O mais recente livro de Antônio Paim, intitulado: 
Marxismo e  Descendência [Campinas: Vide Editorial, 2009, 593 pg.] é uma contribuição valiosa para a análise  do pensamento de Karl Marx (1818-1883) e a sua evolução na Rússia e na  Europa Ocidental, notadamente na França. Faltava, no Brasil, uma avaliação  crítica dessa doutrina, que abarcasse os suas manifestações nos terrenos econômico,  político e cultural e as confrontasse, historicamente, com os desdobramentos  ocorridos ao longo dos séculos XIX e XX. É o que faz na sua obra o historiador das idéias, formado em Filosofia, ao longo dos anos 50 do século passado, na Universidade Lomonosov, de Moscou, e na Universidade do Brasil, no Rio  de Janeiro. Antônio Paim é figura conhecida do nosso universo cultural,  tendo-se destacado, a partir da publicação do seu livro 
História das idéias  filosóficas no Brasil, [São Paulo: USP / Grijalbo, 1967], como o mais importante historiador do pensamento brasileiro, com mais de 40 livros dedicados ao tema.
A obra Marxismo e descendência consta de três  partes: I – A doutrina marxista do Estado, II – A doutrina marxista da sociedade e III – A  doutrina marxista do pensamento. Na primeira parte, o autor desenvolve os  seguintes itens: 1- a doutrina do Estado patrimonial; 2 - a meditação de Marx  sobre o Estado; 3 - presumível legado marxista inspirador de Lenine; 4 - a  inspiração de Marx, presente na concepção leninista do Estado; 5 - ação teórica e  prática de Lenine na estruturação dos institutos básicos do sistema totalitário.
A segunda parte consta destes itens: 1- como se deu a organização  do partido comunista francês; 2 - esgotamento do partido comunista na vida política e cultural francesa; 3 - o amadurecimento do cientificismo  francês; 4 - a doutrina da sociedade de Marx; 5 - superação das lacunas da doutrina marxista da sociedade pela sociologia francesa, na obra de Durkheim; 6 - aprofundamento do cientificismo pelos discípulos e eliminação da  divergência com o marxismo; 7 - o estruturalismo como exacerbação do cientificismo, a adesão do marxismo e seu desfecho.
Na terceira parte, são desenvolvidos estes itens: 1 - a filosofia  de Marx; 2 - a tradição filosófica e a problemática contemporânea; 3 - a  recepção do marxismo nos principais países europeus (fins do século XIX e início  do século XX); 4 - A estruturação da vulgata marxista; 5 - duas tentativas  de interpretação autônoma e seu desfecho; 6 - a tentação do niilismo.
Marxismo e Descendência, graças ao seu  balizamento em fontes primárias, bem como em virtude da abrangência da análise e o rigor crítico no estudo do pensamento de Marx e dos desdobramentos do Marxismo, constitui, hoje, a mais importante obra de referência em língua portuguesa sobre o tema, complementando, de forma definitiva, outras análises efetivadas por autores brasileiros como  Roque Spencer Maciel de Barros [O Fenômeno Totalitário, 1990],  José Guilherme Merquior [O marxismo ocidental, 1987], José  Osvaldo de Meira Penna [O evangelho segundo Marx, 1982], Leandro Konder [Marx, vida e  obra, 1968; A derrota da dialética, 1986], etc.
