Este escriba na sua biblioteca. (Juiz de Fora, 2010). |
Sou bibliófilo. Desde a infância vivi entre livros. Ganhei deles uma alergia brava que se transformou em sinusite crônica com desdobramentos desagradáveis como a síndrome de Meunier... O amor pelos livros foi-me ensinado pelo meu pai, Don Alfonso, um espírito quixotesco que misturava conservadorismo, paixão libertária, catolicismo antioqueño, horror ao clericalismo, fé na iniciativa privada, desconfiança em face de milicos e advogados e uma enorme curiosidade intelectual de autodidata (embora tivesse se formado como professor primário e sempre tivesse desejado ser engenheiro, tendo seguido cursos por correspondência nas Escolas Internacionais que, desde os Estados Unidos, ofereciam formação de técnico em construções civis).
O traço existencial que mais se destacava no meu pai era o amor aos livros. Além, claro, da dedicação à família.Tinha organizado uma pequena biblioteca em casa, cujo traço marcante era a preocupação humanística. Ali, nas férias escolares, quando crianças, eu e meus irmãos encontrávamos pequenas coleções de livros infantis. Lembro-me da série espanhola denominada "Cuentos de Calleja", belamente editada com desenhos atraentes e com uma narrativa adaptada ao público infantil. Nessa coleção apareciam os clássicos para crianças.
Este escriba na sua biblioteca. (Juiz de Fora, 2009). |
Mais adiante, na adolescência e ao longo dos estudos secundários, li na eclética biblioteca paterna obras como Dom Quixote de la Mancha e Novelas Exemplares de Cervantes, o Tratado da Pintura de Leonardo da Vinci, as Obras Completas de Francisco de Quevedo y Villegas (cujos poemas picantes o meu pai recitava de cor), O Paraíso Perdido de Milton, A Terra de Émile Zola, A civilização da Renascença na Itália de Jacob Burkhardt, a Divina Comédia de Dante, O Livro do Bom Amor de Juan Ruiz, Arcipreste de Hita, A Ilíada e A Odisséia de Homero, A Eneida de Virgílio, As vidas dos Doze Césares, de Suetônio, os Exercícios Espirituais de Santo Inácio de Loyola, O Castelo interior ou As Moradas de Santa Teresa de Avila, Idola Fori de Carlos Arturo Torres, as Obras Poéticas de São João da Cruz, Caminhos de Guerra e Conspiração, do meu avô materno, o general Amadeo Rodríguez, As Mil e uma noites, Por que sou conservador? de Carlos Eugênio Restrepo, Historia de uma alma (na verdade, duas obras diferentes com o mesmo título. Uma, a conhecida autobiografia de Santa Teresinha de Lisieux e outra, as memórias do político colombiano José Maria Samper), Mein Kampf de Adolph Hitler (na edição alemã, da qual mal conseguia soletrar o título absolutamente incompreensível para mim). Chamavam-me a atenção, nesta obra, os caracteres góticos, que me faziam pensar numa complicada trama de agentes misteriosos e chatos... Li, também, O diabo de Giovanni Papini, O chapéu de tres picos de Pedro Antonio de Alarcón, Viagem a Pé do pensador nietzschiano Fernando González Ochoa, O homem medíocre de José Ingenieros, bem como os romances de Julio Verne (Cinco semanas em balão, A volta ao mundo em oitenta dias, Miguel Strogoff, As tribulações de um chinês na China, As índias negras, Viagem ao centro da Terra, Os filhos do capitão Grant), os Dramas de Shakespeare, etc..
