar o povo-massa a praticar este direito por elas elaborado, mas que o
povo-massa desconhece e que se recusa a obedecer" [Vianna, 1974: I, 27].
E conclui
assim, ligando a problemática política à mais ampla problemática do
comportamento humano e da cultura, e assinalando o papel que corresponde a ele,
como cientista social, nesse contexto: "O meu objetivo será, pois, (...)
estudar o nosso direito público e constitucional exclusivamente à luz dos
modernos critérios da ciência jurídica e da ciência política: isto é, como um fato de comportamento humano. Dentro
desse critério, os problemas de reformas
de regime, convertem-se em problemas
de mudança de comportamento coletivo, imposto ao povo-massa; portanto em problemas
de cultura e de culturologia aplicada".
Na linha de
Ralph Linton, Donald Pierson, Baldus e Willems, Oliveira Vianna entende o termo
cultura no sentido originário da
palavra alemã Kultur, que os ingleses
traduziram como culture e que a
escola sociológica francesa entendeu como ethnographie.
Esse termo refere-se ao meio social
ou à formação social. O ensaista
fluminense esclarece que só passou a utilizar esse termo na última parte da sua
obra (a partir de Instituições políticas brasileiras, que data de 1949) e explica
assim a razão desse atraso: "É que, dominado, literariamente, pela
preocupação do lucidus ordo
cartesiano, sempre fugi, por sistema, nos meus escritos, às expressões
demasiadamente técnicas, só acessíveis a mestres, a profissionais ou a
iniciados, ou ainda não incorporadas àquela língua
franca da ciência, de que nos fala Linton". Mas esclarece que passa a
usar o termo cultura na acepção acima
indicada, levando em consideração que em língua portuguesa já se encontra uma
bibliografia suficiente para a correta interpretação sociológica do mesmo.
Oliveira Vianna menciona a obra: Introdução à antropologia social de
Ralph Linton, bem como o Dicionário de etnologia e sociologia
de Baldus e Willems, a revista paulista Sociologia e a obra
Teoria e pesquisa em sociologia de Donald Pierson. (Convém esclarecer que
o livro de Ralph Linton foi traduzido por Lavínia Vilela em São Paulo, em 1934,
ao passo que a obra de Baldus e Willems foi publicado na mesma cidade em 1939,
ano em que apareceu também em São Paulo a obra de Pierson). O sociólogo
fluminense alerta, contudo, para o perigo de utilizar o termo cultura fora do sentido sociológico,
como cultura intelectual, salientando
que essa foi a dificuldade enfrentada por Fernando de Azevedo na sua obra
intitulada A cultura brasileira.
Quanto à culturologia do Estado, especificamente,
Oliveira Vianna frisa que esse é o aspecto que mais lhe interessa e que
pretende ter desenvolvido na maior parte das suas obras, desde Populações
meridionais do Brasil (1920) até Instituições políticas brasileiras (1949);
trata-se, portanto, do que poderiamos chamar de objeto formal da sua sociologia, o aspecto específico sob o qual o
pesquisador fluminense estuda a realidade brasileira. A culturologia
do Estado, salienta Oliveira Vianna, é especialidade assaz descuidada por
parte dos etnólogos. Confessa ter encontrado alguma coisa sobre esse tema na Social
anthropology de Radin, nos Principles of Anthropology de
Carleton Coon e Chapple e na obra clássica de Goldenweiser. Contudo, frisa o
nosso autor, "foram os franceses e não os americanos que me deram as
melhores sugestões sobre este ponto, e o livro de Moret e Davy, Des
clans aux empires (Paris, 1932) é o mais sugestivo trabalho que conheço
sobre a genética do Estado". Em que pese o fato de Oliveira Vianna ter
lido a obra de Max Weber [cf. Vianna, 1974: I, 93, 95, 114-115, 123-124, 291],
não chega a se interessar, contudo, pelo estudo que o sociólogo alemão faz do Patrimonialismo, (tipologia que teria,
aliás, encaixado perfeitamente nas categorias telúricas do nosso autor). Weber interessa a Oliveira Vianna sob
dois aspectos especificamente: no estudo das comunidades de aldeia na Europa
feudal, e na análise do oikós do
faraó, que o ensaista fluminense achava muito semelhante à autarquia econômica
materializada no engenho real
descrito por Antonil. Talvez o nosso autor achasse a categoria do Patrimonialismo weberiano alheia ao
contexto americano, levando em consideração o fato de o sociólogo alemão
ilustrar esse tipo ideal a partir das sociedades antigas, como a chinesa ou a
egípcia. A aplicação mais larga do conceito de Patrimonialismo, de modo a situar nele o absolutismo ibérico
pós-feudal seria feita muito posteriormente na análise de Wittfogel (Oriental
despotism, Yale University Press, 1957).
