Esta exposição consta de duas partes: I – Breve sinopse
bio-bibliográfica de Antero de Quental. II – Antero de Quental, ensaísta.
I - BREVE SINOPSE
BIO-BIBLIOGRÁFICA
Antero
Tarquinio de Quental, de origem nobre, nasceu em Ponta Delgada, ilha de São
Miguel (no arquipélago das Açores), em abril de 1842. Viveu na cidade natal até
os 14 anos de idade, num ambiente bucólico em que se destacava a religiosidade
familiar. O tio avô de Antero era o padre Bartolomeu de Quental, orador sacro
de renome, escritor de temas místicos e fundador da ordem da Congregação do
Oratório. Impressionado pela figura deste familiar, bem como pela leitura do
poema Deus, que integrava a obra
intitulada Harpa do Crente do grande historiador Alexandre Herculano, o
nosso autor cultivou durante algum tempo a idéia de se tornar sacerdote. No
entanto, o contato com as "correntes do espírito moderno", que Antero
conheceu ao longo dos seus estudos de direito em Coimbra (realizados entre 1856
e 1864), terminou por fazer apagar no seu coração essa tendência herdada da
religiosidade familiar. A partir de 1865, ano em publica as suas Odes
Modernas, consolida-se esse afastamento e o conseqüente surgimento no
espírito do poeta e ensaísta da atitude crítica em face das tradições
portuguesas. Adolfo Casais Monteiro considera que Antero exerceu uma posição de
liderança em relação aos seus companheiros de estudo (Teófilo Braga, Vieira de
Castro, Adolfo Coelho, Oliveira Martins, Eça de Queirós e outros), no que tange
a uma reflexão crítica sobre Portugal e a sua cultura. A propósito, Casais
Monteiro escreve: "Se procurarmos ter uma visão de conjunto da geração de
70, quanto à orientação geral das idéias, o lugar de iniciador e condutor de
Antero salta imediatamente à vista" [apud Moisés, 1974: 8]. Antero ocuparia assim, em Portugal, para a
geração intelectual a que pertencia, posição semelhante à ocupada no Brasil por
Tobias Barreto.
Antero
e a "geração coimbrã" buscavam
regenerar a cultura portuguesa, presa demais às tradições católicas dos ancestrais.
O nosso autor alimentou por essa época, outrossim, o desejo de ir para
longínquas terras americanas a fim de lutar pela liberdade ao lado de heróis
aventureiros como Garibaldi. Os ideais revolucionários terminaram dando ensejo
a um projeto bem mais modesto, mas que libertava o nosso pensador da cômoda
atividade de advogado: após ter aprendido em Lisboa o ofício de tipógrafo,
viajou para Paris (onde exerceu essa profissão) e Espanha, em 1867. Regressou
dali ao pouco tempo, em 1868, com os quebrantos psicossomáticos que o afetariam
até a morte. Nesse ano viajou para os Estados Unidos da América, tendo publicado,
no final do mesmo, o folheto intitulado: Portugal perante a Revolução da Espanha. Influenciado
pelas idéias radicais da Revolução Espanhola, bem como pelos ideais do
socialismo francês, o nosso autor passou a se engajar cada vez mais nas lutas
sociais e operárias. A sua atividade era intensa. Como confessava Antero na sua
Carta
autobiográfica, "ao mesmo tempo que conspirava a favor da União
Ibérica, fundava com a outra mão sociedades operárias e introduzia, adepto de
Marx e de Engels, em Portugal a Associação Internacional dos Trabalhadores. Fui
durante uns sete ou oito anos uma espécie de Lassalle, e tive a minha hora vã
de popularidade" [Quental, 1974: 132].
O
primeiro escrito político de Antero datava de
1864. Sob o título de Defesa da Carta Encíclica de S. Pio IX
contra a chamada opinião liberal, o nosso autor fazia uma paradoxal
defesa da opinião do Papa, que tinha condenado o liberalismo no Syllabus,
e que era atacado por liberais que se diziam ao mesmo tempo católicos. Na sua Carta
autobiográfica Antero explicava assim a sua posição: "glorificando
o Pontífice pela beleza de sua atitude intransigente em face do século, via
nessa intransigência uma lei histórica, rezava respeitosamente um De Profundis sobre a Igreja condenada
pela mesma grandeza da sua instituição a cair inteira mas não a render-se, e
atacava a hipocrisia dos jornais liberais" [Quental, 1974: 132]. No
inverno de 1865 o nosso autor passou a criticar a velha escola de crítica
literária portuguesa representada António Feliciano de Castilho. A crítica de
Antero aos mestres antiquados da crítica literária portuguesa foi sistematizada
por ele no ensaio intitulado Bom senso e bom gosto, carta ao Exmo. Senhor
António Feliciano de Castilho. O clima iconoclasta e renovador do ensaio anteriano foi destacado
pelo nosso autor na Carta autobiográfica, com as seguintes palavras: "Quando o fumo se dissipou, o que se viu
mais claramente foi que havia em Portugal um grupo de 16 a 20 rapazes, que não
queriam saber da Academia nem dos acadêmicos, que já não eram católicos nem
monárquicos, que falavam de Goethe e Hegel como os velhos tinham falado de
Chateaubriand e de Cousin; e de Michelet e Proudhon, como os outros de Guizot e
Bastiat; que citavam nomes bárbaros e ciências desconhecidas, como glótica, filologia,
etc., que inspiravam talvez pouca confiança pela petulância e irreverência, mas
que inquestionavelmente tinham talento e estavam de boa-fé e que, em suma,
havia a esperar deles alguma coisa, quando assentassem" [Quental, 1974:
133]. Datava de 1865 ainda um outro escrito de crítica literária:
Dignidade das letras e literaturas oficiais.
Em
1871 formou-se ao redor de Antero o Grupo do Cenáculo, que concebeu as famosas
Conferências do Cassino, que marcaram um momento importante da crítica
filosófica e sociológica à tradicional cultura portuguesa. Eça de Queirós deu a
respeito um valioso testemunho, em que destacava a figura carismática do nosso
autor: "Antero, que desembarcara em Lisboa como um Apóstolo do socialismo,
a trazer a palavra aos gentílicos, em breve nos converteu a uma vida mais alta
e fecunda. Nós fôramos até aí, no Cenáculo, uns quatro ou cinco demônios,
cheios de incoerência e de turbulência. Sob a influência de Antero, logo dois
de nós, que andávamos a compor uma ópera-bufa, contendo um novo sistema do
Universo, abandonamos essa obra de escandaloso delírio, e começamos à noite a
estudar Proudhon nos três tomos da Justiça na Revolução e na Igreja,
quietos à banca, com os pés em capachos, como bons estudantes. E do Cenáculo,
de onde, antes da vinda de Antero (que foi como a vinda do rei Artur à confusa
terra de Gales), nada poderia ter nascido além da chalaça, versos satânicos,
noitadas curtidas a vinho de Torres, e farrapos de Filosofia fácil, nasceram, mirabile dictu, as Conferências do Cassino,
aurora de um mundo novo, mundo puro e novo que depois, oh dor!, creio que
envelheceu e apodreceu..." [apud Moisés, 1974: 9-10].
Modernizar
Portugal: tal era o intuito perseguido por Antero e pelos seus colegas com as
famosas Conferências, que ensejaram forte movimento oposicionista do governo e
das classes tradicionais, até serem proibidas. Eis a forma em que os jovens
reformadores justificavam o seu empreendimento:
"Ninguém desconhece que se está dando em volta de nós uma
transformação política, e todos pressentem que se agita, mais forte que nunca,
a questão de saber como deve regenerar-se a organização social. (...) Abrir uma
tribuna, onde tenham voz as idéias e os trabalhos que caracterizam este
movimento do século, preocupando-nos sobretudo com a transformação social,
moral e política dos povos. Ligar Portugal com o movimento moderno, fazendo-o
nutrir-se assim dos elementos vitais de que vive a humanidade civilizada.
Procurar adquirir a consciência dos fatos que nos rodeiam, na Europa. Agitar na
opinião pública as grandes questões da Filosofia e da Ciência moderna. Estudar
as condições da transformação política, econômica e religiosa da sociedade
portuguesa. Tal é o fim das Conferências Democráticas" [apud Moisés, 1974:
10].
As
Conferências começaram no dia 22 de maio de 1871 com a exposição de Antero
intitulada: O Espírito das Conferências. A segunda, também da autoria de
Antero, intitulava-se: Causas da decadência dos Povos Peninsulares
nos últimos três séculos. Para o nosso pensador, tais causas eram três:
o Catolicismo ultramontano que emergiu do Concílio de Trento, o Absolutismo da
monarquia portuguesa e as Conquistas do Estado português além mar, na África,
na Ásia e na América do Sul. A revolução, inspirada no cristianismo, seria o
único meio de abrir Portugal à modernidade. A respeito, frisava o nosso autor,
antecipando as palavras de Rosa Luxemburgo (no opúsculo da escritora polonesa,
publicado em 1905 com o título de O Cristianismo e as Igrejas: o Comunismo dos
primeiros cristãos): "O Cristianismo foi a Revolução do mundo
antigo: a Revolução não é mais do que o Cristianismo do mundo moderno"
[apud Moisés, 1974: 10]. Ficava clara em Antero a inspiração do seu conceito de
reforma radical ou revolução num espiritualismo tributário da civilização
cristã. Assim, mesmo que tendo se distanciado da fé dos seus pais, o nosso
pensador permanecia inspirado pelo élan
místico, de uma religião civil à maneira rousseauniana, ou dos cultos cidadãos
que tanto sucesso tiveram na França com Henri-Claude de Saint-Simon, Augusto
Comte, para não deixar de mencionar a religiosidade burguesa em que Guizot
tentava ancorar a sua reformulação do Estado e da representação.
Em
1872 Antero publicou as suas Considerações sobre a filosofia da história
literária portuguesa. Em 1887, a pedido do estudioso Wilhelm Storck,
Antero escreveu a sua conhecida Carta autobiográfica, em que ficava
clara a sua inspiração religiosa, nas seguintes palavras: "O fato
importante da minha vida, durante aqueles anos, e provavelmente o mais decisivo
dela, foi a espécie de revolução intelectual e moral que em mim se deu, ao
sair, pobre criança arrancada do viver quase patriarcal de uma província remota
e imersa no seu plácido sono histórico, para o meio da irrespeitosa agitação
intelectual de um centro, onde mais ou menos vinham repercutir-se as
encontradas correntes do espírito moderno. Varrida num instante toda a minha
educação católica e tradicional, caí num estado de dúvida e incerteza, tanto
mais pungente quanto, espírito naturalmente religioso, tinha nascido para crer
placidamente e obedecer sem esforço a uma regra reconhecida" [Quental,
1974: 131].
Em
1874 Antero tinha adoecido gravemente, como frisava ele na sua Carta
autobiográfica, "com uma doença nervosa de que nunca mais pude
restabelecer-me completamente" [Quental, 1974: 136]. Essa crise levou-o a
aprofundar numa concepção espiritualista do mundo e do homem, superando o
naturalismo pelo qual tinha sentido forte atração no período anterior. As
leituras dos autores alemães, notadamente Leibniz, Lange, Kant e Hartmann, bem
como algumas leituras de livros budistas, constituíram o seu alimento
espiritual neste duro período. "No Psiquismo
- frisava o poeta - isto é, no Bem e na Liberdade moral, é que encontrei a
explicação última e verdadeira de tudo, não só do homem moral mas de toda a
natureza, ainda nos seus momentos físicos elementares" [Quental, 1974:
137]. No próximo item explicaremos melhor essa concepção de Antero, no contexto
da evolução da filosofia na segunda metade do século XIX. Os últimos 21 Sonetos
do poeta, publicados nos seus Sonetos Completos são inspirados por
esse espiritualismo.
Em
1889 Antero escreveu o seu ensaio intitulado Tendências gerais da Filosofia na
segunda metade do século XIX. Este escrito constitui, sem dúvida, o
testamento espiritual do nosso escritor, tanto no que se refere à sua concepção
pessoal do homem e do mundo, quanto no relacionado à sua avaliação da cultura
filosófica da época. A respeito da importância que o mencionado ensaio
representa na obra de Antero, escreveu o estudioso português Leonel Ribeiro dos
Santos: "Antero decide-se pela oportunidade de oferecer, sob pretexto de
traçar um quadro do desenvolvimento do espírito filosófico no seu século, uma
síntese orgânica dos problemas e motivos fundamentais que determinaram a sua
própria evolução intelectual. Neste sentido, as Tendências não são menos
a síntese da evolução intelectual e do pensamento de Antero do que são, como
pretendem, a síntese das correntes fundamentais do pensamento na segunda metade
do século XIX. Esta identidade entre o espírito
pessoal e o espírito do tempo não
deve parecer estranha em quem tanto e desde tão cedo se esforçou por ser um
homem do seu tempo, a síntese de idéias da sua época, e que acabaria por
conceber o processo de evolução e maturação da consciência individual como a
passagem do egoísmo pessoal para a visão universal isto é, para a identificação
e a comunhão com o sentido e destino do Universo. As Tendências devem, por
conseguinte, ser consideradas como o esboço mais desenvolvido da filosofia
anteriana" [Santos, 1989: 14-15].
Este
ensaio foi, sem dúvida, o coroamento da meditação anteriana. Publicadas pela
primeira vez em 1890, um ano antes do suicídio do poeta em Ponta Delgada, as Tendências
são como que o testemunho do otimismo imanentista com que o sofrido
poeta açoriano passou a encarar a existência, superando a crise pessimista que
o tinha afetado espiritualmente anos atrás, mas que, paradoxalmente, teria se
abatido novamente sobre a sua alma nos últimos momentos, fato que o levou à
desesperada solução. Resta-nos, contudo, o silêncio e o mistério em torno às
vivências imediatas que conduziram Antero ao suicídio, nesse final de tarde de
11 de setembro de 1891.