Antônio Paim passa a figurar, outrossim, pelas razões apontadas, na estante internacional de estudiosos do marxismo da  talha de Karl Wittfogel [Oriental Despotism, 1953], Hanna  Arendt [The Origins of Totalitarianism, 1951], Leszek Kolakowski [Main Currents of Marxism, 1978],  Rodolfo Mondolfo [Sulle orme di Marx, 1923], François Furet [Le passé d´une  illusion, 1996] Raymond Aron [L´Opium des Intellectuels, 1955; D´une  sainte famille à l´outre, 1969; Le Marxisme de Marx, 2002], G. Lukacs [Histoire  et conscience de classe, 1960], G. Plekhanov [The Materialist Conception of History, 1891; Fundamental Problems of Marxism, 1908], Courtois et  alii [Le livre noir du communisme, 1997], R. Wiggershaus [Die  Frankfurter Schule, 1986], D. Dworking [Cultural Marxism in Post War Britain, 1997], F. Wheen  [Karl Marx, 2000], Schlomo Avineri [The Social and  Political Thought of Karl Marx, 1968], Isaiah Berlin [Karl Marx: His Life and Environment, 1963], D. McLellan [Marx  before Marxism, 1980], M. Rubel  [Marx Without Myth, 1975], T. Rockmore [Marx after Marxism, 2002], Ch. Henning  [Philosophie nach Marx, 2005], R. Studart [Marxism and National Identity, 2006], M.  Sacristán [Sobre Marx y Marxismo, 1983], M. Galceran Huguet [La invención  del Marxismo, 1997], G. Wetter/W. Leonhard [Sowjetideologie heute,  1962], Videira Pires [Marx e o Estado, 1983], etc.
Neste comentário, destacarei três aspectos que me parecem capitais  na obra de Antônio Paim: I – Preponderância, em Marx, das preocupações do militante sobre as exigências de pesquisa da verdade, no terreno da  ciência social. II - Aproximação entre o comunismo de Marx e o cientificismo  francês. III - Ascensão do comunismo, na França, e o seu progressivo domínio sobre o movimento operário, reforçando a tradição do estatismo.
I - Preponderância, em Marx, das preocupações do militante sobre as exigências de pesquisa da  verdade, no terreno da ciência social.
Da análise feita por Paim fica claro que, para Karl Marx  (1818-1883), um elemento permanece constante, como finalidade essencial, em toda a sua  obra: conquistar a vitória do proletariado nas sociedades européias ocidentais (Alemanha, França, Inglaterra), mediante a eliminação violenta do Estado burguês. Marx considerava ser ele o líder único e infalível dessa  revolução. Para conseguir esse seu intuito, não duvidou em sacrificar os fatos aos  seus esquemas teóricos. A verdade claudicou diante da militância política.  Marx foi desmoralizando, um a um, todos os pensadores e líderes socialistas que  tinham aderido a um socialismo democrático, diferente do modelo totalitário por  ele apregoado. Fez isso, por exemplo, na Alemanha, contra Ferdinand Lassalle (1825-1864) e, na França, contra Pierre-Joseph Proudhon (1809-1865).  Paim deixa claro que houve influência muito grande do regime apregoado por Marx  sobre o adotado, na Rússia, após a Revolução de 1917, por Lenine (1870-1924).  Para ambos, somente valia um tipo de comunismo: o imposto pelo líder, com  absoluto banimento da dissidência e com a implantação de um regime de poder  total. Na Rússia, o regime bolchevique foi o novo capítulo do “despotismo  oriental” czarista. Não foi à toa que um estudioso do marxismo como Karl Wittfogel destacou que Marx terminou fazendo o jogo do despotismo hidráulico [cf.  Wittfogel, Le despotisme oriental: étude comparative du pouvoir total,  tradução francesa de Micheline Pouteau, Paris: Minuit, 1977, introdução].
Vale a pena aprofundar um pouco neste aspecto. Segundo Paim, o pensamento de Marx estruturou-se inicialmente no contexto da denominada Esquerda Hegeliana, em contraposição à guinada conservadora de Hegel,  que endeusava o Estado Prussiano. Os discípulos terminaram, no entanto, se colocando contra a liberdade, defendida pelo fundador da História da  Filosofia. Marx progressivamente foi se desinteressando da discussão em torno ao  sufrágio, arrolando-a sob o genérico mote de “ditadura burguesa”. A respeito deste aspecto, Paim frisa: “Temos, portanto, estes marcos: 1 – a soberania, achando-se na sociedade, poderá provir de um de seus segmentos (o  proletariado, como se deu); 2 – na delegação da soberania, a escolha não precisa  ater-se à experiência do Estado real existente; e 3 – a concordância com a  hipótese hegeliana de o Estado corresponder a ser moral o predisporá a aceitar  que a ditadura (do proletariado) possa constituir uma instância dotada de  moralidade. Parece essencial registrar que a influência hegeliana terá levado Marx a ignorar solenemente a tipologia dos interesses da lavra de Benjamin  Constant e a finalidade com que o fez. Isto é, a determinação da natureza do  sistema representativo. Está, portanto, de posse de um arcabouço teórico quanto à institucionalização da vida política que, segundo a experiência  histórica subseqüente, pode receber diferentes conteúdos. O próprio Marx dará o  pontapé inicial em tal procedimento (...)” [Paim, Marxismo e descendência,  p. 81-82].