Analisando
as relações entre direito, cultura e comportamento social, Oliveira Vianna lembra que dos métodos
enumerados por Jacobsen como utilizáveis no estudo da ciência política, do
direito público e das instituições do Estado (histórico, comparativo, filosófico, experimental, biológico,
psicológico e legístico), só apenas um tem sido aplicado no Brasil: o legístico, que "vê a sociedade
política apenas como uma coleção de direitos e obrigações expressos em lei e
tende a não levar em conta as forças sociais e extralegais, sem as quais,
entretanto, não seria possível nenhuma explicação que corresponda aos fatos da
vida do Estado" [Vianna, 1974: I, 33-34]. Quanto ao moderno método
científico ou sociológico, que se caracteriza pela objetividade dos seus critérios,
Oliveira Vianna supõe que em geral os nossos juristas o consideraram sempre
como uma impertinência, continuando fiéis à metodologia de Rui Barbosa. O
pioneirismo nesse campo é representado por Alberto Torres, Sílvio Romero,
Euclides da Cunha e por ele mesmo. A respeito, o nosso autor escreve: "O
segundo tipo de estudos - do direito como costume
ou cultura - tem o seu primeiro padrão nos ensaios de
Torres, começando com a pioneiragem de Sílvio e Euclides. Depois, no estudo
sistemático e rigorosamente científico que, nos meus livros, venho fazendo da
história e da sociologia das nossas instituições políticas e
partidárias". Informa ter sido
Sílvio Romero quem primeiro o influenciou desde 1900, quando ainda era
estudante. O elemento mais importante dessa influência foi a revelação da
escola lepleyana, cujo critério monográfico Oliveira Vianna achou então o mais
apropriado para o estudo do povo brasileiro. O ulterior encontro com Alberto
Torres (em 1914), quando o nosso autor já era bacharel em Direito, bem como o
estudo dos sociólogos americanos e franceses, vieram aprofundar a herança
recebida de Sílvio Romero e Euclides da Cunha.
Para
Oliveira Vianna é um fato que o método sociológico se aplica, cada vez com
maior intensidade, ao campo do direito. A grande preocupação é com a objetividade, que ele entende assim:
"Objetividade - eis o caráter
que distingue esta fase moderna da ciência do direito, esta nova metodologia,
esta nova atitude dos espíritos em face do fenômeno jurídico. Estudar a vida do
direito criminal, do direito internacional com a mesma objetividade com que
Lévy-Bruhl estudou as funções mentais nas sociedades primitivas, ou
Radcliffe-Brown os ritos mágicos dos indígenas das Ilhas Adaman, ou Malinowski
a vida dos insulares da Melanésia - eis o ideal do moderno estudo do direito
como ciência social, seja o Direito Privado, seja o Direito Público"
[Vianna, 1974: I, 35]. A seu ver, nesse esforço de aplicação do método
sociológico ao direito, têm sido de grande valor os trabalhos da Escola de
Direito Comparado de Lyon sob a direção de Eduardo Lambert, bem como a
contribuição da Nova Escola Americana de Jurisprudência (Holmes, Roscoe Pound,
Benjamin Nathan Cardozo, Brandeis, Karl Llewellyn, Felix Frankfurter,
Huntington Cairns, Max Radin, Jerôme Frank, etc.). Considera que a influência
das ciências sociais (principalmente da psicologia social, da etnografia, da
economia política, da antropogeografia, da culturologia) sobre o direito, tem
contribuído para que esta disciplina se liberte progressivamente dos seus
elementos apriorísticos e se torne uma autêntica ciência social, cada vez mais
objetiva.