II
- ANTERO DE QUENTAL, ENSAÍSTA
A
figura de Antero desponta no universo das letras portugueses como poeta. Mas
poucos conhecem o Antero ensaísta e ativista político. Ora, estas duas últimas
variantes estão intimamente ligadas. O Antero-pensador é a outra cara da moeda
do Antero-homem-de-ação. Poderíamos até frisar que ele foi, em Portugal, uma
espécie de doutrinário, certamente não de inspiração liberal como Benjamin
Constant de Rebecque, Royer-Collard ou François Guizot, mas de feição
socialista. Ele e Oliveira Martins guardam essa marca de intelectuais engajados.
Desenvolveremos
os conceitos fundamentais da filosofia de Antero nos seguintes doze itens: 1) O
ensaio Tendências gerais da Filosofia na segunda metade do século XIX, no contexto da obra anteriana; 2)
Espírito metafísico mas não sistemático da meditação anteriana; 3) Finalidade
do ensaio sobre as Tendências gerais da Filosofia; 4) Poesia e religião na filosofia anteriana; 5) Natureza absoluta
e relativa da Filosofia; 6) A metafísica latente que corresponde a cada período
histórico e a aproximação eclética entre os sistemas na modernidade; 7) As
quatro noções metafísicas que caracterizam o pensamento moderno; 8) Crítica ao
dogmatismo do idealismo sistemático alemão; 9) O predomínio do processo
indutivo e do espírito científico; 10) A renovação do espiritualismo no
kantismo e na psicologia científica; 11) Resposta às questões espiritualismo /
liberdade e mecanismo / determinismo; 12)
A plena manifestação do espírito na ordem moral. Concluiremos destacando
o perfil do espiritualismo anteriano no panorama cultural português e
assinalando as fontes de que se louvou o nosso pensador na elaboração da sua
filosofia.
1) O ensaio sobre as Tendências gerais da Filosofia na segunda
metade do século XIX, no contexto da obra anteriana
Antero
sintetizou a sua concepção filosófica nesse belo ensaio que foi publicado em
1890, no fim de sua vida. Várias tentativas têm sido feitas pelos estudiosos do
pensamento anteriano, para assinalar as etapas da obra do poeta-filósofo. Lúcio
Craveiro da Silva, por exemplo, no seu estudo intitulado Antero de Quental, evolução do
peu pensamento filosófico, divide a vida intelectual do autor, bem como
a sua produção filosófica, em cinco períodos: a) da formação universitária
(1861-1864). A respeito deste frisa Craveiro da Silva que tal "período de formação de seu caráter foi
atravessado por um rasgão de dúvida que abalou a sua crença católica e
tradicional, e o fez voltar sofregamente para as novas correntes da filosofia
européia e para as novas realidades sociais" [Silva, 1959: 16]. b) Período da Questão Coimbrã (1865-1866), no qual são fatos marcantes o intento
de realização do ideal socialista que o poeta teve em Paris como tipógrafo, nos
anos 1867-1868, e a sua visita aos Estados Unidos em 1869. c) Período de febril
propaganda socialista (1870-1874), no qual o fato marcante são as Conferências do Casino (1871). d)
Período da crise pessimista (1874-1881).
e) Por último, período em que o poeta ensaia uma síntese filosófica
(1881-1891).
Já
para José Bruno Carreiro na sua obra intitulada Antero de Quental: subsídios para
a sua biografia, são fundamentais três períodos na vida intelectual de
Antero: a) agitação política (1870-1873). b) Crise pessimista, que coincide
praticamente com a permanência do poeta em Vila-do-Conde (1874-1881). c) Período
em que se perfila a figura de Santo
Antero e que é caracterizado pelo amadurecimento da sua obra filosófica
(1882-1891). Joaquim de Carvalho, nas suas magníficas análises sobre Antero,
que foram publicadas com o título de Estudos sobre a cultura portuguesa do século
XIX - Volume I: Anteriana, identifica os mesmos períodos na vida do
autor, salientando que na evolução do espírito do poeta açoriano "julgamos
ver a sucessão de três vidas ou núcleos de polarização interior - o homem novo, o desesperado e o filósofo
- considerando como marcos capitais da expressão literária desta existência,
tão revolta metafísicamente e tão estável afectivamente, as Odes
Modernas, os Sonetos e as Tendências gerais da Filosofia na
segunda metade do século XIX, ou sejam, respectivamente, o manifesto da
juventude, o testamento do poeta e o derradeiro ideário do sages".
[Carvalho, 1955: 6].
Como
se pode observar, a distinção dos períodos da evolução intelectual de Antero
não difere essencialmente nos autores citados, sendo que Craveiro da Silva
desdobra em três etapas o primeiro período assinalado por Bruno Carreiro e por
Joaquim de Carvalho. Para todos eles, de outro lado, o ensaio de Antero sobre
as Tendências
gerais da Filosofia representa a mais importante síntese do seu pensamento
filosófico, como bem o salientou Joaquim de Carvalho no texto que acabamos de
citar. Ampliando a sua observação, afirma este autor: "A marcha ascendente
no sentido de uma nova concepção da vida e da existência tem duas expressões
capitais: os sonetos do último ciclo - o
quinto, constituído pelos sonetos escritos entre 1880 e 1884, os quais
significam o testamento político de Antero e o ensaio sobre as Tendências
gerais da Filosofia na segunda metade do século XIX (1890), que
condensa o seu testamento filosófico" [Carvalho, 1955: 162-163].
2) Espírito
metafísico mas não sistemático da meditação anteriana
Não
há dúvida quanto à índole metafísica da meditação anteriana. Essa caraterística
influi definitivamente em toda a sua obra. Em carta a Oliveira Martins (de 13
de maio de 1876), o poeta confessa que "eu, por mim, sinto-me incapaz de
caminhar direito pela realidade enquanto não tiver, como um espartilho de fino
aço, que me sustente, todo um sistema de idéias transcendentais - e é isto que
me faz parecer muitas vezes estranho e sonambulesco" [in: Carvalho, 1955:
292]. Essa sede metafísica inspira a própria linguagem poética do nosso autor,
podendo ser caracterizado o seu estilo como "idealizador de emoções
intelectuais", no sentir de Ruy Galvão de Carvalho [1965: 175] e a sua
imaginação como "de tipo aéreo, como aliás convém aos metafísicos e aos
homens de instinto libertário" segundo a apreciação de João Mendes [1971:
481].
Essa
inspiração metafísica do pensamento anteriano foi assim tipificada por Joaquim
de Carvalho em relação à crise pessimista: "Necessidade dum sistema
absolutista de idéias, carência de bases inabaláveis e alentadoras do pensamento
discursivo e da ação - eis a essência da crise metafísica de Antero. A dúvida
que então o afligia não era a dúvida dum céptico. Ignorava, padecia de
incertezas, sentia-se atraído para soluções opostas e diversas, mas no íntimo
admitia a possibilidade de certezas e verdades transpessoais (...). O mobilismo
e o fenomenismo repugnavam-lhe como subversores da concepção do mundo, e porque
o entusiasmo idealista e romântico da juventude o habituara nobremente a
repudiar o conceito instrumental de verdade, (...) procurava a verdade absoluta
ou, como ele diz com sabor kantiano, um
sistema de idéias transcendentais que tornassem possível e explicável a
variedade da experiência e a esta dessem norte" [Carvalho, 1955: 292-293].
Em
que pese a inspiração metafísico do seu pensamento, Antero não é um filósofo
sistemático. Essa característica é patente para quem se aproximar da sua obra.
Ele mesmo reconhece essa caraterística em carta escrita a Eça de Queirós em
1889, afirmando que desistia de expor a sua filosofia "porque fazê-lo
estaria acima das minhas forças e, ademais, ninguém me entenderia" [apud
Carvalho, 1955: 191].
3) Finalidade do
ensaio sobre as Tendências gerais da
Filosofia
É
clara a finalidade que Antero persegue no seu ensaio escrito em 1890, um ano
antes da sua morte. Situado no último período da sua produção filosófica
(1882-1891), o autor trata de reagir contra o naturalismo que o tinha
influenciado marcadamente nos períodos anteriores e que o teria conduzido à
crise pessimista (1874-1881). Na Carta autobiográfica que o nosso
autor endereçou a Wilhelm Storck (em 14 de maio de 1887), Antero confessa:
"A minha antiga vida pareceu-me vã e a existência em geral
incompreensível. Da luta que então combati, durante 5 ou 6 anos, com o meu
próprio pensamento e o meu próprio sentimento que me arrastavam para um
pessimismo vácuo e para o desespero, dão testemunho, além de muitas poesias,
que depois destrui (...) as composições que perfazem a secção 4ª (de 1874 a 80)
do meu livrinho (...). Direi somente que esta evolução de sentimento
correspondia a uma evolução de pensamento. O naturalismo, ainda o mais elevado
e mais harmônico, ainda o dum Goethe ou
dum Hegel, não tem soluções verdadeiras, deixa a consciência suspensa, o
sentimento, no que ele tem de mais profundo, por satisfazer. A sua
religiosidade é falsa, é só aparente; no fundo não é mais do que um paganismo
intelectual e requintado" [Quental, 1974: 136].
Joaquim
de Carvalho sintetizou assim a finalidade perseguida por Antero no seu ensaio
sobre as Tendências gerais da Filosofia: "Com veemente sinceridade,
como é próprio da filosofia de alguém
sem a impedimenta de um filósofo escolar, as Tendências são a
expressão viva do esforço de Antero em demanda de uma concepção universal, do
Mundo e da Vida, que, estabelecendo a ponte entre a Ciência e as aspirações
morais, lhe dissipasse a sensação de suspensão
da consciência, que o naturalismo lhe provocara" [Carvalho, 1955:
191]. Essa concepção universal do mundo e
da vida, veremos, Antero a orienta
em direção do espírito e da realização de um projeto moral como m máxima
expressão da grandeza humana. O tipo de homem perfeito, para o poeta, não será
já o revolucionário que derruba reinos, nem sequer o cientista ou o filósofo
abstrato. O ideal humano apregoado por Antero na parte final do seu ensaio será
o da santidade. Como bem sublinhou ele na sua Carta autobiográfica, "para
o santo, o mundo deixou de ser um cárcere; ele é, pelo contrário, o senhor do
mundo, porque é o seu supremo intérprete. Só por ele é que o Universo sabe para
que existe: só ele realiza o fim do Universo". Ao longo desta apresentação
desenvolveremos as idéias fundamentais de Antero em relação ao seu
espiritualismo, que o levam a formular no seu ensaio sobre as Tendências
gerais da Filosofia o que Joaquim de Carvalho denominou de transcendentalismo anteriano [cf.
Carvalho, 1955: 300].
4) Poesia e religião
na filosofia anteriana
Heidegger
sublinhou em vários dos seus ensaios (principalmente em A origem da obra de arte
e Hölderlin
e a essência da poesia) que a poesia é o dizer da descoberta ou da
revelação do ser, porquanto no dizer poético põe-se em obra a verdade
projetante daquele. Porisso a obra de arte, cuja essência não é outra coisa
diferente da poesia, funda verdadeiramente e institui o mundo, ao trazer a um
povo o conceito da sua própria realidade. Como afirma o filósofo alemão, a poesia não é "um simples ordenamento
que acompanharia a realidade humana, nem um mero entusiasmo passageiro, como
também não é uma simples exaltação ou um passatempo. A poesia é o fundamento
que suporta a História" [cit. por
Ferreira da Silva, 1964: I, 261].
Não
podemos deixar de mencionar, mesmo que rapidamente, este importante aspecto da
obra anteriana que lhe dá, aliás, muita atualidade. Para Antero, a poesia é fundamentalmente
revelação do ser. Daí porque não podemos entender a sua evolução filosófica sem
levarmos em consideração a sua obra poética. Referindo-se aos sonetos, afirma o
poeta açoriano em carta dirigida em 5 de julho de 1876 ao amigo Lobo de Moura:
"reconheço que de tudo quanto tenho escrito é onde tenho posto mais
verdade, digo verdade pessoal, expressão exacta do meu íntimo sentir. O atual
(refere-se ao seu soneto Transcendentalismo), mais do que
qualquer outro, tem esse valor. Posso chamar-lhe um salmo, uma efusão
religiosa, porque está ali com efeito a minha religião, o meu culto da
existência supra-sensível, sem o qual não sei o que seria desta minha pobre
existência sensível" [apud Carvalho, 1955: 299-300]. Esse soneto
justamente sintetizava toda a doutrina espiritualista que Antero expõe nas Tendências
gerais da Filosofia. Eis os dois tercetos: "Não é no vasto mundo -
por imenso / Que ele pareça à nossa mocidade - / Que a alma sacia o seu desejo
intenso... / Na esfera do invisível, do intangível, / Sobre os desertos, vácuo,
soledade, / Voa e paira o espírito impassível!"
Delfim
Santos salienta a íntima relação existente, em Antero, entre o seu sentir
poético, o lirismo, e o espiritualismo, assinalando o influxo anteriano no meio
português: O seu espiritualismo - frisa - põe a descoberto e revela em forma
admirável, um dos aspectos permanentes
do pensamento nacional e fixa as suas principais coordenadas no lirismo, de que
ele é um dos mais excelsos representantes. Sampaio Bruno, apesar de o seu inicial
labor ter sido encarado com simpatia pelos positivistas, em breve adere a essa
mesma corrente metafísica e dedica um volume profundo ao tratamento
especulativo da idéia de Deus" [Santos, 1971: 451].