Na biblioteca paterna tive oportunidade de apreciar as belas edições espanholas dos quadros de pintores famosos como Velásquez, Goya, Fra Angêlico, Rafael Sanzio de Urbino, Miguel Angelo Buonarruti, Bartolomé Esteban Murillo, El Greco, Rubens, Caravaggio, etc. O meu pai colecionava, no seu escritório e na sala de visitas, quadros da Escola Quiteña, com algumas obras de Gregorio Vásquez Arce y Ceballos e seus discípulos. Na velhice, com os dedos castigados pela artrite, o meu pai fazia belas molduras florentinas para réplicas de quadros clássicos, ajudado na parte técnica pela minha irmã Maria Isabel, que tinha feito o curso de Artes e Decoração em Medellín.
O gosto pela pintura era compartilhado por meu pai com Arturo Pizano, um rico e ilustrado amigo, dono da empresa Triplex Pizano em que trabalhara durante alguns anos, como gerente, em Bogotá. O meu pai, aliás, pintou algumas telas de qualidade bastante apurada, que seguiam o estilo de inspiração naturalista em paisagens andinas. Conservo no meu escritório um pequeno óleo, em madeira, que reproduz uma parte de Fazenda El Carmen, em La Calera. Além do gosto pelas artes plásticas, o meu pai valorizava a música clássica. Havia, na biblioteca, coleções em discos de vinil (78 revoluções inicialmente e, depois os famosos "Long Play") com as obras de Mozart, Beethoven, Haydin, Bach, Mahler, Sibelius, Albeniz, Tchaikovski, Smetana... A minha irmã, Maria Victoria, falecida prematuramente na casa dos trinta e poucos anos, enveredou pelos estudos de piano sob a influência do meu pai, tendo chegado a ser pianista de renome internacional. Quando completou um ano de idade, Don Alfonso deu de presente a ela aquele belo piano Büchner que nos acompanhou pela infância e adolescência afora.
Don Alfonso cultivava também o bel canto. Tomava aulas com o professor italiano Matias Morro. Eu e os meus irmãos gostávamos de acompanhá-lo nessas aulas e ríamos muito quando o casmurro professor lhe passava carraspanas, ao se desafinar na execução de árias ou nos corriqueiros exercícios de aquecimento da voz. A sua voz era bela, de tenor, e diziam os entendidos que se assemelhava à do cantor espanhol Alfredo Krause. Anos mais tarde, já morando em Juiz de Fora, decidi tomar aulas de canto por conselho de um amigo médico que cantava em festas. As aulas de canto melhoraram muito a minha capacidade de dicção e serviram para evitar os problemas de voz que corriqueiramente afetam aos professores. Afinal, nós e os camelôs exigimos muito das nossas cordas vocais. Não cheguei ao desempenho do meu pai no bel canto. Em companhia da minha professora, Débora e com alguns colegas de aventuras musicais, dentre os quais o jovem e saudoso amigo, já falecido, o pianista Eduardo Tagliati, apresentei-me, uma noite de 1999, no bar "Sobre as Ondas" que ficava na orla da Lagoa Rodrigo de Freitas. Tive a grata surpresa de ver, na platéia, em primeira fila, o apresentador e humorista Miele. E me atrevi a gravar, em 2007, um CD intitulado: "Paixão Latina", com canções colombianas, algumas francesas como "La vie en rose" de Edith Piaf e várias do compositor cubano Ernesto Lecuona, detre as quais "Siboney" e "Maria La O". Tive muitas satisfações ao compartilhar esse CD com os meus alunos e com familiares e amigos.
Ao longo do anos tenho carregado "nas costas" a minha biblioteca. O maior desafio foi traze-la da Colômbia, quando vim fixar residência no Brasil no início de 1979. A embrulhei cuidadosamente em vários pacotes protegidos por papelão e plástico. E chegou, de navio, miraculosamente intacta, salvo alguns pacotes que sofreram intempéries. O segundo desafio tem sido acomodá-la nos restritos espaços de apartamentos, no Rio de Janeiro, em Juiz de Fora e, agora, nos últimos anos, em Londrina.