Como fazer
- pergunta o nosso autor - um estudo do
direito que possa ter peso científico? A resposta é simples: referindo-o aos
comportamentos sociais. Isso porque (e aqui Oliveira Vianna segue o pensamento
de Huntington Cairns na obra The Theory of legal science,
publicada em 1941), as ciências sociais podem ser definidas como um tipo de
conhecimento que tem como objetivo "o estudo do comportamento humano, tal
como se manifesta em ações na sociedade". Se a base da cientificidade do
direito é o comportamento social,
conclui que ela será constituída não pelo direito escrito - como se considerou
no Brasil - mas pelo direito costumeiro. A conseqüência que
Oliveira Vianna tira dessa premissa é clara: no povo-massa reside a base objetiva da cientificidade do direito, por
ser ele a fonte do direito público costumeiro. E conclui: "Em vez de um
problema de hermenêutica constitucional, torna-se, assim, o estudo do nosso
direito público e constitucional um problema de culturologia aplicada".
Esta conclusão implica na realização de um aprofundamento no sentido da cultura e da sua influência como
força determinante dos comportamentos individuais. A respeito deste ponto,
o nosso autor critica, em primeiro lugar, o panculturalismo
de Spengler, Schmidt e Frobenius, por se tratar de uma reação extremada contra
o biologismo unilateralista, que reduzia a sociedade a um agregado de
indivíduos. Oliveira Vianna critica a concepção panculturalista, em decorrência
da concepção determinística do homem que a empolga. A respeito, frisa: "Para
os culturalistas há então, na Cultura, uma virtualidade própria - mística ou
mágica, como quer que seja - que anula qualquer ação em contrário do Homem,
reduzido assim à condição de homúnculo ou menos do que isto. Mesmo que este
homem seja um grande homem” [Vianna, 1974: I, 44].
Esse vício
determinístico do panculturalismo
provém do fato de considerar a cultura como exterior ao homem. Esse extremo
corresponde, no entanto, a uma primeira fase da teoria culturalista. Entende
que essa concepção, fundada na suposição de que a cultura transcende ao homem,
teria sido substituída por uma visão que o nosso autor chama de imanência da cultura. Em relação a este
ponto escreve: "É que (as ciências sociais) acabaram encontrando a cultura
dentro do próprio homem e, portanto, imanente ao homem". Oliveira
Vianna cita a este respeito um texto de A. Kardiner, que exprime claramente a
idéia de imanência: "Temos que reconhecer, porém, que o indivíduo é o
portador das instituições e o meio através do qual elas se perpetuam. A
cultura, que não é mais do que uma abstração do observador, existe unicamente
nas psiques dos indivíduos que
compõem a sociedade. As características do homem, que tornam possível a
cultura, constituem os objetos supremos do estudo". Assim, as ciências têm
mostrado que toda cultura se dá num contexto de reflexos condicionados por vários fatores, de forma tal que ela
também está dentro de nós. A conclusão seria que a cultura, entendida desta
forma ampliada, reconhecendo a existência independente da psique e da estrutura
física dos indivíduos, não os aniquila, mas preserva, pelo contrário, a sua
criatividade. As modernas pesquisas de
cientistas como Malinowski, Mac Iver e outros, teriam demonstrado claramente as
falhas do panculturalismo: estudando
sociedades primitivas, tais pesquisas chegaram à conclusão de que as normas culturais vigentes em determinado
meio têm um valor relativo quanto ao modo
de sua execução. O qual demonstra a insuficiência do contexto dado pela
cultura, para explicar, de forma exclusiva e sem recorrer a fatores diferentes,
as variações de comportamento em relação à norma preestabelecida
(culturalmente).
Oliveira
Vianna expressa deste modo a sua divergência com os seguidores americanos do panculturalismo: "O meu ponto de
divergência com os antropologistas da escola culturalista, Boas e seus
seguidores, é que eles consideram a cultura
como um sistema social que encontra explicação em si mesmo, ao passo que eu,
embora aceite a concepção central da etnologia americana - do regionalismo das áreas de cultura -
contudo, não aceito o panculturalismo desta escola, que quer
tudo explicar em termos de cultura,
até os fenômenos fisiológicos, e se recusa a fazer intervir, na formação e
evolução das sociedades e da civilização, os fatores biológicos, negando
qualquer influência ao indivíduo ou à raça e à sua poderosa
hereditariedade". Na base da crítica do nosso autor está a firme
convicção, repetidas vezes afirmada, "da importância que na elaboração das
culturas e dos seus destinos, tem o homem, o seu temperamento, as suas
idiossincrasias pessoais - o poliedrismo
da sua personalidade" [Vianna, 1974: I, 57]. Em que pese as críticas
feitas ao panculturalismo, Oliveira
Vianna não deixa de reconhecer um alto valor heurístico à escola culturalista,
quando desprovida dessa metafísica
sócio-vitalista, que faz da cultura entelechia
responsável por tudo quanto acontece nas sociedades. Justamente na medida em
que um cientista como Ralph Linton consegue relativizar em alguma medida a
função cultural, nos seus estudos sobre as relações entre personalidade e
cultura é dada a esta variável a sua adequada dimensão, apesar da originária inspiração
desse autor na escola culturalista. As possibilidades desta escola, aliás,
estão chegando aos seus limites, afirma Oliveira Vianna. Pode-se fazer hoje a
previsão de que "não está muito longe o dia em que a sociologia terá de reconhecer
- na gênese das culturas e nas transformações das sociedades - não apenas o papel da hereditariedade individual e do grande
homem, mas mesmo o papel da raça. Na
verdade, tudo parece afluir para uma grande síntese conciliadora (...). O certo, porém, é que passou definitivamente
a época dos exclusivismos monocausalistas" [Vianna, 1974: I, 70-71].
