Esta exposição consta de duas partes: I - Perfil bio-bibliográfico. II – A sociologia de Sílvio Romero.
Nasceu
Sílvio Romero em 21 de abril de 1851, na vila de Lagarto, pertencente, nessa
época, à Província de Sergipe, na região nordeste do Brasil. Os seus pais foram
André Ramos Romero (1814), originário do norte de Portugal, "muito
inteligente e muito satírico" nas palavras de Luís Washington Vita (1921-1968);
a mãe foi Maria Joaquina Vasconcelos da Silveira, e se caracterizava, como
frisa o mencionado autor, por ser uma "senhora de uma bondade inesgotável
e espontânea". Estudou as primeiras letras na sua vila natal, tendo
viajado, em 1863 para o Rio de Janeiro, então capital da Corte do Império do
Brasil, com a finalidade de ali realizar, no Ateneu Fluminense, os estudos
preparatórios para ingressar na Faculdade de Direito.
Em
relação a essa sua primeira fase de formação acadêmica, escreveu Luís Washington
Vita: "Das ‘saudosas reminiscências’ de sua aprendizagem de preparatórios
destacará cinco homens que ‘influíram assaz’ em seu pensamento, dentre os quais
Joaquim Veríssimo da Silva, lente de Filosofia, ‘pelas exposições da metafísica
alemã, principalmente de Kant, de que se mostrava grande sabedor’, e o padre
Patrício Muniz, mestre de Retórica e Poética pelas excursões que, em conversa,
fazia também pelos domínios germânicos, de cuja filosofia era muito admirador,
combinando-a, já se vê, com a Escolástica. Consoante Sílvio Romero, ‘esses dois
fizeram-me divisar, ao longe, os sistemas filosóficos’".[1]
O
nosso autor retornou ao Nordeste em 1868, tendo ingressado, com a idade de 17
anos, na Faculdade de Direito do Recife. Teve oportunidade de conhecer, entre
os mestres dessa Faculdade, a Tobias Barreto (1839-1889), Joaquim Nabuco
(1849-1910) e Tristão de Alencar Araripe Júnior (1848-1911). Ainda como
estudante começou a colaborar nos jornais da cidade. Formado bacharel em
Direito no ano de 1873, foi nomeado, no ano seguinte, promotor da Comarca de
Estância, em Sergipe, tendo sido eleito, logo depois, deputado provincial. Em
1875 casou-se com Clarinda Diamantina Correia de Araújo, que foi a sua primeira
esposa. Prestou concurso, nesse mesmo ano, para a cadeira de Filosofia no
Colégio das Artes, anexo à Faculdade de Direito. Ainda em 1873 defendeu tese de
doutoramento em Direito, na Faculdade do Recife, tendo publicado, outrossim, o
seu primeiro livro intitulado: Etnologia selvagem. Em 1876 foi nomeado juiz
municipal em Parati, na Província do Rio de Janeiro. Em 1878 publicou dois
livros, intitulados: Cantos do fim do século - poesias e A filosofia
no Brasil. Este último livro deu ensejo a forte polêmica com o seu
condiscípulo Antônio Herculano de Souza Bandeira (1854-1890).
Em
1879 Sílvio Romero fixou residência no Rio de Janeiro e passou a colaborar, frequentemente,
na imprensa com o pseudônimo de Feuerbach, tendo nos seus artigos atacado
figuras do parlamento imperial. Esses escritos foram, posteriormente,
publicados sob o título de Ensaios de crítica parlamentar (1883). Em
1880 fez concurso para a cadeira de Filosofia do Colégio Imperial Pedro II,
tendo defendido, nessa oportunidade, a tese intitulada: Da interpretação
filosófica na evolução dos fatos históricos, sendo aprovado e nomeado
professor.
Em
1882, o nosso autor publicou a Introdução à história da literatura
brasileira. É do ano seguinte o seu segundo livro de poesias intitulado: Últimos
arpejos. Em 1884, publicou Estudos de literatura contemporânea. A
sua primeira esposa faleceu em 1885. Em 1887 publicou livro crítico intitulado:
Uma esperteza, em que polemizava com o estudioso e escritor português
Teófilo Braga (1843-1924). Nesse mesmo ano casou-se em segundas núpcias com
Maria da Rocha Liberato. No ano seguinte, o nosso autor publicou a sua mais
importante obra, a História da literatura brasileira. Em 1889, ano da
morte de Tobias Barreto e de instauração da República no Brasil, o nosso autor
ensaiou a atividade política, tendo publicado um Manifesto aos
eleitores da Província de Sergipe, bem como uma Mensagem dos homens de
letras do Rio de Janeiro ao Governo Provisório.
Em
1890, o nosso autor organizou o Partido Nacional, tendo-se apresentado como
candidato a senador por essa agremiação política. Derrotado nas urnas, Sílvio
regressou a Sergipe em 1891. No ano seguinte faleceu a sua segunda esposa. Casou
em terceiras núpcias com Maria Pereira Barreto, em 1894. Engajado na política
do seu Estado natal, o nosso autor participou ativamente do movimento popular
que derrubou, nesse mesmo ano, o governador Calazans. Ainda em 1894, publicou
importante obra de crítica ao positivismo, intitulada: Doutrina contra
doutrina. No ano seguinte, Sílvio Romero publicou os seus Ensaios de
filosofia do direito.
