Neste ensaio serão desenvolvidos dois itens: I – Breve sinopse
bio-bibliográfica de Alexandre Herculano. 2 – Espírito doutrinário e romantismo
na versão de Alexandre Herculano.
I - BREVE SINOPSE BIO-BIBLIOGRÁFICA.
Alexandre
Herculano de Carvalho nasceu em Lisboa, em 28 de março de 1810, ano 3º
da invasão francesa. Os seus pais foram Teodoro Cândido de Araújo (recebedor da
Junta dos Juros e que professava idéias liberais) e Maria do Carmo de São
Boaventura (descendente de pedreiros e mestres de obras do Paço). Cursou
Herculano os seus estudos de Humanidades, preparatórios à Universidade, no
Colégio de São Filipe de Nery, dirigido pelos Padres Oratorianos, onde também
fez os seus estudos o grande pensador luso-brasileiro Silvestre Pinheiro
Ferreira (1769-1846). Impedido de frequentar a Universidade, em decorrência de
problemas de saúde do seu pai, o nosso autor viu-se obrigado a assistir a um
curso técnico, tendo-se matriculado na Aula de Comércio (que tinha sido criada
pelo Marquês de Pombal) e frequentou, na Torre do Tombo, a cadeira de
Diplomática. Essa formação recebida pelo historiador português, sem dúvida
influenciou diretamente nos rumos da sua vida intelectual, tendo herdado dos
Oratorianos o contato com as idéias neoplatônicas. O nosso autor tirou,
outrossim, da sua passagem pela Torre do Tombo, nas aulas de Diplomática, a
diuturna procura e valorização dos documentos antigos.
O agitado clima político da época foi, com certeza, outro fator que
influiu, decididamente, no perfil intelectual de Herculano. Grandes mudanças
experimentou Portugal no início do oitocentos, em decorrência da agitação de
idéias e da reformulação do panorama político europeu, ao ensejo da gesta
napoleônica e do ulterior confronto entre democratismo e monarquia, que de uma
ou outra forma se espalhou pelos países que receberam a influência cultural da
França. António Borges Coelho (1928-) sintetiza assim esse pano de fundo
histórico: "A primeira metade do século XIX é uma época
extraordinariamente fértil em acontecimentos políticos. Invasões Francesas,
fuga da Família Real, guerrilhas, regência do diplomata inglês William Carr Beresford
(1768-1854), execução de Gomes Freire de Andrade (1757-1817) e dos outros
conjurados, revolução de 1820, Constituição de 1822 (a primeira Constituição de
Portugal), Vilafrancada, carta constitucional de 1826, monarquia absoluta de
1828, revolução liberal do mesmo ano esmagada com o corolário de enforcamentos
no Porto, Aveiro e todo esse sudário descrito por Herculano nos Mártires da
liberdade" [Coelho, 1965: 9-10].
As primeiras poesias de Herculano revelam-nos um jovem inflamado pelas
idéias tradicionalistas, que o levaram a tecer elogios ao regime absolutista de
Dom Miguel I (1802-1866), em 1828. No entanto, essa etapa é curta, porque logo
a seguir, em 1829, Herculano fazia a crítica "aos tiranos". A partir
de então o nosso autor familiarizou-se com o meio social que cultivava as
idéias liberais, os salões literários, notadamente o da Marquesa de Alorna,
Leonor de Almeida Portugal (1750-1839), por cujo intermédio o nosso autor foi
estimulado a ler as obras de René de Chateaubriand (1768-1848) e Madame de
Staël (1766-1817). Que as primeiras idéias dos românticos franceses tinham
entrado cedo entre os denominados estrangeirados portugueses, fica
provado a partir da correspondência entre Dom Pedro de Souza Holstein
(1781-1850) - Duque de Palmela - com Madame de Staël, na primeira década do
século XIX [cf. Staël-Souza, 1979].
A Revolução de Julho de 1830, na França, animou sobremaneira a juventude
liberal portuguesa. O nosso autor, com a idade de 21 anos, participou, em 21 de
agosto de 1831, do levantamento do Quarto Batalhão de Infantaria. Os amotinados
foram esmagados pelas forças governamentais, com um balanço trágico: 300 mortos
e 40 fuzilados em Lisboa. Herculano conseguiu se refugiar numa fragata francesa
e fugir para Inglaterra. Embora tivesse sido curta a permanência do nosso autor
no exílio europeu (ao todo seis meses, entre 21 de agosto de 1831 e o final de
fevereiro de 1832, tendo ficado semanas apenas na Inglaterra e, depois, algum
tempo mais dilatado na França), esse período foi o bastante intenso como para
imprimir um selo intelectual indelével na restante parte da sua obra. Para os
tacanhos espíritos acostumados às benesses do turismo acadêmico é, certamente,
um período curto demais. Não assim para jovens sedentos de cultura e
interessados em compreender as intrincadas condições da sua época. Lembremos
que, por esse mesmo tempo, um jovem francês, de apenas 26 anos, parte, na
companhia de seu melhor amigo, para os Estados Unidos, onde passa nove meses,
com a finalidade de estudar o sistema penitenciário e compreender o fenômeno da
democracia americana. Desse curto período nasce, entre outras obras, a Democracia
na América, esse clássico da ciência política que ainda causa admiração
pela sua abrangência e que tornou o seu autor, Alexis de Tocqueville
(1805-1859), conhecido pelo mundo afora.
Dois importantes centros de documentação foram frequentados pelo jovem
Herculano durante a sua permanência na França: a Biblioteca Pública de Rennes,
na Bretanha, e a Biblioteca Nacional de Paris. Certamente, o publicista francês
mais lido nesse período era o todo-poderoso ministro da Instrução de Luís
Filipe I (1773-1850), François Guizot (1787-1874), cuja obra foi consultada com
entusiasmo pelo nosso autor. Daí emerge a inspiração doutrinária de Herculano,
sendo essa, sem dúvida nenhuma, a caraterística intelectual mais marcante do
seu pensamento, como teremos oportunidade de ilustrar ao longo deste ensaio.
Mas não foi apenas de Guizot que o nosso autor recebeu influência.
Também foi moldada a sua inteligência pelo espiritualismo de Pierre-Paul
Royer-Collard (1763-1845), através do ecletismo espiritualista de Victor
Cousin (1792-1867), que possibilitaria estabelecer uma ponte mediadora entre o
empirismo lockeano e a filosofia transcendental de Immanuel Kant (1724-1804).
Além da inspiração neoplatônica, recebida dos seus mestres Oratorianos,
Herculano foi tributário das idéias de Georg W. Hegel (1770-1831), muito
provavelmente não de maneira direta, mas, como em Guizot, tendo recebido essa
influência através de Victor Cousin, de forma a considerar "a história,
desde as formas elementares do mundo inanimado até às realizações mais perfeitas
da humanidade, que são os heróis, como o desenvolvimento progressivo da Idéia
ou Razão divina. Cada século e cada época encarna uma idéia, ou melhor, uma
fase da Idéia" [Saraiva, 1977: 49]. Junto com o hegelianismo, o nosso
autor recebeu embalada a idéia de progresso, que o filósofo alemão, por sua
vez, tinha haurido nas obras de Giambattista Vico (1668-1744) e Carl von Savigny
(1779-1861).
Outra importante vertente do pensamento francês, com a qual o nosso
autor se familiarizou, nas suas leituras realizadas em Rennes e Paris, foi a do
cristianismo liberal representado pelo grupo do jornal Avenir, que
apareceu em Paris, em 1830, sob a orientação de Hugo Felicité de Lamennais
(1782-1854), com a finalidade de conciliar a vivência cristã com os ideais da
revolução burguesa, apregoando a separação da Igreja em relação ao Estado e
defendendo a conquista da Liberdade também para o proletariado. Na conhecida
obra de Lamennais intitulada: Essai sur l'Indifférence en matière de
Réligion, era defendida, contra a visão apologética tradicional, a
existência de um senso comum da humanidade que, à maneira de uma religião
civil, transpareceria, ao longo da história, na legislação, nos costumes e nas
crenças dos vários povos. Sem dúvida que estas idéias, de corte epistemológico
tradicionalista, contribuíram a moldar a desconfiança de Herculano em face dos
sistemas racionalistas de pensamento, bem como na sua crítica aos excessos
perpetrados pela Ilustração, em nome de uma razão abstrata.
Vale a pena destacar um aspecto das influências recebidas, no que tange
à concepção da historiografia. Além da principal obra de Guizot, as Lições
sobre a História da Civilização na Europa (1828), o nosso autor leu a obra
de Augustin Thierry (1795-1856), as suas conhecidas Lettres sur l'Histoire
de la France (1827). Vejamos a forma em que o principal historiador
da formação de Herculano, Antônio José Saraiva (1917-1993), ilustra as
influências recebidas desses dois autores, destacando a particular forma em que
eles focalizam a história, lida do ponto de vista da responsabilidade das
classes médias burguesas:
"Herculano chegava à França na época da grande voga dos estudos
históricos de Thierry e Guizot, que davam a perspectiva histórica da revolução
burguesa pela qual ele se estava batendo. Thierry oferecia (...) a história do
Terceiro Estado, que fizera a revolução. Reconstitui as suas humildes origens
nos municípios que reerguem as muralhas derrocadas pela passagem dos bárbaros
invasores, se defendem contra a rapina dos senhores feudais e dos reis,
arrancam pela insurreição as cartas de foral, acolhem os servos fugitivos,
elegem os seus magistrados, se educam na liberdade e no trabalho. O Terceiro
Estado concluíra, enfim, a sua obra derrubando as muralhas da Bastilha. Thierry
abre desta maneira na história, dentro do impulso do século XVIII, a
perspectiva da marcha das maiorias para a riqueza e a liberdade; e chama a
atenção para as lutas de classes através das quais se realiza o progresso. A
França, diz ele, não é uma nação, mas duas nações irreconciliáveis, uma das
quais acabará por esmagar a outra. E na história de Portugal, saudando a
revolução portuguesa de 1820, mostrava Thierry os antigos antecedentes da
classe média resistindo à aristocracia e manifestando-se nas cortes. Recordava
a este propósito a frase de Madame de Staël: La liberté est ancienne; seul
le despotisme est moderne. Opondo a classe burguesa, produtora de riqueza,
aos privilegiados feudais, que vivem de um imposto lançado sobre o trabalho,
Thierry desenvolve, retrospectivamente, a apologia da produção que se encontra
nas obras de Saint-Simon (1760-1825), de quem fora secretário. Mas já Guizot
sugere outra visão da história. Também ele (...) se ocupa do Terceiro Estado e
da sua ascensão; mas as lutas de classes assumem, no seu quadro histórico, o
aspecto de lutas de princípios: o princípio da unidade
personificado no Papado, o princípio democrático representado pelas
comunas, o princípio da liberdade introduzido pelos bárbaros. E a
Providência executa, por intermédio deles, o seu plano sobre a Terra, sem que
os homens se deem conta da obra em que trabalham, como operários que realizam,
separadamente, as diferentes peças de uma máquina cujo projeto desconhecem. É
sobretudo com base nesta preparação cultural, tentando aplicar os princípios
gerais da renovação filosófica, da renovação religiosa e da reforma
econômico-social consciencializada pelos historiadores, que Herculano enfrenta
os problemas da reconstrução moral da sociedade portuguesa, imposta pela queda
do antigo regime. Tais problemas constituem a sua principal preocupação de 1834
a 1843, isto é, entre o fim da guerra civil e a preparação da História de
Portugal" [Saraiva, 1977: 51-52].
Em fevereiro de 1832 o nosso autor embarcou de regresso à Ilha
Terceira, formando parte do corpo expedicionário de 7.500 homens que, em 8 de
julho do mesmo ano, desembarcaram no Mindelo. Herculano era o soldado de número
99 da 3ª Companhia de Voluntários da Rainha. Participou na linha de
frente da guerra civil que se seguiu. Antes de terminar o conflito, vemos o
nosso autor, liberado do serviço militar e transformado em pesquisador que
trabalha, incansavelmente, na busca de fontes primárias da história portuguesa.
Na qualidade de 2º bibliotecário da Biblioteca Pública do Porto
(criada por essa época com os fundos da livraria do Bispo), Herculano percorreu
as bibliotecas monásticas do norte de Portugal, na busca de documentos que
possibilitassem a reconstrução da gesta portuguesa, um trabalho sem dúvida
inspirado no ofício de historiador que Guizot expõe detalhadamente na sua obra.
Ainda na cidade do Porto, no ano de 1835, o nosso autor colaborou no jornal O
Repositório Literário, órgão da Sociedade das Ciências Médicas e da
Literatura.
Mas o democratismo de inspiração rousseauniana e jacobina estava em
ascensão em Portugal. A Revolução de Setembro de 1836 que restaurou a
Constituição de 1822, foi considerada, pelo nosso autor, como um lamentável
retrocesso. O seu ensaio intitulado: A Voz do Profeta, testemunha o
descontentamento de Herculano para com a "populaça" em ascensão.
Nesse mesmo ano pediu demissão do seu cargo público no Porto e regressou a
Lisboa, onde se engajou na luta contra o setembrismo. Herculano, como
aliás o seu inspirador, Guizot, era um liberal moderado. O jovem escritor era
um cartista que defendia entusiasticamente a posição de Dom Pedro IV
(1798-1834), inimigo declarado do modelo absolutista ensejado pelo miguelismo,
bem como do democratismo. Sem emprego, o nosso autor aceitou, em 1837, a
redação de O Panorama, semanário ilustrado, editado pela Sociedade
Propagadora dos Conhecimentos Úteis. Aderiu, em 1838, à nova Constituição, que
representava um modelo de transição entre o democratismo da Carta de 22 e as
tendências moderadas. Nesse mesmo ano, Herculano publicou a primeira edição das
suas poesias, sob o título de: A Harpa do Crente.
Em 1839, o nosso autor foi nomeado, pelo rei Dom Fernando II (1816-1885),
Diretor das Bibliotecas Reais da Ajuda e das Necessidades. Nessa nova posição,
o jovem historiador, que então contava com 29 anos, pôde se dedicar às
pesquisas históricas. Ao longo da década de 1840, o nosso autor firmou a sua
vocação de historiador e escritor, com os seus Apontamentos para a história
dos bens da Coroa e dos Forais, com os romances Eurico, o Presbítero
e O Pároco da Aldeia e com os dois primeiros volumes da História de
Portugal. Em 1840, por interferência de Rodrigo Magalhães, ministro do
Reino, o nosso autor foi eleito deputado pelo círculo eleitoral do Porto. A sua
breve passagem pelo Legislativo traduziu-se em duas iniciativas: o nosso autor
combateu o projeto de lei que criava um depósito bancário para a fundação de
jornais (medida decerto restritiva à liberdade de imprensa); de outro lado,
como já fizera Guizot na França, o jovem deputado preparou um projeto de
reforma do ensino popular. Nessas empreitadas, contou com a colaboração de
alguns amigos como António Luis de Seabra (1798-1895), António de Oliveira
Marreca (1815-1889) e Vicente Ferrer Neto Paiva (1798-1886), que se destacou
por ser um dos filósofos de inspiração krausista que mais influenciou na
renovação das idéias jurídicas em Portugal.
