Um pensador de bem com a vida e de mal com aqueles que a negam. Esse seria o perfil prático de David Hume, que suscitou – e ainda desperta – iradas respostas daqueles que não concordam com ele. Considero Hume um disciplinador da filosofia, no que tange à crítica a todos os dogmatismos, bem como no relacionado à formulação da perspectiva transcendental, que passou a balizar, doravante, o conhecimento científico, num contexto de abertura à verificação crítica das teorias.
O nosso pensador nasceu em 7 de maio de 1711 em Edimburgo, na Escócia. Em 1733 ingressou na Universidade da cidade natal. Em 1734 viajou para a França, onde escreveu o seu Tratado sobre a natureza humana. Devido às críticas que Hume fez, no livro mencionado, aos dogmáticos que pretendiam dominar os outros, em 1744 foi recusado ao tentar obter a cátedra de filosofia moral na Universidade de Edimburgo. Em 1746, o nosso pensador participou de uma fracassada missão militar na França, como secretário-geral do general Saint-Clair. Em 1748, Hume acompanhou este general em missão diplomática perante a corte de Viena e publicou, na Inglaterra, a sua Investigação sobre o entendimento humano, completando o seu Tratado de 1734. Em 1752, o nosso autor tornou-se Conservador da Biblioteca dos Advogados de Edimburgo (graças à influência do amigo Adam Smith, reitor da Universidade dessa cidade). Nesse cargo de bibliotecário, o pensador documentou-se fartamente para a escrita dos quatro volumes da História da Inglaterra, que publicou dois anos depois. No ano de 1763, o nosso autor passou a residir em Paris, como Secretário da Embaixada Inglesa, tendo retornado a Londres em 1766, ano em que recebeu, na sua casa, na capital inglesa, o seu amigo Jean-Jacques Rousseau, que se dizia vítima de perseguições na França; no entanto, as constantes diatribes do amigo fizeram com que a amizade que os unia entrasse em colapso. Em 1769 o nosso pensador regressou a Edimburgo. Faleceu no dia 25 de agosto de 1776, meses depois de ter composto a sua Vida de David Hume, escrita por ele mesmo.
Testemunho do espírito jovial do pensador foi dado pelo seu amigo Adam Smith, em carta que escreveu a William Strahan. Estas são as palavras do autor de A riqueza das Nações: “Com grande prazer, embora também com imensa melancolia, tomo a pena para dar a você um breve informe da conduta do nosso excelente amigo, o senhor Hume, durante a sua última doença. Embora, a seu ver, o mal que o afetava fosse mortal e incurável, cumprindo a vontade dos seus amigos empreendeu uma longa viagem, a fim de ver que efeitos positivos poderia isso lhe trazer... Já de regresso em Edimburgo, encontrou-se muito mais debilitado; mas o seu bom humor não diminuiu e continuou a se distrair como de costume, corrigindo as suas obras para uma nova edição, ou lendo livros de passatempo, ou conversando com os seus amigos. Algumas vezes, ao cair da tarde, jogava uma partida de whist, o seu jogo predileto. O seu bom humor era tal, e as suas conversações e entretenimentos pareciam-se tanto com o que era costumeiro nele que, apesar de todos os maus sintomas, muitos não podiam acreditar que estivesse morrendo (...)” [Adam Smith, “Carta a William Strahan”, in: Carlos Mellizo, “La muerte de David Hume”, apud David Hume, Mi vida – Cartas de un Caballero a su amigo de Edimburgo, edição e tradução a cargo de Carlos Mellizo, Madri: Alianza Editorial, 1985, p. 69].
Estas são as principais obras de David Hume: Tratado sobre a natureza humana (edição parcial, 1739; edição completa, publicada em 1748, com o título de: Investigação sobre o entendimento humano); Ensaios morais e políticos (1741); Investigação sobre os princípios da moral (1751); Discursos políticos (1752); História da Inglaterra – 4 volumes (1754); Quatro dissertações (1757); Vida e obra de David Hume, escrita por ele mesmo (1776). Vale a pena destacar que todas as obras de David Hume foram colocadas no Index Librorum Prohibitorum (Índice dos Livros Proibidos) da Igreja Católica, em 1761.