Salientemos
um outro aspecto sem o qual não poderiamos interpretar o pensamento filosófico
de Antero: o seu profundo sentimento religioso. Ele constitui, na obra do poeta
açoriano, como que o ambiente em que se desenvolve toda a sua meditação
filosófica. Essa caraterística é, ao nosso entender, uma das responsáveis mais diretas pelo
profundo apreço de que goza a obra anteriana no meio português. Antero representa
como que a materialização desse Leitmotiv
da cultura lusa, surgida ao ensejo da fé cristã.
"Espírito
naturalmente religioso" escrevia Antero de si mesmo em 1887, numa das suas
cartas. Jaime de Magalhães Lima, por sua vez,
afirma que "acima de todos os talentos de Antero, porventura
humilhando-os, ele foi talvez o mais religioso dos religiosos que o sangue
português gerou". Luis de Magalhães não hesita em frisar que os
sentimentos de Antero pela Igreja Católica "seguiram o mesmo rumo de
respeito, de simpatia e de admiração, embora não houvesse reingressado no
seu grêmio, nem uma crença definida e
precisa se restabelecesse no seu espírito. Lia com encanto e alto interesse os
grandes Padres da Igreja e até forrageava no campo da Teologia no seu ermitério
de Vila-do-Conde" [apud Carreiro, 1948: I, 25].
Em
que pese a crise pessimista que o abalara, Antero escrevia assim em carta de
1876: "O meu misticismo dia a dia se consolida mais, como sentimento e
como doutrina. Neste último ponto tenho realmente feito importantes progressos,
devidos a um belo método que inventei e que consiste no estudo das religiões
(especialmente o Cristianismo) segundo um critério metafísico. Creio que já uma
vez lhe toquei neste meu método, a que eu dou a máxima importância, porque o tenho
achado fecundíssimo. É neste sentido que vou prosseguindo os meus estudos,
lentamente, mas com segurança, porque caminham com alvo fixo" [apud
Carvalho, 1955: 300]. Na parte final do ensaio anteriano sobre as Tendências
gerais da Filosofia, que analisaremos a seguir, o pensador açoriano
insiste na necessidade de o sentimento religioso vivificar a realização do
projeto moral, que é a máxima manifestação do espírito. Craveiro da Silva
sintetizou muito bem os principais pontos da meditação anteriana: "Espiritualismo.
Busca de Deus. Preocupação moral. Problema da dor. Sentido da existência. Valor
das ciências e da metafísica. Reação contra um soberbo e frio intelectualismo
que despreza as vozes humanas do coração"
[Silva, 1959: 153].
5) Natureza absoluta
e relativa da Filosofia
Antero
inicia o seu ensaio sobre as Tendências gerais da Filosofia na segunda
metade do século XIX, salientando o caráter vivo da meditação
filosófica que, como o pensamento em geral, é suscetível de progresso e
retrocesso. A filosofia tem dois aspectos: no seu fieri incessante, que trata de exprimir consciente e
sistematicamente a misteriosa realidade do ser, ela representa "o que há
de absoluto no pensamento". Mas, ao mesmo tempo, representa "o que há de relativo na
consciência que o pensamento tem de si mesmo)" [Quental, 1931: 62-63].
Esses dois aspectos, no entanto, estão intimamente relacionados, porquanto a
filosofia progride graças ao que tem de relativo: essa relatividade consiste na
dúvida, através da qual a filosofia consegue não só propor os grandes
problemas, mas começar a resolvé-los.
Iludem-se,
então, pergunta Antero, os que procuram a verdade na filosofia? E responde:
iludem-se aqueles que buscam nela uma verdade completamente acabada em que
possam instalar-se. E manifesta a sua antipatia por esse tipo de filosofia, que
é a própria negação do espírito filosófico. A propósito frisa: "Uma
filosofia definitiva, feita e assente uma vez para todo o sempre, implicaria a
imobilidade do pensamento humano: o absoluto anestesiá-lo-ia. Essa tal
verdade, aspiração ingênua de espíritos
incultos, pode animar os crentes e exaltar os entusiastas; nos domínios do puro
pensamento nunca produzirá senão vertigem e ilusão" [Quental, 1931: 63].
Isso não significa, no entanto, que a
verdade filosófica não exista: a sua relatividade, considera Antero, implica limitação e não erro. Trata-se de uma
verdade simbólica em que a imagem imperfeita da verdade incognoscível apresenta
alguns vagos lineamentos. Não sendo o absoluto, participa contudo da sua
natureza. Baseado nessas considerações, o autor propõe a seguinte definição da
filosofia: "É a equação do pensamento e da realidade, numa dada fase do
desenvolvimento daquele e num dado período do conhecimento desta: o equilíbrio
momentâneo entre a reflexão e a experiência; a adaptação possível em cada
momento histórico (da história da ciência e do pensamento) dos fatos conhecidos
às idéias diretoras da razão, e a definição correlativa dessas idéias, não por
esses fatos, mas em vista deles" [Quental, 1931: 64].
6) A metafísica
latente que corresponde a cada período histórico e a aproximação eclética entre
os sistemas na modernidade
Em
virtude dessa natureza do pensar filosófico, salienta Antero, a cada período histórico corresponde a sua
própria filosofia. Não que a razão mude na sua essência: permanecendo sempre e
em todos os temos a mesma, a experiência varia continuamente; em relação a ela
a razão define, coordena e sistematiza as diversas concepções.
Essa
identidade da razão consigo mesma permite reconhecer, entre os diferentes sistemas de uma época
determinada, um ar de família, uma metafísica latente, que são expressão de um
estado íntimo psicológico de cada período da civilização. Forma-se assim,
segundo Antero, o substrato da alma coletiva de cada idade. É possível,
pergunta ele, que a razão humana atinja e sintetize esse substrato que,
inconscientemente, anima os diferentes sistemas, num dado momento histórico do
pensar humano? O autor não chega a reconhecer essa possibilidade. No entanto
afirma que, em compensação, dá-se uma
interpenetração dos diferentes sistemas filosóficos em cada época, fenômeno que
se manifesta na aproximação dos diferentes pontos de vista, que se materializa
num ecletismo ou num sincretismo mais ou menos sistemático.
Ao
sincretismo que caracteriza o ambiente filosófico na segunda metade do século
XIX, contribuem vários fatores, entre os quais Antero menciona os seguintes: o cansaço produzido pelas discussões
intermináveis; o ceticismo que acompanha a esse cansaço; a complicação
crescente dos sistemas; a erudição; uma surda
elaboração geral do pensamento metafísico e, por último, o espírito prático
das multidões não filosofantes que
exigem resultados e não disputas, a
fim de terem um chão firme de afirmações dogmáticas. Em que pese a atualidade
desse fenômeno de sincretismo, ele tem-se dado em outras épocas: foi por
exemplo o que aconteceu no período alexandrino, quando se uniram as diferentes
correntes de Pitagóricos, Platônicos, Estóicos e até Peripatéticos, no esforço
de elaboração de uma última fórmula menos
nítida mas talvez mais ampla, sutil e profunda do racionalismo iluminista
dos pensadores helênicos. Foi o que aconteceu, também, com o sábio ecletismo de São Tomás de Aquino,
que sintetizou na gigantesca Summa Theologica a herança de três
séculos de criação filosófica e de acirradas disputas entre correntes tão
diferentes como as filosofias de Santo Anselmo, Pedro Abelardo, Lanfranco e
Santo Alberto Magno.
Na
época moderna também aparece esse espírito de sincretismo. Depois de terem-se
formulado, ao longo dela, desde a Renascença até a segunda metade do século XIX
os mais variados sistemas filosóficos, tendo-se revestido a razão com
manifestações idealistas, espiritualistas, panteístas, materialistas e céticas,
hoje se experimenta um progressivo enfraquecimento da atitude dogmática e do
espírito de sistema. O fenômeno do criticismo é uma das caraterísticas do espírito
moderno, e é responsável por essa crise do dogmatismo sistemático. Eis a forma
em que o autor caracteriza o que ele chama de período alexandrino do pensamento moderno: "E também de todos
os lados o espírito prático, debatendo-se no meio da confusão moral da
sociedade contemporânea, aspirando, como no período greco-romano, a uma direção
segura, pede mais uma vez aos filósofos resultados e não disputas. A hora do
joeiramento das verdades adquiridas, da crítica e coordenação dos diversos
pontos de vista, e da conciliação dos sistemas parece ter soado para a
filosofia moderna. Entre os muitos sintomas, que o indicam, um dos mais
frisantes é por certo o gradual enfraquecimento do espírito de sistema, do
fanatismo dogmático. Não só se não criam já novos sistemas, verdadeiramente
originais e inteiriços, mas todos os homens realmente inteligentes,
inclinando-se, como é natural, mais ou menos para certas soluções gerais,
forcejam entretanto por se conservarem sempre acessíveis a outras influências,
venham elas de onde vierem, conquanto que sejam racionais. O adepto de uma
escola, segundo os velhos moldes, absoluto e intransigente, faz-nos hoje muito
proximamente o efeito de uma inteligência acanhada, às vezes quase de um
extravagante. Um largo criticismo vai rapidamente substituindo o antigo
dogmatismo. Por este lado ainda, tudo indica que somos entrados no que se pode
chamar o período alexandrino do pensamento moderno" [Quental, 1931: 69].
Antero
se pergunta, contudo, se essa aproximação eclética entre os sistemas, produzida
pelo criticismo moderno, não passa de uma simples convergência acidental, ou
se, pelo contrário, trata-se de uma verdadeira síntese do pensamento. E
responde afirmando esta segunda hipótese, baseado no fato de encontrar, no
arcabouço do pensamento da idade moderna, um substrato de noções metafísicas
que, penetrando todos os sistemas, tornam possível a apreensão filosófica da
unidade fundamental. As noções capitais, segundo Antero, seriam quatro: as de
força, de lei, de imanência ou espontaneidade e de desenvolvimento. Vale a pena
citar as suas próprias palavras a respeito: "É efetivamente para alguma coisa
como uma síntese do pensamento moderno que parece caminhar-se. A história
mostra-nos, com efeito, a existência de um substratum
de noções metafísicas comuns a toda a filosofia moderna, que penetram mais ou
menos profundamente os diversos sistemas, e não só os sistemas mas ainda todas
as criações espirituais dos povos modernos, afeiçoam os seus processos de
pensar, inspiram as teorias gerais das suas ciências, como determinam as
tendências típicas da sua arte, da sua poesia, da sua política, modificam a sua
religiosidade, infiltram-se no sentido geral, constituindo por assim dizer a
atmosfera intelectual e psicológica do mundo moderno, ao qual dão a sua feição
histórica particular e a sua unidade fundamental. Essas noções capitais são as
de força, de lei, de imanência ou espontaneidade
e de desenvolvimento" [Quental,
1931: 70].
Ora,
é esse substrato de noções metafísicas o responsável pelo caráter revolucionário
do pensamento moderno e, ao mesmo tempo, o que o diferencia do pensamento
antigo. Enquanto este último se inclinava para a abstração e para o formalismo
dialético, o pensamento moderno é decididamente realista na forma de conceber
as idéias e as suas relações com o mundo objetivo; enquanto no pensamento
antigo a metafísica era quase uma
derivação da lógica, no pensamento moderno, pelo contrário, a lógica é
determinada pela metafísica; enquanto para o pensamento antigo a realidade era
a emanação de um ser em si absoluto e só
verdadeiramente existente, já para o pensamento moderno a realidade
consiste no fieri incessante de um
ser "em si só potencialmente existente e que só realizando-se atinge a
plenitude"; enquanto no pensamento antigo o princípio de energia dos seres
era exterior a eles e a distinção entre matéria e forma era radical, no pensamento moderno elas são indissolúveis
e "fundem-se na natureza autônoma dos seres" cujo princípio de
energia, longe de ser exterior, constitui a sua essência; enquanto para o
pensamento antigo o movimento dos seres parecia reproduzir um arquétipo
primordial, inalterável e fixo desde toda a eternidade, já no pensamento
moderno o movimento consiste numa criação
em permanência dos próprios seres; enquanto para o pensamento antigo a
necessidade dos fatos aparecia como um decreto exterior imposto de cima sobre
os seres, e determinando a sua natureza, no pensamento moderno é a natureza
deles que determina a sua necessidade, de dentro para fora; enquanto o pensamento
antigo considerava a realidade como dividida ou fracionada numa série de
categorias incomunicáveis entre si, o pensamento moderno considera a realidade
como o ato único de uma substância
omnímoda, sendo todos os seres momentos ou modalidades dela, que por sê-lo
intercomunicam-se constantemente; enquanto o pensamento antigo fazia do
universo uma máquina, cujo plano de funcionamento lhe era imposto de fora, o
pensamento moderno, pelo contrário, concebe o universo como um ser vivo, cuja
atividade obedece a um princípio intrínseco: "as tendências espontâneas do
seu próprio desenvolvimento". Em síntese, enquanto o pensamento antigo
buscava a unidade fora do universo, o pensamento moderno a encontra na unidade imanente na mesma diversidade.
7) As quatro noções
metafísicas que caracterizam o pensamento moderno
Antero
analisa, ao longo do seu trabalho sobre as Tendências gerais da Filosofia na segunda
metade do século XIX, a forma em
que se apresentam, no pensamento moderno, as quatro noções metafísicas que o caracterizam.
Analisa essa presença mostrando a atuação viva desse substrato metafísico no
seio do pensamento moderno. Essa substrato será, em última análise, o que
permitirá entender o rumo do pensamento filosófico da modernidade. Acompanhemos
o poeta-filósofo na sua análise. Mas, antes, salientemos um aspecto que
poderíamos chamar metodológico na meditação anteriana. Tanto a aparição no
plano da consciência moderna, do substrato metafísico a que aludimos
anteriormente, quanto da evolução dessa consciência à luz das noções basilares,
não é obra de um indivíduo isolado. É, fundamentalmente, uma obra coletiva e
cíclica, em que os pensadores e as correntes, muitas vezes inconscientemente e
opondo-se uns aos outros, contribuem para uma finalidade profunda e desconhecida,
que leva o espírito moderno até atingir a sua maturidade. Além disso, devemos
levar em consideração outra caraterística do evoluir do pensamento moderno: a
sua estreita vinculação ao desenvolvimento científico. Antero pressupõe que
filosofia e ciência vão de mãos dadas, de forma tal que "cada passo para
diante no terreno da especulação provoca logo no campo das ciências uma
remodelação das suas teorias gerais"; paralelamente, a fundação de uma
ciência nova ou o progresso de uma delas obrigam a filosofia "a aprofundar
ou definir melhor os seus princípios".