Ao ensejo da restauração da Carta de 1842 por António Bernardo da Costa
Cabral (1803-1889), o nosso autor retirou-se da cena política, não tendo
aceitado o convite formulado pelo chefe do Estado para que ocupasse o cargo de
Inspetor Geral dos Espetáculos, de que João Baptista de Almeida Garrett
(1799-1854) tinha sido afastado. Dedicou-se Herculano, ao longo destes anos, às
suas pesquisas históricas. Em 1850 publicou o terceiro volume da História de
Portugal, tendo desencadeado a reação do clero conservador. Em ensaios
contundentes, o nosso autor defendeu a sua obra, como nos intitulados: Eu e
o Clero, Solemnia Verba e no prefácio à História da origem e do
estabelecimento da Inquisição em Portugal (cujo primeiro volume apareceria
depois, em 1853). Em 1844, o nosso autor foi admitido na Academia, na
qualidade de sócio correspondente. Nesse mesmo ano traçou os lineamentos gerais
de uma obra que ficou inédita, intitulada: Estudos sobre a Idade Média
Portuguesa, na qual, à maneira de Thierry, pretendia revolucionar a
historiografia nacional.
Mas Herculano, doutrinário por vocação, não se limitou à vida
intelectual. Participou ativamente, em 1850, do protesto dos intelectuais
contra a denominada "Lei das Rolhas", que constituía um atentado contra
a liberdade de imprensa. Na sua casa, no ano seguinte, realizaram-se as
reuniões dos oposicionistas que levaram à queda de Costa Cabral, ao ensejo do
golpe de estado que deu início à denominada Regeneração. Mas a situação
política não se estabilizou com a ascensão do novo governo, de que
participaram, inicialmente, alguns dos seus amigos. Desiludido com os rumos
pouco liberais do governo emergido da Regeneração, o nosso autor passou
a participar ativamente da oposição, através dos seus artigos nos jornais O
País e O Português. Em 1853 candidatou-se, pela oposição, às
eleições municipais, tendo sido eleito presidente da Câmara Municipal de Belém.
Aos poucos, o nosso autor converteu-se no porta-voz mais destacado da média
burguesia rural. Naquele mesmo ano, publicou o primeiro volume da História
da origem e estabelecimento da Inquisição em Portugal. Fundou, em 1856, o
Partido Progressista Histórico, tendo participado de sua direção. Em 1857
combateu a Concordata com a Santa Sé. Em 1860, como membro da Comissão Revisora
do Código Civil, propôs a introdução, em Portugal, do casamento civil,
tendo sido atacado duramente pelo clero. Herculano defendeu-se numa série de
artigos contundentes que publicaria mais tarde sob o título de: Estudos
sobre o casamento civil. A atividade intelectual do nosso autor foi
bastante intensa, ao longo da década de 1850. Além dos trabalhos já
mencionados, no ano de 1853 apareceu o quarto volume da História de Portugal.
Entre 1853 e 1854 preparou a edição dos documentos medievais portugueses dos
séculos XII e XIII, sob o título de: Portugaliae Monumenta Historica. Em
1853, a sua História de Portugal recebeu da Universidade um elogio
oficial, de que foi relator o seu amigo Vicente Ferrer Neto Paiva. Em 1859, foi
publicado o último volume da História da Inquisição.
Presença tão destacada no universo cultural e político português do
período, conferiu ao nosso autor a auréola de liderança cívica que todos
reconheciam, até críticos como Teófilo Braga (1843-1924) que, na sua História
do Romantismo, escreveu o seguinte: "Nunca ninguém exerceu um poder
tão grande, na forma a mais espontaneamente reconhecida; as opiniões
entregavam-se à sua afirmação, como um povo se entrega a um salvador"
[apud Coelho, 1965: 16]. Privava o nosso autor da amizade de Dom Pedro V
(1837-1861), mas não quis aceitar as benesses e distinções que lhe foram
oferecidas, como a nomeação de par do Reino, a condecoração com a ordem Torre e
Espada e a regência de uma cadeira no Curso Superior de Letras. Em 1867,
Herculano casou-se com Hermínia Meira (nascida em 1815), que conhecia desde a
sua infância. Instalou-se, a partir desse tempo, na sua Quinta de Vale de
Lobos, que tinha adquirido em 1859 com os recursos gerados pelas suas publicações.
Afirmando que dava por terminada a sua carreira literária dedicou-se,
nos anos seguintes, à vida agrária. O Imperador do Brasil, Dom Pedro II
(1825-1891), foi lá visitá-lo. Mas o velho doutrinário não podia deixar de
refletir sobre as realidades da sua época. Desse período datam alguns escritos
seus muito significativos, como a correspondência com Joaquim Pedro de Oliveira
Martins (1845-1894) e as suas críticas às decisões do Concílio Vaticano I,
reunido em 1869-1870. Em 1873, Herculano começou a publicar os seus escritos
avulsos, que tinham anteriormente aparecido na imprensa, sob o título de Opúsculos.
Esta obra, em dez volumes, terminou de ser editada, postumamente, em 1908.
Defensor intransigente da propriedade rural, o nosso pensador, no entanto,
mostrou-se sensível à sorte dos camponeses da sua região, que lhe renderam
sentida homenagem quando da sua morte, ocorrida em 13 de setembro de 1877.
II-ESPÍRITO DOUTRINÁRIO E ROMANTISMO NA VERSÃO DE ALEXANDRE
HERCULANO.
Nesta segunda parte da minha exposição farei uma análise sucinta dos
principais aspectos que integram a concepção doutrinária e romântica de
Herculano. Serão desenvolvidos os seguintes itens: 1) A crise em Portugal,
segundo Herculano e a geração romântica; 2) A fundamentação da moral na
religião; 3) A concepção religiosa do homem; 4) Concepção religiosa da história
e da política; 5) O liberalismo de Herculano; 6) Crítica à filosofia incrédula;
7) Paralelo do romantismo de Herculano com a versão romântica de Domingos
Gonçalves de Magalhães (1811-1882).
A obra de Herculano insere-se no amplo contexto do romantismo europeu,
em cujas origens remotas, segundo António José Saraiva, está o progresso econômico,
político e social da burguesia e cujo desfecho identifica-se com as
conseqüências da grande revolução industrial que, desde 1850, transformou
totalmente a vida na Europa. A função que o escritor romântico passa a
desempenhar, no seio da sociedade européia dessa época, é de grande
importância, porquanto as camadas sociais em ascensão procuram uma
identificação plástica dos seus ideais, através das obras literárias [cf.
Saraiva, 1976: 729-730].
1 - A crise de Portugal, segundo Herculano e a geração romântica.
A obra de Herculano deixa transluzir a crise que atingia Portugal no
século XIX. A intelectualidade dedicar-se-ia a denunciar essa crise e a
analisá-la desde diferentes ângulos. Segundo Joaquim Veríssimo Serrão (1925-),
"o último terço do século XIX eleva-se, no caso português, como época de
profunda crise política, econômica e ideológica. Mas, por mais paradoxal que
pareça, não o foi no domínio da cultura, dado que algumas das maiores figuras
do pensamento nacional puderam então erguer a sua obra, para o que basta citar
Antero de Quental (1842-1891), Teófilo Braga (1843-1924), Oliveira Martins
(1845-1894), Abílio Manuel Guerra Junqueiro (1850-1923), Alberto Sampaio (1841-1908)
e outros" [Serrão, 1977: 18].
A reflexão da intelligentsia portuguesa sobre a crise do país,
teve a sua maior manifestação nas chamadas Conferências Democráticas que se
efetuaram em Lisboa nos meses de maio e junho de 1871, com os objetivos de
"ligar Portugal com o movimento moderno, fazendo-o assim nutrir-se dos
elementos vitais de que vive a humanidade civilizada; procurar adquirir a
consciência dos fatos que nos rodeiam na Europa; agitar na opinião pública as
grandes questões da Filosofia e da Ciência moderna; estudar as condições de
transformação política, econômica e religiosa da Sociedade portuguesa"
[apud Serrão, 1977: 20].
O manifesto de convocação às Conferências Democráticas foi
assinado por homens de variada formação como Antero de Quental, Teófilo Braga
(1843-1924), Eça de Queirós (1845-1900), Manuel de Arriaga (1840-1917) e
Germano Meireles (1842-1877), todos antigos estudantes de Coimbra; Augusto
Fuschini (1843-1911) e Augusto Soromenho (1833-1878), professores do Curso
Superior de Letras, etc. Segundo Antero, a crise de Portugal repousava, toda
ela, no absolutismo que vingara na Península Ibérica desde o século XVI.
Veríssimo Serrão sintetiza assim a análise anteriana: "Que razões
profundas haviam levado a Península, condutora dos destinos europeus até o fim
do século XVI, a ser ultrapassada por outras monarquias, como a França e a
Inglaterra? Para o notável pensador, o absolutismo, como marca política que
assentava na aliança do Poder real e da Igreja de formação tridentina, esgotara
as energias medievais das nações hispânicas, já de si depauperadas pelo esforço
colossal da expansão ultramarina. Dando-se à propagação de um ideal
civilizador, que impunha uma política de conquistas e uma forte ambição
comercial, a Espanha e Portugal tinham-se visto a braços com o desapego da vida
rural e do trabalho útil, deixando de produzir a riqueza indispensável ao seu
fortalecimento. Tal fato explicava a crise que atingira a Ibéria no último
quartel de quinhentos: em Portugal, com o termo do reinado de D. Sebastião (1554-1578)
e a perda da independência; em Espanha, com o desastre da Invencível Armada e a
morte de Filipe II (1527-1598)" [Serrão, 1977: 21].
Qual foi a fórmula receitada por Antero para superar a crise que
avassalava Portugal? Posto que os males presentes provinham da fixação no
passado, mediante uma educação baseada nele, tratava-se, agora, de romper
virilmente com esse mesmo passado. Diz Antero a respeito: "Dessa educação
que a nós mesmos demos durante três séculos provêm todos os nossos males
presentes. As raízes do passado rebentam por todos os lados do nosso solo;
rebentam sob a forma de sentimentos, de hábitos, de preconceitos. Gememos, sob
o peso dos erros históricos. A nossa fatalidade é a nossa história. (...). Que
é pois necessário para readquirirmos o nosso lugar na civilização? Para
entrarmos outra vez na Europa culta? É necessário um esforço viril, um esforço
supremo; quebrar resolutamente com o Passado. Respeitemos a memória dos nossos
avôs, mas não os imitemos..." [apud Serrão, 1977: 22]. Para Herculano,
como para Antero, a crise de Portugal, no século XIX, baseava-se no teocratismo
de inspiração absolutista que predominava, sufocando as liberdades individuais
e locais. Herculano vai até as raízes do absolutismo luso, analisando, na sua História
de Portugal, as origens do fenômeno na Península Ibérica. Adotando o rico
conceito weberiano de dominação patrimonial ou patrimonialismo,
podemos frisar que Alexandre Herculano consegue ilustrar, de maneira muito clara,
a forma que assumiu em Portugal o exercício do poder como propriedade
particular do príncipe, que é a nota caraterística do patrimonialismo.
Herculano salienta o fato de que, a partir de 1097, consolidou-se, em
Portugal, o exercício do poder como bem particular e hereditário do príncipe.
Eis as suas palavras a respeito: "Casando sua filha Teresa (1080-1130) com
Henrique de Borgonha, (1066-1112), Affonso VI (1047-1109) não se limitou a
entregar a este o governo da província portucalense, com a qual já frequentemente
se confunde, nos monumentos dessa época, o distrito conimbricence e o de
Santarém, debaixo do nome comum de Portugal. As propriedades regalengas, isto
é, do patrimônio do rei e da coroa, passaram a ser possuídas, como bens
próprios e hereditários, pelos dois consortes. Assim, o cavaleiro francês, que
viera buscar na Espanha uma fortuna mais brilhante do que poderia esperar na
pátria, viu realizadas as suas esperanças, porventura além daquilo que
imaginara" [Herculano, 1914: II, 19-20]. O predomínio dos interesses
particulares dos governantes na estrutura política, fenômeno típico do
patrimonialismo, é assim ilustrado por Herculano, referindo-se à história
portuguesa do século XI: "Mas, em realidade, cada um dos personagens que
figurava naquele drama, quer príncipes, quer senhores, só pensava em tirar das
desgraças públicas a maior vantagem possível. As alianças faziam-se e
desfaziam-se rapidamente; porque nenhuma sinceridade havia no procedimento dos
indivíduos. Os interesses particulares dos nobres e prelados cruzavam-se com as
questões políticas e modificavam-nas diversamente" [Herculano, 1914: II,
65-66].
A própria batalha de Ourique (1139), definida por Herculano como "a
pedra angular da monarquia portuguesa", porquanto a partir dessa vitória sobre
os sarracenos os soldados aclamaram monarca o moço príncipe Affonso Henriques
(1109-1185), é considerada por ele como uma "audaz empresa do príncipe dos
portugueses", na qual tomaram parte os cavaleiros vilãos dos diversos
conselhos, ou dos distritos, obrigados pelas suas cartas de foral. Esse tipo de
obrigação para colaborar na "obra do príncipe" é já uma marca
bastante definida da índole patrimonial que revestia o exercício do poder no
seio da nascente monarquia portuguesa. Herculano salienta um fato que
contribuiu, decisivamente, para o progressivo acúmulo de poderes nas mãos dos
monarcas, na Península Ibérica: ao longo dos séculos X e XI vai se abandonando,
progressivamente, o direito eletivo dos visigodos em matéria de sucessão e vai
se substituindo "por uma espécie de direito consuetudinário", baseado
na preservação de uma herança patrimonial de pai para filhos. Assim foi como o
principado de Portugal veio a cair nas mãos de um príncipe estrangeiro, Dom
Henrique de Borgonha, ao casar com Teresa, a filha de Afonso VI [cf. Herculano,
1914: I, 218-228; II, 19-20].