Entra aqui, a meu ver, a variável correspondente à influência rousseauniana, que Marx certamente recebe ao longo da sua etapa  parisiense. Para o filósofo de Genebra, a soberania do povo repousa na “Vontade  Geral”. Esta é apropriada pela “Vanguarda do Povo” constituída pelos “Puros”,  aqueles que se despiram dos seus interesses individuais para defender o  interesse público. Ora, essa “Vanguarda” é chefiada pelo próprio Marx, que se  converte numa espécie de salvador das massas proletárias. Marx escreve na sua Crítica da  filosofia do direito de Hegel: “O poder legislativo fez a  Revolução Francesa; de um modo geral, fez grandes revoluções orgânicas genéricas  em todos os lugares onde dominou em toda a sua particularidade (...). Pelo  contrário, o poder governativo fez as pequenas revoluções, as revoluções retrógradas,  as reações; não fez da revolução uma constituição oposta a uma outra mais  antiga, mas sim algo que se opunha a toda a constituição, pois o poder  governativo é o representante da vontade particular, da vontade subjetiva, do aspecto  mágico da vontade” [cit. Por Antônio Paim, in: Marxismo e descendência,  ob. cit., p. 77].
A respeito destas palavras, Paim escreve: “O texto transcrito é  bastante elucidativo das crenças que carregou pelo resto da vida: muito Rousseau e nenhum Benjamin Constant. Este determinou com exatidão qual a vantagem  do governo representativo – organizar os interesses e levá-los à  negociação. A vontade geral de Rousseau exigirá a presença de quem o interprete.  Aceitar essa premissa é abrir o caminho aos Robespierres do século XVIII e aos Lênins  do século XX” [Paim, ob. cit., p. 77-78].
Era clara, no sentir de Paim, a feição totalitária de Marx ao  pretender destruir, por todos os meios, o denominado “Estado burguês”, como  condição para a implantação do comunismo. A carta de Marx a Kugelmann, datada de 12 de  Abril de 1871 (que foi utilizada por Lenine para justificar a opção radical  dos bolcheviques) constitui, no sentir de Paim, documento eloqüente do  radicalismo que empolgava ao autor de A ideologia alemã. Eis as  palavras de Karl Marx: “No último capítulo do 18 Brumário, eu  sublinho, como notarás se o releres, que a próxima tentativa da Revolução na França não  deverá mais consistir em fazer transferir a máquina burocrática e militar para  outras mãos, como aconteceu até aqui, mas sim em destruí-la (sublinhado por Marx; no original, a palavra é zerbrechen). É  essa a primeira condição de qualquer revolução popular verdadeira no continente. Foi isso o que os nossos heróicos  camaradas de Paris tentaram” [apud Paim, ob. cit., p. 115].
A propósito do texto citado, frisa Paim: “Como se vê, Lênin quer demonstrar que, no seu propósito de derrubar a Kerenski, como passo para destruir a máquina estatal – que, por um passe de mágica, teria  transformado o velho Estado czarista em Estado burguês – está seguindo o grande Mestre. E, efetivamente, o faz” [Paim, ob.  cit., p. 115].
  
II - Aproximação entre o comunismo de Marx e o cientificismo francês.