Para o autor, é justamente esse
caráter coletivo e cíclico que mencionávamos atrás, o elemento que faz da
filosofia moderna uma verdadeira história, ou seja, uma unidade de
desenvolvimento.
O
primeiro elemento pertencente ao substrato metafísico que se manifesta no
século XVII é a idéia de força. Os
responsáveis por essa inserção são Descartes, Bacon, Leibniz, Espinoza, Galileu e Copérnico. A
revolução feita por eles no que se refere à compreensão dos primeiros princípios do movimento e da matéria, ensejou uma
autêntica consistência para a filosofia moderna. Tanto o cartesianismo quanto a
monadologia de Leibniz são materializações da idéia de força. O cartesianismo, por exemplo, afirma Antero, leva à
conclusão da identidade do ser e do saber, bem como à
da "autonomia dum universo que,
análogo no fundo ao espírito, só pelas suas idéias imanentes existe e se
governa". Em que pese a
vinculação de Descartes aos credos tradicionais, diz Antero, Espinoza encarregou-se de salientar a idéia
de força contida na sua filosofia, ao
formular o seu panteísmo, tendo-se inspirado na filosofia cartesiana. Leibniz,
com a sua monadologia, por sua vez, fazia
da força a essência comum da matéria e do espírito. Ao fundamentar a
monadologia na teoria da harmonia preestabelecida, Leibniz fazia, de outro
lado, uma grande afirmação da idéia de
lei. Para Antero, essa idéia que
forma parte do substrato metafísico em que se apoia o pensamento moderno,
"saía ao mesmo tempo da elaboração das ciências físicas". Assim,
duplamente alicerçada na ciência e na filosofia, a idéia de lei entrou no espírito moderno de forma
definitiva.
O
século XVIII, com todo o seu ímpeto revolucionário, traz ao arcabouço das
noções últimas do pensamento moderno a idéia de desenvolvimento. Tal idéia, considera Antero, inspira filosofias
muito diversas como o naturalismo de Diderot, o panteísmo de Lessing, o
idealismo de Vico, o deísmo de Herder, o humanismo poético de Goethe e
Schiller, a paixão revolucionária de Rousseau e até o seco racionalismo de
Voltaire. Eis a forma em que Antero explica a aparição dessa idéia no seio do
pensamento moderno: "A idéia de desenvolvimento
é a conseqüência e o complemento natural das idéias de força e imanência. Saindo
da evolução lógica delas, é o último elo da grande cadeia das concepções
modernas fundamentais. Apareceu pois no seu tempo e no seu lugar. Com
efeito, se a essência da força é a
atividade, a sua existência pressupõe uma série contínua de atos, atos que, sucedendo e apoiando-se cada um no
anterior e como que envolvendo-o, não podem ser a simples repetição do mesmo ato
(pois a repetição do mesmo ato reduz-se, metafisicamente, a um ato único), mas
um avanço do posterior relativamente ao anterior, que nele vem contido, um
alargamento da esfera de ação da força, isto é um desenvolvimento. Todo o ser tende para a afirmação de si mesmo,
isto é, para a expansão e realização da
sua essência, que exprime a sua mesma existência, lhe é imanente, a sua
potência ou virtualidade de expansão e realização é necessariamente ilimitada,
pois no momento em que encontrasse um limite absoluto a essência do ser estaria em contradição consigo mesma
(...). O universo aparece-nos agora não já somente como o grande ser autônomo e
eternamente ativo, mas como o ser de ilimitada e infinita expansão, tirando de
si mesmo, da sua inesgotável virtualidade, de momento para momento, criações
cada vez mais completas (...). Divino e
real ao mesmo tempo, manifesta a si mesmo a sua essência prodigiosa,
contempla-se numa infinidade de espelhos e em cada um sob um aspecto
diverso" [Quental, 1931: 76-77].
Kant
é o responsável pelo ingresso, no seio do pensamento moderno, da idéia
metafísica de imanência ou espontaneidade, segundo Antero. O
filósofo alemão representa para o pensamento moderno o que Sócrates tinha
representado para o pensamento grego. Este último com o conceptualismo, Kant
com o criticismo, conseguiram libertar o pensamento filosófico das cadeias do
dogmatismo. Kant pretende, fundamentalmente,
"assentar as verdadeiras bases dos nossos conhecimentos". Como?
Antero responde: a solução para Kant está na imanência do espírito, ou
seja, no reconhecimento de que "é partindo do espírito que se há de
conhecer o mundo objetivo, não partindo do mundo objetivo que se há de conhecer
o espírito".
O
nosso autor é enfático ao concluir que, queira Kant ou não, o espírito é o
verdadeiro noumenon, o espírito
"é o ser tipo, a medida de todos os seres". Antero sintetiza as suas
apreciações a respeito do criticismo kantiano com estas palavras: "O
universo, no kantismo, reflui todo para a consciência e some-se nela, mas para
de lá sair transformado, análogo ao espírito e idêntico com o espírito. O
subjetivismo de Kant é, pois, ou coisa alguma, - a impossibilidade de qualquer
conhecimento além do da mesma faculdade de conhecer, neste caso sem objeto
- ou então, como o entenderam Fichte,
Schelling e Hegel, o reconhecimento da identidade
do ser e do saber, a generalização do espírito a todo o universo, um
idealismo realista, que, ao mesmo tempo que subordina todos os seres às leis da
razão, põe a razão e as suas leis latentes em todos os seres, ainda os mais
elementares. Sendo isto assim, e não
parece que possa ser de outro modo, a
crítica de Kant veio, pelo rodeio do ceticismo, confirmar e ampliar
prodigiosamente as idéias fundamentais do pensamento moderno, levando-as, pode
dizer-se, até as suas últimas conclusões" [Quental, 1931: 79-80].
Antero
reduz a significação histórica do kantismo ao que, segundo o seu modo de ver, é
aquilo que legitimamente saiu dele,
ou seja, o realismo transcendental de Schelling e Hegel, que tiveram a
incumbência de alargar as bases do criticismo kantiano, reinterpretando o
panteísmo e o naturalismo do período anterior, do ponto de vista do novo
idealismo transcendental da Crítica da Razão Pura. A nova
filosofia que sai dessa releitura, baseia-se na identidade do ser e do saber e
constitui a síntese mais acabada do substrato metafísico que representa a base
do pensamento moderno. Antero caracteriza assim essa nova síntese da filosofia
pós-kantiana, que explica a realidade como um grande processo evolutivo do ser,
com uma finalidade espiritual: "A nova filosofia fundada sobre a identidade do ser e do saber leva as
idéias fundamentais do espírito moderno, as idéias de força, imanência e
desenvolvimento, até o máximo grau de condensação. Schelling e Hegel fundaram
definitivamente a doutrina da evolução, e fundaram-na na mais alta região das
idéias, onde ela domina todo o pensamento do nosso século. A evolução, vista
dessa altura, não é somente o processo mecânico e escuro da realidade; é o
próprio processo dialético do ser tem as suas raízes, comuns com as raízes da
razão, na inconsciente mas fundíssima aspiração da natureza a um fim soberano,
a consciência de si mesma, a plenitude do ser e a ideal perfeição. A lei
suprema das coisas confunde-se com a sua finalidade e essa finalidade é
espiritual. Com Schelling e Hegel a filosofia da natureza compenetra-se dos
seus verdadeiros princípios metafísicos: o mecanismo dissolve-se no dinamismo,
cujo tipo último é o espírito. O universo, à luz do realismo transcendental dos
dois grandes sucessores de Kant, transfigura-se; o seu movimento aparece como
uma sucessão e encadeamento de idéias e a sua imanência define-se como a da
alma infinita das coisas" [Quental, 1931: 81].
8) Crítica ao
dogmatismo do idealismo sistemático alemão
Em
que pese a importante contribuição da filosofia alemã, que levou o pensamento
moderno a realizar essa grande síntese inspirada no idealismo kantiano, o
realismo que radicalmente empolga a meditação filosófica do seu tempo, frisa
Antero, conduz a "valorizar os
aspectos cambiantes das coisas, a comprazer-se com a linha sinuosa das
realidades", e a superar as limitações dos filósofos alemães. As
mencionadas limitações consistem no dogmatismo que ainda secretamente inspira
essa sistematização, principalmente o pensamento hegeliano. O pensamento
moderno, sem abandonar a grande síntese em torno do espírito feita pela
filosofia alemã, quer mudar o dogmatismo e trocá-lo por "alguma coisa de
espontâneo e orgânico", como a fonte de inspiração da ciência moderna: a
natureza.. Nesse sentido, frisa Antero, o pensamento moderno sente-se mais
representado por um homem como Goethe, "poeta, artista, naturalista, por
cima disso viajante e homem de mundo, tendo também uma clara orientação filosófica", mas longe do espírito de
sistema que caracteriza a um pesado construtor de silogismos como Hegel.
A
fim de fundamentar a sua crítica ao dogmatismo filosófico alemão, e de
justificar a necessidade de superá-lo numa nova interpretação filosófica mais
realista, baseada no reconhecimento das descobertas científicas dos últimos
séculos, Antero fixa o divisor de águas entre filosofia e ciência. Essa distinção
é reduzida por ele a quatro pontos: 1) o
terreno da especulação está limitado aos primeiros princípios das coisas e à
análise das idéias fundamentais, enquanto "o grande e variado mundo dos
fatos pertence inteiro à observação, à experiência e à indução". 2) A hipótese que gera a teoria e que fecunda a
ciência, é filha legítima da especulação, mas não se impõe à ciência, apenas
ilumina-a, sendo sempre necessário que a observação, dirigida pelos métodos
próprios de cada ciência, confirme a hipótese; esta é, portanto, o ponto de
contato entre a filosofia e a ciência. 3) A cada ciência preside uma idéia
fundamental, sendo missão da filosofia tomar posse dessa idéia e de todas elas,
para as tornar matéria das suas especulações, cabendo à ciência o dever de realizar
o desenvolvimento dessas idéias no mundo dos fenômenos. 4) Por último, sintetizando as características mencionadas anteriormente para a filosofia e
para a ciência, Antero frisa que cabe a esta última a tarefa de desenhar,
"com os traços firmes das leis positivas, o quadro do universo na sua
variedade e complexidade fenomenal", enquanto à filosofia cabe a missão de
"interpretar superiormente a significação desse quadro" e de tentar
descobrir a chave do grande enigma do ser.
Por
aqui se compreende melhor a crítica que Antero faz ao dogmatismo da filosofia
alemã: o seu apriorismo absoluto levou-o a tentar realizar a "pretensão
exorbitante de tentar construir o universo dedutivamente e só com o poder da
dialética", perpetrando assim um verdadeiro atentado contra as ciências
modernas que, nos últimos três séculos, tinham-se esforçado por criar uma
imagem realista do universo, "pedra a pedra, pela paciente observação e
pela indução cautelosa". Contra a tentativa de construir o universo
dedutivamente e só com o poder da dialética, tentativa que se materializou
especialmente no sistema hegeliano, insurgiram-se as próprias ciências da
natureza e as ciências humanas, que incorporara, a partir de 1830, a idéia de evolução. "Ela irrompia, frisa
Antero, quase ao mesmo tempo, no chão de todas as ciências, desde a astronomia
(...) até a antropologia, a etnografia e a lingüística".
Assim
foi como a física, por exemplo, esquecendo a velha hipótese dos fluidos
imponderáveis ao restaurar a doutrina cartesiana do éter, encaminhava-se para a
teoria da unidade e correlação das forças físicas, a química, por sua vez,
demonstrava a circulação no universo "duma mesma matéria disfarçada na
variedade das formas", ao chegar às noções de corpos inorgânicos e corpos
orgânicos. A geologia tornava-se geogenia sob a inspiração de Cuvier,
Leopoldo de Buch, Alexander de Humboldt, E. de Beaumont, etc., ou seja, ciência
de uma evolução, considerando o globo "quase um ser vivo, que se
desenvolve". A paleontologia, uma das ramas da geologia, adotava também a
idéia de evolução, inspirando-se nos grandes precursores de Darwin, Lamark e
Geoffroy Saint-Hilaire. A antropologia também aderia à idéia evolucionista e
transformava-se em verdadeira ciência natural, ao testemunhar as origens
animais do homem. E a lingüística, por sua vez, assumia também uma perspectiva
evolucionista ao destacar o progresso sofrido pela linguagem, a partir da
simplicidade da expressão humana "que correspondia à rudeza primordial do
pensamento". Desta forma mostra Antero como as ciências caminharam, já
antes da metade do século XIX, por uma via que renegava qualquer tentativa de organização
apriori e que se regia pela idéia mestra de evolução. Conclui a respeito:
"Reconheçamos que era, pelo menos, mal escolhido o momento pela filosofia
transcendental para vir impor a essas diligentes e poderosas obreiras os seus
planos apriori".
