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domingo, 8 de março de 2015

ACERTANDO AS CONTAS COM O PATRIMONIALISMO (Publicado no jornal O Estado de São Paulo, 08-03-2015, pg. A3)



Escrevia sir Francis Bacon (1561-1626), um dos ícones do empirismo inglês, na sua obra intitulada Novum Organum Scientiarum (1620), que a experiência humana tem momentos privilegiados, aqueles em que os segredos da natureza se revelam, por instantes, perante a lente dos cientistas. Considerava que alguns fatos constituíam instantiae ostensivae (instâncias reveladoras, ou casos em que as estruturas da natureza estariam no seu máximo de manifestação). Esses seriam os momentos de insight das leis que comandam o cosmo.

Os brasileiros estamos assistindo, nos eventos do petrolão, a uma dessas raras circunstâncias na evolução do nosso secular Estado patrimonial, que o público em geral não vê, mas que são observáveis por mentes preparadas. A opinião pública não vê essas instâncias, mas paga a conta. O contribuinte que o diga. Sente já no bolso os desmandos da empresa patrimonialista, montada passo a passo, com paciência de sindicalista que assiste à assembleia para, esvaziada pelo cansaço, aprovar a greve almejada. No caso do petrolão, esta seria a última etapa, a mais visível, de aparelhamento do sistema produtivo por uma ávida elite preparada para a função de privatizá-lo, tudo em benefício da burocracia estatal presidida pelo partido.

Não é de hoje o projeto dessa empresa patrimonialista, que teve etapas memoráveis. Em todas elas a ciência aplicada foi posta a serviço da burocracia estatal, a fim de garantir a eficiência na racionalização da empresa do rei ou do primeiro mandatário. Foi assim nas reformas pombalinas, na segunda metade do século 18, quando o marquês de Pombal amarrou o sistema produtivo ao redor dos monopólios reais, fora dos quais ninguém conseguiria sobreviver. Assim ocorreu nas reformas modernizadoras do Império, com o monarca como centro da atividade econômica, colocando sob o seu tacape aqueles que quisessem apresentar-se como empresários independentes do trono. As agruras sofridas pelo visconde de Mauá, um dos nossos próceres do livre empreendedorismo, estão aí para provar a eficiência do projeto patrimonialista. Assim se deu no ciclo modernizador do getulismo, com as reformas ensejadas pela elite gaúcha comandadas com mão de ferro pelo próprio Getúlio Vargas, com o auxílio dos jovens intelectuais que integravam a Segunda Geração Castilhista, com Lindolfo Boeckel Collor à frente, tendo previamente sido cooptada a jovem elite tenentista no Clube 3 de Outubro. Assim também no ciclo militar em torno da proposta modernizadora em andamento nos terrenos econômico e social, pensada no petit comité que reunia, ao redor do general-presidente, a elite tecnocrática e militar, responsável por traçar o andamento da máquina pública rumo ao Brasil Grande.

O lulopetismo tentou copiar esse esquema de modernidade ao redor do Estado empresário, racionalizando ao máximo a máquina tributária, centralizando as receitas em favor da União (com detrimento de Estados e municípios), utilizando como mão distribuidora de recursos entre os empresários cooptados o BNDES, que partiu também para aliciar fidelidades internacionais no Hemisfério Sul, na tentativa de dar vida a essa nova diplomacia que está acabando de desmontar a primorosa máquina construída, na aurora da República, pelo barão do Rio Branco no Itamaraty. O mecanismo foi o mesmo do ângulo econômico: tudo centralizado ao redor dos monopólios oficiais, dentre os que se destacam a Petrobrás e a Eletrobrás. O modelo modernizador lulopetista assemelha-se, assim, ao posto em prática por Vladimir Putin no seio do secular patrimonialismo russo, com a hegemonia das empresas produtoras de gás e petróleo. Proveniente do meio sindical, Lula caprichou no sentido de dominar completamente os fundos de pensão das estatais.

Fazem-se sentir hoje os efeitos práticos dessa política patrimonialista: enriquecimento rápido dos agentes públicos - garantida sua segurança nas sombras da nossa complexa legislação, que coloca sobre todos a espada de Dâmocles da insegurança jurídica, mas para os amigos do rei constitui garantia de que nada acontecerá com eles. Vide as penalidades muito diferentes impostas no julgamento do mensalão: pesadíssimas para os que foram cooptados no setor privado pelo turbilhão de dólares na cueca e nas malas gordas de notas, levíssimas para os arquitetos dos "malfeitos" (para utilizar a terminologia do agrado da presidente Dilma).

A maciça divulgação dos feitos da ladroagem está sensibilizando a opinião pública de que há algo de errado na estrutura do nosso Leviatã. Foi de tal grau o tsunami da corrupção que inundou o quintal do dia a dia do cidadão comum. Enquanto itens básicos da saúde pública faltam nas unidades de pronto atendimento (UPAs), a elite larápia tem pronto atendimento de Primeiro Mundo no Hospital Albert Einstein, o mais caro do País. Enquanto já começa a sobrar calendário e a faltar dinheiro na metade do mês no bolso dos contribuintes, os dólares desviados sobram nas contas milionárias da petralhada e dos empresários corruptos. Enquanto a sociedade almeja por transparência na prestação de contas, a Presidência da República é pródiga em enrolação e em contradições veiculadas pelos porta-vozes oficiais. Enquanto se esperava que o Ministério da Justiça cumprisse o seu papel de facilitador para que a Justiça operasse livre e célere, converteu-se em guichê de reclamos dos larápios e em janela por onde assomam os feitores dos desmandos, que buscam pressionar politicamente os magistrados honestos.

Tomara que de todo esse movimento de confusa agitação surja uma análise aprofundada sobre as causas das nossas mazelas: o Estado patrimonial e o seu cérebro, instalado hoje confortavelmente na Presidência da República e nos gabinetes dos burocratas de Brasília.








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