O poder patrimonial do príncipe reforçou-se em Portugal, segundo
Herculano, graças à interferência do poder papal, originando assim a tendência
ao absolutismo católico que tantos males causou ao País ao longo dos séculos
XVIII e XIX. Ele relata, pormenorizadamente, a forma em que foi adotado o poder
de interferência do Papa em Portugal, no século XI, por parte de Affonso
Henriques, que pretendia reforçar o seu próprio poder, contra as tradições
visigóticas em que apoiava a sua soberania o rei de Aragão, Afonso I
(1073-1134). Eis o relato de Herculano: "É indubitável que as instituições
da monarquia de que Portugal fizera até então parte contradiziam a sua
separação perfeita e absoluta; era, portanto, necessário anulá-las por uma
jurisprudência superior a elas. O povo a cuja frente Afonso I se achava não
tinha, nem podia ter, um direito público diferente do leonês: este era o mesmo
dos visigodos, segundo o qual a existência política do rei dependia em rigor da
eleição nacional; e, na verdade, havia muitos anos que o jovem príncipe recebia
dos seus súditos o título de rei, posto que nenhum ato nos reste de uma eleição
regular. Mas isto não era bastante para destruir as leis góticas que se opunham
à desmembração da monarquia, apesar de alguns abusos anteriores. Assim, com um
direito político assaz disputável, numa época em que a força resolvia mais do
que nunca a sorte dos povos e dos imperantes e, sendo possível, ou antes
provável, que, renovada a luta da independência, Portugal, ainda em débil
infância, viesse ou cedo ou tarde a sucumbir, como sucedera à Navarra, só
colocando o seu trono à sombra do sólio pontifício, Affonso Henriques podia
torná-lo sólido e estável. À supremacia que em geral o sumo pastor exercia
sobre as monarquias cristãs, associava-se a idéia de que na Espanha tinha a sé
romana um domínio particular e imediato, e por isso, uma vez que ela se
declarasse protetora do novo estado, a existência individual deste estribava-se
numa jurisprudência política superior às mesmas instituições visigóticas"
[Herculano, 1914: II, 189-190].
O ingresso da política portuguesa no seio do pensamento teocrático
iniciou-se, então, a partir da decisão de Affonso Henriques de reconhecer a
doutrina da tutela papal desenvolvida por Gregório VII (1015-1085). Herculano
termina assim o relato do fato, assinalando as conseqüências políticas e
espirituais que se seguiram para a Coroa portuguesa: "Partindo do
pensamento teocrático predominante na cristandade, Affonso Henriques, apenas
assentada a paz de Zamora, tratou de iludir as conseqüências dela que lhe
podiam ser de futuro desfavoráveis, apelando para a doutrina de Gregório VII e
reconhecendo que ao pontífice pertencia o sumo império dos Estados cristãos da
Península. (...). As condições desta homenagem eram que os seus sucessores
contribuiriam sempre com igual quantia (censo anual de quatro onças de ouro) e
que ele rei, como vassalo (miles) de São Pedro e do Pontífice, não só em
tudo o que pessoalmente lhe tocasse, mas também naquilo que dissesse respeito
ao seu país e à honra e dignidade do mesmo país, achasse auxílio e amparo na
Santa Sé, não reconhecendo domínio algum eminente, eclesiástico ou secular, que
não fosse o de Roma na pessoa do seu legado. (...). Assim, mediante o censo
prometido e por aquele testemunho de obediência e submissão, Lúcio, na
qualidade de sumo pastor, lhe prometeu que ele e seus sucessores, como
herdeiros do príncipe dos Apóstolos, dariam bênçãos e proteção material e
moral, com que, fortes contra os inimigos visíveis e invisíveis, resistissem
aos seus adversários e obtivessem na morte a recompensa da vida eterna"
[Herculano, 1914: II, 192-194].
À adoção da tutela papal para ver garantido o poder patrimonial do
monarca veio juntar-se, no século XV, a inspiração das leis portuguesas no
direito romano. Até na historiografia revelar-se-ia o "amor exagerado
pelas coisas romanas". Com veemência escreve Herculano a respeito: "O
primeiro escritor, conhecido por nós, que usou da palavra lusitani para
designar os portugueses, foi o desgraçado bispo de Évora Dom Garcia de Meneses
(morto em 1481), vítima desse mesmo amor exagerado das coisas romanas que fez
triunfar o poder absoluto de Dom João II (1455-1495) da organização política da
Idade Média, e que, em literatura, levava aquele prelado a dar aos compatrícios
o nome coletivo de uma porção de tribos célticas da antiga Espanha"
[Herculano, 1914: I, 38].
Além do progressivo esquecimento do direito visigótico e da adoção da
tutela papal, outra causa veio a contribuir ao avanço do absolutismo em
Portugal: a influência árabe. No longo período que vai desde 709 até 1490, os
cristãos lutaram, constantemente, contra os sarracenos na Península Ibérica,
adotando muitos elementos da cultura muçulmana, especialmente no relacionado
com a forma de exercício do poder político. A concentração dos poderes
militares, judiciais e administrativos numa só cabeça, esse era o traço
fundamental da política sarracena, e esse estilo foi rapidamente copiado pelos
cristãos, não só por razões de segurança, num meio em que a guerra era a
constante e a paz a exceção, mas também para garantir a continuidade das
próprias conquistas [cf. Herculano, 1914: I, 161-170].
Herculano reconhece, assim, a ausência de feudalismo na Península
Ibérica, bem como a inclinação dela, num primeiro momento, para a progressiva
desmembração (com o surgimento dos que Weber denomina de "senhores
patrimoniais locais") [cf. Weber, 1944: IV, 131] e, num segundo momento,
para a consolidação do absolutismo monárquico de tipo patrimonial, capaz de
cooptar todos os demais poderes. A respeito, frisa o historiador: "Antes
de acabarem as guerras do emir de Toledo, Fernando I (1016-1065), achando-se
bastante enfermo, voltou a Leão, onde, agravando-se a doença, faleceu nos fins
de dezembro do ano de 1065. Já anteriormente, seguindo as pisadas de Sancho o Maior
(994-1035), o rei leonês tinha determinado num concílio ou cortes a forma por
que todos os seus filhos deviam herdar cada qual uma porção dos vastos estados
que lhes legava. Estas divisões, contrárias ao disposto no código visigótico, o
qual, no mais, se conservava geralmente em vigor, tinham origem, quanto a nós,
não tanto no amor excessivo dos príncipes para com seus filhos, como nas
circunstâncias que haviam acompanhado o crescimento da monarquia fundada por
Pelagio (350-423). A rápida narração que temos feito basta para se conhecer que
essa monarquia, depois de se dilatar por certa extensão do território, tendia
constantemente a desmembrar-se em pequenos principados. Cada conde ou
governador de distrito, tendo necessariamente, em virtude do estado de guerra
contínua, juntos em suas mãos todos os poderes militares, judiciais,
administrativos, era quase um verdadeiro rei, e nada mais fácil do que
esquecer-se de que lá ao longe, para o lado das montanhas das Astúrias, havia
um homem superior a ele. Sem existir o feudalismo, causas análogas às que o
tinham gerado no norte da Europa atuavam na Espanha, e estas causas, mais fortes
nos distritos da fronteira árabe, onde a energia dos respectivos condes devia
ser maior e o seu poder mais ilimitado, faziam com que aí as rebeliões fossem
mais freqüentes e algumas coroadas de bom sucesso, como sucedeu, primeiro com a
Navarra ao oriente, depois com Castela no centro, e por último com Portugal, ao
ocidente. Palpando, por assim dizer, esse espírito de desmembração, que nascia
da força das coisas, depois que os estados cristãos adquiriram pela conquista
mais remotos limites, Fernando Magno procurou que as tendências de separação,
em vez de aproveitarem a estranhos, revertessem em proveito dos membros da sua
família, e que se assim evitassem as lutas civis, cedendo a essas tendências em
vez de tentar, talvez inutilmente, reprimi-las". [Herculano, 1914: I,
233-234].
2 - A fundamentação da moral na religião.
Herculano concebe a sua obra literária e no campo do ensaio, como uma
grande campanha para a reconstrução moral da sociedade portuguesa, abalada
pelas lutas entre os proprietários rurais aliados à agiotagem (o partido
cartista ao qual estava filiado ele e que contava com a influência do Paço, das
prerrogativas régias e da limitação censitária do voto) e a pequena burguesia
industrial (o partido setembrista, que contava com o apoio das maiorias
eleitorais urbanas). Essa luta situa-se no período de 1835 a 1844 [cf. Saraiva,
1976: 170; Serrão, 1977: 68].
No contexto da luta entre as facções políticas que se digladiavam na sua
época, Herculano enxerga um mal profundo, comum aos políticos que nelas
militavam: a hipocrisia, que é caracterizada por ele nestes termos: "Na
maioria das sociedades atuais falta geralmente aos homens públicos o valor não
só para ousar o bem, mas, até, para praticar francamente o mal. Deste fato
psicológico, que assinala as épocas de profunda decadência moral, deriva
principalmente a hipocrisia: a hipocrisia, que é a anemia da alma. A altivez
insolente do poder que se coloca acima do decente e do legítimo e que ri das
invectivas da opinião indignada, como de um clamor sem sentido"
[Herculano, 1914: I 13-14]. O nosso autor junta a esta crítica contra o
comportamento hipócrita dos poderosos, uma outra dirigida contra o materialismo
reinante na sociedade, que produz a desagregação dela e a morte do espírito.
Nas suas Composições várias, o historiador escreve: "A
incredulidade ameaçada de desterro nas regiões onde, por mais de cinqüenta anos
imperava como rainha, faz-se fabril e bucólica; senhoril e disputadora ainda há
pouco, torna-se rude, bestial e grosseira", porque "o materialismo
pouco a pouco expulso do meio daqueles que primeiro recebem as inspirações de
uma civilização progressiva vai aninhar-se nas tabernas, nos prostíbulos e, o
que é de sentir, nas choupanas colmadas. Em mais duma, quando a desventura se
assenta ao pobre lar camponês, este que dantes se abrigava na resignação, no
orar, no derramar lágrimas aos pés da cruz, procura agora o esquecimento na
embriaguez, o remédio da miséria no roubo e até a salvação no suicídio"
[apud Beirante, 1977: 81].
A luta política de Herculano é em prol da fundamentação da conduta
humana e da moral na religião, a única que pode, segundo ele, dar base estável
ao agir do homem. Essa fundamentação entrou em crise na Revolução Francesa, que
desconheceu, sumariamente, a tradição e tornou-se impossível nos sistemas
filosóficos que, inspirados no racionalismo ou no sensualismo, esbarraram em
contradições internas insuperáveis [cf. Saraiva, 1977: 58/63]. O fato
religioso, no qual Herculano procura basear a moral, é fundamentado mediante
argumentos que tentam mostrar a sua objetividade histórica. "Buscada deste
modo a certeza - escreve Herculano -, a vitória do cristianismo é infalível:
ele repousa em provas históricas de indubitável autoridade, porque, além da sua
clareza e força, não contradizem a razão nem a consciência" [Herculano,
1914: III, 201]. Contudo, Herculano não cai no tradicionalismo de Lamennais, ao
basear a credibilidade do cristianismo não na autoridade como única fonte de
verdade religiosa, mas em argumentos de caráter histórico. No entanto, segundo
reconhece Saraiva, não deixa de haver contradição no pensamento do historiador
português neste ponto, porquanto embora rejeite a tradição como fonte de
credibilidade, "afirma-se tradicionalista porque a razão principal da sua
campanha religiosa é de ordem sociológica: a necessidade de conservar
determinados símbolos e expressões afetivas da vida coletiva capazes de manter
a coesão e a moralidade pública" [Saraiva, 1977: 74].
Esse tradicionalismo de ordem sociológica reflete-se no seguinte texto
de Herculano, em que patenteia a sua valorização do cristianismo como religião
que alivia ao homem na busca do sentido para o seu destino e a sua felicidade:
"Creio em ti (Cristianismo), porque a tua moral é sublime (...), porque
nos explicaste como os destinos do homem se compensavam além do sepulcro (...),
porque só tu soubeste revelar a consolação à extrema miséria sem horizonte e os
terrores à completa felicidade sem termo" [apud Beirante, 1977: 81]. De
outro lado, a índole liberal de Herculano salta à vista aqui: acredita no
cristianismo porque ele resolve o problema do sentido do agir do homem. Não se
trata, em momento algum, da crença numa religião por ela mesma, mas em função
de um projeto humanístico: dar sentido à vida do indivíduo e salvá-lo da
destruição a que foi conduzido pelo filosofismo e pelo teocratismo.
Essa religiosidade humanística herculaniana, de cunho nitidamente
liberal-doutrinário, é salientada por Cândido Beirante, que ao se referir à
supremacia dada por Herculano à religião, afirma: "A prioridade absoluta
ou superioridade da religião é triplamente apontada por Herculano.
Primeiramente, pela imutabilidade dos seus preceitos. A este respeito é de
notar o combate encarniçado que Herculano conduzirá, mais tarde, contra o neocatolicismo
por causa dos novos dogmas: o da Infalibilidade pontifícia e o da Imaculada
Conceição. A superioridade da religião assenta, em segundo lugar, no fato de
ela aceitar e explicar cabalmente a condição humana: corpo e alma ou
misto de miséria e de grandeza. Em terceiro lugar, é superior, dado que
impõe uma moral exigente como condição para a salvação individual. Em 1841,
Herculano dissera o mesmo: O Evangelho é mais claro e preciso que os
volumosos escritos de todos os moralistas filósofos desde Platão até Kant: a
moral que não desce do céu nunca fertilizará a terra" [Beirante, 1977:
80-81]. Em suas Composições várias, Herculano explica a ênfase
social dada por ele à religião, nestes termos: "a religião é, pois, uma
necessidade social, já que ela é o fundamento da moral e esta é o suporte da
sociedade civilizada. Eis claramente exposto o sentido último da apologia do
Cristianismo: tomaremos a defesa da religião porque sem ela não há civilização,
não há bons costumes e sem estes não só a liberdade não é possível, mas nem
sequer a sociedade" [apud Beirante, 1977: 81].
Fundamentada a conduta humana no fato religioso cristão, na pureza da
Revelação Evangélica, Herculano explicita os elementos essenciais que
contribuem, segundo a mensagem bíblica, para nortear o comportamento do homem.
Há dois aspectos essenciais nesse ponto: o cristianismo supõe a liberdade como
condição do homem e da fé, de um lado; de outro lado, o mandamento supremo do
cristianismo, a caridade, sintetiza a doutrina moral do cristianismo e
fundamenta a vida em sociedade. A caridade estabelece a verdadeira igualdade
entre os homens, ao acabar com o egoísmo. "Assim concebido, diz Saraiva
[1976: 71], o cristianismo é o aliado natural do liberalismo". Baseado
nessa perspectiva autenticamente liberal, Herculano rompe, definitivamente, com
o ultramontanismo e com o tradicionalismo católico em geral, salientando a
compatibilidade que há entre a defesa dos interesses materiais dos indivíduos e
a dos seus interesses espirituais.
