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Participantes do Colóquio realizado pelo Liberty Fund em Bento Gonçalves (RS). Ao fundo, as parreiras e os prédios da Vinícola Miolo. |
Introdução.
Realizou-se em Bento Gonçalves, Rio Grande do Sul, no Hotel
Spa do Vinho, entre 28 de novembro e 1º de dezembro de 2013, o colóquio
intitulado: “Interventionism in Nineteen-Century Brazil” . O evento foi
promovido pelo Liberty Fund sob a direção de Roberto Fendt Jr., (Centro
Brasileiro de Relações Internacionais-CEBRI) e tendo como “Discussion Leader” o
professor José Luiz Carvalho (Instituto Liberal do Rio de Janeiro e ex-assessor
do Banco Nacional de Angola). Participaram, também, os seguintes especialistas:
Leonidas Zelmanovitz (Liberty Fund Fellow, Indianápolis - USA), Jorge Luís
Nicolas Audy (Universidade Católica do Rio Grande do Sul) Gunter Axt (Universidade
Lasalle, Porto Alegre), Adriano Gianturco (IBMEC, Belo Horizonte), embaixador
José Botafogo Gonçalves (Centro Brasileiro de Relações Internacionais, CEBRI),
Rodrigo Saraiva Marinho (Marinho e Associados, Advocacia Empresarial,
Fortaleza), José M. Moreira (Universidade Católica Portuguesa, Porto), Antônio
Carlos Pereira (jornal O Estado de S. Paulo), Alfredo Marcolin Peringer (Porto
Alegre), Jairo Laser Procianoy (Porto Alegre), Ricardo Vélez Rodríguez (Centro
de Pesquisas Estratégicas da UFJF), Sandra Axelrud Saffer (Axelrud Arquitetura
& Assessoria, Porto Alegre), Margaret Tse (Instituto Liberdade, Porto Alegre)
e Mauro Boianovsky (Universidade de Brasília). Atuou como assistente do Liberty
Fund no evento Daniela Becker (Porto Alegre).
Nas seis sessões que se desenvolveram ao longo do colóquio
foram discutidos textos selecionados dos seguintes autores: Visconde de Mauá, Exposição
aos credores e ao público, 1878 (Rio de Janeiro: Expressão e Cultura,
1996); Jorge Caldeira, Mauá: empresário do Império (Rio de
Janeiro: Companhia das Letras, 1995); Maria Helena Paulos Leal, “Resenha da
obra Mauá: empresário do Império” (Revista
Brasileira de História, São Paulo, vol. 17, nº 33, pgs. 306-312, 1997),
Ricardo Vélez Rodríguez, Patrimonialismo e a realidade
latino-americana (Rio de Janeiro: Documenta Histórica, 2006); Walter
Bagehot, A Description of the Money Market
(New York: John Wiley & Sons, 1999); Gustavo Franco, O papel e a baixa do cambio
(Rio de Janeiro: Reler, 2005); Ronald I. McKinnon, Money & Capital in Economic
Development (Washington: The Brookings Institute, 1973); José Júlio
Sena, A mão invisível: problemas e controvérsias da política econômica
brasileira (Rio de Janeiro: IBMEC, 1983), Gustavo Franco, “Por que
juros tão altos e o caminho para a normalidade” (Rio de Janeiro: CLP – Centro
de Liderança Pública e Casa do Saber, Junho de 2011); Luiz Gonzaga Belluzzo e
Ricardo Carneiro, “O mito da conversibilidade” (Revista de Economia Política,
vol. 24, nº 2, abril-junho 2004); Ricardo Carneiro, “Globalização e
inconversibilidade monetária” (Campinas: IE/UNICAMP, Agosto de 2007); Fernando
Ferrari Filho, Frederico G. Jayme Jr, Gilberto Tadeu Lima, José Luís Oreiro,
Luiz Fernando de Paula, “Uma avaliação crítica da proposta de conversibilidade
plena do real” (Revista de Economia Política, 25, nº 1, janeiro-março 2005, p.
133-151) e José Tavares de Araújo Jr. “Conversibilidade do real e inserção
internacional da economia brasileira” (Fundação Alexandre de Gusmão e IPRI, Rio
de Janeiro, Julho 23 de 2009, p. 1-18).
O intervencionismo estatal é velho na história brasileira.