Mas
a crítica às pretensões apriorísticas do idealismo alemão não se limitara só à
intervenção das ciências positivas. Também insurgiram-se contra essas
pretensões a história e a psicologia. A primeira, ao salientar a importância
essencial de um fator imponderável na explicação dos fatos humanos: o fortuito. Escreve a respeito Antero:
"Providência, Acaso? Liberdade humana? Tudo é possível: mas o certo é que
estava aí um elemento irredutível à teoria". Só esse fato, considera nosso
autor, é suficiente para tirar credibilidade às pretensões apriorísticas da
filosofia alemã. E confirma a sua apreciação com estas palavras, salientando o
caráter indutivo e a índole peculiar da disciplina que estuda os fatos humanos
no tempo: "A história não é a metafísica. As idéias metafísicas dominam e
penetram a história, não a fazem. Na ordem dos fatos, não se pode construir
apriori o que não se conheça já a posteriori. Sem direção metafísica não poderá
nunca haver verdadeira e superior compreensão da história: mas, com tudo isso, os historiadores
continuarão a procurar o encadeamento e a lei real dos fatos no estudo crítico
dos mesmos fatos e deixarão sempre uma larga margem àquele factor (necessário,
sem dúvida, como tudo, mas de uma
necessidade que escapa à razão, embora provavelmente não esteja fora da razão),
a que chamarão cada um, conforme a cambiante filosófica do seu pensamento,
Providência, acaso, liberdade, ou simplesmente o desconhecido" [Quental,
1931: 89].
A
psicologia como ciência da alma insurgira-se também contra as pretensões
sistematizadoras apriori do dogmatismo alemão.
A própria escola escocesa, em que pese a índole não plenamente
científica das suas afirmações, tirava porém toda possibilidade ao dogmatismo,
pelo fato de que reconhecia uma esfera moral que não podia ser substituída por
nenhuma abstração mental. E conclui Antero: "Ora, se o sentimento moral
não é a filosofia nem se pode substituir à
filosofia, é muito certo também que filosofia alguma, que o sentimento
moral reprove, poderá prevalecer contra ele". Nesse sentido, reconhece o
nosso autor, os escoceses conseguiram o fim que pretendiam: reivindicar a
existência da alma espiritual. De outro lado, a psicologia dos espiritualistas
franceses (Royer-Collard, Maine de Biran, Jouffroy, Cousin, Ravaison), apesar
de ter-se limitado apenas a uma ciência
literária, no sentir de Taine, que só conseguiu "produzir um mito de
escola e um simples Deus oficial", representava porém mais um obstáculo às
pretensões apriorísticas do hegelianismo, ao reivindicar em nome da consciência
humana a irredutibilidade do espírito do homem à qualquer abstração filosófica.
Eis
a forma em que Antero interpreta a contribuição dos espiritualistas franceses,
ao mesmo tempo em que não deixa de reconhecer as suas limitações, salientando de
outro lado a forma em que eles representaram as idéias de força e imanência:
"Mais do que qualquer outro sistema metafísico, o da nova filosofia alemã,
arrastando e como que triturando os seres na sua poderosa engrenagem,
substituindo à realidade a dialética, parecia anular os indivíduos, fundidos na
absoluta unidade do ser-idéia, e suprimir a liberdade como incompatível com a
necessidade lógica dos desenvolvimentos desse ser. Por muito profunda que fosse
a concepção hegeliana da história, da política, da ética - e era-o, sem dúvida
alguma -, por muito subtis que fossem as suas distinções - e eram-no, também -,
esta objeção surgia irresistivelmente e, ainda quando não ia até condenar o
sistema em globo, apontava em todo o caso para uma lacuna gravíssima, um
aleijão de nascença que tornava suspeita a sanidade de todo o organismo. E,
torno a dizé-lo, essa objeção não era só filosófica, era humana: daí a sua
grande força. Em face dessa necessidade superior dos desenvolvimentos do
ser-idéia, substituindo-se nos indivíduos ao seu princípio íntimo de ação, onde
ficavam, o que eram o esforço intrépido dos heróis, as lutas secretas da
virtude e os seus dolorosos triunfos, a abnegação sublime dos mártires, a
renúncia voluntária dos bons e dos justos, onde ficava o dever e a liberdade e
toda a nobreza moral que estas duas palavras exprimem? Coisa curiosa, aqui
nesta profunda região do senso íntimo e da verdadeira realidade humana os
espiritualistas, pouco filósofos, nada metafísicos, pareciam representar mais
genuinamente essas idéias de força e imanência, de que o hegelianismo é a mais
vasta e poderosa sistematização, do que o mesmo Hegel e o seu sistema!" [Quental,
1931: 96-97].
Antero
salienta, a seguir, que o protesto dos espiritualistas contra o desconhecimento
da dimensão espiritual e irredutível da consciência, por parte da filosofia
dogmática, também se estendia às "tendências mecanistas e deterministas
das ciências". Essa crise, a seu ver, pode exprimir-se "por esta
antítese: espiritualismo e liberdade, dum lado, mecanismo e determinismo, do
outro". O autor pergunta se poderá resolver-se esta formidável antítese.
Para dar a resposta, faz um balanço dos elementos com que pode contar. Os
fenômenos que mais importância têm nesse contexto, e que constituem "os
dois fatos mais consideráveis da história da filosofia" na segunda metade
do século XIX, são, por um lado, "o descrédito da especulação metafísica
sistemática e das ambiciosas construções a
priori, e o conseqüente predomínio do processo indutivo e do espírito científico;
por outro lado, a transformação ou antes visceral renovação do caduco
espiritualismo, retemperado no criticismo kantiano e numa psicologia
verdadeiramente científica"
[Quental, 1931: 98].
9) O predomínio do
processo indutivo e do espírito científico
Em
relação ao primeiro fato (predomínio do processo indutivo), Antero considera
que a crise da filosofia transcendental alemã proveio do fato de pretender
deduzir o ser da razão, o que supõe que a razão se conhecesse a si mesma com
uma certeza absoluta. No entanto, afirma, tudo leva a pensar que a razão se
conhece de forma muito imperfeita, "só nos seus elementos fundamentais,
nas suas grandes faculdades e noções''. Se a razão é, como pretendem os
filósofos alemães, a expressão superior do ser, isso mesmo nos deve levar a
crer que existe uma distância enorme entre a razão e os "estados obscuros
e rudimentares de onde partiu". A consciência que a razão tem das suas
origens remotas, "daquela região inferior que é o mundo objetivo", é
muito confusa. Este fato permite a Antero concluir que é evidente "o
descrédito da especulação metafísica sistemática e das ambiciosas construções
apriori". Contudo, se o dogmatismo da metafísica sistemática está em
crise, isso não significa que o pensar filosófico esteja em crise também.
Antero considera que é chegado o momento de uma profunda mudança no que ele
chama de temperamento da filosofia.
Essa mudança consiste em que a meditação filosófica da metafísica se torne
científica; de transcendental se torne realista e de dedutiva, indutiva. Porém,
não nega simplesmente a possibilidade da metafísica. Reconhece que no seio
desta nova tendência pode haver uma metafísica, a partir da experiência e dos
fatos. E considera que a mudança de temperamento da filosofia está presente no
pensamento de Comte, Spencer, Stuart Mill e Taine.
A
respeito do anterior, Antero frisa: "Um recrudescimento do espírito
filosófico é uma das características da segunda metade do nosso século.
Somente, a par com esse recrudescimento, dá-se uma mudança no temperamento da
filosofia: de metafísica, torna-se científica; de transcendental, realista; de
deductiva, inductiva. Querem-se idéias, mas que as idéias se adaptem o mais
perfeitamente possível aos fatos, não que pairem, em largo vôo, por cima deles.
É esta nova tendência que se patenteia na Filosofia
Positiva de Augusto Comte, na Filosofia
da Evolução de Herbert Spencer, na Lógica
de Stuart Mill, no livro Da inteligência de Taine e em outras
obras consideráveis deste tempo. Procura-se chegar à síntese pelo caminho da
inducção; procura-se até construir a metafísica partindo da experiência só e
dos fatos. Todos almejam por imprimir à especulação um caráter positivo"
[Quental, 1931:100].
O
caráter fundamental da ciência perante a complexidade do real, considera
Antero, consiste em "procurar os
elementos irredutíveis dos fenômenos complexos, decompondo a aparência enganosa
das coisas e resolvendo-a em fatos últimos", que são os únicos suscetíveis
de serem apreendidos com rigor e que, de outro lado, constituem expressão
perfeita da linguagem científica, porquanto podem ser reduzidos a fórmulas
matemáticas. Assim se materializa o
ideal científico de explicar o complexo pelo simples. Mas é justamente nesse
esforço de simplificação que aparece o vício do mecanismo, tendência que afeta
diretamente à filosofia inspirada na ciência moderna. O mecanismo se dá no
arcabouço da ciência, pois ao decompor a realidade, despojando-a das qualidades
segundas que revestem os fenômenos, "o resíduo objetivo de toda sensação é
sempre, em última análise, um movimento". Podemos concluir, portanto, que
os fatos últimos da ciência são simples movimentos. O mecanismo científico,
assim caracterizado por Antero, gera o determinismo, pois a concatenação de
movimentos é necessariamente explicada pelo princípio da causalidade mecânica.
Desta forma, considera Antero, as ciências da natureza, bem como a filosofia
nelas inspirada, são mecanistas e deterministas. O autor conclui assim: "O
mundo da mecânica é o mundo da necessidade. Reina ali, de uma maneira absoluta,
o princípio da causalidade mecânica. Não se concebe movimento que não tenha
atrás de si outro movimento; nenhum se cria, assim como nenhum se destrói. Uma
ação é provocada por outra, e a sua intensidade é medida pela intensidade da que
a provocou. Tudo ali se passa segundo leis simples e férreas, nem há lugar para
o acaso ou a Providência, assim como o não há para a espontaneidade; uma série
de fatos chama outra série de fatos, e os fenômenos sucedem-se numa ordem
invariável e fatal, ordem que porisso mesmo pode ser rigorosamente conhecida,
descrita e prevista. A precisão da ciência funda-se nesta âncora, e uma
filosofia científica da natureza tinha de ser determinista, pela mesma razão
por que tinha de ser mecanista" [Quental, 1931: 102].
O
universo científico é, além de mecanista e determinista, evolutivo. Mas com um
tipo de evolução puramente cumulativa. Levando em consideração a forma em que
as ciências da natureza enfrentam o universo, não reconhecendo nele uma
substância com poderes de renovação constante de si própria nas suas
manifestações, mas como simples concatenação mecânica de movimentos simples, o
autor salienta que o conceito de evolução assumido por tais ciências é
puramente formal, gerando assim a "fantasmagoria do mundo fenomenal".
E conclui em relação a esse ponto: "Reduzindo assim a uma ilusão subjetiva
o que dava à evolução a sua substancialidade, excluído qualquer aumento de ser,
qualquer superioridade verdadeira, o universo, agregado uniforme regido por
leis matemáticas, dissolve-se numa vasta mecânica de forças elementares"
[Quental, 1931: 105-106]. Ora, a filosofia científica da natureza é, a fortiori, porquanto inspirada nas
ciências, uma filosofia evolucionista.
Antero diferencia aqui a forma em que é entendida a evolução por parte
da filosofia e das ciências da natureza, de um lado, e por parte da metafísica
alemã, de outro. Para esta última, a evolução implica a idéia de aumento de ser, qualidade que lhe
provinha da "virtualidade infinita da idéia (de substância) no seu
processo de desenvolvimento. A evolução tinha, pois, (...) um conteúdo
verdadeiro, era essencialmente substancial". Entretanto, a evolução para a
filosofia e as ciências da natureza é entendida, segundo Antero, como processo
puramente formal, despojado de qualquer aumento de ser.
Mecanismo,
determinismo, evolução: eis as três caraterísticas que marcam profundamente a
filosofia e as ciências da natureza. Em que pese o rigor matemático alcançado
pelas ciências nesse contexto, bem como o caráter científico assumido pela
filosofia nelas inspirada, há em tudo isso um aspecto negativo: a concepção da
realidade e do homem é essencialmente fatalista, porquanto tudo se reduz a
movimentos determinados, conduzindo, em última análise, ao pessimismo. A vida
do espírito, a espontaneidade, as aspirações do nosso sentimento moral, ficam
sem resposta nesse gélido universo. Diante desse quadro, o autor afirma,
angustiado: "De tudo isto resulta uma concepção das coisas extremamente
precisa, mas limitada à esfera inferior do ser e por isso abstrata e
inexpressiva. Daí o que quer que é de glacial e morto na sua lucidez. É um
universo que se move nas trevas, sem saber por que nem para onde. Não o alumia
a luz das idéias, não lhe dá vida a circulação do espírito. Paira sobre ele um
mudo fatalismo. A inerte serenidade, que inspira a sua contemplação, é muito
semelhante ao desespero. A sua beleza puramente geométrica tem alguma coisa de
sinistro. Nada nos diz ao coração, nada que responda às mais ardentes
aspirações do nosso sentimento moral. Para que, um tal universo? E para que
viver nele? Nada alimenta tanto o mórbido pessimismo dos nossos dias como este
gélido fatalismo soprado pela ciência sobre o coração do homem" [Quental,
1931: 106-107].
Até
aqui o autor caracterizou o que ele reconhece como um dos "fatos mais
consideráveis da história da filosofia", ou seja, "o descrédito da
especulação metafísica sistemática e das ambiciosas construções apriori e o
conseqüente predomínio do processo indutivo e do espírito científico". Assinalou
Antero a respeito os aspectos positivos e negativos desse novo espírito
científico, mostrando que se bem permitiu superar o dogmatismo metafísico da
filosofia alemã, conduziu, de outro lado, a uma visão mecanista, determinista e
formalmente evolutiva do universo que, logicamente, deixa sem responder as
questões surgidas do fundo do sentimento moral.