Paim destaca que o comunismo proposto por Marx terminou se  aproximando do cientificismo francês, tematizado pelos filósofos que, a partir de  início do século XIX, queriam banir o individualismo e o capitalismo, a fim de substituí-los por uma forma de coletivismo apregoado em nome da ciência  social emergente com o nome de “sociologia”. Esses pensadores foram, na sua  ordem, Henri-Claude de Saint-Simon (1760-1825), Augusto Comte (1798-1857), Pierre-Joseph Proudhon, Jules Guesde (1845-1922) e Jean Jaurès  (1859-1914).
Após a morte de Marx, Émile Durkheim (1858-1917), herdeiro da  tradição cientificista de Comte e Saint-Simon, completou a formulação da  sociologia francesa, lhe atribuindo uma finalidade dogmática e outra prática: a  parte dogmática consistiria numa doutrina em que a realidade deveria ser  moldada a partir de um conceito totalizante de sociedade orgânica (sendo a  estrutura social anterior aos indivíduos). Do lado prático, essa ciência estaria  chamada a libertar de vez a sociedade dos vícios do individualismo, mediante a implantação definitiva de um vago socialismo, que o Partido Comunista  Francês sempre interpretou como o comunismo nos moldes soviéticos. Surgia,  assim, no panorama intelectual francês, o conceito de “ciência engajada”, que teve continuidade, com as mesmas características fixadas por Durkheim  (doutrina totalizante e finalidade prática de estabelecer um socialismo genérico),  nos momentos subseqüentes do estruturalismo formulado por Claude Lévy  Strauss (1908-2009), e do estruturalismo marxista de Althusser (1918-1990).
Aprofundemos um pouco na análise que Paim faz em torno ao  surgimento da ciência social francesa com Durkheim. Este autor continuou fiel ao  legado de Comte, no que tange à formulação do método sociológico; a sociologia,  para ele, deveria rejeitar qualquer explicação individualista e psicológica. A  respeito, Paim frisa: “A explicação de tipo científico e objetivo requer que se  tome como ponto de partida o fato social, que os fenômenos sociais sejam estudados  do mesmo modo que se dá em relação ao aos fenômenos naturais. As  Regras do método sociológico definem fato social como correspondendo ao modo pelo qual se exerce  sobre o indivíduo coerção de natureza exterior. Os fatos sociais são  reconhecidos a partir daquilo que se impõe ao indivíduo. Devem ser observados como  coisas” [Marxismo e Descendência, ob. cit., p. 306] . O próprio Durkheim tinha  escrito na sua obra citada: “O fator social é reconhecível pelo poder de coerção  externa que exerce ou é susceptível de exercer sobre os indivíduos; e a presença  deste poder de coerção externa é reconhecível, por sua vez, seja pela  existência de alguma sanção determinada, seja pela resistência que o fato opõe a  qualquer empreendimento individual, que tente violentá-lo. (...) Ele existe independentemente das formas individuais que toma ao se definir” [apud  Paim, Marxismo e Descendência, ob. cit., p. 307].
O método sociológico proposto por Durkheim apresenta um grave  problema: cria um objeto fictício da sociologia, ao pretender estudar os fatos  sociais não como realidades constatáveis no mundo, mas ao imaginá-los como  decorrentes de uma sociedade in abstracto, que é organizada a partir de determinadas categorias ou arquétipos não  comprováveis no plano da experimentação. Durkheim, como destaca Aron, esboça “o que  será uma das idéias fundamentais em toda a sua carreira: a definição de  sociologia como prioridade do todo sobre as partes, ou a irredutibilidade do conjunto  social à soma dos elementos, e a explicação dos elementos pelo todo” [Aron, As etapas  do pensamento sociológico, tradução de Sérgio Bath, 5ª edição, São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 292]. Para Aron é claro que o  pensamento de Durkheim se organiza em torno a estas idéias essenciais: 1 – a  diferenciação social é a condição criadora, nas sociedades modernas, da liberdade  individual; 2 – nessa sociedade individualista, o maior problema consiste em manter o mínimo de consciência coletiva; 3 – o indivíduo é expressão da  coletividade; 4 – na sociedade, a consciência coletiva é maior do que as consciências  individuais [Aron, ob. cit., p. 296-297].