Poderíamos afirmar até que Herculano consegue enunciar as bases de uma
nova ética que tornasse os católicos verdadeiramente comprometidos com a sua
sociedade, sem contudo cair no materialismo. Esforço de conciliação de valor
invulgar para quem, como ele, nascera e vivera num meio não formado na ética
calvinista. Esforço que já tinha sido feito na França por católicos como
Royer-Collard ou como o próprio Alexis de Tocqueville [cf. 1977: 403-405], que
levou a este último, aliás, a formular a sua noção de "interesse bem
compreendido", aquele que concilia a defesa dos próprios interesses com o
imperativo cristão da solidariedade e do amor ao próximo. Lição de moderação
que, sem dúvida, Herculano tirou das leituras que fez da obra de Guizot, durante
a sua permanência na França.
Em relação a esse ponto, escreveu Herculano: "Defendei os vossos
interesses espirituais juntamente com os vossos interesses físicos. É a nossa
doutrina, porque não queremos insultar a memória dos nossos pais que combateram
e padeceram para conquistar essas garantias e direitos inscritos no pacto
político do país; porque não queremos amaldiçoar o nosso passado, nós que
viemos ocupar nas fileiras da liberdade o lugar onde eles caíram. É a nossa
doutrina, porque entendemos que as necessidades morais do homem social não são
menos atendíveis que as suas necessidades materiais (...). É a nossa doutrina,
porque o progresso material é filho das conquistas da liberdade, do progresso e
da civilização moral. A máquina a vapor e o caminho de ferro não nasceram entre
os povos servos; nasceram nos países onde as garantias individuais, o amplo
direito de associação, a franca manifestação do pensamento, a verdade
eleitoral, a independência de poderes; os fatos sociais, em suma, em que
aparece a fisionomia de um povo livre eram uma realidade (...). Pugnar pelos
melhoramentos materiais que razoavelmente o país tem direito a pedir sem querer
todavia que se lhes sacrifiquem ou sequer se posponham os sacrossantos direitos
dos cidadãos" [apud Beirante, 1977: 115].
À luz das anteriores considerações podemos entender a noção herculaniana
de progresso, que abarca tanto o desenvolvimento dos fatores materiais quanto
dos morais, no homem. A respeito, escreve Cândido Beirante [1977: 116]:
"Herculano utiliza muitas vezes a expressão progresso moral e material;
outras vezes, progresso material e intelectual e também progresso
material e social. Todas estas designações contêm em si o aspecto moral do
progresso, num sentido lato, tal como o entendia Herculano (...). No pensamento
herculaniano, o verdadeiro progresso é o que engloba os factores materiais
juntamente com os morais. Quando houver um divórcio entre estes dois grupos
componentes do progresso humano, entrar-se-á num estado de pré-decadência que
virá a trazer (a prazo mais ou menos curto) a decadência generalizada. O grande
termo de comparação para as suas considerações vai buscá-lo à História, à
decadência do Império Romano". Contudo, o verdadeiro progresso não se dará
no seio da sociedade, segundo Herculano, senão na medida em que o espírito
humano for educado devidamente na leitura, na ilustração, na civilização, no
cultivo das artes, no desenvolvimento das ciências. Aqui o nosso autor assume a
melhor tradição da Ilustração, sem contudo cair no extremo de apregoar a
absoluta emancipação da razão humana.
Em O Panorama, semanário que dirigiu entre 1837 e 1839, Herculano
afirma que a verdadeira civilização é a do espírito humano. Segundo ele, quem
lê, "bebe a largos tragos na taça da sabedoria (e é) cidadão de todas as
repúblicas, membro de qualquer sociedade, contemporâneo de qualquer
século". No mesmo semanário, o nosso autor escreveu em 1839: "Não é
da abertura de canais e estradas, do acréscimo das exportações, do fomento da
indústria, que depende a felicidade futura do povo: é da educação. Ilustre-se,
civilize-se, aprenda a conhecer o que lhe convém, renasça nele a boa moral, e a
antiga virtude portuguesa, que depois será o próprio povo quem, sem socorro do
governo, e até apesar do governo se preciso for, abrirá canais e estradas,
melhorará a agricultura, aumentará o comércio, aperfeiçoará a indústria".
Herculano critica, porém, as reformas progressistas empreendidas pelo Marquês
de Pombal (1699-1782) que entraram em declínio após a sua saída do governo, porque
"este é o destino de todos os progressos que não nascem do seio da
sociedade e do desenvolvimento das idéias" [apud Beirante, 1977: 117].
O progresso integral do homem, que abarca o cultivo do espírito humano,
é um dever moral. A propósito, escreve o nosso autor: "Negar o
aperfeiçoamento intelectual aos homens, deixá-los na bruteza e na ignorância é
um ato imoral, um menoscabo de deveres sagrados e por conseqüência um crime (...).
O homem não passará de máquina se carecer de instrução e raciocínio. É,
portanto, preciso cultivar-lhe o espírito (...). Os proveitos e cômodos de que
a Europa atualmente goza (...) nasceram todos da cultivação das artes". Em
1872, Herculano escrevia: "Ninguém por certo nega a utilidade de favorecer
o trabalho literário e científico, principal elemento do progresso
social". O progresso material, segundo ele, é muitas vezes conquistado às
custas do homem: "Pobre povo - escreve o historiador - mal sabes tu à
custa de quantos gozos interiores, de quantas esperanças, de quantos sonhos
formosos, hás-de ir comprando os progressos e a civilização!" [apud
Beirante, 1977: 118]. A grandeza moral de Herculano ergue-se como figura
solitária que contesta, com a sua palavra e a sua própria vida, uma sociedade
entregue ao imediatismo e às conveniências políticas.
Antero de Quental escreveu, em fins de setembro de 1877, o elogio de
Herculano para a Revista Os dois mundos. Para Antero, o nosso autor
escondeu-se no retiro de Vale de Lobos, durante os últimos anos, voltando as
costas para uma sociedade em atrito com o seu ideal de vida: "Na
fisionomia moral de Alexandre Herculano - escreve o poeta luso - há certas
linhas que fazem lembrar o perfil enérgico e simples dos heróis típicos da
nacionalidade portuguesa. Pertencia a essa grande linhagem que acabou com ele.
O seu século, admirando-o, considerava-o todavia com um certo ar ininteligível,
como se sentisse vagamente que aquele homem pertencia a um mundo extinto, um
mundo cujo altivo sentir já ninguém compreendia. E acabaram, com efeito, por não
se compreenderem" [apud Serrão, 1977: 217-218].
Oliveira Martins, em Portugal contemporâneo [1984: II, 225-226],
escreveu elogio semelhante de Alexandre Herculano, salientando o estoicismo do
seu caráter: "A cova do cemitério de Azóia onde baixou o cadáver de
Herculano no verão de 77 é, no seu isolamento, o símbolo da insensibilidade com
que Portugal o sepultou (...). A palavra que o retrata é o Caráter, porque nele
a vida moral e intelectual eram uma e única (coisa). Dissemos pois Caráter no
sentido e valor que a palavra teve na Antigüidade, e não na vaga acepção
moderna (...). O tipo de caráter à antiga é o estoico e este é propriamente que
define a fisionomia de Herculano; este o tipo que passo a passo veio crescendo
até dominar os últimos anos, (...) quando os desenganos do mundo o degradaram
para o exílio, não como um mártir, mas como um homem que, protestando sempre,
se não converte nem se corrompe".
Oliveira Martins tinha caracterizado Herculano como "o único
português moderno". Joaquim Veríssimo Serrão identifica a grandeza de
Herculano como decorrente da sua vocação de escritor e do seu espírito liberal.
A propósito frisa: "Apesar das críticas de alguns nomes da geração de 70,
como Teófilo Braga e Adolfo Coelho, tinha-se assim gerado em torno de Herculano
uma admiração quase exclusiva pelo homem e pelo escritor que era o símbolo de
sua geração (...). A nobilitação intelectual obrigava um grande escritor a ser
também um homem grande, alguém que soubera impor-se à consideração pública
pelas atitudes que tomara nos debates e problemas que afetavam toda a Nação. O
liberalismo exigia que no indivíduo se reunissem os dois múltiplos que definem
os verdadeiros modelos de uma sociedade" [Serrão, 1977: 214-215].
3 - Concepção religiosa do homem.
É patente o influxo da Bíblia, especialmente dos escritos de São Paulo, na
vida intelectual de Herculano. Eis o que afirmava a respeito o nosso autor em
1876: "Com a idade e com a reflexão, entre os personagens eminentes do
Novo Testamento começou a sobressair um que dia a dia cresceu a meus olhos em
sublimidade. Era São Paulo. São Paulo tornou-se, afinal, para mim, o grande
vulto do Cristianismo militante. Foi São Paulo que me perdeu" [apud
Beirante, 1977: 98-99]. A vida humana, para Herculano, percorre várias etapas,
que ele define no seu romance O Pároco da Aldeia, em 1843, do ponto de
vista da luta entre a razão humana e a crença viva. Eis as suas palavras
a respeito: "Tal é o destino da inteligência neste breve desterro: dois
dias conserva as recordações verdadeiras e puras da sua origem imortal: outros
dois alumia-se com o fogo fátuo das paixões e esperanças: o resto deles
resolve-se na luta tormentosa das idéias, dos afetos, dos desenganos: depois
vem o dormitar da velhice e a regeneração da morte" [apud Beirante, 1977:
84].
Vejamos a forma em que Herculano explica o desenvolvimento da vida
humana, ao longo dessas quatro etapas. Na primeira, correspondente ao período
da infância e da poesia, a alma conserva "recordações verdadeiras e puras
da sua origem imortal (...); nesse tempo tudo me chegava aos olhos da alma
alumiado, risonho, variegado, porque tudo transparecia através de um prisma de
sete cores da inocência singela e crédula da infância". No segundo
período, Herculano evoca as paixões e esperanças e a dúvida instala-se no seu
coração. A respeito, frisa: "A inocência morreu, a poesia íntima e crente
desbaratou-se, o sentimento religioso esmoreceu; mas ficam os deleites dos
sentidos que nos embriagam; os aplausos das multidões aos nossos hinos
decorados, que elas ainda julgam sublimes e esplêndidos; aplausos que nos
desvairam: fica-nos uma filosofia orgulhosa e insensata, que se crê profunda,
uma ciência superficial que se crê completa, pela qual dormimos tranquilos
sobre a negação de todas as idéias místicas de todas as lembranças de
Deus" [apud Beirante, 1977: 84].
O terceiro período caracteriza-se pela luta entre a Razão e a Fé. Eis a
descrição que dele faz Herculano: "A poesia suave e pura da infância e da
puberdade passou; passa também o íris das paixões férvidas, das ambições
insaciáveis, da crença na própria energia. Começa então o pardo crepúsculo,
que, semelhante a herpes lentos, vai lavrando por todas as nossas opiniões e
afetos e os prostra, os subjuga. Desde essa época, a vida tem largas horas de
tédio, em que o existir é uma carga pesada; porque nos falta alicerce em que
possamos firmar-nos; porque flutuamos sobre as névoas densas do duvidar de
tudo". Segundo Cândido Beirante, este é o período das grandes polêmicas
com o clero. Sem chegar a rejeitar a fé num catolicismo de tipo pré-tridentino,
Herculano opõe-se ao clero ultramontano e reacionário, particularmente aos
jesuítas.
Manuel de Serpa Pimentel (1825-1900) caracterizava assim, em 1881, a
personalidade do nosso autor, neste período polêmico: "Alexandre Herculano
era um cismontano como Bossuet (1627-1704), um jansenista como Pascal
(1623-1662), um velho católico como Doellinger (1799-1890). Espiritualista
cristão, via o cristianismo compatível com a liberdade e a moral do Evangelho e
como a única base sólida da civilização e do progresso". Para Silva
Cordeiro, o polêmico Herculano "na Idade Média teria ficado a dois passos
da heresia, semi-ariano como Atanásio (+373), montanista como Tertuliano
(160-220), mas tenaz e altíloquo ante os bispos de Roma como Cipriano (+258) em
defesa dos relapsos, ou como São Bernardo (1090-1153) invectivando a corrupção
da Igreja. Esta maneira de encarar o problema religioso, se lhe concitava ódios
nos dois campos, foi também uma das forças ocultas de seu prestígio, porque o
deixava bem a descoberto, consciência surpreendida em flagrante" [apud
Beirante, 1977: 89].
Cândido Beirante, por sua vez, caracteriza assim o esforço conciliador
de Herculano entre filosofia e Deus neste terceiro período, bem como a
distinção que introduz entre clero e religião: "Na sua obra de
doutrinação, há uma idéia fixa: conciliar a filosofia e Deus, daí a
apologia dum cristianismo semelhante ao dos primeiros cristãos (...). Isto
compreende-se muito bem no caso de Herculano, porque ele viu as massas
populares fanatizadas pelo clero regular lutarem durante dois anos contra os
liberais, como se se tratasse duma guerra santa contra os infiéis. Esta
distinção entre clero e religião, no que diz respeito ao Cristianismo, é uma
dicotomia perigosa pelas conseqüências que envolve. Podíamos ver nesta sua
religião quase natural e no seu latente anticlericalismo uma herança das Luzes
que, com o decorrer do tempo, se acentuou" [Beirante, 1977: 69].
O quarto período assinalado por Herculano corresponde à etapa final da
sua vida, quando do seu refúgio no Vale de Lobos. Diz o historiador a respeito:
"A mente se definha e ela apenas dormita para despertar vigorosa ao sol da
eternidade, que rompe atrás do sepulcro (...). Depois da taça do mel esgotada,
resta a do absinto. Que se resigne e espere aquele que vai devorando os dias da
dúvida e do desalento. Chegará a hora de renascer para a poesia e para a
certeza: será a hora da morte". A solução herculaniana do conflito entre
Fé e Razão é colocada num plano trans histórico. Como afirma Cândido Beirante,
"a confiança não o abandona. Se não pode conciliar, neste mundo, a fé
cristã com os imperativos da razão e do século, resta ainda o Além que, para
ele, é uma certeza" [Beirante, 1977: 86].
4 - Concepção religiosa da história e da política.
Fundamentada a moral humana numa visão transcendente ao indivíduo, é
lógico que a explicação da história seja feita em termos transpessoais e
sobrenaturais. Para isto, Herculano encontrou farto material de inspiração no
espiritualismo platônico de Santo Agostinho (354-430). A realidade verdadeira
não é a constituída pelos acontecimentos mutáveis, mas a que se baseia nas
idéias eternas. Assim, a história é explicada em termos trans históricos. Por
trás dos acontecimentos humanos estão as Idéias que movimentam a história. Cada
época, na história da civilização, representa uma idéia. Mas no fundo de todo o
processo histórico, há uma base ontológica que sustenta o acontecer humano:
trata-se, numa perspectiva claramente agostiniana, da sabedoria e vontade de
Deus que conduzem a história. Em outros termos, a razão da história é a
Providência divina. A fundamentação herculaniana da história é, portanto, de
caráter religioso, porque, como diz Saraiva [1976: 89], "uma teoria
providencialista da história é, afinal, uma interpretação religiosa dos
acontecimentos". O providencialismo herculaniano tem, contudo, uma outra
fonte de inspiração que lhe permite conciliar o progresso com a Providência
divina, como bem assinala Cândido Beirante [1977: 97]: "Herculano, bem
como os historiadores do período romântico, vão conciliar ambos os termos
(Progresso e Providência divina). Por que será que Herculano é providencialista
e ao mesmo tempo presta culto sincero ao Progresso indefinido? É que, em
Herculano, influíram dois grandes filósofos da história: Vico e Herder
(1744-1803)".