Em treze pontos podem ser sintetizados os aspectos essenciais da teoria do conhecimento de David Hume, apresentada na obra: Investigação sobre o entendimento humano.
1 – Existem, segundo Hume, duas formas de abordagem da Filosofia Ocidental: vivencial e prática e intelectualista e abstrata. A primeira, denominada de “filosofia prática”, tem maior sucesso na opinião pública, pelo fato de estar ligada à vida cotidiana dos homens. A segunda, denominada de “filosofia abstrusa”, tem maior sucesso entre os intelectuais, acostumados ao rigor da lógica. Mas esta última é uma modalidade de filosofia desligada da vida cotidiana dos homens. O filósofo escocês arrolava entre os enganadores profissionais aqueles que utilizavam a “filosofia abstrusa” para exercer o poder entre os seus semelhantes. Esses enganadores são, basicamente, os padres e os médicos. Os primeiros, porque nos ameaçam com a condenação eterna e nos vendem a salvação. Os segundos, porque nos ameaçam com a doença e a morte e nos vendem a cura. David Hume situa-se, assim, entre os pensadores modernos que retomam a velha temática de epicuristas e estóicos, acerca da busca da paz interior, ameaçada pelos vendedores de bugigangas metafísicas. Lembremos que o primeiro passo, para os seguidores dessas duas correntes helenísticas, consistia em esconjurar os temores que nos paralisam, o temor à doença e à morte e o temor à desgraça eterna.
2 – Termo meio almejado por Hume: uma “Geografia Moral”, ou Filosofia que, partindo da vida, teorize em função dela, não para negá-la como faz a “filosofia abstrusa”, mas para estar a serviço dela. Essa “Geografia Moral” teria os aspectos positivos da “filosofia prática” (comprometimento com a vida cotidiana) e da “filosofia abstrusa” (respeito à lógica), sem, no entanto, partilhar dos defeitos dessas duas formas de pensamento, a saber: menosprezo pela lógica (“filosofia prática”) e distanciamento da vida prática (“filosofia abstrusa”).
3 – Método da “Geografia Moral” proposta: delineamento das diferentes partes e poderes do intelecto, a partir de um processo de reflexão (volta do homem sobre si mesmo, à maneira de Sócrates, dos estóicos, dos epicuristas e de Descartes).
4 – Caráter difícil dos estudos sobre o entendimento humano. A respeito, escreve Hume: “Não é muito provável que aquilo que, até hoje, escapou a tantos filósofos e sábios profundos seja muito fácil e evidente” [Hume, Investigação sobre o entendimento humano]. Hume parte para uma aventura difícil, já tentada por Descartes: a viagem ao interior de si mesmo, a fim de desvendar as molas secretas do conhecimento. Ora, escapava ao nosso autor (como, aliás, também a Descartes), que Aristóteles já tinha assinalado um caminho seguro para essa tarefa intelectual: como a linguagem é a roupagem do pensamento, a melhor forma de pesquisar as molas secretas deste consiste em estudar as estruturas da linguagem, que revelariam as estruturas profundas da mente humana. Esse caminho só seria redescoberto, um pouco depois de Hume, por um conhecedor da filosofia aristotélica, Immanuel Kant.
5 – Paralelo entre a “Geografia Moral” proposta por Hume e a “Filosofia da Natureza” sistematizada por Newton: assim como este cientista determinou as leis e as forças que governam as revoluções dos planetas, sucesso igual pode haver em nossas pesquisas sobre as faculdades e a economia mental.
6 – Valorização da sensação como ponto de partida do processo cognitivo. Há, no sentir de Hume, uma considerável diferença entre as percepções da mente na sensação e na lembrança da sensação.
7 – Duas classes de percepções: pensamentos e idéias (as menos fortes); impressões (as mais fortes).