Na raiz da proximidade epistemológica entre o comunismo de Marx e o cientificismo francês, encontramos, como uma das causas dessa afinidade,  o fato de que o marxismo, desde as suas origens, esteve sempre com um pé na  tentativa de representar conceitualmente a realidade apreendida, mas com o outro  pé na idéia de sistema, dando mais importância, no entanto, a esta última  variável, como se tudo pudesse ser reduzido, à maneira espinozana, a um único princípio  em face do qual, se necessário fosse, seria corrigida, e até negada, a  realidade apreendida. Isso aconteceu, por exemplo, com a obra de Marx intitulada: O  18 Brumário de Luís Bonaparte, que tratava de sistematizar os  aspectos fundamentais da Comuna de Paris (março-maio de 1871), caracterizada por  Marx como uma etapa importante da luta de classes na França.
Ora, o que foi, na sua essência, a Comuna de Paris? Esse  acontecimento constituiu, como frisa Antônio Paim, uma insurreição da Guarda Nacional,  que foi desmobilizada por ordem do Presidente da República, Adolphe Thiers (1797-1877). A Guarda Nacional, organizada no transcurso da Revolução  Francesa, tinha sido suprimida sob Napoleão III. Foi reconstituída em 1870, a fim  de fazer frente às tropas alemãs, que tinham ocupado os fortes ao norte e  leste de Paris. Nessa reconstituição, a Guarda Nacional chegou a contar com 140  mil homens. Como o conflito com os alemães resolveu-se rapidamente, sem que a  Guarda Nacional tivesse entrado em combate, os seus elementos revoltaram-se  quando foi dada a ordem de dissolução da mesma pelo chefe do executivo, Thiers. O  general encarregado de fazer cumprir a ordem foi preso e fuzilado pelos membros  da Guarda Nacional. Instigados por Louis Auguste Blanqui (1805-1880), os  oficiais e praças da Guarda Nacional organizaram, junto com os habitantes das  áreas populares da cidade, o Conselho Geral da Comuna de Paris. Os  conselheiros municipais eram eleitos em sufrágio universal nos diversos subúrbios da  cidade, sem que a sua proveniência se estendesse a toda ela. A maioria deles era constituída por operários ou conhecidos representantes deles,  manipulados pelos blanquistas e contando com o fanatismo (decorrente do patriotismo  frustrado) da Guarda Nacional. Ora é essa insurreição que Marx saúda como o início da revolução proletária na França. Evidente exagero da cabeça do militante germânico. É clara a finalidade perseguida por Marx na análise do  processo revolucionário na França: mostrar que estava prestes a surgir o modelo  de comunismo totalitário, que ele consagrava como receita messiânica para  todos os males das sociedades ocidentais.
Voltando ao tema da aproximação entre Marx e o cientificismo  francês, Antônio Paim ilustra a particular influência de Comte sobre o autor de O Capital. Em três pontos poder-se-ia resumir essa inspiração: Em primeiro lugar, na questão da implantação da sociedade racional. Este  conceito, em Comte e em Marx, pressupõe que o grupo social que deve pautar essa implantação seja consciente da sua missão. Era o que Marx denominava de “consciência de classe”. A implantação da sociedade racional ocorreria,  segundo Comte, pela ação dos “savants positifs”, que deveriam ensinar o método positivo ou científico à sociedade. Para  Marx, o comitê revolucionário da classe operária deveria demolir a máquina do  Estado, de forma semelhante a como os dirigentes da Comuna de Paris procederam.
Em segundo lugar, a inspiração de Marx em Comte revela-se na  acepção de ciência social. Este conceito era entendido, por ambos os autores, como “conjunto de dogmas em relação aos quais não se pode admitir a liberdade  de consciência” (Paim, ob. cit., p. 225]. Neste ponto radicaria, no sentir  de Paim, o ponto central da divergência entre Marx e Proudhon.