Em que
termos se efetivaria essa síntese
conciliadora? O nosso autor assim explica esse processo: "Em suma, o
quadro clássico dos fatores da
Civilização e da História se está restaurando. Em vez de uma causa única - meio só (Buckle), ou raça só (Lapouge), ou cultura só (Spengler, Frobenius, Boas)
- a ciência confessa que tudo se
encaminha para uma explicação múltipla, eclética, conciliadora: Raça + Meio +
Cultura. Com estes elementos é que ela está recompondo o quadro moderno dos fatores de Civilização". Quanto ao
tipo em que se inspira esta posição, Oliveira Vianna frisa: "É o que
esperamos do trabalho científico feito sob a inspiração daquela integralist sociology, de que nos fala
Sorokin e que concebe a realidade social como um complexo multifário (a complex manifold)". À luz dessa perspectiva conciliadora, ou
melhor, segundo os termos usados pelo próprio autor, poliédrica, Oliveira Vianna entende a totalidade da sua obra como
um esforço para aproximar-se desse grupo de fatores (Raça, Meio, Cultura),
fazendo recair a ênfase em algum deles. Daí o caráter monográfico da sua obra.
A respeito, afirma: "Nos meus livros anteriores, (...) tenho investigado
todos esses grupos de fatores da nossa formação e da nossa evolução histórica e
social: o meio antropogeográfico (clima e solo), os fatores biológicos e
heredológicos (linhagem e raça) e os fatores sociais (cultura), embora com
outra tecnologia. Retomo agora (em Instituições políticas brasileiras),
depois de dez anos de forçada interrupção, estes meus estudos sobre a nossa
formação social (...). Por agora, irei investigar neste volume, e de forma
monográfica e especializada, unicamente o papel da cultura na formação da nossa sociedade política e na evolução e
funcionamento do Estado no Brasil" [Vianna, 1974: I, 71-72]. O nosso autor
conclui assim, salientando o caráter multidimensional da sua pesquisa: "É
claro que, estudando a cultura, não irei estudá-la apenas no seu aspecto puramente
geográfico, como é dos estilos; mas também (enquanto é) um complicado e
delicado mecanismo que as sociedades humanas constróem, sob o condicionamento
do Meio e da História, para selecionar, distribuir e classificar os valores
humanos, gerados em seu seio pelas matrizes biológicas da Linhagem e da
Raça".
4) Complexos culturais e morfologia do Estado. - Estes dois
elementos formam parte, também, do quadro gnoseológico de Oliveira Vianna. Sem
caracterizarmos o conteúdo de ambos os conceitos, não poderíamos proceder a uma
interpretação do pensamento do sociólogo fluminense. Quanto ao conceito de complexo cultural, Oliveira Vianna
frisa: "O complexo representa um conjunto objetivo de fatos, signos ou objetos, que, encadeados num sistema,
se correlacionam a idéias, sentimentos, crenças e atos correspondentes. (...). É toda uma multidão de fatos, objetos, signos, utensílios, etc., que se prendem a usos, costumes, tradições, crenças, artes, técnicas, que, por
sua vez, se prendem igualmente a idéias,
sentimentos, condutas, tudo correlacionado com estes tópicos peculiares da
atividade econômica: - e cada um destes tópicos forma um complexo" [Vianna, 1974: I, 74].