Acompanhou, desde os primórdios, a saga da nossa sociedade na busca pela sua
identidade e na elaboração das instituições que lhe permitiriam se firmar como
Nação organizada no mundo moderno. Decorre esse caráter exagerado da
intervenção estatal da índole patrimonialista que teve, desde o começo, o
Estado. Não vimos a luz do dia como sociedade que se organizava de baixo para
cima, à maneira daquelas comunidades de imigrantes que, na visão de Alexis de Tocqueville
(1805-1859), pareciam “saídas das mãos de Deus” nos Estados Unidos da América e
que constituíram, em perfeita sintonia com a defesa dos interesses dos cidadãos,
as instituições políticas desse grande país.
A nossa história, pautada pela experiência ibérica, foi bem
diferente. Ao invés de ser organizado o Estado como fruto de um contrato social
emergente de uma sociedade com grupos bem diferenciados em classes sociais que
lutavam pela posse do poder, o que se viu foi, como frisa Max Weber, em Economia
e Sociedade,
o fortalecimento progressivo de uma autoridade patriarcal original, que alargou
a sua dominação doméstica sobre territórios, pessoas e coisas extrapatrimoniais,
passando a administra-lo tudo como propriedade familiar. É esse o nosso “pecado
original”, a presidir de forma insidiosa a nossa caminhada ao longo dos
séculos. Como Sísifos estivemos condenados, desde o início, a empurrarmos sine fine uma estrutura mais forte do
que a sociedade, que não servia a esta, mas que se serviu sempre a si própria.
Isso explica, na atual quadra das nossas desgraças, a dívida pública
incontrolável, amassada por dedicados funcionários patrimonialistas para fazer
crescer ainda mais o Leviatã orçamentívoro. Tudo foi devorado pela avalanche do
gasto público descontrolado: qualidade de vida, expectativas, projetos e
esperanças. Os juros, na história econômica do Brasil, são incomensuráveis,
porque incomensurável é o apetite do Leviatã.
O mal não é apenas nosso. É comum aos povos
latino-americanos. Deixei isso registrado em obra que dediquei a estudar a
representação do Patrimonialismo na literatura.
Analisei detalhadamente o caso mexicano, do ângulo da crítica dos pensadores
liberais desse país acerca do Patrimonialismo, tema que serviu de matéria para
o colóquio sobre “Liberdade e Liberalismo no México” que o Liberty Fund
realizou em Tepoztlán, Morelos, em outubro de 2012; a respeito escrevi ensaio
publicado pelo Portal Defesa da Universidade Federal de Juiz de Fora com o
título de: “Liberdade, liberalismo e revolução no pensamento mexicano” .
Sem pretender abarcar todos os itens abordados no Colóquio de
Bento Gonçalves, farei uma análise dos aspectos que achei mais marcantes nas
leituras feitas para o evento. Desenvolverei três pontos: 1 – Desgraças de um
empresário brasileiro, o barão de Mauá, num Império patrimonialista. 2 – O
conceito de Patrimonialismo. 3 – Patrimonialismo e economia no século XIX e na
atual quadra do populismo desenvolvimentista.
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Hotel Spa do Vinho em Bento Gonçalves (RS), onde se realizou o Colóquio do Liberty Fund. |
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Este cronista e, ao fundo, as parreiras do Hotel Spa do Vinho em Bento Gonçalves (RS). |
1 – Desgraças de um empresário
brasileiro, o barão de Mauá, num Império patrimonialista.
As leituras sugeridas pelo Liberty Fund para o colóquio de
Bento Gonçalves tinham como objetivo ilustrar o funcionamento do Estado
patrimonial brasileiro no século XIX, do ângulo do intervencionismo em matéria
econômica. As desgraças sofridas pelo barão de Mauá, Irineu Evangelista de
Sousa (1813-1889) decorreram justamente do fato, apontado por Max Weber
(1846-1920), de que o soberano patrimonial não aceita sentimentos de honra da
parte da sociedade, que ameacem empanar ou por em risco a sua autoridade
inquestionável. Embora o Império brasileiro parecesse, para espíritos liberais
como François Guizot (1787-1874), como muito civilizado, isso não tirava,
contudo, o caráter centralizador e cooptativo do regime. O Poder Moderador
certamente definia os rumos da política. Lembremos que parte essencial do arcabouço
constitucionalista do Império consistia na teoria da dupla representação
elaborada por Silvestre Pinheiro Ferreira (1769-1846). Cabia ao Parlamento
representar os interesses mutáveis da Nação, aqueles que correspondiam à defesa
dos interesses materiais dos cidadãos. Mas cabia ao Imperador representar os
interesses permanentes da Nação (entre os quais se situava a soberania do
território, bem como a manutenção da instituição do governo representativo no
Império). Assim, o poder régio era algo muito grande. Não se revestiu no Brasil
de ares caudilhistas, em decorrência da índole humanística de Dom Pedro II
(1825-1891). Esse mesmo poder nas mãos de um general platino como Juan Manuel Rosas
(1793-1877), certamente ensejaria um regime de opressão. O Imperador contava,
para garantir o sucesso dos pleitos eleitorais, com o auxílio da Guarda
Nacional, a maior organização preburocrática de homens livres do Hemisfério
Ocidental, segundo o pesquisador Fernando Uricoechea.