O próprio Herculano reconhece essa influência numa carta dirigida a
Oliveira Martins, do seu último refúgio de Vale de Lobos: "No tempo em que
eu andava peregrinando por esse mundo literário, antes de me acolher ao mundo tranquilo
da santa rudeza, conversei um pouco com Vico e Herder, com Vico e Herder como a
Itália e a Alemanha os geraram, e não como os aleijaram os cabeleireiros
franceses". Vários anos antes, em 1839, Herculano já tinha expressado a
necessidade de "escrever uma história de Portugal, segundo o sistema de
Vico e Herder" [apud Beirante, 1977: 97]. Valha anotar que na Scienza
Nuova, cujo subtítulo reza: "História ideal das leis eternas de que
dependem os destinos de todas as nações, o seu nascimento, o seu progresso, a
sua decadência e o seu fim", Vico sustenta a tese de que o progresso
autêntico não pode surgir do desconhecimento de Deus ou do abandono da lei
moral. Nesse ponto, certamente, o pensador italiano distancia-se dos filósofos
do período racionalista.
A Providência divina é definida por Vico como "sabedoria suprema a
qual, sem força de lei, mas usando dos próprios costumes dos homens, regula e
conduz divinamente a grande comunidade das Nações". Podemos afirmar que a
interpretação da história em Vico é agostiniana, mas integrando essa visão com
a mentalidade moderna, baseada na idéia de progresso. A respeito, Franco
Américo frisa que "a conciliação da causalidade divina com o livre
arbítrio (...) tenta-a Vico na consideração dinâmica da história e da Providência.
Em virtude desta colaboração entre Deus e o homem, a história tem um valor
humano e um sentido divino" [apud Beirante, 1977: 97]. A influência de
Vico estende-se, no século XVIII, ao pensador alemão Herder, em quem Herculano
também diz inspirar-se.
A idéia básica de Herder, segundo Tonnelat, consiste em "provar que
na Terra há uma só e mesma espécie humana a quem Deus prometeu um
aperfeiçoamento constante e uma felicidade sempre aumentada. Só o homem é
perfectível, dentre todos os seres terrestres" [apud Beirante, 1977: 97].
Herder também salienta a idéia, tão cara a Herculano, como frisei
anteriormente, de que os progressos materiais e os avanços científicos são
igualmente importantes, posto que através deles se revela o poder da razão
humana. A cultura, segundo ele, longe de afastar os homens de Deus, os aproxima
dele. Apesar de o progresso da cultura não ter o mesmo ritmo em todos os povos,
não existe superioridade de um povo sobre os outros, segundo Herder, pois as
luzes da razão sempre encaminham os homens para o melhor, e, de outro lado, os
progressos dos diversos povos contribuem para o progresso geral da Humanidade.
Desenhadas as linhas gerais do providencialismo herculaniano, bem como
das fontes que o inspiraram, analisemos a aplicação que Herculano faz do seu
providencialismo à história e à política portuguesas. O providencialismo é
claro. À maneira dos antigos profetas bíblicos (e valha a pena registrar aqui a
semelhança entre a pregação providencialista herculaniana e o discurso dos doutrinários
franceses, notadamente Royer-Collard, François Guizot e o mais importante
discípulo destes, Alexis de Tocqueville), o historiador português identifica-se
como arauto da Providência, que lhe incumbiu a missão de fazer ver a ruína
futura da sua Pátria. Eis a síntese que Beirante [1977: 104] faz desse aspecto
profético: "N' A voz do Profeta, escrito que bem parece uma
proclamação bíblica de estilo profético, Herculano fala muitas vezes da
Providência que o enviou e lhe faz ver a ruína futura da Pátria. Tem várias
exclamações em que proclama o seu providencialismo: O Senhor nosso Deus é
justo: curvemos a cabeça diante da sua Providência (Opúsculos, I,
p. 36). Relembrando os tempos em que fora soldado da liberdade, diz: A
Providência infundiu-nos valor, e sofremos, sem murmurar, a fome (Opúsculos,
I, p. 38) e o que padece não deve queixar-se, nem rebelar-se contra a
Providência; porque essa queixa inspira-a a soberba (Opúsculos, I,
p. 42). A sua confiança está no justo juízo de Deus: A justiça celeste nunca
dorme, como na alma do criminoso nunca se cala o remorso (Idem, p. 44). Ao
terminar A voz do Profeta, Herculano, desdobrado em profeta, exclama:
Não sabia como desculpasse perante a Providência os pecados do povo (Idem,
p. 114)".
A idéia de Vico, de conciliação entre a Providência divina e o livre
arbítrio, subjaze no seguinte texto de Herculano: "A religião, portanto,
não encontra na indústria nem na ciência que versa sobre suas causas e leis
gerais, a menor oposição. No pensamento do Cristianismo (...) é o trabalho que
fecunda a natureza, e multiplica por Deus este festim da criação, ao qual a
Providência convida tudo o que tem fome. O que repugna à religião não é a
conquista do homem sobre a matéria - é o reinado da matéria sobre o homem – (...).
O Cristianismo, igualando os homens moral e religiosamente, unindo-os pelos
laços da fraternidade, enobrecendo todo o trabalho honesto, ferindo pelo nariz
a escravatura (...) deu início a uma época inteiramente nova para as relações
de homem a homem" [apud Beirante, 1977: 57-58]. A partir desses
pressupostos básicos, de que a Providência lhe encomendou a missão de assinalar
o perigo de ruína da sua Pátria e da conciliação existente entre livre arbítrio
e Providência divina, Herculano passa a interpretar a história como um processo
dirigido por Deus.
Eis, por exemplo, a forma em que ele explica o surgimento das nações
modernas, repetindo os traços gerais da exposição de Guizot no seu clássico
livro intitulado: Histoire de la Civilisation en Europe depuis
la chute de l'Empire Romain jusqu'à la Révolution Française: "Grandes
historiadores têm desenhado o sombrio e imenso quadro da dissolução do Império
dos Césares. Este resumia toda a civilização antiga; resumia-a e continha-a em
si. Essa dissolução havia acabado a tarefa que a Providência lhe destinara na
obra do progresso humano. O Cristianismo aprofundara já as raízes na terra,
vicejava aspergido com o sangue dos mártires, abrigava as sociedades com a sua
vasta sombra e, tomando os membros desse cadáver gigante que se desconjuntava,
ia preparando cada um deles para o converter num corpo social cheio de mocidade
e de vida. Novas migrações desciam do setentrião ao meio-dia da Europa para o
renovar, como em tempos remotíssimos tinham descido das chapadas interiores da
Ásia a povoa-lo. As legiões, a política dos imperadores e a majestade do nome
romano serviram por algum tempo de dique à invasão. Fora, porém, Deus que
soltara a torrente. Era uma luta sublime a da civilização contra a barbaria;
mas esta rompeu as barreiras. As hostes e as tribos selvagens do norte
arrojavam-se por cima do Império: a vaga seguia-se à vaga. Daquele grande
cataclismo nasceram as nações modernas" [Herculano, 1914: I, 69].
Em relação à luta de séculos, na Península Ibérica, entre cristãos e
sarracenos, afirma Herculano [1914: I, 157-158]: "A Providência decretara
a restauração do Cristianismo na Península e os seus decretos deviam
cumprir-se, bem se, às vezes, a execução deles parecesse retardar-se". E
interpreta de modo providencialista a decadência do império muçulmano na
Península Ibérica e o triunfo do Cristianismo: "Sem recusar aos guerreiros
da cruz a audácia e o entusiasmo próprios daqueles vigorosos tempos, as suas
façanhas reduzem-se às proporções ordinárias quando se confrontam com a
situação dos que eles venceram e subjugaram. Longe também de negar por este
modo a intervenção da Providência nos destinos do gênero humano, só aí
acharemos motivos para admirar as leis de ordem moral que regem o universo, não
menos imutáveis do que as leis físicas que presidem à existência material dele.
Os maometanos da Península oferecem-nos pelo meado do século XII mais um desses
exemplos, ao mesmo tempo terríveis e salutares, de que abunda a história.
Naquele país, seja qual for o seu grau de civilização e poderio, onde falece o
amor da pátria, onde os vícios mais hediondos vivem à luz do sol, onde a todas
as ambições é lícito pretender e esperar tudo, onde a lei, atirada para o
charco das ruas pelo pé desdenhoso dos grandes, vai lá servir de joguete às
multidões desenfreadas, onde a liberdade do homem, a majestade dos príncipes e
as virtudes da família se convertem em três grandes mentiras, há aí uma nação
que vai morrer. A Providência, que o previu, suscita então outro povo que venha
envolver aquele cadáver no sudário dos mortos. Pobre, grosseiro, não numeroso,
que importa isso? Para pregar as tábuas de um ataúde, qualquer pequena força
basta" [Herculano, 1914: I, 201-202].
Até os acontecimentos negativos são ordenados pela Providência divina.
Referindo-se à derrota sofrida pelos cristãos portugueses na batalha de Alcácer
Quibir (1578), afirma o historiador português: "A destra de Deus tinha
escrito no livro da Providência o dia em que para Portugal devia acabar a
glória de séculos e toda a casta de prosperidades. Um dia e uma batalha acabou
assim com a fúria e a felicidade de um povo que fora tão afamado e temido"
[Herculano, 1914: I, 104-105]. Em que pese as derrotas dos povos e as quedas
dos Impérios, contudo, o progresso é inevitável e Deus é quem o promove.
"O gênero humano - frisa o nosso autor - que sempre caminha avante,
deixaria acaso após si esta porção de seus membros, chamada nação portuguesa?
Não, porque ninguém pode contrastar os decretos da Providência nem os
progressos da humanidade (...). E criaria a Providência o homem para o
assemelhar aos tigres e leões e não o destinaria a mais nobres e altos
fins?". Todo o progresso humano tem em Deus a sua origem. A propósito,
frisa Herculano [1914: I, 105]: "Felizmente Deus, que inspirou ao gênero
humano a sociabilidade e o desejo do aperfeiçoamento, põe na sociedade remédio
para os males que deviam resultar da imperfeita ciência. (...). Na mesma
natureza do nosso espírito está esse remédio contra o ceticismo e contra as
suas precisas conseqüências, o egoísmo e a imoralidade".
O progresso, contudo, não caminha sempre em linha reta. Pode ter paradas
e até retrocessos, que Herculano denomina de aberrações do progresso.
Com isso, o nosso autor pretendia, à maneira de Guizot, conquistar os burgueses
receosos de seu tempo, que viam com apreensão o confuso panorama político do
país. Para ele, a burguesia deve assumir a sua responsabilidade de classe
orientadora da sociedade, sem se deixar assustar pelas crises passageiras. A
respeito, escreve na sua obra: História da origem e estabelecimento da
Inquisição em Portugal: "Os membros da burguesia que não têm conduta
nem ânimo para afrontar as aberrações do progresso (aberrações que nunca faltam
nas conjunturas das grandes transformações) mentem aos destinos da sua classe,
maldizem a santa obra de civilização, as tradições de seu país, os fins do
cristianismo e os próprios atos da sua vida pública anterior" [apud
Beirante, 1977: 110-111].
Cândido Beirante [1977: 111] sintetiza assim esse aspecto do pensamento
herculaniano: "Realmente, Herculano faz a apologia do Progresso em nome
das tradições e da liberdade, em nome do cristianismo e da civilização. O
progresso sócio-moral, uma vez conseguido, não pode ser destruído". A
certeza da inevitabilidade do progresso alicerça-se na crença de que é vontade
de Deus expressa no Evangelho. A respeito, frisa Herculano: "A liberdade,
a civilização, o progresso, que são leis de Deus, reveladas nas aspirações de
todos os homens, nos caracteres dos séculos, no desenvolvimento invencível do
espírito humano; a liberdade, a civilização e o progresso, que se contêm no
Evangelho de Cristo" [apud Beirante, ibid.]. A inevitabilidade do
progressismo de Herculano salta à vista no seguinte texto, escrito por ele no
desenvolvimento de notável polêmica travada no jornal O Português, em
1853: "O caminho de ferro é inevitável, inflexível como o destino. Que se
nos permita uma expressão hiperbólica. Se não construíssemos vias férreas,
protestando contra a civilização, a Providência, que dirige a Humanidade, as
faria cair do céu sobre nossos campos. Ao homem não é lícito desobedecer ao
gênero humano, cujos passos na estrada do futuro Deus alumia com o facho da luz
eterna" [Apud Beirante, 1977: 109].
Qual é o papel do historiador? Herculano considera que ele deve
testemunhar, perante a sociedade da sua época, esse sentido oculto em direção
ao progresso, que a Providência traçou para a Nação portuguesa. Observado os
fatos antigos, o historiador pode traçar os lineamentos gerais do que poderá
vir a ocorrer num povo. É necessário, para isso, conhecer as próprias
tradições. Não existe, contudo, uma história iluminista da Humanidade. Cada
povo percorre a sua trilha. Mas o historiador não pode se deixar enganar pelos
fatos descosturados. Deve interpretá-los à luz da idéia providencialista. O
historiador, de outro lado, deve levar em consideração a liberdade humana, o
que o conduzirá a não pretender traçar leis gerais, como as das coisas
naturais, mas a tentar identificar tendências esclarecedoras do comportamento
dos homens. Pode-se, apenas, esboçar uma probabilidade, em relação ao
comportamento humano.
A propósito da metodologia da história defendida por Herculano, escreveu
o saudoso filósofo português Eduardo Abranches de Soveral [2002: 12]: "Ao
observar que tudo o que realmente acontece tem uma causa e que os sucessos só
parecem fortuitos porque se ignora aquilo que os determinou, tem Herculano
inteira razão, segundo penso. Não obstante, deverá anotar-se que, sobretudo no
plano da realidade histórica, a maioria das causas não são naturais mas
humanas. E se, quanto às primeiras, se poderá metodologicamente admitir um
seguro conhecimento, integrando-as num sistema de leis permanentes e
universais, já, quanto às segundas, esse conhecimento seguro não é possível,
pois o comportamento livre dos homens é, como tal, imprevisível. Quando muito
se poderá estabelecer um sistema normativo à luz do qual esse comportamento
livre se objectivaria do modo mais eficaz e perfeito. (Para Herculano, o valor
que daria às ações humanas a máxima consistência ontológica seria a
liberdade)".
5 - O Liberalismo de Herculano.