Em terceiro lugar, a influência comteana em Marx é revelada pela  forma em que ambos os autores entendem a implantação da ditadura. Comte, como  mais tarde faria Marx, falava em “ditadura”. Ambos entendiam, por tal regime,  uma estrutura governativa em que o poder executivo forte se pautasse pela  ciência social, com total recusa à representação política e com o banimento de  qualquer oposição.
III - Ascensão do comunismo, na França, e o seu progressivo domínio sobre o movimento  operário, reforçando a tradição do estatismo.
Em decorrência da simbiose entre o marxismo e o cientificismo  francês, ocorreu um outro fenômeno que teria forte influência na cultura  francesa: a ascensão do marxismo e a agressiva ocupação de espaços pelos militantes  desse partido, de forma a tornarem hegemônico o PC sobre o movimento operário, deixando para trás as propostas de socialismo democrático. A obra de  Paim detalha esse processo que interessa muito ao leitor brasileiro, toda vez  que, entre nós, a tradição cientificista também passou a reforçar a  implantação de um modelo de socialismo totalitário, como muito bem tinha deixado claro o  nosso autor em estudo anterior intitulado: A escola cientificista  brasileira [Estudos complementares à História das idéias filosóficas no Brasil, vol. VI, Londrina: Cefil, 2002].
O particular desenvolvimento do socialismo francês, bem como os  riscos enfrentados pela III República, conduziram a que fosse reforçada a hipervalorização do Estado pela sociedade, tendência que já se  encontrava presente na sociedade francesa desde o absolutismo de Luís XIV (no  século XVIII), passando pelo ciclo napoleônico (no final do século XVIII e  início do XIX). A instituição estatal, frisa Paim a respeito, “é verdadeiramente cultuada. Não se trata de imaginá-la superior ou separada da sociedade. O Estado francês está a serviço da sociedade, quer merecer o seu apreço e lealdade pela eficiência. A partir desse entendimento, não se coloca o  problema de aceitar que certas atividades deveriam ser efetivadas pela iniciativa privada” [Paim, Marxismo e Descendência, ob. cit. p. 193].
Essa excessiva valorização do papel do Estado na sociedade,  considera Paim, é traço que marca a contemporaneidade institucional da França.  Para provar a sua asserção, o nosso autor escreve o seguinte: “A  singularidade em apreço veio a ser assinalada recentemente no livro L´ Individu  effacé ou le paradoxe du libéralisme français [Paris: Fayard, 1997], da autoria de  Lucien Jaume, professor de filosofia, diretor de pesquisa do CNRS, especialista  em filosofia política e categorias do Estado Moderno, temas de que se tem  ocupado em diversas obras. A admissão da hipótese de que o Estado seria um ser  moral – e não um pólo de interesses, os da burocracia, como qualquer outro  agrupamento social - é comum às principais correntes políticas francesas, fenômeno  que se acentuaria no século XX pelos riscos reais a que a República esteve  submetida. Nesse particular, não se distinguem liberais de socialistas” [Paim, Marxismo e  descendência, ob. cit., p. 194].
Esse espírito favorável ao estatismo constituiu, segundo Paim,  circunstância histórica importante que selou a sorte do socialismo democrático  francês, às voltas sempre com a tentação totalitária. Tal circunstância foi  reforçada, no sentir do nosso autor, pela agressiva atitude dos comunistas. A  respeito, afirma Paim: “A segunda circunstância histórica que marcou em definitivo  o socialismo democrático francês seria a batalha travada com os  comunistas, em 1920, pela posse da máquina partidária. Naquela oportunidade predominou o entendimento de que não caberia renegar o marxismo, mas apenas a  interpretação leninista” [Paim, Marxismo e Descendência ob. cit., p.  194].