A triste aventura de Mauá faz-me lembrar conhecido romance de
Julio Verne (1828-1905): As tribulações de um chinês na China.
Mauá pagou o preço não por ter procurado a ajuda do Império para os seus
empreendimentos, mas pelo fato de ter dado provas de que conhecia o jogo da
máquina econômica, sendo que, para os “amigos do rei”, esse conhecimento poria
em risco a supremacia dos “homens de mil” do Império, aqueles devotados
burocratas fiéis ao Imperador e inimigos de qualquer coisa que significasse
mudança nas regras do jogo consolidadas verticalmente sem ouvir a sociedade.
Ora, em matéria de jogo econômico era mais seguro se ater à visão conservadora
que desaconselhava a inovação financeira e a industrialização, que fariam
balançar uma economia ainda atrelada ao escravagismo. Embora Mauá tivesse no establishment liberal alguns
amigos, prevalecia a visão retardatária do Ministro da Fazenda, José Maurício
Wanderley, barão de Cotegipe (1815-1889).
As dificuldades encontradas não desanimavam Mauá, que
pretendia atingir um conhecimento aprofundado das potencialidades econômicas do
Brasil. A dinâmica da população ocupando o vasto território era, para o
empresário, uma variável a ser levada em consideração, como transparece neste
texto: “Com efeito, um país novo, porém de uma extensão territorial que se
reconhece ser igual à da Europa, país que ao separar-se da Mãe Pátria, contendo
uma população que não excedia 3 milhões de pessoas, diz logo ao ouro e à prata: Desconheço vosso poder; para mim nada
representais; posso viver tranquilamente sem vossa intervenção, e no fim
quadruplica sua população e tendo convertido em riqueza uma parte
insignificante dos seus recursos naturais, elevou todavia sua posição
financeira ao mais alto grau de crédito, e conserva a sua independência
monetária, sem a quebra de suas relações econômicas, dispensando aqueles
régulos das transações do resto do mundo. Não será esse um fenômeno digno de
ser estudado?”.
2 – O conceito de
patrimonialismo.
As páginas sugeridas pelo Liberty Fund como ponto de partida
para as discussões em torno ao conceito de patrimonialismo foram tiradas da
minha obra intitulada: Patrimonialismo e a realidade
latino-americana.
Nesse texto destaco três coisas: em primeiro lugar, o que Weber entende por
patrimonialismo; em segundo lugar, de que forma o conceito de patrimonialismo
foi aproximado por Karl Wittfogel (1896-1988) da categoria de despotismo
hidráulico ou despotismo oriental; em terceiro lugar, como esses conceitos
passaram a integrar as tipologias sociológicas de alguns autores brasileiros
que as aplicaram à nossa realidade.
A – O que Weber entende
por Patrimonialismo.
O sociólogo alemão considerava que há três tipos ideais de legitimação da
autoridade política: o tradicional, o racional e o carismático. No primeiro, a
autoridade se legitima mediante a crença da comunidade em determinadas
tradições. No segundo, a legitimação da autoridade decorre de uma decisão da
comunidade tomada nas urnas. No terceiro, a legitimação fica por conta do valor
especial que uma pessoa tem para a comunidade, expresso no seu carisma.
Os Estados modernos, para o sociólogo alemão, surgiram no
contexto de processos de legitimação efetivados a partir de determinadas
tradições. Duas modalidades consagraram-se historicamente: a feudal e a
patrimonial ou patrimonialista. Na primeira, os Estados surgiram a partir de um
processo de diferenciação da sociedade em classes sociais que passaram a lutar
pela posse do poder. Dessa luta teria emergido um consenso, dando ensejo ao
pacto social, origem do Estado.