Fazendo um esforço de síntese, analisaremos nesta parte seis aspectos do
Liberalismo de Alexandre Herculano: a) a sua decidida rejeição do despotismo;
b) a inspiração religiosa do pensamento político; c) a vinculação do
liberalismo de Herculano com a tradição; d) o nacionalismo; e) a preocupação do
liberalismo herculaniano por chegar ao estabelecimento de instituições
políticas que garantam a realização dos ideais professados.
A) Rejeição do despotismo.- Na
sua História de Portugal, Herculano critica a forma em que se concentrou
o poder nas mãos do monarca, esquecendo as antigas tradições de liberdades
locais, originárias da Idade Média. A rejeição do absolutismo é um traço
constante na sua obra. Eis a forma em que Joaquim Veríssimo Serrão sintetiza a
crítica histórica feita por Herculano ao surgimento do absolutismo português:
"O apego à Monarquia, como instituição suprema para o bom governo dos
povos, nunca foi posto em causa pelo historiador, que via na figura régia o
garante do equilíbrio político e social. Mas com a condição de os monarcas
guardarem as liberdades que asseguravam a grandeza e a virtude dos cidadãos,
não os transformando em súditos e escravos. A baliza temporal de D. João II (1455-1495)
para distinguir as duas fases históricas da Nação, constitui um dos axiomas de
Herculano, que, sendo um medieval de formação, via nos fins do século XV, com a
expansão em curso e a tendência para o absolutismo, a grande viragem que
alterou gravemente o equilíbrio português. Daí que assacasse os maiores
defeitos aos reis posteriores [...], como se a história moderna do país se
houvesse reduzido a um acervo de misérias e desgraças. Tal foi a influência de
Herculano neste pensamento, que levou autores capazes, como Oliveira Martins, a
situarem a decadência nacional no processo de descobrimentos e conquistas,
reduzindo a figuras pobres os monarcas posteriores ao Príncipe Perfeito (Dom
João II)" [Serrão, 1977: 47-48].
Não podemos deixar de encontrar aqui, nesta defesa de Herculano em prol de
uma monarquia aberta à defesa da liberdade, um eco do pensamento de Guizot, que
defendeu a Monarquia de Julho na França e que, de forma clara, considerava ser
a Monarquia brasileira uma instituição em defesa das liberdades e da
representação, constituindo uma garantia contra o despotismo [cf. Guizot, 1864:
247-271].
Já salientamos, na no início da Segunda Parte deste ensaio, a
forma em que, de acordo com Herculano, consolidou-se o poder em Portugal como
propriedade particular do príncipe, o que ensejaria o surgimento do absolutismo
a partir do século XV. Limitemo-nos aqui, simplesmente, a enfatizar a sua
rejeição a qualquer forma de despotismo, como algo absolutamente alheio à
natureza dos povos livres. Eis a forma em que o nosso autor introduz a sua História
de Portugal: "A liberdade tem conseqüências inevitáveis; as
gerações dos povos livres participam perante o futuro da responsabilidade dos
poderes públicos ou, antes, a responsabilidade é delas, porque têm sempre força
e meios para os revogar aos sentimentos do pudor e do dever quando eles a
esquecem. As virtudes ou os crimes dos que as governam; a sua glória ou a sua
desonra pertence-lhes. O despotismo, esse não o podem chamar à autoria. Para
mim a questão, vista por esse lado, estava resolvida. Não era, não podia ser o
desejo de reagir contra manifestações oficiais e solenes o que me impelia a
renovar esforços tanto tempo interrompidos. Era uma destas afeições
individuais, modestas e desinteressadas, que nascem, como flor singela, nos
pedregais da vida" [Herculano, 1914: I, 13].
O historiador português é um liberal no sentido pleno da palavra,
abarcando a sua doutrina as três instâncias essenciais da cultura, da política
e da economia. É kantiano do ponto de vista cultural (embora não tenha lido
jamais a obra do pensador de Königsberg, mas tomado contato com os seus
lineamentos gerais muito provavelmente através da obra de Madame de Staël De
l'Allemagne, que possibilitou aos portugueses o conhecimento do kantismo)
[cf. Staël, 1968]. Herculano, outrossim, acredita na livre iniciativa em
matéria econômica (embora com ressalvas conservadoras quanto à adoção da
técnica, que deve ser adotada sobre um pano de fundo moral). No que tange à
política, o nosso autor defende denodadamente o indivíduo, na sua liberdade,
contra os avanços do estatismo. Eis um texto bem revelador dessa índole liberal
ampla. Em carta endereçada a Oliveira Martins em 10 de dezembro de 1870,
escreve Herculano: "Eu, meu caro democrata e republicano, nunca fui muito
para as idéias que mais voga têm hoje entre os moços e que provavelmente
virão a predominar por algum tempo no século XX, predomínio que as não
tornará nem piores nem melhores do que são. A liberdade humana sei o que é: uma
verdade da consciência, como Deus. Por ela chego facilmente ao direito
absoluto; por ela sei apreciar as instituições sociais. Sei que a esfera dos
meus actos livres só tem por limites naturais a esfera dos actos livres dos
outros e por limites factícios restrições a que me convém submeter-me para a
sociedade existir e para eu achar nela a garantia do exercício das minhas
outras liberdades. Todas as instituições que não respeitarem estas idéias serão
pelo menos viciosas. Absolutamente falando, o complexo das questões sociais e
políticas contém-se na questão da liberdade individual. Por mais remotas que
pareçam, lá vão filiar-se. Mantenham-me nesta, que pouco me incomoda que outrem
se assente num trono, numa poltrona ou numa tripeça. Que as leis se afiram
pelos princípios eternos do bom e do justo, e não perguntarei se estão acordes
ou não com a vontade de maiorias ignaras" [apud Oliveira Martins, 1984:
229].
Aparece nestes dois textos um eco da influência recebida por Herculano
dos doutrinários e os seus discípulos, como Tocqueville. Não é de claro sabor
tocquevilliano essa profissão de fé na defesa da liberdade, semelhante à
confissão que fazia o pensador francês de estar sempre do lado daquela, em que
pese a tradição despótica que tomou conta do seu país? Lembremos a profissão de
fé liberal de Tocqueville [1988: 93-95], formulada na sua obra O Antigo
Regime e a Revolução: "Alguns hão de acusar-me de mostrar neste livro
um gosto muito intempestivo pela liberdade, a qual, segundo me dizem, é algo
com que ninguém mais se preocupa na França. Só pedirei àqueles que me fariam
esta censura, lembrar-se que esta tendência é muito antiga em mim. Há mais de
vinte anos, falando de uma outra sociedade, escrevia quase textualmente o que
vão ler aqui. No meio das trevas do futuro já podemos descobrir três verdades
muito claras. A primeira é que em nossos dias os homens estão sendo levados por
uma força desconhecida, que temos a esperança de poder regular e abrandar, mas
não de vencer, e que os impele suave ou violentamente a destruir a
aristocracia. A segunda é que, em todas as sociedades do mundo, aquelas que
sempre encontrarão as maiores dificuldades para escapar por muito tempo ao
governo absoluto, serão precisamente estas sociedades onde não há mais e não
pode haver uma aristocracia. A terceira é que em nenhum lugar o despotismo
poderá produzir efeitos mais nocivos do que neste tipo de sociedade, porque
mais do que qualquer outra espécie de governo, ele favorece o desenvolvimento
de todos os vícios, aos quais estas sociedades estão especialmente sujeitas, e
assim as empurra numa direção à qual uma inclinação natural já as fazia pender.
(...). Só a liberdade pode combater eficientemente, nesta espécie de
sociedades, os vícios que lhes são inerentes e pará-las no declive por onde
deslizam. Com efeito, só a liberdade pode tirar os cidadãos do isolamento no
qual a própria independência de sua condição os faz viver, para obrigá-los a
aproximar-se uns dos outros, animando-os e reunindo-os cada dia pela
necessidade de entender-se e agradar-se mutuamente na prática de negócios
comuns. Só a liberdade é capaz de arrancá-los ao culto do dinheiro e aos
pequenos aborrecimentos cotidianos (...) para que percebam e sintam sem cessar
a pátria, acima e ao lado deles. Só a liberdade substitui vez por outra o amor
ao bem-estar por paixões mais enérgicas e elevadas, fornece à ambição objetivos
maiores que a aquisição das riquezas e cria a luz que permite enxergar os
vícios e as virtudes dos homens. (...) Eis o que eu pensava e dizia há vinte
anos. Tenho de confessar que desde então nada aconteceu no mundo que me levasse
a pensar e falar diferentemente. Tendo demonstrado a boa opinião que eu tinha
da liberdade num tempo em que alcançou o apogeu, não acharão ruim que nela eu
persista quando a abandonam".
Para Herculano, a rejeição do despotismo é um princípio que não admite a
menor dúvida. Em carta a Oliveira Martins datada em 10 de dezembro de 1870
[apud Serrão, 1977: 194] escreve estas palavras, que lembram a rejeição do
absolutismo feita por John Locke (1632-1704) no seu Primeiro Tratado sobre o
Governo Civil. Note-se o sabor empirista do texto, que defende a soberania
da Nação como um fato: "Tão ilegítimo acho o direito divino da
soberania régia, como o direito divino da soberania popular. A soberania
não é direito: é fato - fato impreterível para a realização da lei psicológica,
até fisiológica, da sociabilidade, mas, em rigor, negação, porque restrição,
nos seus efeitos, do direito absoluto, e cujas condições são, portanto,
determinadas só por motivos de conveniência prática e dentro dos limites
precisos da necessidade. Fora disto toda a soberania é ilegítima e monstruosa.
Que a tirania de dez milhões se exerça sobre o indivíduo, que a de um indivíduo
se exerça sobre dez milhões, é sempre a tirania, é sempre uma coisa
abominável".
Eduardo Soveral destacou a firmeza das convicções liberais de Herculano,
abeberadas na sua vida familiar e que o levavam a não transigir com o
despotismo, em qualquer uma das suas manifestações. A respeito, frisa Soveral
[2002: 6]: "Também as convicções liberais que herdou cedo lhe moldaram a
sensibilidade e lhe nortearam as idéias políticas. Desde sempre repudiou o
absolutismo régio e o jacobinismo radical e revolucionário, apostado em
instaurar, com o apoio despótico das maiorias, uma igualdade que considerava
utópica. E pugnou por um regime em que se não ficasse na afirmação de
princípios e boas intenções, mas de forma efectiva fosse garantida a liberdade
civil".
B) Liberalismo e Religião.- Já
analisamos suficientemente, nas páginas anteriores, a inspiração religiosa que
marca todo o pensamento herculaniano. Reforcemos as considerações feitas,
mostrando a íntima ligação que existe entre a sua forma de entender o liberalismo
e a visão religiosa do homem e do mundo. Veríssimo Serrão [1977: 50] afirma que
"O liberalismo de Herculano não põe em causa, antes defende com vigor, o
apego religioso que animou os Portugueses no seu ideal de cristandade. O
respeito que mereciam as cinzas dos antigos heróis identificava-se nele com o
próprio culto da Nação portuguesa. A vergonha, vergonha eterna não
provinha de se manter a lembrança desses homens, mas da ambição e falta de
caráter de muitos outros que, em nome de uma nova doutrina política, colhiam os
benefícios de um saque no patrimônio nacional e reduziam ao enxovalho tradições
venerandas".
Oliveira Martins, por sua vez, define assim a índole religiosa do
liberalismo herculaniano: "A tradição religiosa, ou antes aquela
pseudotradição de um catolicismo liberal inventada pelo romantismo servia,
pois, ao filósofo para temperar o seu individualismo, conciliando-o com um
resto de autoridade social consagrada nas prerrogativas do trono
representativo. De tal modo se combinava o racionalismo com o romantismo, e
este traço é o que dá a Herculano, ou antes à sua doutrina, um caráter de
individualidade original, depois do ensino apenas racionalista de Mouzinho da
Silveira (1780-1849)" [Oliveira Martins, 1984 : II, 235]. A inclinação de
Herculano em favor do liberalismo monárquico, é devida a um esforço de
adaptação do liberalismo ao contexto católico português, a fim de superar o
risco do democratismo. Certamente pesa aqui, como já foi destacado, o influxo
de Guizot e dos demais doutrinários, que na França já tinham tentado equacionar
um tipo de solução semelhante, ao ensejo da monarquia de Luís Filipe. O nosso
autor queria um tipo de liberalismo que não colidisse com as tradições
religiosas e que possibilitasse a superação do jacobinismo e do terror.
Veríssimo Serrão [1977: 195] afirma a respeito o seguinte: "Herculano
considerava o regime democrático como inadaptado aos estratos mentais do
homem europeu, marcado pela crença católica que levara ao fortalecimento das
instituições de vários países. Admitia que na origem da mentalidade republicana
da Suíça e das colônias inglesas da América estivesse a força respectiva do
calvinismo e do puritanismo, como prolação da sua vida moral. A índole,
os costumes e a expressão própria desses países mergulhava em práticas
religiosas que lhe mantinham o vigor. Já o mesmo não sucedia com as nações
católicas da Europa, ligadas pelas suas raízes seculares ao liberalismo
monárquico".
Herculano era um doutrinário de pura cepa. Interessava-lhe não apenas a
vida intelectual, mas a sua projeção sobre o mundo da política, a fim de
torná-la a esta mais humana. À maneira de Pierre-Paul Royer-Collard ou de
Guizot, aspirava a transformar as instituições de seu país, tornando-as mais
civilizadas, ou seja, pondo-as a serviço do homem, superando portanto a velha
tradição despótica do absolutismo. Se se afastou da vida pública em alguns
momentos da sua vida, fê-lo para reativar a sua reflexão em face da sociedade e
voltar à liça levando novas abordagens, que possibilitassem uma renovação das
instituições. A propósito deste traço do nosso autor, escreveu Eduardo Soveral
[2002: 9]: "Interessa declarar antes que comungo da opinião dos que
entendem que o recolhimento em Vale de Lobos não deve ser interpretado como uma
renúncia à vida pública que a incompreensão, a inveja, a má fé, e os mesquinhos
ataques pessoais tornavam, uma vez mais, inabalável para um homem de princípios
e de caracter como ele era. Penso também, que Herculano, pelo contrário, soube
reagir positivamente a esse clima malsão da vida cultural portuguesa, e que, em
Vale de Lobos, continuou a desempenhar o papel público que mais se lhe
afeiçoava: exercer um magistério intelectual e moral, fora e acima das
correntes, dos grupos, e mesmo das instituições, excluindo-se de qualquer
espécie de cumplicidade, inclusive daquelas que a aceitação de mercês e
honrarias permitisse admitir".