8 – Limites do poder criador da mente. Para Hume, a nossa capacidade de pensar se reduz à simples faculdade de combinar, transpor, aumentar ou diminuir os materiais fornecidos pelos sentidos e pela experiência. Todas as nossas idéias (ou percepções mais fracas) são cópias das nossas impressões (ou percepções mais vivas). Nessa mesma linha, Kant dirá, um pouco mais adiante, que a nossa razão é “faculdade ordenadora do real”.
9 – Fenômeno paradoxal da mente humana: as nossas idéias simples não derivam sempre das correspondentes impressões (fenômeno do “fecho” ou da “generalização psicológica”, por exemplo, no caso da apreensão de matizes nas cores). Esse fato revelaria a capacidade criativa da razão humana, a partir dos dados da experiência.
10 – Princípio da referência da idéia à impressão. A propósito, Hume escreve: “Quando suspeitarmos que um termo filosófico seja empregado sem qualquer significação ou idéia, bastará perguntar: De que impressão deriva essa suposta idéia? (...). Colocando as idéias sob uma luz tão clara, temos boas razões para nutrir a esperança de remover todas as disputas que possam surgir a respeito de sua natureza e realidade” [Hume, Investigação sobre o entendimento humano].
11 – Conexão entre as idéias. Segundo Hume, há sempre uma conexão entre as diferentes idéias que sucedem umas às outras, na nossa mente. Este ponto ficará muito mais claro em Kant, que partirá da análise da linguagem no juízo, seguindo a trilha aberta por Aristóteles nos seus Tópicos. O mestre alemão mostrará que a conexão entre as nossas idéias se realiza quando afirmamos ou negamos algo de algo. Neste ponto, Hume parece ter se distanciado dos ensinamentos de Locke, que valorizava a classificação dos nossos conhecimentos a partir dos juízos.
12 – Existência, em todos os seres humanos, de um mecanismo universal de união entre as idéias. Esse princípio é postulado pela presença, na nossa mente, de idéias simples compreendidas nas idéias mais complexas.
13 – Esse mecanismo universal de união entre as idéias funciona a partir de três princípios de conexão entre elas. Esse mecanismo, regido por tais princípios, está enraizado na nossa natureza, como uma espécie de instinto a-priori (de ordem psicológica), que tem como finalidade a preservação da vida. Os princípios que comandam o mecanismo mencionado são estes: de semelhança, de proximidade (ou contigüidade) e de causalidade. A razão humana, no contexto desta concepção, age a partir dos dados hauridos da experiência. Nisso consiste a sua grandeza e a sua limitação.
Não temos acesso, considerava Hume, à essência das coisas em si mesmas. A natureza, como diriam os pré-socráticos, gosta de se esconder. Unicamente temos acesso aos fenômenos. Mas as nossas mentes estão constituídas pela natureza de tal forma que os princípios, a partir dos quais organizamos os dados da experiência, valem para todos nós. Nos entendemos porque a nossa razão está configurada de forma semelhante. Diríamos hoje, falando em linguajar cibernético, que apreendemos a verdade por consenso, graças a que estamos dotados do mesmo software. Anomalias podem acontecer (nos loucos, por exemplo, aos quais não falta a lógica, mas a formatação do seu software é diferente da dos seus semelhantes). Este é o ponto fundamental da visão gnosiológica de David Hume e constituiu, como ele próprio reconhecia, uma autêntica “revolução copernicana” no terreno do conhecimento. Efetivamente, os objetos, ao redor dos quais anteriormente girava o conhecimento, foram deixados de lado como fonte da formatação do mesmo, contando, deles, apenas a apreensão fenomênica dada pelos nossos sentidos. Mas o conhecimento passou a girar formalmente em torno à estrutura ontológica do sujeito, dotado de um a-priori que permite a todos os seres humanos pôr ordem nos dados da experiência. Foi a formulação da perspectiva transcendental, concebida por Hume nos termos em que acaba de ser resumida, que tirou Immanuel Kant do seu “sonho dogmático”, como o filósofo de Königsberg denominava a perspectiva metafísica (transcendente) em que, ao longo de muitos anos, ele mergulhara. Elogio sem par saído da boca do mais importante formulador da nova filosofia crítica.
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