A presidente Dilma
deverá nomear nas próximas semanas os integrantes da “Comissão da Verdade”. Em
face disso, gostaria de externar algumas reflexões sobre o sentido de tal
iniciativa. Considero um erro crasso a instituição dessa Comissão. Explicarei a
seguir por que.
Os indivíduos, como as nações, buscam ter uma memória acerca
do seu passado. No caso das pessoas
individuais, essa memória ocorre por uma rememoração dos momentos fundamentais.
Ou quando há um trauma, pelo mecanismo da psicanálise, que permite ao indivíduo
se remontar até a vivência que o gerou, a fim de, com a claridade da razão
projetada sobre ela, identificá-la, aceitá-la e começar a gerir em paz essa
“marca” da trajetória pessoal. No caso das nações, a memória do passado é
mantida pelas pesquisas históricas e pela continuada reflexão sobre elas. Entre os Gregos antigos, era o teatro que
ajudava a manter vivas essas raízes da própria identidade, que se perdiam na
cinzenta estela dos mitos. Quando, no século V a. C., surgiram os primeiros
filósofos, estes começaram a elaborar uma visão racional desse passado. Os
historiadores logo apareceram, compilando os documentos que testemunhavam os
fatos da Polis. Momentos houve, na
longa história do Ocidente, em que se perderam esses elos, quando os
racionalistas, nos séculos XVII e XVIII, passaram a menosprezar o reconto dos
fatos passados, por considerá-los pouco objetivos. A conseqüência foi a perda
da própria identidade e o incremento das inovações sem sentido, (como lembrou com propriedade Alexis de Tocqueville nas suas obras A Democracia na América e O Antigo Regime e a Revolução), fato que
conduziu a Revolução Francesa ao negro ciclo conhecido como Terror. A intelligentsia, literalmente, perdeu a
cabeça. Foi necessária a reação romântica para voltar a colocar a narrativa do
passado nos trilhos e instituir novamente, com François Guizot, a disciplina da
historiografia.
No Brasil, precisamos ter memória do nosso passado nacional.
Essa recuperação da identidade é feita, fundamentalmente, pelos historiadores.
A melhor forma de tomarmos consciência do que se passou consiste no exercício
livre e diuturno da historiografia. Quantas mais pesquisas houver nesse
terreno, melhor para todos nós. Quanta maior liberdade houver no debate entre
as diversas interpretações históricas, melhor para todos. Porque o critério de
verdade, em história, não é categórico, no sentido aristotélico, como se
somente houvesse uma única interpretação, indiscutível, do que aconteceu. As
certezas, em historiografia, situam-se no terreno móvel do que o Estagirita
denominava de afirmações “dialéticas”, aquelas que podem ocorrer ou não
ocorrer, em decorrência da liberdade humana. O critério de verdade, em história,
é a “credibilidade”. Aquele que reconstituir a história mais “crível”, esse
será tido como portador da verdade. Explicações incríveis são descartadas como
pouco explicativas.
Pretende-se instaurar, no Brasil, a “Comissão da Verdade”,
integrada por pessoas nomeadas pelo Executivo, a fim de reconstituir um período
da vida nacional, que o governo atual acha necessário desvendar, entre 1945 e o
fim do ciclo militar. Os arautos da iniciativa inspiraram-se, sem dúvida, na "Comissão da Verdade" que funcionou na África do Sul na transição entre o regime segregacionista e a atual quadra de funcionamento das instituições republicanas. Essa Comissão, criada no país africano nos anos 90 do século passado, foi presidida pelo bispo Desdond Tutu e teve grande utilidade para superar o conflito civil que tinha esgarçado o tecido social.
A "Comissão da Verdade" brasileira, da forma em que foi planejada, soa mais
como uma espécie de Comitê da Presidência da República para oferecer à opinião
pública uma versão diferente dos fatos ocorridos, de acordo aos interesses
ideológicos do Partido ora no poder. Não tivemos, aqui, ao contrário do que tinha ocorrido na África do Sul, nem um regime odioso de Apartheid, nem o correspondente conflito civil que contrapôs, de forma total, a minoria branca (que correspondia a 30% dos habitantes do país) e a maioria negra (constituída por 70% da população). As nossas circunstâncias históricas, na abertura democrática dos anos 80, não partiram da tentativa de superar uma guerra civil que tivesse cindido a sociedade brasileira. A abertura foi decidida pelo governo militar em diálogo negociado e democrático com a sociedade civil (representada no Congresso).
Já se tornou bordão, nos governos
petistas, a frase: “nunca antes na história deste país”, como se o fato de os
dois últimos presidentes pertencerem ao PT os transformasse, ipso facto, em entidades mediúnicas
capazes de auscultar com claridade metafísica a alma da nação. No caso da
mencionada Comissão, trata-se de um grupo de pessoas que apresentarão uma versão
do confronto entre a esquerda radical e as forças da ordem (no ciclo militar), acorde com os interesses ideológicos do PT, no sentido de desmoralizar, perante
a opinião pública, aqueles que exerceram funções repressivas entre 1964 e 1985. Trata-se, também, de
apresentar como vítimas inocentes todos aqueles que empunharam as armas para
derrubar a ordem estabelecida e instaurar, no nosso país, uma ditadura
comunista. A “Comissão da Verdade” foi instituída, outrossim, por um partido que já deu provas de parcialidade na reconstituição dos fatos históricos. (Lembremos
o esdrúxulo projeto apresentado, no final do segundo governo Lula, com apoio da Casa
Civil da Presidência, para instaurar uma nova política de direitos humanos,
numa versão distorcida que terminou sendo engavetada por pressão da opinião pública).
A proposta do governo, no caso da “Comissão da Verdade”,
constitui, assim, mais um expediente ideológico para dar vazão ao ressentimento
da esquerda radical, que conspirou contra as instituições republicanas e que
foi vencida pelas Forças Armadas, que cumpriram com o seu papel de defender a
soberania e a ordem constitucional. Não tivesse o Exército cumprido com a sua
missão à época, teríamos visto surgir, em território brasileiro, uma “República
independente” do tipo que as FARC consolidaram na Colômbia na região de El
Caguán, com toda a carga de violência que isso implicou para a nação do vizinho
país. Na sanguinolenta guerra que as FARC declararam ao Estado colombiano,
entre 1979 e 2002, morreram 450 mil pessoas. Se o PC do B tivesse instaurado a sua República do Araguaia entre nós, teríamos tido milhares de vítimas que hoje clamariam por
justiça.
A atual quadra da vida democrática brasileira teve como porta
de entrada a Lei da Anistia, que foi aprovada pelo Congresso e que trouxe de
volta os exilados. Pretender esvaziá-la mediante a instauração de uma “Comissão
da Verdade” constitui um desserviço ao país. Que a memória nacional seja
reconstituída de forma isenta pelos historiadores. Que a sociedade debata,
livremente, entre as versões apresentadas por estes e que fique com a mais
“crível”. Sem falsas verdades ideologicamente montadas para dar vazão ao
ressentimento dos vencidos.