Doutrinário, liberal portanto, mas também contrário ao democratismo e
defensor convicto da monarquia representativa. Herculano escreve, em carta
dirigida a Oliveira Martins [1984: II, 230] em 10 de dezembro de 1870: "A
democracia repugna às nações ocidentais da Europa educadas pelo catolicismo
que, na pureza da sua índole, é o tipo da monarquia representativa. Seria
preciso ignorar a imensa influência que as religiões têm no desenvolvimento
intelectual e moral das grandes famílias humanas, na formação lenta da sua
índole particular, para não perceber quão difícil é dar um caráter, não só
novo, mas até oposto, ao seu organismo social e político". Em que pese a
inspiração religiosa do seu liberalismo, nem por isso fica minguada a
capacidade crítica de Herculano, conforme ele mesmo confessa: "Depois de
uma época de incredulidade em que lentamente perece uma religião, os espíritos
cultivados que adotam outra para encher um vácuo e para satisfazer a
necessidade psicológica de crer, nem por isso perdem de todo os hábitos de
ceticismo e, se abraçam com ardor a nova idéia na sua generalidade, não abdicam
de repente as tendências para a discussão e para a dúvida nas espécies
particulares" [apud Beirante, 1977: 68].
A mescla da herança iluminista-liberal e do espírito religioso, em
Herculano, que é típica aos românticos em geral, cria nele uma divisão interna,
que é caracterizada da seguinte forma por Beirante [1977: 66]: "Herculano
é um homem dividido: de algum modo é filho espiritual dos iluministas,
mas reage duramente contra a sua irreligião. Por um lado, é sensível ao acervo
das suas idéias, por outro lado, manifesta-se de acordo com muitas das críticas
que lhes são feitas pelos pensadores eclético-espiritualistas das primeiras
décadas de oitocentos. Herculano procura seguir uma via de conciliação entre os
sistemas opostos que se digladiavam surdamente desde finais do século XVII. Vai
adotar a forma do espiritualismo eclético, que afinal já era uma síntese
entre o cristianismo e a filosofia anterior". Podemos salientar,
finalmente, que a síntese entre liberalismo e cristianismo em Herculano
processou-se a partir da sua busca de um princípio que lhe acalmasse "a
necessidade psicológica de crer", sem contudo abandonar totalmente o
espírito da ilustração. Herculano relata, assim, a sua luta por encontrar esse
princípio religioso: "Não achando [...] esperança na religião da matéria
em que me criaram, fugi para a religião dos espíritos e, por uma teoria de
abstração subjetiva, expliquei como Deus me ajudou nas minhas, aliás
inexplicáveis, divagações" [apud Beirante, 1977: 65]. Esse espírito de
procura da religiosidade, como frisamos, é comum aos românticos. Eles, como
frisa Beirante, "vão criar uma nova tábua de valores religiosos, morais,
estéticos, etc., opostos à da filosofia das Luzes. Os escritores do romantismo
vão voltar-se para o Cristianismo primitivo sem as superstições de dezoito
séculos (na expressão de Herculano), ao contrário dos iluministas que
procuravam realizar a divisa de Voltaire: esmaguemos o infame"
[Beirante, 1977: 66].
Herculano, sem dúvida, acredita no progresso. Mas vincula a defesa deste
a um fundo moral, sem o qual perderia o sentido. Eduardo Soveral destacou
pertinentemente esse aspecto do pensamento herculaniano, da seguinte forma:
"Esclareça-se que a posição de Herculano quanto ao progresso técnico do
país, designadamente quanto à construção do caminho de ferro e da sua ligação à
Europa, era muito complexa. Tentarei resumi-la. A sua posição doutrinária de
fundo era a seguinte: a subordinação do progresso técnico a padrões morais era
condição sem a qual mais valeria que ele não se efetivasse. No que em
particular se referia a Portugal, e atendendo ainda ao facto de ser uma nação
pequena, e à generalizada tendência para aceitar sem crítica e imitar as idéias
e modas que o comboio nos traria diariamente de além-Pirineus, entendia que
assim ficaria em grande risco a nossa cultura e o nosso modo de ser. Só
gradualmente, e com um maior conhecimento e uma mais justa avaliação das nossas
tradições, esse ampliado contacto com o que nos era estranho seria benéfico e
não destrutivo. No plano econômico entendia que era prioritário o
desenvolvimento da agricultura, e que seria apoiando-se nela que a
industrialização devia operar-se. O recurso ao crédito externo, como acontecia
com a construção da linha férrea, traria certamente, segundo pensava, prejuízos
futuros" [Soveral, 2002: 8].
C) Liberalismo e Tradição.- No liberalismo
herculaniano encontramos uma ponte que o liga à tradição medieval, e que lhe
permite formular, já no campo das instituições políticas, soluções que sejam
aceitas pela Nação, cujo passado ele respeita. Atitude semelhante de culto à
tradição medieval encontramos na obra de John Locke, sobretudo quando o
filósofo inglês estabelece o princípio dos direitos da Nação, e o culto aos
valores religiosos como base da política, o que lhe faz mitigar o
individualismo e o racionalismo herdados, respectivamente, de Hobbes e de
Descartes. Essa presença da tradição, em Locke, deu-se graças ao influxo que
teve nele a obra de Richard Hooker (1554-1600) intitulada Ecclesiastical
Polity, verdadeiro compêndio das tradições medievais anglo-saxônicas em
matéria política. Pois bem, aspecto semelhante de culto à tradição encontramos
na obra de Herculano. Mais uma vez, a responsabilidade pela presença deste
aspecto no pensamento herculaniano cabe à sua inspiração romântica, como bem
salientou Joaquim Veríssimo Serrão [1977: 193]: "Tem de fixar-se o
princípio de que o nosso autor foi, ao mesmo tempo, um romântico e um liberal,
pela época em que viveu e pela expressão do seu ideário. Se a sua concepção
medieva e a busca de uma definição secular para a origem da nação portuguesa o
prendem ao movimento romântico, a valorização do homem como princípio e fim da
sociedade política tornou-o um liberal de expressiva marca. Como pensador,
Herculano foi mais romântico; como homem para quem a ação política tinha de
orientar-se pelo culto estrênuo de uma doutrina, impõe-se pela segunda face. É
na conjugação dos dois movimentos, sem qualquer escusada alternativa, que
Herculano encontrou a plena realização da sua personalidade, no diálogo
permanente que a si próprio impôs entre a pureza doutrinal e a sua vivência no
tempo". Diálogo permanente que decorre, ao nosso modo de ver, da
influência marcante que os doutrinários franceses exerceram na sua obra e no
seu pensamento. Afinal, essa tensão constante entre a concepção do mundo e a
ação para transformar o universo político, constitui a marca registrada de
homens como Guizot, Royer-Collard e dos que, na França, recolheram essa
herança, como é o caso de Tocqueville, ainda no século XIX e de Raymond Aron,
no século seguinte.
Um texto do nosso autor serve para ilustrar o profundo respeito que ele
professa pelas tradições da Nação portuguesa. Eis as suas palavras: "Oh!
Que se a minha débil voz pudesse retumbar nos paços dos grandes e no conselho
dos legisladores, eu lhes dissera: nossa glória passou, e o nome português é a
fábula do mundo. Caímos no fundo do nosso abatimento, incertos acerca do
futuro; é para o passado que, sem rubor ou sem custos, podemos volver os olhos:
não apagueis portanto na face da terra natal todos os vestígios de recordações
de consolo. Esses claustros, esses templos ora desertos, eram cheios de vida e
de ruído em dias de virtude e de renome, e por baixo dessas lages dormem homens
que nos legaram larga herança de boa fama. Não vendais ao rico as ossadas dos
nossos antepassados, que disso tomarão as raças vindouras estreita conta à
vossa memória, nem fieis da piedade do abastado, porque a infâmia que lhe
aumentar os tesouros deixa de lhe ser infâmia. Ele espalhará ao vento as cinzas
aviltadas, com o mesmo descaro com que o verdugo espalha as do justiçado,
condenado a assim cumprir com a sua justiça. Monumentos da história e fonte de
meditações são os sepulcros, e em quase todas essas campas, hoje cobertas de
musgo, se lê em letras meias gastas o nome de varões abalizados. Eles passaram,
mas oxalá nunca a sua memória pereça. É ela o grito de consciência nacional:
este grito, se o deixardes soar, talvez ajude à liberdade a regenerar os nossos
filhos" [apud Serrão, 1977: 49-50].
D) O Patriotismo.- Em que pese a
caracterização de estrangeirado com que Joaquim Barradas de Carvalho
(1920-1980) tentou tipificar Herculano, o liberalismo do historiador português,
pelo contrário, é de profunda inspiração nacional. Poderíamos aqui lembrar tudo
quanto foi afirmado anteriormente sobre o culto ao passado e acerca do papel
atribuído à religião no pensamento herculaniano. O patriotismo foi uma das
características da geração do nosso pensador.
Veríssimo Serrão [1977: 11] afirma a respeito que "um forte
sentimento pátrio animou os homens do século XIX, que punham os valores
nacionais acima do ideário pessoal e, quando não o faziam na prática, tinham
pelo menos a consciência de respeitar esse princípio. Foi esse um dos grandes
legados do liberalismo que cumpre nesta hora relembrar na figura de um dos seus
maiores. Também a crença nos direitos individuais que animou o espírito
oitocentista, mantém viva a ressonância dos que acreditam no homem como o fim
último da sociedade". Segundo a análise crítica que Herculano faz da
história portuguesa, a falta de força moral que por volta de 1870 se alastrava
em Portugal não era conseqüência da liberdade, mas justamente tinha sido
causada pela carência dela, pois tanto o absolutismo quanto a influência
francesa conseguiram perverter a reta evolução do espírito medieval português.
Em que pese o sistema constitucional da sua época ser "incompleto,
contraditório, às vezes absurdo", ele não foi responsável pela
descaracterização do país, mas a má aplicação que se fizera dele. Herculano
frisava que "o mal está antes no país que nas instituições", nunca
deixando de nutrir a esperança de que o seu ideal tivesse perenidade [cf.
Serrão, 1977: 205-206].
E) Preocupação com o aperfeiçoamento das
instituições políticas.- Ao ser a história, segundo Herculano, a
simples manifestação de idéias que obedecem a um plano previamente traçado pela
sabedoria divina e que evoluem de acordo com a vontade de Deus, a organização
social dar-se-á em base à manifestação desse plano divino, cujos arautos serão,
no sentir de Herculano, os espíritos ilustrados, autênticos representantes do
sentido comum da sociedade. Assim, segundo diz Saraiva [1976: 109], "a
razão pública se converte na razão de uma aristocracia encarregada de pensar
pelo todo coletivo de que faz parte; e a soberania do direito na soberania de
um grupo privilegiado". O pensamento elitista de Herculano é o mesmo que
empolgava ao partido cartista. Antônio José Saraiva [ibid.] sintetizou esse
elitismo assim: "à soberania popular contrapõe-se uma sociedade
hierarquizada politicamente, em que o voto pertence à aristocracia selecionada
pelo censo: soberania da Razão ou do Direito era o nome que se dava à soberania
desta oligarquia".
Na base da concepção herculaniana sobre a sociedade hierarquizada,
encontramos duas tradições que inspiram o seu pensamento, provenientes porém de
horizontes diferentes. De um lado, achamos a herança liberal clássica de John
Locke, com a sua insistência na representação de interesses, na sociedade,
através de uma elite abençoada por Deus, no contexto da mentalidade calvinista:
os proprietários. Só que no caso de Herculano, que teoriza fora do contexto
calvinista, os simples proprietários são substituídos pelo mercador, o artista,
o industrial, o professor, o homem de letras, o proprietário urbano ou rural, o
cultivador, o capitalista, "todos esses atentados vivos contra a igualdade
democrática" tão combatida por Herculano. De outro lado, encontramos na
visão hierárquica de Herculano a inspiração organicista, que o leva a defender
a idéia de umas classes médias reguladoras da sociedade. Influência certamente
haurida da leitura de Guizot. Uma sociedade puramente igualitária conspira
contra a realidade das coisas humanas. A desigualdade é um fato normal da
sociedade, porque decorre da natureza orgânica que lhe é própria. Em que pese a
visão organicista e hierárquica da sociedade, não podemos desconhecer a
valorização que Herculano faz da soberania popular, expressada através das
eleições.
De acordo com o providencialismo herculaniano, existe uma norma absoluta
ou arquétipo, que permanece no mundo das idéias, que é superior às sociedades e
independente das suas fases históricas e pela qual devem ser aferidas as
instituições e as ações dos homens. A idéia da justiça transcendente e soberana
insere-se no contexto dessa crença. "Acreditamos na justiça - frisa
Herculano - como verdade absoluta pela qual as sociedades vão procurando aferir
os seus atos à medida que se aperfeiçoam" [apud Saraiva, 1976: 104]. É
aqui que Herculano desenvolve a sua teoria da soberania. A sociedade consegue
realizar a idéia de justiça, se fazendo representar moderadamente através das
elites ilustradas - que para Herculano identificam-se com as classes médias
portuguesas da sua época - mediante o voto censitário, as eleições indiretas e
o reconhecimento da monarquia como garantidora da estabilidade do Estado. As
classes médias estariam integradas pelos mais capazes. É a noção já elaborada
por Guizot de "cidadão capaz", pivô da sua teoria da soberania, como destaca
com pertinência Pierre Rosanvallon [1985: 121]. O poder é algo que existe de
fato na sociedade; o papel da soberania popular é justamente o de tratar de
reduzir ao mínimo o caráter despótico do poder, de forma que transluza na
sociedade a idéia da justiça. E só o sistema representativo garante esse
processo. A palavras de Herculano a respeito são taxativas: "Acreditamos
na razão humana indagadora das leis do justo, como fonte de soberania. É por
isso que queremos a verdade do sistema representativo, que proporciona à razão
os meios de se produzir e manifestar pela discussão, de ser consagrada pela
eleição, e de reduzir constantemente o poder de fato à soberania de
direito" [apud Saraiva, 1976: 106].
Herculano considera que para garantir a liberdade do sistema representativo,
o regime mais consentâneo é o governo parlamentar. Além disso, é necessário
defender constantemente a imprensa e zelar pela pureza do sistema eleitoral. Na
geração contemporânea do nosso autor coube a um grande estadista, Mouzinho da
Silveira, pôr em prática muitas das idéias professadas por ele. Sobre Mouzinho,
escreveu Herculano em 1841: "Só havia um homem capaz de aplicar a
filosofia à política: era o homem que tornou impossível o regime absoluto em
Portugal, o senhor Mouzinho da Silveira" [apud Beirante, 1977: 50]. Num
ensaio publicado em francês, em 1856, quinze anos depois, Herculano refere-se
assim à obra do estadista: "Mouzinho fut un verbe, una idée faite
chair: il a été la personification d'un gran fait social, d'une révolution qui
est sortie de sa tête". Os seus relatórios como ministro da Fazenda
não propunham senão "la réligion du bien-être matériel du progrès
économique" [apud Beirante, ibid.]. O próprio Mouzinho, no seu testamento,
expressa a sua missão de estadista nestes termos: "Vim ao mundo em época
fertilíssima em reflexões e invenções, que devem mudar a face do mundo para
grande melhoria material e para melhor multiplicação do gênero humano"
[apud Beirante, ibid.]. O aspecto central da obra de Mouzinho consistiu em
deitar as bases para o surgimento, em Portugal, de uma classe média rica e
capaz de sustentar as instituições do governo representativo, dentro da mais
clara referência ao ideário dos doutrinários franceses. As reformas que
Mouzinho encaminhou e que empolgaram Herculano, dizem relação à supressão das
ordens religiosas que pretendiam se manter sobranceiras ao Estado, à eliminação
do papel-moeda para conter o surto inflacionário, à redistribuição das terras
favorecendo a produtividade, ao combate à exploração escravista nas colônias e
à luta contra a improdutividade do clero e da nobreza.