O socialismo democrático, contudo, teve, na França, um formulador importante que identificou a opção por esse sistema como questão moral,  num contexto de tolerância e pluralismo em face de outras correntes  políticas: Pierre-Joseph Proudhon (1809-1864). Em virtude desse caráter  eminentemente culturológico vinculado à opção socialista, este pensador foi  menosprezado por Marx, para quem unicamente valia a opção de comunismo totalitário, sem  maiores preocupações morais, e num contexto em que a única variável que deveria  ser levada em consideração era a da conquista do poder, com exclusão de  qualquer oposição, negando também o pluralismo. Paim deixou, na sua obra, clara a diferença entre ambos os autores, com as seguintes palavras: “Outro  traço distintivo do socialismo proudhoniano, em relação ao comunismo marxista,  reside no fato de que Proudhon, em sua obra madura, ressaltaria o caráter moral  da aspiração socialista. Justamente essa herança proudhoniana levaria o  socialismo europeu a distanciar-se cada vez mais do legado de Karl Marx,  distanciamento que se coroa com o surgimento, em nosso tempo, da social-democracia.  Provindo do socialismo e preservando o seu sentido moral, a social-democracia singulariza-se ao reconhecer o caráter ilusório do ideal da sociedade  sem classes e dissociar-se da plataforma voltada para a estatização da  economia” [Paim, Marxismo e Descendência, ob. cit., p. 236].
  
O nosso autor destaca que o processo evolutivo do socialismo  francês foi se distanciando cada vez mais do pluralismo proudhoniano, para enveredar  pelo caminho do estatismo, com a ajuda decisiva de Karl Marx. Analisa essa  evolução ao ensejo da exposição das idéias de dois importantes líderes socialistas:  Jean Jaurès (1859-1914) e Jules Guesde (1845-1922). Jaurès recebeu sólida  formação filosófica, na melhor tradição hegeliana preservada na École Normale por  Victor Cousin (1792-1867). Para ele, o marxismo não consistia num dogma, a  partir do qual todos os fenômenos sociais pudessem ser deduzidos. Jaurès  considerava que o socialismo era fundamentalmente moral e achava que da contraposição  entre sistemas coletivistas e individualistas poderia emergir um tipo de produção  corporativa, na qual os gestores seriam eleitos por sufrágio universal dos membros do grupo,  sendo o socialismo uma síntese entre o individualismo proudhoniano e o  coletivismo marxista. Graças às suas teses democráticas e moderadas, Jaurès  conseguiu manter unidas as várias facções socialistas (inclusive os comunistas de  Guesde) e ganhar pleitos eleitorais importantes, em 1910 e em 1914, consolidando  a Section Française de l ´International Ouvrière (SFIO) como força política emergente. No entanto, com o acirramento dos conflitos sociais e políticos ao ensejo da deflagração  da 1ª Guerra Mundial, Jaurès foi assassinado em Paris, em 1914, selando assim a polarização dos socialistas franceses com a opção revolucionária  preconizada por Guesde.
O grupo de socialistas de inspiração democrática sob a orientação  de Jaurès pretendia, mediante reformas, levar a nova organização operária a revitalizar a política da República francesa, como forma de implantar o  socialismo. Importante historiador do movimento socialista na França, Daniel Ligou,  citado por Paim, escreveu a respeito: “O objetivo do socialismo será alcançado  não somente pela organização da classe operária em partido de classe, mas  também pela edificação, peça por peça, de instituições novas”. Esse empenho reformista, no entanto, chocou-se, no interior da SFIO, com as propostas revolucionárias de Guesde – partidário de um golpe de Estado -.  Isso  conduziu a organização operária a uma espécie de limbo político, que terminou tragicamente com o assassinato  de Jaurès e a eclosão da 1ª Guerra Mundial, que sepultou as tendências  pacifistas dos socialistas moderados franceses e alemães, partidários de reformas.  Apenas para ressaltar a clarividência de Jaurès, lembremos que ele pensava que  os socialistas dos vários países envolvidos no conflito (notadamente os  franceses e os alemães) deveriam envidar esforços para a criação de uma instância internacional que negociasse a paz (uma instituição precursora da Liga  das Nações e das Nações Unidas).