É a modalidade que Max Weber chama de contratualista
e que vingou na Europa Ocidental, justamente ali onde houve, na Idade Média, a
prática do feudalismo de vassalagem.
Já a modalidade que Weber caracteriza como patrimonialismo decorre de outra
tradição em que o poder não se dissemina pela sociedade, mas fica concentrado
numa única mão, como se fosse propriedade familiar de quem o exerce. Tal modelo
vingou fora da Europa Ocidental e das Ilhas Britânicas, no Oriente notadamente,
tendo dado ensejo a modelos hipertrofiados de poder que passaram a ser
denominados, genericamente, de “despotismo oriental”, “despotismo hidráulico”
ou “asiático”, embora se encontrasse também na Península Ibérica, na América pré-colombiana entre incas, maias e
astecas. Pode-se caracterizar tal modelo como “aquela forma de dominação
tradicional em que o soberano organiza o poder político de forma análoga ao seu
poder doméstico. Ao lado da organização do poder político, segundo o modelo
doméstico, é igualmente essencial ao patrimonialismo a estruturação do quadro
administrativo, por intermédio do qual se exerce a dominação. Quando esse
quadro recebe do soberano, ou conserva, com o consentimento dele, determinados
poderes de mando e as suas correspondentes vantagens econômicas, temos o que
Weber chama de dominação estamental”.
Weber encontrava no Antigo Egito, no Império chinês e na
Rússia czarista três casos típicos de dominação patrimonial. “O Antigo Egito
foi o primeiro regime burocrático patrimonial. Desenvolveu-se originariamente a
base da clientela real. A necessidade de uma política unitária, em decorrência
das condições físicas, levou a um aprimoramento burocrático mediante a ascensão
da casta dos escribas e a institucionalização do trabalho compulsório da
população livre nas obras públicas” .
Além dos trabalhos hidráulicos, feitos na China mediante esse
sistema de serviço compulsório dos habitantes livres, Weber salienta a presença
de um fator que reforçou o Estado patrimonial: a religião oficial. “Esse papel
foi desempenhado pelo confucionismo, que dava base à virtude cardeal da piedade
filial, não só no meio doméstico, mas também no âmbito das relações de
subordinação dos funcionários em relação ao soberano, dos funcionários
inferiores em relação aos superiores e, principalmente, dos súditos perante o
estamento burocrático e o monarca” .
Já em relação ao outro tipo de dominação patrimonial, o Estado russo, Weber
destaca a supremacia do czar mediante a atomização da nobreza, graças ao
sistema de sinecuras criadas pelo soberano ao redor dos cargos tschin, que estavam à frente do
estamento burocrático e do exército.
O patrimonialismo é definitivamente centrípeto, ao contrário
do que acontece com o feudalismo; no primeiro se dá a tendência a pôr em
prática medidas tendentes à concentração e à perpetuação do poder unipessoal do
monarca. Isso conduz à valorização, no contexto patrimonialista, das funções
administrativas apropriadas ou controladas pelo soberano, como instrumentos que
garantem seu poder. Por isso, sob este viés, o patrimonialismo colide com o
feudalismo, que promove a redução das funções burocráticas. “A fim de controlar
qualquer surto de dignidade (de autoridade baseada nos sentimentos de
independência e honra das camadas nobres), a dominação patrimonial manipula as
massas desprotegidas mediante o paternalismo de Estado, ensejando assim o ideal
do pai do povo, tão comum em
contextos patrimoniais, como o russo. Essa ideia associou-se à permanência do
patrimonialismo na época moderna, pelo menos no Ocidente”.
B – Aproximação, por
Wittfogel, da categoria de patrimonialismo do conceito de despotismo hidráulico.
Este teórico foi um
dos fundadores da Escola de Frankfurt e pertenceu aos altos quadros
intelectuais do Partido Comunista, tendo sido secretário de Leon Trotsky
(1879-1940), antes de ser preso por Joseph Stalin (1879-1953) e logo pelos
nazistas, tendo-se refugiado, depois da II Guerra Mundial, nos Estados Unidos,
onde lecionou História da China na Universidade de Seattle (Estado de
Washington). Wittfogel, na sua obra mais importante intitulada: O
Despotismo Oriental
considerava que a Revolução Russa terminou sendo deformada, em decorrência da
presença, na tradição cultural desse país, da influência do despotismo
oriental, de que era portador Gengis Khan (1162-1227) e os remanescentes do canato
da Horda Dourada (1240-1502) que ocuparam o Principado de Moscou.
