A tolerância, que foi uma conquista do Liberalismo nos últimos quatro séculos, pretende hoje ser superada pelo pensamento "politicamente correto". Isso em aras de uma interpretação rousseauniana e ressentida da questão das diferenças.
Mas vamos primeiro à lembrança das origens do tema da tolerância: isso se passou na Inglaterra do século XVII, sendo John Locke (1632-1704) o grande sistematizador da questão. O ambiente, até então, era de nítida intolerância em matéria de pluralidade de credos religiosos. Como lembra com propriedade o escritor britânico Ken Follet (1949), no período que antecedeu à Revolução Gloriosa Inglesa (1688), o clima era de intolerância entre os vários credos, o que deu ensejo a inúmeros conflitos pela Europa afora, com as fogueiras crepitando em todos os quadrantes. A única unanimidade era que a fogueira deveria existir. Quanto a quem a frequentaria, aí se davam inúmeras diferenças, de acordo com o credo de quem acendesse a pira. Locke, jovem médico, que tinha se aproximado por questões profissionais do líder dos whigs no Parlamento, lorde Shaftesbury (1621-1683), terminou um pouco ao acaso tomando carona no debate. Chamado na alta madrugada na casa paterna para atender a um moribundo lorde, Locke terminou salvando a vida de Shaftesdbury lhe praticando uma incisão de urgência na vesícula supurada, evitando assim a morte do paciente.
O lorde, já curado, quis premiar os esforços do jovem profissional, lhe oferecendo o cargo de secretário particular no Parlamento. Assim, pela vesícula do conde, Locke entrou na política britânica, como o mais importante teórico da onda de renovação que o partido whig imprimira nos costumes políticos na tradicional estrutura da monarquia absoluta inglesa. Indisposto com o soberano, Shaftesbury foi exilado na Holanda, e para lá Locke viajou acompanhando o seu chefe. Na liberal República Holandesa, Locke travou conhecimento com os pensadores que, naquela época, se insurgiam contra a intolerância religiosa, a começar por alguns pastores da tendência denominada dos "Remonstratenses". Para eles, era inconcebível que a título de "cristãos" os homens se matassem numa Europa desolada pelos conflitos de religião. Seria necessário pôr em prática o mandamento da caridade, traduzido numa atitude de tolerância para com os que tivessem opções religiosas diferentes.
Do pacto de tolerância somente seriam excluídos aqueles que praticassem a intolerância de forma sistemática contra os outros credos religiosos, alicerçados num poder temporal cooptado por eles: arrolava Locke entre esses excluídos os católicos, em decorrência de o Papa, líder espiritual deles, ser também um soberano temporal que tinha como propósito atentar contra a estabilidade da Coroa britânica (desligada do catolicismo desde os tempos de Henrique VIII). E também ficavam por fora os muçulmanos, como consequência da prática da jihad ou guerra religiosa contra os infiéis.
Na Holanda, Locke teve oportunidade de travar relações com os estudiosos da questão da tolerância: Pierre Bayle (1647-1706), o pensador francês que tinha feito do tema o centro da sua meditação filosófica e o judeu de origem portuguesa Baruch de Espinosa (1632-1677), que tinha sofrido em carne própria a intolerância dos seus irmãos de fé, ao ser excomungado da Sinagoga de Amsterdã pelo fato de estudar os filósofos ocidentais e ter tentado estabelecer uma ponte entre as doutrinas destes e o estudo da Torah. Esse é o contexto em que se situam as Quatro Cartas acerca da Tolerância que Locke escreveu entre 1760 e 1780, antes portanto das suas obras fundamentais: O Ensaio sobre o entendimento humano e os Dois tratados sobre o governo civil, que datam de finais da década seguinte. Mas a Carta sobre a Tolerância somente apareceria publicada por Awnsham Churchill na Inglaterra em 1689. Isso se explica em virtude da agressividade da dinastia Stuart, que pretendia excluir qualquer doutrina que não se acomodasse aos interesses do absolutismo monárquico que foi apeado do poder pela Gloriosa Revolução de 1688.