Em todo
complexo cultural encontramos dois tipos de elementos: externos ou objetivos
(fatos, coisas, signos, tradições), e internos
ou subjetivos (sentimentos, idéias,
emoções, julgamentos de valor, etc.). Os
primeiros constituem os chamados elementos transcendentes
da cultura, ao passo que os segundos são os seus elementos imanentes. A interrelação desses dois grupos de elementos é
complexa. Oliveira Vianna a explica assim:
"Estes elementos conjugados ou associados formam um sistema
articulado, onde vemos objetos ou fatos de ordem material, associados a reflexos condicionados, com os
correspondentes sentimentos e idéias. Estes elementos penetram o
homem, instalam-se mesmo dentro da sua fisiologia: e fazem-se enervação,
sensibilidade, emoção, memória, volição, motricidade. Os quadros mentais do
indivíduo se constituem de acordo com estes complexos: estes lhes dão das
coisas e do mundo uma representação
coletiva, como dizia Durkheim. Tanto que já se começa a lançar os
fundamentos de uma nova especialização científica: a sociologia do conhecimento de que a obra de Mannheim é, decerto, um
belo exemplo". Do ponto de vista psicológico, portanto, um complexo
cultural é um sistema idéio-afetivo, do qual se derivam atitudes ou
comportamentos com projeção social, numa sincronia de sensibilidades, emoções,
sentimentos, preconceitos, preferências, repulsões, julgamentos de valor,
deliberações, atos omissivos ou comissivos de conduta. O nosso autor chama a
atenção para um fato importante: quando se pretende mudar um determinado
complexo cultural a nível exclusivamente objetivo ou transcendente
(promulgando, por exemplo, uma nova constituição
em nome de Deus ou do povo), as possibilidades de sucesso de tal mudança são
mínimas, pois a ela opor-se-á o elemento subjetivo ou imanente (sentimentos,
crenças, preconceitos, praxes seculares dessa comunidade humana). Porisso,
salienta Oliveira Vianna, têm fracassado tantas reformas no nosso meio
latino-americano: porque os reformadores, imbuídos de espírito legalista, acham
que mudando as leis vão mudar os hábitos da população, que permanece sempre
alheia ao formalismo externo. Oliveira Vianna endossa a afirmação de Jung de
que os traços culturais imanentes se transmitem pelo inconsciente coletivo, e "tudo é como se eles se imprimissem
ou se contivessem nos genes das próprias raças formadoras".
Quanto à
morfologia do Estado, Oliveira Vianna identifica quatro tipos: Estado-aldeia, Estado-cidade, Estado-império
e Estado-nação. Faz uma detalhada
análise do primeiro tipo, ilustrando especialmente o funcionamento das aldeias hidráulicas da Península Ibérica
(seguindo a terminologia de Maurice Aymard), de acordo à exposição feita por
Joaquim Costa na obra Colectivismo agrario en España. O
nosso autor, contudo, considera isoladamente estas comunidades reduzidas,
supondo-as verdadeiras democracias telúricas, sem enxergar o contexto mais
largo do despotismo hidráulico que vingou na Península Ibérica durante a
ocupação sarracena. Registra, é certo, as dificuldades enfrentadas por essas
comunidades de aldeia, quando se defrontaram com o absolutismo pós-feudal, não
só na Península Ibérica, mas também no resto da Europa. A impressão que se tem
ao ler a morfologia do Estado elaborada por Oliveira Vianna, é que ele
desconhece o fenômeno do feudalismo em toda a sua profundidade, especialmente
no relacionado à passagem da organização feudal à moderna realidade do Estado.
Não estabelece - ao contrário de Weber -
uma diferenciação de tendências nesse surgimento do Estado moderno.
Porisso, junta sem maior preocupação os Estados em que vingou a formação de
tipo patrimonial aos Estados em que o poder patrimonial do monarca foi
controlado, tendo surgido instituições de governo representativo. O seguinte
trecho de Oliveira Vianna, referido indistintamente a todos os países da
Europa, exprime de forma clara essa confusão: "Estes grandes Estados imperiais
não se assentavam, porém, sobre bases democráticas - ao modo dos Estados-aldeias ou dos Estados-cidades das épocas anteriores.