Para Wittfogel, a modalidade mais antiga do “despotismo
hidráulico” deu-se ali onde havia grandes quantidades de água de curso
irregular e escassez de chuvas, o que obrigou as comunidades a organizarem uma
modalidade de governo agro diretorial que garantisse a irrigação. Tal modelo
vingou no Antigo Egito e na Mesopotâmia, bem como na China pós-mongol, nos
Califados árabes e nos impérios indígenas pré-colombianos: inca, olmeca, maia e
asteca. O autor considera que nessas áreas deu-se o surgimento de uma economia
rigorosamente hidráulica. Mas as práticas administrativas centralizadoras e
despóticas ensejadas por esses impérios estenderam-se para outras áreas
marginais, onde não havia propriamente uma economia hidráulica, tendo
contaminado a gestão política com procedimentos despóticos e centralizadores.
Foi isso o que ocorreu, por exemplo, no Império Romano após a conquista do
Egito por César (100 a. C.- 44 a. C) e Otávio Augusto (63 a. C. – 14 d. C), bem
como o que aconteceu na Rússia e na Península Ibérica, ao ensejo da presença
mongol, na primeira, e da ocupação árabe de Espanha e Portugal pelos capitães Tárique
(670-720) e Mussa bin Nusayr (640-716), súditos do sultanato de Damasco presidido
por Al-Walid I (668-715). Tal ocupação, como se sabe, durou oito longos
séculos, entre 710 e 1490.
Wittfogel retoma os conceitos weberianos a respeito do
patrimonialismo, mas aprofunda nos aspectos diretoriais e despóticos que se
tornaram característicos do “despotismo hidráulico”. Levando em consideração
que estes regimes buscavam eficiência notadamente no que diz relação ao
controle da água, Wittfogel ilustra a capacidade administrativa deles na China,
por exemplo, ou dos que foram organizados no Antigo Egito, na Mesopotâmia ou na
América pré-colombiana. Em todos eles aparece uma administração centralizada, dotada
de uma logística impressionante capaz de mobilizar, alimentar e manter
organizadas turmas de 100000 trabalhadores ou mais, mediante a modalidade de
trabalho de graça dos homens livres para o Estado ou corveia, com a ajuda de arquivos detalhados acerca das riquezas e
dos povos submetidos. O controle militar acompanhava esse esforço
administrativo. O resultado dessa empreitada foram obras de grande volume,
tanto no que respeita à engenharia hidráulica (como o canal que uniu, na China,
as cidades de Beijing e Hangzhou, com 1794 quilômetros de extensão, tendo sido
construído entre 604 e 1283), como no que diz relação à construção de grandes estruturas
defensivas (a Grande Muralha chinesa, por exemplo, construída entre 220 a. C. e
1600 da nossa era e que se estende por mais de 4000 quilômetros, separando a
China da Mongólia). Também são destacadas por Wittfogel, como pertencentes a
estas grandes obras, as enormes estruturas rituais ou funerárias, como as
pirâmides do Antigo Egito ou as dos Maias e Olmecas, no México pré-colombiano.
Um traço administrativo importante dos regimes hidráulicos é
destacado por Wittfogel: a sua capacidade tributária e de cooptação da
população livre para trabalhar nas grandes obras do Estado. Os esforços
policiais e fiscais não mantém um parâmetro constante, mas estão ligados ao
efetivo controle do poder central sobre todos os núcleos secundários de poder
no território. A respeito deste ponto, escreve Wittfogel: “Os esforços que faz
o regime hidráulico para conservar um controle militar e policial inconteste
sobre a população revelam-se mais ou menos rentáveis, até que todos os centros
de poder independentes sejam destruídos. As iniciativas levadas a termo para
conseguir um conjunto de comunicações e de recenseamentos rápidos seguem um
processo análogo, e a extensão da ação fiscal e judiciária aparece como
razoável, enquanto satisfaça a vontade de hegemonia política e social do
soberano” .