10) A renovação do
espiritualismo no kantismo e na psicologia científica
Vejamos
agora a forma em que Antero analisa o outro fato considerável na história da
filosofia na segunda metade do século XIX, "a transformação ou antes
visceral renovação do caduco espiritualismo, retemperado no criticismo kantiano
e numa psicologia verdadeiramente científica" [Quental, 1931: 98]. Em
primeiro lugar, o nosso autor coloca no seu lugar a concepção mecânica do
universo. Não se trata de uma síntese científica desprezível. Afinal de contas,
"representa o substratum sobre que assentam as mais altas operações da
razão". O erro consiste em pretender identificar essa conquista com a
dinâmica total do espírito. A crítica que o autor fez anteriormente ao
mecanismo científico que gera o determinismo, visa não à necessária abstração
que a razão faz sobre a realidade material, mas à aplicação dessa abstração, de
caráter matemático, à vida do espírito. Situando-se numa perspectiva de
inspiração kantiana, Antero considera que "o quadro rígido do mecanismo
universal exprime a dinâmica das coisas" no seu aspecto exterior e
abstrato e frisa que se trata, por isso mesmo, de um quadro simples e fixo. E conclui: "é necessário porque é elementar; e, porque é
elementar, é incompleto". Portanto,
a concepção mecânica do universo é incompleta; a resposta para os
grandes interrogantes do espírito humano deve provir de outro lugar. E, o que é
mais importante do ponto de vista do conhecimento, essa concepção científica é
possível porque existe uma dimensão - transcendental - mais ampla do espírito.
A
respeito desse ponto, frisa Antero: "É, pois, um erro, uma ilusão
monstruosa esta concepção mecânica do universo, que resulta da grande síntese
científica dos últimos 40 anos? De modo algum. É uma verdade fundamental, mas
circunscrita, positiva dentro dos seus limites, mas incompleta na medida da
estreiteza desses limites. Já vimos que estes são os da mesma inteligência
científica. E assim como os dados empíricos sobre que opera a inteligência
científica são o substratum sobre que assentam as mais altas operações da
razão, assim a sua concepção mecânica será o substratum do conhecimento
racional do universo. Esse quadro rígido do mecanismo universal exprime a
dinâmica das coisas no que elas têm de exterior e abstracto, por isso mesmo de
simples e fixo. É necessário porque é elementar; e, porque é elementar, é
incompleto (...). Tal como é, representa um resultado enorme: a síntese do
espírito moderno no terreno do conhecimento científico. Outros elementos do
mesmo espírito, que aqui faltam e que, pela própria natureza das coisas, aqui
deviam faltar, mas que abundam em outra esfera virão ampliá-lo, fecundá-lo,
alumiá-lo com a penetrante luz transcendental, que necessariamente lhe
falece" [Quental, 1931: 108].
O
espírito, considera Antero, existe e tem vida própria. Os fatos constatados
pelas ciências são apenas o ponto de partida. Mas o que lhes confere ser e
expressão é a inteligência, ao entrarem nas categorias desta e serem
organizados pela elaboração mental. Numa perspectiva sempre kantiana, o autor
não duvida em afirmar que o conhecimento "é um fato legítimo e próprio do
espírito". Assim como este tem vida própria no que tange ao conhecimento,
ele também é espontâneo no campo da vontade, que se autodetermina em face de
motivos sem que eles a determinem. A respeito Antero escreve: "Os fatos
são o ponto de partida das idéias, cuja virtualidade está no espírito: em si
são inertes e inexpressivos. O que lhes dá a expressão e verdadeiro ser é a
inteligência, em cujas categorias entram, fundidos pela elaboração mental, como
em outros tantos moldes, ordenando-se nelas e por elas. O conhecimento é pois
um fato íntimo e próprio do espírito, e o universo conhecido o produto da sua
espontânea atividade. E assim como o espírito é espontâneo na esfera do conhecimento,
não o é menos na da vontade. Determina-se esta em vista de motivos, mas não a
determinam eles. Tem em si a raiz última das suas determinações. Ser causa é a
própria essência da vontade. Não há volição, ainda a mais elementar, que seja
absolutamente passiva: a determinação da vontade nunca é assimilável à
determinação mecânica porque tem um fim, e esse fim (em última análise) está
nela mesma. Por trás da determinação limitada está uma virtualidade
ilimitada" [Quental, 1931: 114-115].
O
que é, afinal, o espírito para Antero? Ele o define como força espontânea e
consciente: "O espírito é pois uma força espontânea: mas é, por cima
disso, uma força consciente. É esse predicado que vem completar a sua plenitude
e fazer dele a força tipo. Conhecendo-se, possui-se na identidade fundamental
de todos os seus momentos, vê-se na sua unidade e propõe a si mesmo o seu próprio
fim. Este conhecer-se tem graus: é mais ou menos íntimo; mas, ainda nos ínfimos
graus, a unidade do espírito aparece já,
encerrando o mais elementar a virtualidade do mais pleno. Fazendo-se
toda a evolução do espírito dentro da sua própria natureza, e não sendo mais do
que a gradual realização de si mesmo em si mesmo, há oposição entre as
sucessivas esferas do seu desenvolvimento, nunca contradição. É assim que o
espírito, sem sair de si, se cria e fecunda continuamente, compenetrando-se
cada vez mais com a sua própria essência, extraindo dela, da sua infinita
virtualidade, momentos cada vez mais complexos e ricos de ser, até atingir a
mais alta consciência de si. Reconhece-se então idêntico com o eu absoluto e independente de toda a
fenomenalidade: concebe Deus como o tipo de sua mesma plenitude, concebe e
sente a vida moral como a esfera da realização desse ideal. A realização desse
ideal parece-lhe agora como o seu fim último, aquele de que os fins
anteriormente propostos, limitados e transitórios, eram só imagem e preparação.
Este fim último, porém, sendo imanente, confunde-se com a perfeição do seu
mesmo ser: na atração dele reconhece a causa de toda a sua evolução, que só
para realizá-lo tendia. Pela realização dele é livre - livre na medida exata em que o realiza
- (...). Reunindo deste modo na sua
unidade, agora consciente, a causa e o fim, a sua autonomia é completa"
[Quental, 1931: 115-116].
Em
síntese, o espírito é para Antero uma força espontânea e consciente que,
conhecendo-se, possui-se na identidade fundamental de todos os seus momentos,
vê-se na sua unidade e propõe a sim mesmo o seu próprio fim. Convém frisar que
na análise anteriana da dinâmica do espírito, estabelece-se uma confusão entre
dois planos, o ontológico e o crítico, que o levam a identificar a dimensão
transcendental do espírito, no campo do conhecimento e da vontade, com a
afirmação do eu absoluto, Deus. Outra anotação importante: Antero dá primazia ao plano moral, como
esfera da realização da plenitude humana. A partir daí, a filosofia do nosso
autor assume um caráter de projeto moral que materializa o ideal da plenitude
do espírito. Antero salienta que assim como a filosofia anterior "se
resolvera num dinamismo mecânico", o seu espiritualismo resolve-se num
dinamismo psíquico. Esta característica ele faz derivar da autonomia do
espírito. A respeito, afirma: "Segundo o nosso espiritualismo, o espírito
define-se como uma força autônoma que se conhece na sua íntima natureza, que é
causa dos seus próprios fatos e só às
suas próprias leis obedece, que a essas leis submete os fatos objetivos e só
assim lhes dá significação e realidade, que a si mesma determina o seu próprio
fim, que existe em si e em si encontra a sua plenitude. Sendo a força autônoma,
consciente e plena, é a força por excelência, a força tipo. O espiritualismo
resolve-se num dinamismo psíquico, assim como o materialismo da filosofia
científica da natureza se resolvera num dinamismo mecânico" [Quental,
1931: 116-117]. Vale a pena salientar, aqui, uma nova confusão que Antero
estabelece, ao identificar o plano transcendental da consciência com o plano
psíquico, que faz referência ao processo subjetivo-individual.
Entendido
o saber científico dentro deste amplo contexto do espiritualismo anteriano,
desaparece qualquer contradição entre metafísica e ciência, pois se trata já
não de formas de conhecimento antagônicas, mas de manifestações complementares
do saber total que é, ao mesmo tempo,
positivo e metafísico, experimental e
especulativo. Em relação a este ponto, frisa o nosso autor: "A
metafísica e a ciência não são pois rivais, mas colaboradoras na obra do
conhecimento, e a concepção metafísica e a científica não devem ser
representadas como duas esferas opostas, mas como dois círculos concêntricos.
Finalmente e como conseqüência do que fica dito, só este processo tem o caráter
do verdadeiro realismo: ele constitui
o saber total, ao mesmo tempo positivo e metafísico, experimental e
especulativo, tomando o ser na sua unidade, da qual o espírito só
arbitrária e violentamente pode ser
amputado, e na ordem de desenvolvimento dos seus momentos, dos quais o espírito
é o superior e típico" [Quental, 1931:
120]. Antero conclui a análise da profunda renovação do velho
espiritualismo com estas palavras: "temos pois já conhecido o terreno da
síntese do pensamento moderno, o dinamismo, e o processo adequado à realização
dela, a interpretação do mecanismo pelo psiquismo".
11) Respostas às
questões espiritualismo / liberdade e mecanismo / determinismo
Feito
o balanço que se propunha dos elementos com que podia contar, para responder à
dupla questão da antítese espiritualismo/liberdade e mecanismo/determinismo,
Antero trata de dar uma resposta direta na última parte do seu Ensaio. Em
primeiro lugar, salienta que "é no terreno da idéia de espontaneidade que
se resolve a antítese determinismo/liberdade". Em segundo lugar, lembra
que a caraterística fundamental do espírito consiste em que a sua idéia básica,
a espontaneidade, envolve as de força e causa. A espontaneidade
seria, pois, a capacidade da força-espírito para se determinar a si mesma ou,
em outros termos, para ser causa de si mesma. Levando em consideração, em
terceiro lugar, que é pela força-causa do espírito que em último termo pode ser
explicada a realidade do mundo natural, Antero conclui que é daquele tipo de força da
qual deveremos deduzir a natureza íntima de todas as forças, inclusive as mais
elementares. Em quarto lugar, o autor salienta um fato que para ele é evidente:
não há, no mundo natural, ser totalmente passivo; todos os seres, mesmo os mais
simples, possuem certa espontaneidade, no sentido de que em tudo palpita uma
vontade própria, que não é mais nada do que a tendência teleológica a realizar
o próprio fim. Para Antero é claro que há alguma coisa de espontâneo "e um
acordo do ser com a sua verdade profunda e com a sua infinita
virtualidade", mesmo nos fenômenos que se nos revelam como os mais
elementares no campo da matéria, terreno no qual parece reinar o determinismo
mecânico. Essa secreta finalidade que em todo ser revela uma força-causa que
procura um fim, não pode ser explicada pelo simples fluir dos fenômenos, como
se os antecedentes determinassem a finalidade dos conseqüentes: o fenômeno
antecedente é só condição para que se produza o conseqüente. A propósito, frisa
Antero: "A causa do fenômeno está na mesma natureza do ser onde ele se dá,
ou antes, do qual ele é essencial modalidade".
Da
anterior análise o nosso autor conclui que a distância existente entre os seres
do mundo natural e o espírito não é intransponível. Esse pouco de
espontaneidade que os seres naturais têm assemelha-os ao espírito. "Não há
ainda a liberdade - afirma Antero - no alto sentido espiritual desta
palavra: mas é o prenúncio dela e o seu
germe. Na espontaneidade inconsciente da matéria está a raiz do que na
consciência se chama verdadeiramente de liberdade" [Quental, 1931: 123].
Em que consiste propriamente a liberdade? Deixemos que o próprio Antero
expresse o seu pensamento: "A liberdade, no rigoroso sentido da palavra, é
pois a espontaneidade quando plena, isto é, quando o ser, não já espontâneo
apenas na sua atividade exteriormente condicionada (...), o é ainda nessa mesma
condicionalidade, criando conscientemente os motivos das suas determinações e
criando-os em vista do próprio fim. Neste ponto culminante, o motivo da
determinação identifica-se com a essência e o fim do ser que se determina:
este, conformando-se com o motivo, conforma-se exclusivamente consigo mesmo. A
sua determinação é agora um fato absolutamente seu, é ele mesmo, na plenitude
da sua essência, refletindo-se na realidade, é essa essência, substituindo-se a
todas as leis exteriores, feita lei única da sua atividade. Agora, quando mais
se determina, mais livre é, porque as suas determinações, motivadas só pelo seu
próprio fim, não envolvendo elemento algum estranho à sua substância e tirando
dela a sua matéria e a sua forma, são atos perfeitamente adequados à sua
potência e outras tantas realizações da sua mesma unidade" [Quental, 1931:
123].
Trata-se,
sem dúvida, ao nosso modo de ver, da dimensão transcendental da atividade
humana, o que poderiamos chamar de fundamentação transcendental da moral.
Antero não duvida em atribuir ao agir humano, desta forma considerado, um valor
ideal e absoluto. O nosso sentimento de liberdade provém da nossa união a esse
centro que unicamente se revela através da consciência, mediante a razão. É o
que ele salienta no texto a seguir: "Este ser, que está todo em cada um
dos seus atos, cuja essência se substitui ao universo, e cuja atividade não
reconhece outros limites senão as leis da sua própria natureza, realiza por
certo o ideal de ser livre. É por isso também que é um ser só ideal. Deus, se
Deus fosse possível, seria esse ser absolutamente livre. Mas, por isso que não
é real, é que é verdadeiro. Ele é o tipo da plenitude do ser, tipo de que a
nossa liberdade moral, aquela que com tamanhos esforços conseguimos realizar, é
só vaga imagem, longínqua semelhança. Esse ideal da nossa essência, esse eu do
nosso eu, último e mais profundo, é o centro de atração de toda a vida
espiritual: é na união com ele que nos sentimos livres, livres na medida exata
dessa união. Segredo mais íntimo do ser, mas tão sepulto na inconsciência das
coisas, não o descobre o mundo. Revela-o a consciência e é a razão o seu
intérprete soberano. Só pela razão somos verdadeiramente" [Quental,
1931: 124]. Vale a pena salientar que,
neste texto ao menos, Antero permanece estritamente no plano transcendental,
sem fazer a confusão de planos que criticamos anteriormente. O teor da sua
referência a Deus, neste texto, é muito claro: "Por isso que não é real, é que é verdadeiro". O nosso autor exclui qualquer referência ao plano
ontológico.