A tolerância, para Locke, era uma das bases da sua concepção política, sendo a segunda coluna a teoria da representação, que deveria ser de interesses. Pelo império do princípio da tolerância, o poder civil não poderia ser utilizado para forçar alguém a aderir a determinado credo religioso. "O fim da sociedade religiosa - escrevia o filósofo - é o culto público de Deus e através dele a obtenção da vida eterna. É nesse propósito que se deve concentrar toda a disciplina e esses são os limites que circunscrevem todas as leis eclesiásticas. Nessa sociedade não se trata, portanto, de bens civis, nem de posses materiais; não se pode apelar aqui, por nenhum motivo, ao auxílio da força, que provém toda ela do magistrado civil; é deste poder que depende a posse e o uso dos bens exteriores". [Locke, Carta sobre a Tolerância, 1689).
Mas se a tolerância deve formar parte do pacto político em relação às Igrejas, ela deve também servir para aceitar as diferenças entre interesses materiais a serem representados no seio do Parlamento. A essência do pacto político pressupõe a diversidade de interesses entre os cidadãos. Não aceitar os interesses dos outros - já tinha sido salientado isso por Espinosa no seu Tratado teológico-político (1670) - era inviabilizar o pacto social.
Foi contra essa essa diversidade de crenças e de interesses materiais que se ergueu Jean Jacques Rousseau com a sua proposta de Entropia Civil contida no seu ensaio intitulado Do contrato social (1762). Estava possuído pela ideia de que a unanimidade, no corpo social, garantiria a felicidade dos seus membros. Era necessário, portanto, elaborar um mecanismo que conduzisse a solidificar a unanimidade como única condição de existência social. E ela deveria ser tratada como princípio religioso supremo da nova Religião Civil. Para garantir a unanimidade, deveria ser posto em funcionamento um mecanismo nivelador: o Comitê de Salvação Pública, que garantiria que todos fossem unânimes na defesa do Interesse Público, esquecidos portanto os interesses individuais, origem do dissenso e do egoísmo. O mecanismo a ser posto em prática pela nova ordem seria o Terror do Estado, que possibilitaria até a eliminação física dos recalcitrantes e dissidentes. É sobre essa base que se deveria construir o corpo político. E competiria ao Legislador e ao seu comitê de Puros, identificados unicamente com o Interesse Público ou Republicano, aplicar à sociedade o amargo remédio de extirpar dela qualquer resquício de individualismo. O discurso passaria a ser unívoco, somente traduzindo aquilo que se pudesse identificar como Interesse Público gerido pelos Puros e sob o comando do Legislador. Essa foi a nova versão do domínio inconteste da Razão encarnada no novo Rei-Filósofo pensado inicialmente por Platão na sua República e desenhado nos tempos modernos por Rousseau no Legislador e no Corpo de Funcionários despidos de interesses individuais. Essa comunidade entrópica seria a origem do Homem Novo, puro, idêntico a si mesmo, totalmente solidário. Estava fundada, como dizia Jacob Talmon (1916-1980), a "Democracia Totalitária" dos tempos hodiernos.
O discurso políticamente correto foi elaborado pela esquerda norte-americana dos anos 70 como expressão dessa unanimidade ao redor do Legislador. Numa espécie de reduplicação sistêmica do controle pelos Puros, a pragmática transcendental funcionaria dentro dos indivíduos submetidos ao interesse coletivo, como uma espécie de auto-alarme contra o que significasse dissenso. Ora, a primeira coisa a ser eliminada seria a incômoda diferença entre os indivíduos. Todos seriam iguais. A diversidade é culpa do Capitalismo e do Liberalismo, que pretenderam, sempre, nos separar uns dos outros. A salvação é constituída pela Unidade Total do corpo Político, nessa República de zumbis em que o políticamente correto ameaça nos aniquilar. A educação de gênero, convenhamos, tenderia a eliminar essas diferenças burguesas entre sexos, fazendo com que desde o berço nos identificássemos como não diferentes, ou como diferentes na medida em que a linguagem permitisse isso nas novas modalidades trans que começam a povoar o imaginário através da arte e das telenovelas.
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