A resultante de todo esse processo estudado por Wittfogel é a
organização de um Estado mais forte do que a sociedade, que é capaz de grandes
obras e que, por outro lado, mantém sobre a população o poder total, sem pejo
para utilização da violência no grau que for necessário. A respeito deste ponto
escreve Wittfogel: “Os déspotas agro institucionais podem apresentar seu regime
como providencial; mas, de fato, e mesmo nas circunstâncias mais favoráveis,
eles trabalham pelo seu próprio optimum
de racionalidade e não por aquele do povo. Empreendem trabalhos hidráulicos que
devem servir ao seu poder e à sua riqueza. Eles tomam sua parte como donos
fiscais do excedente nacional e consumidores conspícuos. (...) Uma das
variantes do poder total, o despotismo hidráulico, não tolera nenhuma força
política que não seja a sua. Nesse sentido, ele vinga no plano institucional
freando o desenvolvimento de tais forças; e vinga no plano psicológico
desencorajando a aspiração do homem a uma ação política independente. Em última
análise, o governo hidráulico é um governo pela intimidação” .
Os tanques passando por cima dos estudantes na Praça Tiannamen estão a mostrar
que, em pleno final do século XX (1989), permaneciam vivas essas forças
despóticas do poder total na China contemporânea, em que pese a abertura ao
capitalismo ocidental.
C - Como os conceitos
de patrimonialismo e de despotismo hidráulico passaram a integrar as tipologias
sociológicas de alguns autores brasileiros que as aplicaram à nossa realidade.
A sociologia brasileira, no ciclo de
trinta anos que se estende de 1858 a 1988, apropriou-se das tipologias do
patrimonialismo e do despotismo oriental e as projetou sobre a análise da
realidade do país, constituindo, assim, uma alternativa para os conceitos da
sociologia marxista que tinham se apropriado do ambiente acadêmico. Menciono,
em primeiro lugar, a obra pioneira de Raimundo Faoro (1925-2003), que
introduziu no nosso meio as categorias weberianas com a sua obra intitulada: Os
donos do poder .
A seguir, refiro-me às obras de Antônio Paim (1927-)
e Simon Schwartzman (1939-) ,
que alargaram a análise iniciada por Faoro com o conceito-tipo de neopatrimonialismo ou patrimonialismo modernizador. A partir
das reformas pombalinas houve, na cultura política brasileira, um surto de
modernidade caracterizado pela adoção da ciência moderna como base para a
gestão do Estado e dos negócios públicos, sem que isso implicasse numa
democratização da sociedade. O pombalismo efetivou uma modalidade de “despotismo
esclarecido”, tão comum no ambiente ibérico e ibero-americano dos séculos XVIII
e XIX. O Brasil viu ser modernizada, sem democratização, a sua estrutura
colonial, na segunda metade do século XVIII. É claro que esse processo começou
em terras brasileiras na primeira metade desse século, quando foi criado, em
1734, “Distrito Diamantino”, em Minas Gerais, que permitiria uma racionalização
da exploração das minas de ouro e diamante recém-descobertas. Não se entenderia
a história brasileira ulterior sem levar em consideração esse surto de
modernidade, como ficou patente na obra intitulada: Pombal na cultura brasileira,
coordenada por Antônio Paim e na qual participou a primeira geração de
pós-graduandos em “Pensamento Brasileiro” na PUC do Rio de Janeiro.
O que fica patente da leitura das obras de outros autores
brasileiros que aprofundaram nos conceitos de patrimonialismo e neopatrimonialismo
é que se consolidou, nas nossas terras, um modelo de Estado mais forte do que a
sociedade, que assumiu ares de empresário, de um lado, mas que, de outro,
vestiu a camisa de “pai dos pobres” ou de “pai do povo”, sem abrir mão,
evidentemente, da utilização do porrete quando necessário, a fim de evitar
avanços não controlados do processo de modernização. Algo muito semelhante ao
que foi caracterizado pelo Prêmio Nobel de Literatura, Octavio Paz (1914-1998),
no México, como “Ogro filantrópico” .
A sociedade passou a receber, de cima para baixo, as benesses do
desenvolvimento econômico, sem que fosse chamada a participar de forma a
assumir o controle do Estado. A cultura e a organização do emprego passaram a
orbitar ao redor dessa visão tutorial, que se prolongou nos ciclos
modernizadores ao longo do século XX. Tais são as conclusões que podem ser
tiradas da leitura das obras de autores que se debruçaram sobre o
patrimonialismo brasileiro no período apontado, como Meira Penna (1917-) ,
Wanderley-Guilherme dos Santos (1935-) ,
Ricardo Vélez Rodríguez (1943-) ,
etc.