A
grandeza humana, em que pese as nossas limitações de seres condicionados
"pelo organismo, pelos instintos, pelas relações exteriores" (e como
sofreu Antero com esses condicionamentos!) consiste nesse podermos nos
identificar com o próprio ideal. Em síntese, a nossa grandeza de seres humanos
provém do nosso valor moral, que por sua vez se alicerça nessa dimensão
transcendental do nosso agir. A respeito, o pensador-poeta escreve:
"Fixando em si esses elementos do seu próprio ideal, esses princípios
geradores do seu espontâneo desenvolvimento, este pobre eu que somos, ou
parecemos ser, tão estreitamente condicionado pelo organismo, pelos instintos,
pelas relações exteriores que o comprimem num círculo fatal, este pobre eu, que
assim começa captivo e quase esmagado, transpõe gradualmente esses limites,
transborda, por assim dizer, sobre o mundo que o continha, substitui motivos
próprios aos motivos alheios, faz-se fim onde era meio e, de particular e
limitado, transforma-se finalmente no que se diria outro eu, impessoal,
absoluto, todo razão e vontade pura. Identificado com o próprio ideal só agora
é ele mesmo. Não concebemos que outra coisa seja ser livre" [Quental,
1931: 125].
A
evolução universal, à luz do relacionamento natureza/espírito, assume uma
caraterística de unidade e de progressiva caminhada até a realidade do
espírito, que em último termo comanda todo o processo. "A cadeia universal
das inexistências - frisa Antero - na
sua prodigiosa espiral de espirais, aparece-nos como a ascensão dos seres à
liberdade, na qual descobrimos a causa final de tudo" [Quental, 1931:
126]. O nosso autor atribui as seguintes características à evolução universal:
a) ela não é uma lei imposta de fora à natureza. Baseia-se, pelo contrário, na
"virtualidade infinita do ser", que está presente mesmo nas
realidades mais simples como as moléculas. b) Essa evolução dirige-se "a
um fim, à realização dessa virtualidade, à plenitude e perfeição do ser".
c) De outro lado, a evolução universal não é uma lei fatal, cega, mas trata-se
de uma lei racional, análoga à razão. d) A evolução universal
pode caracterizar-se, também, como
"a aspiração profunda de liberdade, que abala as moles estelares como
agita cada uma das suas moléculas". e) Trata-se de um processo "não
já puramente formal e aparente, mas real, substancial, é um verdadeiro
progresso", que consiste em que "cada nova esfera de desenvolvimento
traduz um aumento de ser". f) Esse aumento de ser, em que consiste o cerne
dessa evolução universal, se dá graças a um gradual desdobramento da infinita
virtualidade que possui a natureza, consistindo essa virtualidade no fato de o
ser-causa estar "imanente nas formas limitadas" e juntar "ao
tipo inferior preexistente esse quid novo
e diverso, com que produz o tipo superior". g) Este tipo superior não é
uma pura formalidade mas "é-o substancialmente e em toda a verdade"
porque "é mais rico de idéia" e "contém mais ser". h) No
processo evolutivo o tipo superior explica o inferior, pois "é para aquele
que este gravita". i) Por último, frisa Antero, "se o ideal supremo,
que a tudo atrai, para que tudo gravita, é razão, vontade pura, plena
liberdade, a evolução só será perfeitamente compreendida definindo-se como a
espiritualização gradual e sistemática do universo" [Quental, 1931: 127-128].
Em
síntese, podemos afirmar que a evolução é para Antero, fundamentalmente, um
processo de progressiva espiritualização do universo. É, ao mesmo tempo, um
processo de humanização das coisas, pois a máxima manifestação do espírito acontece
na consciência humana. Graças a esse processo de espiritualização da natureza,
frisa, "o espírito humano sente agora palpitar nas coisas o que quer que é
análogo à sua própria essência", em virtude de que "ele próprio é que
é agora a chave do enigma universal", pois só ele "conhece a causa e
o fim de tudo e esse segredo sublime é a sua verdade mais íntima, o seu mesmo
ser". Antero conclui este arrazoado
assim: "O universo aspira com efeito à liberdade, mas só no espírito
humano a realiza".
12) A plena
manifestação do espírito na ordem moral
Se
o rumo da evolução é o homem, para entendermos o sentido do progresso daquela
devemos considerar, em última instância, em que consiste verdadeiramente a
feição humana do mesmo. Antero frisa, em primeiro lugar, que "o progresso
da Humanidade é (...) essencialmente um fato de ordem moral". O progresso,
portanto, pressupõe o contínuo exercício da razão e da vontade humanas, para
conseguir o aprimoramento moral. A respeito, frisa o nosso poeta-pensador:
"sem o esforço sempre renovado do pensamento para a razão, da vontade para
a justiça, de todo o ser social para o ideal e a liberdade, o caminho andado
escorrega debaixo dos pés". E, num outro lugar, afirma em relação à forma
em que entende o progresso: a sua essência "está justamente nessa
intervenção, cada vez mais larga e intensa, do espírito na humanidade (...). A
criação da ordem racional e o alargamento indefinido do domínio da justiça, tal
é a definição do progresso. Fato da liberdade, ele consiste intimamente num
desdobramento incessante da energia moral, numa reação contínua da vontade sob
o estímulo do ideal, e é por isso que a virtude é a verdadeira medida do
progresso das sociedades" [Quental, 1931: 130]. Em que pese o fato de a
ordem criada pelo direito refletir a moralidade e a liberdade humanas, o
progresso, porém, deve-se manifestar, fundamentalmente, na consciência
individual. "No mundo da consciência
- frisa Antero - dissolvem-se
todas as leis naturais na única lei moral. A lei moral, criada pelo espírito
para si mesmo, ou melhor, expressão da unidade final realizada pelo espírito em
si mesmo, da inteira compenetração da vontade com o seu ideal, é lei perfeita
da liberdade, porque o próprio dever, à medida que a sua idéia se aprofunda,
perde gradualmente o rígido caráter de obrigação, que lhe dava não sei que
longes de fatalidade, e transforma-se em atração pura, puro amor"
[Quental, 1931: 131].
É
pois no seio da consciência que o espírito se liberta de todas as limitações,
ensejando um mundo transcendente e definitivo. Esse mundo transcendente tem
alguma coisa de absoluto e é não individualizado, apesar de ligado ao
indivíduo. Nesse mundo se dá, para o indivíduo, a "transição do ser para o
não-ser, que eqüivale, quanto cabe na realidade, à plenitude e perfeição do
ser. É o que, na linguagem (que para nós não pode ser senão simbólica) do
misticismo, se chama a união da alma com Deus: nós diremos simplesmente que é a
união do eu com o seu tipo de perfeição" [Quental, 1931: 131]. Impõe-se,
portanto, para Antero, uma espécie de ascese em que o indivíduo renuncie ao
egoísmo tornando-se instrumento do bem universal, seguindo os ditames da
consciência moral e inserindo-se, assim, no mundo da transcendência. Essa
espécie de kénosis do indivíduo
condu-lo à liberdade. Diz Antero a respeito: "A renúncia a todo o egoísmo
é para ele (o indivíduo) o caminho direto que o leva à liberdade, à perfeição,
à beatitude". Agindo assim, frisa o nosso autor, o indivíduo conquista a
virtude que sintetiza os ideais da liberdade, da perfeição e da beatitude e que
coloca o indivíduo numa perspectiva universal e eterna. Graças à virtude, frisa Antero, a existência
do homem "já não é de uma individualidade particular, circunscrita no
tempo e no espaço, condicionada pelo temperamento, pela raça, pela nação, pelo
período histórico, pela educação, por mil circunstâncias fortuitas; não: é como que a existência dum princípio
universal, impessoal, absoluto, atuando indiferentemente num ponto do espaço, e
a sua obra, a virtude, não é também uma obra particular e transitória, mas
universal e absoluta. A virtude, liberdade suprema, é por isso a realidade por
excelência, a única realidade plena" [Quental, 1931: 132-133].
Sem
essa ascese, frisa Antero, torna-se impossível a vida moral. E ela é também a
verdadeira vivência religiosa e a fonte do único culto: "a consciência do
justo - afirma - é o único templo do único Deus; e, nesse
templo, a renúncia ao egoísmo é o único culto, Cessasse um só instante esse
culto, esse holocausto do egoísmo nas aras
do ideal, e imediatamente toda a vida moral se suspenderia (...). O mundo moral
só subsiste por essa renúncia" [Quental, 1931: 133]. Consequentemente o
máximo desenvolvimento da ascese e da virtude, que é a santidade, é o termo de
toda a evolução e a máxima libertação a que o homem pode aspirar.
"Concluamos - escreve Antero - que a santidade é o termo de toda a evolução
e que o universo não existe nem se move senão para chegar a este supremo
resultado. O drama do ser termina na libertação final pelo bem" [Quental,
1931: 134].
Antero
culmina o seu ensaio refletindo sobre as tendências básicas do pensamento moderno
na segunda metade do século XIX. Caracteriza essas tendências como orientadas
no sentido de uma síntese indutiva: " Não será - escreve - uma nova construção apriori, depois de tantas
outras, mais um sistema - último e
definitivo sistema - mas a coordenação
superior e (...) a interpretação dos
fatos positivos no ponto de vista dos últimos princípios fornecidos ao mesmo
tempo pela análise da razão e pela análise da consciência" [Quental, 1931:
135]. Caracteriza tal coordenação
superior como um espiritualismo
idealista que florirá e frutificará
"no tronco robusto do materialismo". E lhe atribui as
seguintes notas: a) será "superior à ciência como idéia e como
critério", mas a ela estará submetido do ponto de vista do fornecimento da
matéria-prima "que tem de ser elaborada especulativamente". Assim, a
nova síntese do pensamento moderno, 2) reunirá, na sua unidade, "as duas
tendências divergentes da inteligência moderna, resolvendo nessa unidade
superior, por uma mútua penetração, a antítese da razão e da experiência".
Por se tratar de uma síntese, todas as grandes correntes do pensamento moderno
no século XIX estarão representadas, aproveitando o que cada uma delas tem de
legítimo: o positivismo (sob o aspecto da adoção de uma ordem de evolução formal
dos dados científicos); o idealismo alemão (pela afirmação da evolução
dialética da realidade e pela adoção do princípio da identidade do ser e do saber); o espiritualismo (pela introdução de
elementos psíquicos na especulação, bem como pela adoção da idéia de força-espírito, e pela finalização de
todo o processo evolutivo na lei moral, que soluciona o conflito
determinismo-liberdade); por último, o criticismo também estará representado
(pela "verificação severa dos princípios pela dúvida sistemática", que
se insurge contra o dogmatismo). 3) A nova coordenação
superior do pensamento moderno reproduzirá o pluralismo da sociedade
moderna que, longe de ser uma igreja fechada "é uma larga comunhão de
inteligências e de sentimentos, fecunda na medida da sua mesma variedade e
liberdade, rica de impulsos diversos, que são outras tantas manifestações da
atividade sempre criadora da natureza humana". Assim, essa coordenação superior será caracterizada pela unidade
na variedade. 4) Por último, "a síntese do pensamento moderno,
preparada pelos filósofos, tem de ser a obra coletiva da humanidade
culta"; para isso, essa síntese não
poderá ser um grande e acabado sistema,
mas um "alto ideal comum, um princípio universal de inspiração, falando a
todas as potências da alma humana, e a cada uma na sua língua". Esse ideal será "o espírito criador da
civilização moderna". Antero termina valorizando o papel do pensamento
filosófico moderno, que se orienta a essa síntese. A propósito, afirma:
"Se definir o espírito duma civilização e torná-lo cônscio de si mesmo é a
obra essencial da filosofia, não se poderá dizer que a filosofia moderna tenha
mentido à sua missão".
Conclusão
Destaquemos,
em primeiro lugar, o posto que Antero ocupa no panorama cultural português. Eça
de Queirós, nas belíssimas páginas que dedicou ao querido amigo, salienta a
presença tutelar de Antero no pensamento português e alicerça a sua afirmação em
dois fatos: Antero, de um lado, possuía uma alma onde, na meiga e intraduzível expressão francesa, il faisait
très bom. "Por isso - afirma
Eça - todos os intelectuais, que uma vez
o encontrassem, lhe conservavam para sempre um sentimento que era misturado de
amor e não dissemelhança da devoção. E tínhamos ainda nele um confortante
orgulho, pois bem sentíamos que esse homem tão simples, com uma má quinzena de
alpaca no verão, um paletó cor de mel no inverno, vivendo como um pobre
voluntário num casebre de vila pobre, sem posição nem fama, sempre ignorado
pelo Estado, nunca invocado pelas multidões, era o elo rijo, o mais rijo elo de
fino ouro, que prendia Portugal ao mundo do pensamento. Ora uma nação só vive
porque pensa - e pelo que pensa. Cogitat - ergo est. Naquele humilde, pois, que se comprazia entre
os humildes, estava a mais larga e mais rica soma da verdadeira vida de
Portugal" [Queirós, 1970: 285]. Em segundo lugar, no sentir de Eça, Antero
representou, para o Portugal moderno, um precioso testemunho de valor humano e
moral. "Por mim penso - escreve Eça
de Queirós - e com gratidão, que em
Antero de Quental me foi dado conhecer, neste mundo de pecado e
escuridade, alguém, filho querido de
Deus, que muito padeceu porque muito pensou, que muito amou porque muito
compreendeu, e que, simples entre os simples, pondo a sua alma em curtos
versos, era um gênio que era um Santo" [Queirós, 1970: 288].