Sob a orientação de Jules Guesde e com a participação do próprio  Marx foi apresentado, em 1880, o “Programa Mínimo” que deveria aglutinar os marxistas franceses, diferenciando-os das demais facções socialistas.  Embora o sufrágio universal fosse reconhecido como meio de ação do socialismo,  Guesde considerava que a ação parlamentar não transformaria a sociedade, sendo necessário formar, como escreve Ligou, “uma coluna de assalto que,  graças à posse do Estado, possa enfrentar a Bastilha feudal, porquanto a  transformação econômica não será pacífica” [Daniel Ligou, Histoire du socialisme  en France – 1871-1961, Paris: PÙF, 1962, citado por Antônio Paim].
Jules Guesde era originário do blanquismo e do anarquismo e aderiu  ao marxismo na segunda metade da década de 1870. Nesse período e no  transcurso das décadas seguintes, “o marxismo é essencialmente o guesdismo”, como  afirma Ligou. Após o assassinato de Jaurès, em 1914, a SFIO, chefiada por  Guesde, termina sendo controlada pelos comunistas obedientes a Moscou. A  situação torna-se de total dependência em relação ao PC da União Soviética, no  Congresso dos Socialistas Franceses reunido em Tours, em 1920. A SFIO é aniquilada  por pressão soviética, somente restando os socialistas fiéis a Moscou, que  passam a integrar a Section Française de l´International Communiste (SFIC), que recebeu o nome de Partido  Comunista Francês, após 1943. A característica marcante do novo socialismo francês  foi, em conclusão, a fidelidade à IIIª Internacional (reunida em 1920) e ao  Partido Bolchevista. Tão forte foi o alinhamento dos comunistas franceses às  ordens de Moscou que, ao ensejo da Segunda Guerra Mundial, o Secretário Geral do  PCF, Maurice Thorez (1900-1964) fixou residência em Moscou, até que a URSS  entrasse na guerra (em meados de 1941), ignorando até mesmo a ocupação da França  pelas tropas alemãs (junho de 1940). Esse estranho fenômeno, lembra Paim,  levou a um grande historiador como Maurice Druon a escrever o magnífico ensaio  intitulado: La France aux ordres d´un cadavre [Paris: Éditions de Fallois,  2000, cit. por Paim, Marxismo e Descendência, ob. cit., p. 174-175].
Conclusão.
A obra de Paim é uma contribuição de grande valor crítico para a  cultura brasileira, levando em consideração que, entre nós, terminou vingando o  mesmo esdrúxulo conceito de ciência social dogmática, a serviço da implantação  de um socialismo autoritário, na trilha identificada por Leônidas de Rezende, em 1918, de aproximação entre marxismo e positivismo, no contexto mais amplo da  velha tradição cientificista que se remonta, no panorama luso-brasileiro, às  reformas do Marquês de Pombal.
Ora, a nossa situação não difere muito do surto estatizante pelo  qual enveredou a cultura francesa, carregando consigo o ideal de um  socialismo democrático e comprometendo a isenção e a objetividade das ciências sociais. É clara  a simpatia, no Brasil, de expressivos setores da inteligentsia,  pela ciência social engajada com a implantação de um modelo de socialismo estatizante com tons totalitários, que assomam  notadamente, agora, no seio do lulopetismo no poder, nas inúmeras tentativas para  impor um modelo de socialismo tutelado por conselhos atrelados ao executivo hipertrofiado, que tudo enxergam a partir do Estado forte, e que  menosprezam a atuação da sociedade civil. Isso, em que pese o fato de ser esta a que financia, graças à iniciativa privada aplicada ao agronegócio, ao  comércio e à indústria, não somente os minguados investimentos em infra-estrutura,  saúde e educação, mas, sobretudo, a festança da corrupção deslavada e das  benesses cartoriais das inúmeras bolsas distribuídas, pelos donos do poder, à  torta e à direita, sem nenhum controle, comprometendo a lei de responsabilidade  fiscal.