3 – Patrimonialismo e economia
no século XIX e na atual quadra do populismo desenvolvimentista.
As leituras sugeridas pelos organizadores do Colóquio debruçaram-se,
na última fase, sobre algumas variáveis econômicas, confrontando-as com o
momento vivido por Mauá, no século XIX, de um lado e, de outro, com a atual
conjuntura de populismo desenvolvimentista que atravessa o Brasil.
A leitura do texto de Walter Bagehot (1826-1877) intitulado: Lombard
Street (publicado em 1873) traz, para os não especialistas em história
econômica, como é meu caso, uma ideia importante: uma economia nacional
amadurecida, fundada na livre iniciativa e no respeito à propriedade privada,
com regras claras e sedimentada no jogo do comércio internacional, dá ensejo a
instituições monetárias fortes. A moeda forte, no mundo moderno, não é efeito
de atos voluntaristas de pessoas ou de governos, mas é a decorrência de uma
economia com fundamentos sólidos. As moedas fracas revelam economias com pouco
fundamento. Bagehot, ao tratar da moeda, retoma a tradição econômica liberal
inglesa, que já desde a época de John Locke (1632-1704) tinha consolidado os
aspectos essenciais.
Os autores lidos para o Colóquio, no que tange às sessões
quarta (“Comparing the Efficiency of Different Structures of Finantial
Markets”), quinta (The Aftermath: Current Public Debt Policy”) e sexta (“The
Aftermath: Current Foreign Exchange Regime”) deixam isso bem claro, em que pese
a diversidade de posições assumidas no tocante à teoria econômica.
No caso da realidade brasileira das últimas décadas, um fator
crescente de instabilidade reside na intervenção excessiva do governo na
economia. As distorções causadas por essa prática, no que tange à fixação das
taxas de juros, foram destacadas no texto escolhido de José Julio Sena, A mão
invisível: problemas e controvérsias da política econômica brasileira.
Em obra posterior intitulada: Os parceiros do rei,
este autor mostrou que, no contexto do Estado patrimonial brasileiro, as
intervenções dos governos para estimular “campeões nacionais” entre o
empresariado, mais do que robustecer a concorrência sadia e o desenvolvimento
sustentado da economia, terminam gerando gargalhos burocráticos e fortalecendo
o papel do Estado-empresário.
Essa tradição do Estado empresário, como sabemos, é antiga na
cultura luso-brasileira, se remontando à denominada “Aritmética Política” do
marquês de Pombal (1699-1782). Os seguintes princípios formavam parte da
mencionada “Aritmética”: em primeiro lugar, compete ao Estado empresário
garantir a riqueza da nação; em segundo lugar, o Estado deve garantir, também,
a moral dos indivíduos e a ordem social e política; em terceiro lugar, o Estado,
de posse da ciência aplicada, está apto para resolver todos esses problemas e
presidir ao ordenamento racional das instituições políticas. A reforma
educacional visava a dotar o Estado dos técnicos de que carecia para cumprir
com as suas funções.
Gustavo Franco, no texto que foi objeto de estudo no Colóquio
e em recente artigo publicado em jornal de circulação nacional, deixou claro
que a dívida pública descontrolada constitui, hoje, o grande lastro para o
desenvolvimento do país, chegando a comprometer o futuro das próximas gerações,
tal o volume de recursos de que o Estado deverá se apropriar ao longo das
próximas décadas, na rolagem da mesma. Segundo o ex-presidente do Banco
Central, a dívida pública brasileira anda já pela casa dos 68% do PIB,
logicamente sem cair na armadilha da cosmética oficial, mas levando em
consideração as normas internacionalmente aceitas de contabilidade.