6 - Crítica à filosofia incrédula.
Herculano não nega validade à filosofia. Insurge-se, sim, contra o
pensamento iluminista que, a partir de Voltaire, desconheceu o fato religioso.
Considera que essa filosofia vã é a responsável direta pelas crises da
sociedade européia ao longo do século XIX. Eis a forma em que o nosso autor
caracteriza a obra da filosofia incrédula: "Como a florinha do campo, a
alma por onde passou a procela da filosofia, esse turbilhão transitório de
doutrinas, de sistemas, de opiniões de argumentos, pende desanimada e tristonha;
e na claridade baça do cepticismo, que torna pesada e fria a atmosfera da
inteligência, não pode aquecer-se aos raios esplêndidos do sol de uma crença
viva" [apud Beirante, 1977: 65]. Herculano julga severamente as escolas
que, a seu ver, deixaram em segundo plano o aspecto religioso. A respeito, o
nosso autor escrevia em 1838: "A verdade! Que é a verdade? [...] Quem me
dará uma resposta cabal? [...] Cada uma das escolas que perquire desde os
acesos partidários do prazer, os histriões de ferro, chamados Estoicos; desde
os semicristãos Platônicos, até os semirepublicanos Epicúreos, desde o
pessimista Heráclito até o otimista Pangloss, passando pelo justo meio do
compensador Azaís, cada escola me aturde com a sua quimera especial [...]. Na
terra, porém, ser-nos-á totalmente defesa a Verdade? Creio que não" [apud
Beirante, 1977: 91].
Para o historiador português, só é válida a obra da razão que se abre à
fé. É o que Herculano expressa no seguinte texto: "A crença da civilização
devia ligar-se com esta: a guerra entre o Evangelho e o Progresso era absurda:
era guerra entre luz e luz, não entre luz e trevas. Concordes a fé e o saber, a
sua ação sobre os destinos das nações brevemente será imensa e irresistível. É
por isto, incrédulos, que vos não convém tentar outra vez reconstruir o andaime
podre do filosofismo cadavérico. Por vosso próprio interesse deixai pelas
tabernas sua derradeira estância; deixai-o pavonear-se na praça, mas não o
leveis (...) para o mundo imenso, solene, santo, das inteligências! Resignai-vos,
pois, em silêncio, na vitória intelectual do cristianismo contra a filosofia da
incredulidade" [apud Beirante, ibid.]. Levando em consideração que a
fundamentação da moral humana estruturou-se, segundo Herculano, por via
sobrenatural através da Revelação Bíblica, ele não tem inconveniente em duvidar
da capacidade da razão, lhe atribuindo impotência radical que só é superada
pela intuição mística, graça divina, que se constitui em única possibilidade
para atingir o Absoluto. Assim, Herculano vê impossível aceitar, tout-court,
o ecletismo, que supõe a capacidade da razão humana. Mas o nosso autor utiliza,
no entanto, algumas respostas desse sistema, para equacionar problemas
concretos, como o relacionado à interpretação do processo histórico, ou o que
se refere à teoria política do Estado ou à reforma literária.
O fundamental, do ângulo da epistemologia da verdade, é reconhecer a
Providência divina. Uma vez aceito este ponto de vista, bem-vinda a razão
iluminada pela fé e administrada pelas classes médias, postas por Deus para
garantir o feliz desfecho da história portuguesa. Herculano é um audaz defensor
da liberdade de imprensa que, sabe, beneficia a atuação das classes médias,
contra os radicais e os absolutistas. No seu belo opúsculo intitulado A
Imprensa, o nosso autor faz uma clara profissão de fé liberal (como
outrora fizera o precursor dos doutrinários, Benjamin Constant de Rebecque, no
famoso discurso que constitui o testamento ideológico do autor de Princípios
de Política) [cf. Constant, 1970]. O historiador português defende sem
meias tintas a liberdade de imprensa, pautada certamente pela defesa dos
interesses da média da opinião, ou seja, das classes médias, as chamadas a
dirigir a sociedade portuguesa pelo caminho do bem comum a todos os cidadãos.
Herculano frisa a respeito: "A liberdade de imprensa é um dogma, o
primeiro da religião política moderna, e para muitos até um axioma de
filosofia: uma potência essencialmente superior a todas forçosamente é livre.
Fique portanto dogma e axioma, porém entenda-se qual é o sentido que neste caso
cabe à palavra liberdade. [...] Não falamos aqui senão em relação à moral e à
política. A imprensa moderada produz a verdade e a animação para o bem; o
silêncio da imprensa ou o delírio frenético da imprensa, nublam a verdade,
tiram a energia e o gosto do bem, fazem que a opinião tornada falível, nem seja
prêmio a bons e castigo a maus, porque maus e bons a desprezam, como ela
merece: quando se pode chamar e se chama ladrão a todos, o que o é consola-se
com a honrada companhia em que o meteram; o que não era, talvez, e até por
despeito, se decide a aproveitar os prós do ofício, de que já lhe fizeram
sofrer os percalços. A aplicação copiosa e injusta da pena, quebrou-lhe o que
ela tinha de doloroso, criou uma espécie de impunidade, equivalente a uma mudez
profunda da opinião. [...] A liberdade de imprensa, como as demais liberdades,
deve, portanto, ter a sua medida e esta medida não pode ser outra senão a que
naturalmente limita todas essas liberdades para que possam coexistir em
proveito de todos os cidadãos" [Herculano, 1898e: 17-23].
Mas se a crítica à filosofia incrédula leva Herculano a descartar os
excessos do iluminismo na versão francesa, de outro lado, em virtude do mesmo élan
liberal e antidogmático, o nosso autor é tremendamente duro para com o espírito
ultramontano, encarnado na atitude jesuítica, que utiliza as instituições
eclesiásticas para fortalecer uma proposta de dominação despótica. Herculano,
como outros católicos liberais do seu tempo (Tocqueville na França ou Rui
Barbosa no Brasil, por exemplo), não aceita o clericalismo no seio da sociedade
civil. Um trecho apenas para ilustrar essa feição do nosso pensador. No
opúsculo intitulado A reacção ultramontana em Portugal, ao analisar a
perniciosa presença do espírito jesuítico, Herculano escreve, em 1857, ao
ensejo da perseguição que lhe foi movida pelos jesuítas: "Onde vos
dissemos, filhos de Santo Inácio, que éreis incapazes de um assassínio moral?
Onde vos dissemos que não podíeis minar debaixo da terra como a toupeira,
cortar a raiz de uma planta, destruir uma existência literária? Onde que não
tínheis força para fazerdes um acervo dessa lepra de Job, que devora moralmente
tantos dos nossos homens públicos, e que todas as telhas do maior edifício da
capital não bastariam a raspar, para o atirardes contra um indivíduo? O que vos
dizíamos é que sois muito fracos, não diante de um homem que podeis ferir de
noite e pelas costas, mas diante do país, diante da razão pública, diante da liberdade,
a quem deveis tudo e que haveis traído vestindo a santa roupeta. (...), O
terreno pois da contenda é um terreno neutro, onde os homens de bem e sinceros
de todas as escolas políticas podem pelejar unidos como irmãos. A guerra é
contra a usurpação estrangeira e com o jesuitismo e ultramontanismo ad hoc
de certo tipo de reacionários, fezes de todos os partidos (...). O catolicismo,
ainda o mais fervoroso, é estranho à contenda. Não se trata hoje da crença que
herdamos de nossos pais e que devemos transmitir intacta a nossos filhos.
Trata-se do direito. Trata-se de manter os limites do sacerdócio e do império.
Acima também do debate está o sumo pontífice, o primaz da igreja católica, o
primeiro entre os seus coepiscopos. Impecável e santo perante os homens,
enquanto espontânea e individualmente não transpõe os limites em que
circunscrevem a sua ação as instituições eclesiásticas, cumpre-nos curvar a
cabeça diante dele como chefe visível da igreja, no exercício das suas
legítimas atribuições. O que não somos obrigados a aceitar é os erros e abusos
dos seus ministros ou a deslealdade dos nossos [...]" [Herculano, 1908:
7-15].
Herculano atribui papel importante à Igreja portuguesa na formulação da média
da opinião no seio das classes médias, que devem dirigir o processo
político. Mas a voz que deve ser escutada é, fundamentalmente, a do Pároco
de Aldeia (que significativamente é o título de um dos seus mais
importantes romances). O historiador português desconfia da cúria romana e de
tudo quanto simbolizar fidelidade política a um soberano além fronteiras.
Aceita a autoridade espiritual do Papa, nunca a sua ingerência em assuntos
políticos. António José Saraiva ilustrou muito bem a posição do nosso autor, no
seguinte trecho: "O alto clero e as ordens religiosas são peças essenciais
do mundo feudal, pois são eles que desfrutam os dízimos e outros direitos
feudais, e que dispõem dos chamados bens de mão morta, retirados da circulação
de capitais. A classe média dos párocos de aldeia não é economicamente solidária
com o antigo regime, vive, como qualquer trabalhador, das missas, batizados ou
casamentos que celebra, e, pormenor que Herculano salienta, nada lucra com os
dízimos. Julgava-se possível um entendimento entre a burguesia clerical e a
burguesia econômica, política e cultural. Segundo a bela utopia de O Pároco
de Aldeia, competiria aos párocos divulgar a mensagem evangélica tal como o
liberalismo a concebia: a mensagem igualitária e fraternal, que condenava os
escribas e fariseus, que derruía em nome da justiça a exploração do que
trabalha pelo que não trabalha, que inspiraria a tolerância, que fortaleceria
as virtudes sociais, o amor da família, a morigeração, os hábitos da caixa
econômica. Insuflar um espírito novo nas antigas formas rituais, valorizar o pároco
a expensas do alto clero e utilizá-lo na difusão do catolicismo liberal - tal
parece ser o pensamento fundamental d' O Pároco de Aldeia, o qual
nos dá a chave da aparente contradição do tradicionalismo e reformismo no
pensamento religioso de Herculano" [Saraiva, 1976: 76].
7 - O romantismo de Herculano e o de Domingos
Gonçalves de Magalhães.
Tentando reivindicar uma visão espiritualista do homem, o ecletismo
espiritualista de Magalhães, o maior expoente do romantismo no Brasil,
desempenha um papel similar ao representado pela obra de Herculano em Portugal.
Não cabe aqui uma exposição completa do pensamento de Magalhães. Simplesmente
procederemos, à maneira de conclusão deste ensaio, a uma rápida comparação do
pensador brasileiro com Herculano. Há nos dois autores um ponto de partida
comum: o afã de reivindicar nas obras literárias a importância da fé na vida do
homem, e a crença, profundamente enraizada, de que só em Deus alcança pleno
sentido a vida humana. Mas enquanto Herculano desenvolve, a partir daí, uma
concepção religiosa e não filosófica do mundo, Domingos de Magalhães parte para
um autêntico trabalho de cunho filosófico. A respeito, escreve um dos mais
importantes estudiosos brasileiros deste último, Roque Spencer Maciel de Barros
(1927-1999): "Magalhães responde filosoficamente à questão que já
suscitara como poeta: encontra, tão racionalmente quanto lhe é possível, aquele
fundamento religioso a que, como poeta, chegara pela fé... A razão justifica a
fé e aniquila a dúvida e o ceticismo" [Barros, 1973: 222]. Contrastando
com a descrença herculaniana nos sistemas filosóficos, Domingos de Magalhães
fundamenta toda a sua obra teórica numa visão filosófica, que deita as bases
para uma concepção espiritualista do mundo, na qual possam se inspirar, por sua
vez, a justificação racional da liberdade, da moral e ainda da política,
conforme expressa no Prólogo à sua obra principal, Fatos do Espírito Humano.
A respeito, escreve Roque Spencer: "Só a filosofia - e naturalmente uma
filosofia verdadeira - pode dar, em plenitude, as razões do espiritualismo e
justificar a própria fé" [Barros, 1973: 222].
Em contraste com a fundamentação da conduta humana no fato religioso
cristão feita por Herculano, Gonçalves de Magalhães baseará toda a sua visão da
liberdade e da moral, numa análise filosófica inspirada em Cousin e
parcialmente em Malebranche e Berkeley. Magalhães tenta uma explicação do homem
em termos puramente espiritualistas, que negam qualquer valor substancial ao
mundo material, mesmo ao próprio corpo, já que o universo sensível só existe
intelectualmente em Deus, como pensamentos seus. O homem, preso no corpo, é
livre por ser espírito e adquire a conotação de ente moral justamente em
virtude dessa "resistência do corpo". A moral de Magalhães, como a de
Cousin, é uma moral do dever que valoriza a intenção do autor e não o resultado
do ato" [Barros, 1973: 220-221]. Há, no entanto, um traço comum à teoria
herculaniana e à visão filosófica de Magalhães: em virtude do fundo
neoplatônico que anima, de longe, os seus sistemas de pensamento, há a
tendência, em ambos, a infravalorar o mundo visível, bem considerando que por
trás dele há uma idéia, dirigida em última instância pela Providência divina
(Herculano), ou bem identificando o mundo sensível, sem mais, como pensamento
de Deus (Magalhães). Contudo, a diferença fundamental consiste no fato já
mencionado de Domingos de Magalhães valorizar a meditação filosófica, enquanto
Herculano a desvaloriza. Em relação a Magalhães é importante salientar que, de
acordo com a sua visão da moral do dever, há uma relação direta entre
moralidade e sociedade. O homem é moral porque inserto no corpo e, logicamente,
na sociedade. "Moralmente falando - escreve Magalhães - o ato é bom, justo
e belo, se serve para a conservação e perfeição da sociedade; e a intenção é
pura e meritória, se tende ao mesmo fim. A intenção é imoral, e seu mérito
nenhum, se o egoísmo, o amor próprio determinou o ato" [Apud Barros, 1973:
221].
BIBLIOGRAFIA
·
BARROS, Roque Spencer Maciel de [1973]. A
significação educativa do romantismo brasileiro: Gonçalves de Magalhães.
São Paulo: Edusp / Grijalbo.
·
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