Neles, o soberano não era o povo, como havia sido antes e como veio a ser
depois; mas, o Rei. Este Rei tinha um caráter místico ou religioso nos
predicamentos da sua investidura: era um soberano carismático; quer dizer: por sua graça divina. Deus o havendo
escolhido e consagrado para esta missão, era em nome de Deus que ele, Rei, governava os povos. Por força desta designação
divina é que ele exercia os poderes do Estado: o Poder Executivo, o Poder
Judiciário e o Poder Legislativo. (...). Em síntese: O Estado-império que governou e administrou a Europa até a Revolução
Francesa, era uma organização de estrutura nitidamente aristocrática. O Rei,
soberano por graça de Deus, dirigia a Nação e a administrava, rodeado de uma
casta nobre e privilegiada, com direito de exclusividade ao exercício do
governo e de todos os cargos públicos. Esta nobreza irradiava das Cortes e dos
bastidores palacianos para todos os postos administrativos das Províncias e dos
Municípios, bem como para as longínquas colônias d'além-mar, integrantes do
Império. E foi o que ocorreu aqui durante o período colonial (1500-1822)"
[Vianna, 1974: I, 104-106].
O nosso
autor ignora aqui a Revolução Gloriosa (1688) que ensejou, na Inglaterra, o
primeiro ensaio sistemático de governo representativo e deu origem à monarquia
constitucional. Esta experiência, e não a Revolução Francesa, foi, certamente,
o núcleo de inspiração da filosofia política liberal. E constituiu a primeira
tentativa bem-sucedida de pôr um freio ao fortalecimento do Estado Patrimonial.
Oliveira Vianna identifica como primeiro Estado-nação
a França. Tal Estado, para ele, é de origem muito recente. A respeito,
frisa: "O mundo civilizado só o viu aparecer depois da Revolução Francesa,
com o reconhecimento do princípio da soberania
do povo e o advento das democracias européias". A limitação da
perspectiva escolhida por Oliveira Vianna na sua análise do Estado moderno,
condicionou o seu estudo sobre a realidade brasileira. Ao passo que valoriza a
democracia como um desejo da Nação, no momento da escolha de alternativas
concretas para materializar esse ideal, o sociólogo fluminense voltar-se-á para
os exemplos em que, no seu sentir, materializou-se realmente a democracia: O Estado-aldeia e o Estado-cidade da Antigüidade. A sua visão do Estado moderno
terminou sendo polarizada por uma das formas que este assumiu historicamente: o
Estado Patrimonial.
Conclusão. - Apesar das deficiências teóricas
que afetam a análise de Oliveira Vianna sobre o Estado Moderno, uma coisa é
certa: o pensador fluminense rejeita e supera definitivamente o monocausalismo
sociológico que vingou nas diversas teorias de inspiração cientificista acerca
da formação social brasileira, ao longo do século XIX e ainda no século XX. Um
outro mérito inegável é a rica tipologia sociológica com que soube ilustrar a
organização política do Brasil, desde a Colônia até o século XX. Ninguém que
pretenda fazer um estudo sério sobre a evolução sócio-política brasileira,
poderá se dar ao luxo de ignorar conceitos básicos da sociologia de Oliveira
Vianna, tais como os de povo-massa, homens de mil, clã parental, clã político, clã eleitoral, solidariedade de família senhorial, responsabilidade coletiva familiar, sinecurismo parlamentar,
burocratismo orçamentívoro, etc. Justamente o espírito científico do
pensador fluminense se revela no rigor metodológico por ele seguido no processo
de formulação dos conceitos sociológicos, extraídos, como vimos, de uma
rigorosa observação dos fatos sociais e do confronto com os dados da
experiência. Tendência salutar, hoje mais do que nunca extremamente necessária,
em face da perniciosa ideologização das ciências sociais.
Por todos
esses motivos, mas principalmente pelo fato de ter inserido a sociologia
brasileira na rica corrente do culturalismo sociológico, prolongando a
tendência ensejada por Sílvio Romero e continuada por Alcides Bezerra, a figura
de Oliveira Vianna é sem dúvida pioneira no hodierno pensamento social e
político brasileiro. Nada mais justo para lembrar os 134 anos do seu nascimento
do que recordar, como acaba de ser feito, os traços marcantes da idéia de
cultura de Oliveira Vianna aplicada ao estudo do Estado.
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esparsos, opúsculos e publicações em jornais e revistas especializadas.
(Apresentação de Marcos Almir Madeira). Campinas: Editora da Universidade
Estadual de Campinas - UNICAMP.
(Este ensaio foi publicado no Portal "Ensaio Hispânico", criado pelo professor Dr. José Luis Gómez Martínez da Universidade da Geórgia).
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