A respeito, afirma Gustavo Franco: “68% do PIB é um número
muito elevado para um país emergente, mas seria ótimo se fosse só isso. Existem
muitos problemas ainda não contabilizados. Um exemplo: numa empresa mista como
a Petrobrás, se o acionista controlador pratica populismo tarifário, não deveria
indenizar a empresa, como era feito no passado através da chamada conta petróleo? A Moody's reduziu a
classificação de risco da Petrobrás em razão de seu elevado endividamento, que
cresceu US$ 16,6 bilhões apenas no primeiro semestre. Qual seria o saldo da conta petróleo hoje, caso ainda
existisse? Coisa parecida se passa no setor elétrico, onde parte significativa
dos custos da redução na conta de luz
ficou para o Tesouro. E também nos bancos públicos, toda vez que o crédito não
é concedido de acordo com as melhores práticas bancárias ou os bancos são
instruídos a apoiar campeões. Não há
dúvida que os custos de muitas políticas públicas, cujo mérito sempre se pode
discutir, ainda não foram contabilizados na dívida pública. É inafastável a
reflexão: são anos para consertar, bastam meses para estragar. Mas ainda não
acabou: a previdência do servidor, e algumas outras despesas de caráter continuado, como as da saúde, são obrigações
que não reconhecemos como dívidas, contrariamente ao que fazem muitos países
que capitalizam esses gastos e a eles associam reservas e ativos, às vezes
dentro de fundos de pensão. Que tamanho teria a dívida pública se essas contas
fossem capitalizadas? Há países à beira de um ataque de nervos com os efeitos
do envelhecimento sobre os gastos de seguridade social. Não é o nosso caso,
pois uma bomba a uma década de distância é como se não existisse. A conclusão
escapista habitual diante de uma dívida
impagável é que o problema não é nosso, mas do credor. Porém, nesse caso, o
assunto é mais complexo: credor e devedor são a mesma pessoa” .
A questão da conversibilidade plena do real, que foi colocada
sobre o tapete das políticas econômicas em 2003 por Pérsio Arida
parece que fica comprometida com a desordem introduzida pelo governo na má
gestão da dívida pública. Após 10 anos de populismo econômico, a casa
certamente não está mais arrumada como tinha ficado no final dos anos 90. O
futuro é sombrio. A inflação está de volta. Os fantasmas do passado, com a
insegurança jurídica como carro-chefe, voltam a assombrar as esperanças dos
brasileiros num futuro melhor.
Conclusão
Há algo em comum entre as circunstâncias vividas pelo barão
de Mauá e as atuais agruras ensejadas pelo populismo econômico no Brasil: em
ambas está presente a figura tutelar do Estado intervencionista, que, com as
suas iniciativas, prejudica mais do que favorece o desenvolvimento econômico.
Os créditos fáceis concedidos pelo banco oficial no momento de Mauá favoreceram
quem se posicionou incondicionalmente do lado do Imperador. A irrigação do
crédito “camarada” favorece, atualmente, aqueles empresários que foram
escolhidos pelo governo como “campeões de bilheteria” e que, em consequência,
receberam créditos brandos dos bancos oficiais, notadamente do BNDES. Os
empresários cooptados, poupados do risco e com as suas aventuras malsucedidas,
terminam comprometendo os recursos de todos os brasileiros. É o que está
acontecendo com a Petrobrás. Como escreve conhecido especialista, Max Calabria:
“Quando o estado é dono de bancos, as decisões de concessão de empréstimos
ficam cada vez mais determinadas pela política, em vez de serem baseadas em
critérios econômicos. Os recursos chegam àqueles que têm influência. Os bancos
estatais também costumam subestimar o preço do risco para comprar votos. Se há
uma lição que deveríamos aprender com a crise recente, é que, quando
intencionalmente se subestima o risco, coisas más acontecem” .
A saga do Estado patrimonial, com a sua sequela de
intervenções políticas no mercado, atrapalhou, definitivamente, o
desenvolvimento do Brasil ao longo dos duzentos anos de sua história. Não se
trata de uma questão de pessoas. É uma realidade estrutural: onde há Estado
patrimonial há pobreza, embora, em alguns momentos, surjam momentos
modernizadores. Mas estes, como frisava o economista americano John Maurice
Clark (1884-1963), estão submetidos às incertezas da dinâmica personalista que
termina prevalecendo nos contextos regidos por Estados patrimoniais, ensejando
o conhecido “voo de galinha” do desenvolvimento. O Patrimonialismo deu lugar
não a uma racionalidade diuturna, de cunho weberiano. Deu lugar, pelo contrário,
ao que Clark denominava de “racionalidade administrativa variável” ,
que é posta em prática quando o senhor patrimonial vê que a sua autoridade pode
sofrer abalos e os esforços de racionalização administrativa são envidados
única e exclusivamente para superar o perigo. Uma vez vencida a dificuldade do
momento, “tudo volta ao que era antes no quartel de Abrantes” como reza o dito
popular.
Bibliografia citada