O acervo chegou perto dos 20 mil volumes, quando para conservá-lo dispunha de um apartamento inteiro em Juiz de Fora. A Biblioteca estava dividida nos seguintes temas: 1 - Pensamento Brasileiro; 2 - Pensamento Colombiano; 3 - Pensamento Português; 4 - Pensamento Espanhol; 5 - Pensamento Hispano-Americano; 6 - Sociologia e Ciência Política; 7 - BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China, Africa do Sul); 8 - Filosofia Grega; 9 - Filosofia Medieval; 10 - Filosofia Moderna e Contemporânea; 11 - História da Ciência e Cosmologia; 12 - Teologia e Espiritualidade; 13 - Liberalismo: obras de John Locke, Stuart Mill, Federalistas Americanos, Alexis de Tocqueville, François Guizot, Madame de Staël, Henri-Benjamin Constant de Rebecque; 13 - Arquitetura e Urbanismo de Paris: Edição fac-similar do Plano Turgot (1739) e obras de História do Urbanismo Francês e da Cidade de Paris; 14 - Literatura Espanhola; 15 - Literatura Francesa; 16 - Literatura Colombiana; 17 - Literatura Latino-americana e Caribenha.
A partir da minha vinda para Londrina em 2013, diminuí drasticamente o acervo, tendo ficado, hoje, com aproximadamente 3.500 volumes. A maior parte as obras foi doada para bibliotecas de entidades culturais, notadamente o Instituto Histórico e Geográfico de Juiz de Fora e a pequena biblioteca Sílvio Romero que organizei, para os meus alunos, no Núcleo de Estudos Ibéricos e Ibero-Americanos da Universidade Federal de Juiz de Fora.
Nessas duas bibliotecas deixei numerosas obras de história das ideias da Espanha, de Portugal e da América Latina, bem como algumas publicações periódicas, como por exemplo, a famosa Revista de Índias, que foi publicada pelo Ministério de Educação da Colômbia ao longo dos anos 30 e 40 do século passado, bem como a coleção da revista Carta Mensal publicada pela Confederação Nacional do Comércio no Rio de Janeiro e a Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (publicada no Rio). Doei ao Instituto Histórico e Geográfico de Juiz de Fora uma belíssima coleção (130 volumes) sobre Historia do Liberalismo Colombiano no século XIX, editada pela Presidência da República da Colômbia e que me foi enviada pelo saudoso amigo e historiador Otto Morales Benítez. Uma coleção ímpar pela seriedade crítica e, do ângulo da universidade brasileira, importante como obra de referência da história das ideias políticas no mundo hispano-americano. O meu propósito era doar essa coleção à Biblioteca Central da Universidade Federal de Juiz de Fora, onde funciona uma sala dedicada à cultura latino-americana, a fim de que se beneficiassem os alunos da pós-graduação em estudos latino-americanos.
Até hoje não entendi a pergunta feita pela diretora (petista, para variar) da mencionada Biblioteca: "esses livros, professor, em que ano foram publicados?". Respondi que a coleção tinha sido editada entre 1990 e 1997. Resposta: "Não interessam essas obras à Biblioteca, pois somente recebemos livros publicados depois do ano 2.000". Achei no mínimo estranha a resposta. Diante da minha insistência, ela me esclareceu: "É que até o ano 2.000 todas as publicações encontram-se disponíveis na internet!". Gostaria de desafiar essa senhora para que me mostrasse sequer uma obra da mencionada coleção disponível na internet.... Haja burrice digital!
E assim vai passando a vida, o meu filhinho Pedro brincando com os meus livros, imaginando bibliotecas para os seus "Lelas" (os inseparáveis ursinhos de pelúcia), a minha esposa Paula cuidadosa para que não deixe acumular poeira nas pesadas estantes e eu, folhando diariamente, ao acaso, algum livro que esqueci na prateleira há anos, ou buscando avidamente aqueles que são necessários para a próxima aula ou que me ampliam o universo de dados para um artigo em que estou embrenhado...