São
justamente as afirmações de Eça de Queirós as que nos permitem descobrir a
verdadeira dimensão filosófica de Antero, especialmente no ensaio analisado
nestas páginas. É importante enxergar no poeta e pensador açoriano o homem que
vive profunda e sinceramente a sua existência e que, filho da sua época, trata
de dar uma resposta ao interrogante do sentido da vida humana a partir dos
elementos filosóficos com que contava. A síntese espiritualista que Antero nos
apresenta é inseparável da sua vida e do seu martírio. Talvez por não ter
atendido suficientemente para esse aspecto, um crítico como Lúcio Craveiro da
Silva faz um juízo negativo demais sobre o nosso autor. "É verdade - frisa o citado autor - que Antero não sintetizou sistemas, mas
princípios e tendências de sistemas,
colhendo na vasta seara da filosofia moderna algumas idéias fundamentais. Mas,
se é assim, com que direito pode afirmar
ter realizado uma remodelação e síntese dessa filosofia? Por que se abandonam
uns princípios e se preferem outros? Qual o critério?
Em última análise, perdemo-nos num labirinto de círculos viciosos. Foi o que
aconteceu. Se Antero se propusesse uma simples enumeração histórica,
evidenciando os pontos de contacto, porque os há, criticando, analisando,
escolhendo, realizaria obra proveitosa, mas de crítica da história da
filosofia. Ao lermos as Tendências gerais da Filosofia na segunda
metade do século XIX, pressentimos à flor de pena este preconceito e
esta superficialidade" [Silva, 1959: 107-109].
A
obra filosófica de Antero, a sua síntese espiritualista, longe de ser como
afirma o severo crítico uma "triste réverie
dum gênio infeliz" [Silva, 1959: 138], representa, pelo contrário, a
maturidade de uma evolução pessoal à procura da resposta filosófica acerca da
questão fundamental sobre o sentido da vida humana. O critério por que pergunta
Craveiro da Silva é o da sinceridade moral de Antero, assim expressado por Eça
de Queirós: "Mas sobretudo se impunha pela sua autoridade moral. Antero
era então, como sempre foi, um refulgente espelho de sinceridade e rectidão. De
nascença a sua alma viera toda limpa e branca, e quando Deus a recebeu,
encontrou-a decerto tão limpa e branca como lha entregara" [Queirós, 1970:
261]. Em termos filosóficos, Joaquim de Carvalho expressa assim o alto ideal
moral que foi o critério inspirador do poeta-filósofo: "Em Antero, a
liberdade, ou mais propriamente a subjetividade irredutível da consciência foi,
a um tempo, a intuição e o clarão
iluminante, que eticamente lhe deu o sentimento da autonomia e
compreensivamente a noção da insuficiência de toda a explicação que não tome em
linha de conta esse dado. Consequentemente, Antero partiu da consciência viva
da sua personalidade, e a partir dela considerou as relações humanas e a
realidade natural, o que importa dizer que foi intrinsecamente idealista, quer
na maneira de estimar o conviver social, quer ainda na de considerar o mundo
natural, que só é tal pela referência à consciência pensante" [Carvalho,
1955: 235]. O próprio Antero já tinha assinalado esse norte de ideal ético à
sua obra, quando confessa, na Carta
autobiográfica, que "Morrerei com a satisfação de ter entrevisto a
direção do Pensamento europeu, o norte para onde se inclina a divina bússola do
Espírito humano, Morrerei também, depois de uma vida moralmente tão agitada e
dolorosa, na placidez de pensamentos tão irmãos das mais íntimas aspirações da
alma humana, e, como diziam os antigos, na paz do Senhor!" [Quental, 1974].
Em
que pese as limitações de Antero enquanto pensador sistemático, Joaquim de
Carvalho salienta que a essência da mensagem espiritualista do poeta-filósofo,
a sua convicção inquebrantável no valor superior do espírito humano, permanece
como uma lição preciosa para o mundo de hoje. "À sua razão e à sua
consciência - afirma o crítico português
- o homem justo aparece como o fim da
existência, e assim tinha de ser, porque o homem é o único ente que pensa e
pode elevar-se ao ideal da Humanidade, inseparável da consciência da Justiça e
do Bem" [Carvalho, 1955: 245].
Trata-se, para Joaquim de Carvalho, mais de uma filosofia inspirada pela
percepção poética e não puramente intelectual do homem, o que dá ao pensamento
anteriano uma grande proximidade às expectativas do homem contemporâneo. Foi o
coração que ditou a filosofia a Antero? - pergunta Joaquim de Carvalho.
"Responder - frisa este autor -
seria criticar, porventura até refutar. Dir-se-á poética, pela forma
como alarga a consciência e se situa na Natureza, reduzida a série de eventos
desprovidos de valor intrínseco; mas as suas repulsas são ainda as nossas
repulsas, os seus anelos, os nossos anelos, e qualquer que seja a incoerência
das idéias ou os saltos da ordem subjetiva para a objetiva, da existência para
o valor, singulariza e enobrece esta concepção da liberdade e este sentido da
moralidade o esforço para a criação espiritual de um mundo mais justo, e para a
emancipação deste desolador cativeiro de cegueiras, tradições e mecanismos, que
nos encadeiam e expulsam do nosso ser profundo e do nosso destino humano"
[Carvalho, 1955: 246].
Vejamos
agora as fontes em que se inspirou o espiritualismo anteriano e aprofundemos um
pouco no teor filosófico deste. Acerca do último ponto, Joaquim de Carvalho
inclina-se a caracterizar o pensamento de Antero como um "pandinamismo
psíquico", ou um "transcendentalismo" [Carvalho, 1955: 223;
246]. A essência desta filosofia consiste em que "pela conversão da Idéia em Espírito, confere à existência e à vida um sentido profundo, em que
a razão e o coração coincidem. A vida devém uma aspiração para o melhor, uma
ascensão íntima para a liberdade, e em face do Universo assim
espiritualizado" [Carvalho, 1955: 223-224]. O transcendentalismo de Antero, frisa Joaquim de Carvalho, "não
tem o significado kantiano nem tampouco o cartesiano e escolástico; é a
apreensão ôntica, na esfera do invisível
e do intangível, da suprema
essencialidade e valor do espírito". Trata-se, pois, da "apreensão da
existência metafísica como realidade suprema e cuja expressão conceptual se
encontra com algum desenvolvimento nas Tendências gerais da Filosofia na segunda
metade do século XIX " [Carvalho, 1955: 300-301]. Em relação às
fontes de que se nutriu a filosofia anteriana, Joaquim de Carvalho salienta que
"Antero foi um grande leitor, dispersivo, que não sistemático; atesta-o o Catálogo
da livraria de Antero de Quental, legada à biblioteca pública de Ponta Delgada
e confirmá-lo-á mais copiosamente o inventário das fontes espirituais da sua
obra. A sua curiosidade, insaciável e volúvel, associada por demais em certos
períodos ao desejo de fundamentar alguns escritos de filosofia da História ou
de pura especulação, levara-o ao contacto quase sempre superficial, com as
atitudes e com as idéias que mais rigorosamente se perfilam na história do
pensamento" [Carvalho, 1955: 310-311].
As
fontes da meditação anteriana foram, além de Hegel ("o guia principal da
reflexão de toda a sua vida", segundo Joaquim de Carvalho), Leibniz, Kant
(através de expositores como Désiré Nolen), Emílio Boutroux (na sua obra
Contingência das leis da natureza), Windelband (História da filosofia moderna),
Alberto Lange (História do materialismo), Désiré Nolen (La critique de Kant et la
métaphysique de Leibniz, histoire et théorie de leurs rapports, Paris, 1875),
Charles Rémusat (De la Philosophie allemande, Rapport à l'Académie des Sciences Morales
et Politiques précedé d'une Introduction sur les doctrines de Kant, de Fichte,
de Schelling et de Hegel, Paris, 1845) e principalmente Eduardo von
Hartmann (Gesammelte Studien und Aufsätze, 3ª edição, Leipzig; Phënomenologie
des sittlichen Rewusstseins, Prolegomena zu künfitgen Ethik, Berlim,
1879; Religionsphilosophie. Ersterhistorischkritischer Theil. Das Religiöse
Bewusstsein der Menschheit, Leipzig; Philosophie de l'Inconscient,
traduit de l'allemand, Paris, 1876) [cf. Carvalho, 1955:171-172; 312-314].
A
contribuição da obra de Eduardo von Hartmann é importante na elaboração do
pensamento anteriano, a partir da crise pessimista que sofreu o poeta e cujo
auge situa-se em 1875. Joaquim de Carvalho salienta que dois temas interessaram
ao nosso poeta no primeiro contato com o pensador alemão: "a fundamentação
do pessimismo e a concepção da religião" [Carvalho, 1955: 281-282]. No
entanto, esse primeiro contato seria indireto, através de um artigo de Léon
Dumont, publicado na Révue Scientifique. Segundo o
crítico português, neste artigo que versa sobre a filosofia do inconsciente de
Hartmann, "radica inicialmente a comoção intelectual no sentido
pessimista" [Carvalho, 1955: 290]. O influxo definitivo da obra do
pensador alemão em Antero é assim sintetizado por Joaquim de Carvalho: "A
influência de Hartmann se exerceu inicialmente, em 1872, no sentido da
fundamentação do pessimismo, e posteriormente, em 1876, na meditação duma
concepção da religião, especialmente cristã, e na descoberta, crítica, da
realidade metafísica" [Carvalho, 1955: 301]. No entanto, o influxo de
Hartmann sobre Antero, longe de revelar simples adoção passiva do pensamento
alheio por parte do poeta-filósofo, revela a inegável capacidade criativa
dele, bem como a sua orientação
filosófica. O nosso autor aprofundou no conhecimento da Filosofia do Inconsciente
do pensador alemão a partir da publicação em Paris, em 1877, da tradução
francesa. Nessa altura, frisa Joaquim de Carvalho, "Antero havia atingido
(...) o caminho do transcendentalismo, e por isso o terceiro contato com a
filosofia de Hartmann reveste acima de tudo feição subsidiária, isto é, de contributo para a elaboração pessoal do
sistema exposto sinteticamente nas Tendências gerais da Filosofia na segunda
metade do século XIX" [Carvalho, 1955: 301].
A
filosofia de Hartmann, efetivamente, não chega tão longe quanto o pensamento
anteriano na trilha do espiritualismo. O pensador alemão, na linha do idealismo
de Kant, do Fichte da primeira época e de Hegel, repudiou a idéia de Deus com
atributos de antropopatismo, quer
dizer, com caraterísticas de consciência, memória, sentimento, pensamento,
etc., como frisa Joaquim de Carvalho, "fenomenologicamente ligados à
existência de um sistema nervoso, concebendo-o, em conseqüência, sem as
limitações inerentes ao eu, como espírito
inconsciente e impessoal" [Carvalho, 1955: 307-308]. Isso equivale a afirmar, em palavras do
próprio Hartmann, que "a forma infinita
eqüivale à própria ausência de qualquer forma, e que
a consciência absoluta que se
considera necessária a Deus, é idêntica à
inconsciência absoluta" [apud Carvalho, 1955: 309].
Antero,
é certo, sofreu um forte influxo de
Hartmann. Não podemos negar que "se deixou impregnar de algumas concepções
hartmantianas" [Carvalho, 1955: 314] nos aspectos relacionados à
significação metafísica do inconsciente e ao seu ativismo cósmico, bem como à
efemeridade da consciência, ao panteísmo histórico-evolutivo e à morfologia da
ilusão de felicidade. Contudo, nas Tendências gerais da Filosofia na segunda
metade do século XIX, Antero supera definitivamente a posição de
Hartmann, ao salientar o caráter personalista do espírito em confronto evidente
com a inconsciência absoluta a que chega o filósofo alemão. Como frisa
lucidamente Joaquim de Carvalho, "Antero jamais enveredou por esta
metafísica do conhecimento; através das profundas vicissitudes e mutações do
pensamento foi sempre personalista, considerando firmemente, embora sem
meditação assídua e penetrante, a personalidade como inerente à essência do
espírito, tão firmemente que constitui até um problema de difícil, senão impossível explicação, como pôde conciliar o personalismo com a
teoria do Inconsciente como realidade psíquica independente dos graus e forma
da consciência" [Carvalho, 1955: 309-310].
A
atualidade da meditação anteriana situa-se justamente nessa dimensão de
valorização do espírito como realidade pessoal, que não pode ser reduzido a
nenhuma determinação de ordem fáctico ou exterior, que aponta para um projeto
moral de autodeterminação e que não pode ser captado só mediante a fria razão,
mas que podemos atingir unicamente através da vivência metafísica que não
exclua o sentimento. Ao fixar essa posição, bem como ao criticar o racionalismo
e o determinismo por que tinham enveredado as ciências na segunda metade do
século XIX, e ao apontar a necessidade de uma nova síntese espiritual e
personalista do conhecimento, Antero não faz mais do que prenunciar a meditação
contemporânea, que com Husserl inicia essa
espécie de saneamento filosófico, orientado no sentido de levar o homem
dos nossos dias a realizar livremente o seu ser que, para o iniciador da
fenomenologia, consiste basicamente em "realizar a razão que lhe é inata,
realizar o esforço de ser fiel a si mesmo, de permanecer idêntico a si mesmo em
tanto que racional" [Husserl, 1962:
272].
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Aracaju: Fundação Augusto Franco, pg. 81-96.
[Este Ensaio foi
publicado parcialmente nos Anais do
Colóquio Antero de Quental, publicados em Aracaju - Sergipe, em 1993, pela
Fundação Augusto Franco, pg. 81-96. O texto foi ampliado especialmente pelo
autor para o Proyecto Ensayo]
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