Junto
com Joaquim Maria Machado de Assis (1839-1908), o nosso autor participou da
fundação da Academia Brasileira de Letras, tendo ocupado a cadeira que tem como
patrono Hipólito da Costa (1774-1823). Nesse ano publicou a obra intitulada: Machado
de Assis, contra a qual se posicionou o conselheiro Lafayette Rodrigues
Pereira (1834-1917). Em 1898, o nosso autor foi eleito deputado federal pelo
Estado de Sergipe, tendo sido o relator do Projeto de Código Civil.
Abalado na sua saúde, viajou para a Europa em busca de tratamento, tendo ficado
na França e em Portugal durante três meses. Em 1904 publicou os seus Discursos
pronunciados na Câmara Federal e deu continuidade à polêmica encetada havia
já alguns anos com Teófilo Braga, mediante a publicação da obra intitulada: Passe
recibo. Em 1906, junto com João Ribeiro (1860-1934), publicou o Compêndio
de Literatura Brasileira, tendo pronunciado, nesse mesmo ano, na Academia
Brasileira de Letras, o Discurso de recepção a Euclydes da Cunha.
No
ano de 1909, teve oportunidade de dar parecer favorável ao pensador cearense Raimundo
de Farias Brito (1862-1017), que pleiteava a cadeira de Lógica no Colégio Pedro
II, tendo-se aposentado, no ano seguinte, após trinta anos de exercício do
magistério público. Doente de tuberculose, transferiu-se, em 1911, para Juiz de
Fora em Minas Gerais, tendo publicado, ali, ensaios polêmicos e libelos
políticos (por exemplo contra José Veríssimo, contra Laudelino Freire, contra
Júlio de Castilhos, contra a política dos governadores, etc.). Fundou,
outrossim, nessa cidade mineira, a Faculdade de Direito, que seria
posteriormente integrada, já em meados do século XX, à Universidade Federal
local. Em 1913 afastou-se da Faculdade Livre de Ciências Jurídicas e Sociais do
Rio de Janeiro, onde lecionava Filosofia do Direito. Como paraninfo dos
formandos desse ano na mencionada Faculdade, pronunciou o seu último discurso
intitulado: O remédio. Faleceu no Rio de Janeiro em 18 de julho de 1914,
aos 63 anos de idade.
II
– A sociologia de Sílvio Romero.
É
meu propósito, nesta segunda parte, ilustrar a forma em que o sociólogo
sergipano Sílvio Romero formulou o seu método monográfico (elemento fundamental
do culturalismo sociológico) e a maneira segundo a qual ele efetivou a crítica
ao monocausalismo em ciências sociais. A fim de cumprir com esse propósito e
para enquadrar a análise proposta no contexto do pensamento sociológico
universal e destacar, de outro lado, as influências que da metodologia
romeriana decorreram para a ulterior evolução da sociologia no Brasil,
dividirei a minha exposição em três itens, a saber: 1) a influência recebida
por Sílvio Romero da sociologia de Frédéric Le-Play (1806/1882); 2) o método
monográfico em Sílvio Romero e a sua crítica ao monocausalismo em ciências
sociais; 3) a herança do método monográfico de Sílvio Romero na sociologia de
Francisco José de Oliveira Vianna (1883-1951).
1)
A influência recebida por Sílvio Romero da sociologia de Frédéric Le-Play.
Embora
pertencessem a universos intelectuais diferentes, pois Le-Play era um típico
representante do conservadorismo católico francês, fato que levou Jean Touchard
(1918-1971) a caracterizar o seu pensamento como procedente “de uma espécie de
positivismo católico” com traços mitigados de saint-simonismo,[2]
ao passo que Sílvio Romero inspirava-se num positivismo temperado pelo
spencerismo, sem que o iluminasse a perspectiva católica,[3]
o certo é que o sociólogo francês deitou as bases do método monográfico que o
brasileiro assumiu nas suas pesquisas sociais.
Em
vários escritos seus, Sílvio Romero deixou clara a inspiração do seu método na
sociologia de Le-Play. No prefácio à segunda edição da sua obra intitulada: Filosofia
do Direito, por exemplo, Romero escreveu: “Sendo o autor professor de
Filosofia do Direito na Faculdade Livre de Ciências Jurídicas e Sociais do Rio
de Janeiro, era natural que procurasse pôr o seu livro de acordo com o programa
de sua cadeira. É o que fez. (...). E para facilitar-lhe a tarefa, não oculta
as influências que, com maiores ou menores reduções, tem sofrido seu espírito
até a situação atual. (...). Mais recentemente, [tem sido influenciado pelos]
grandes discípulos de Le-Play — Edmond Demolins (1852-1907), Paul de Rouziers,
Henri de Tourville (1842-1903), L. Poinrard, A. de Preville — nos processos de
observação aplicados com peculiar capricho às classes sociais e ao estudo das
nações (...)”.[4]
No
Prefácio que Sílvio Romero escreveu para os seus Ensaios de Sociologia e
Literatura, destacava, da seguinte forma, a inspiração que o seu método
sociológico recebeu da escola lepleyana, salientando que, o que lhe interessou
nela, não foi tanto a classificação dos fenômenos sociológicos, quanto as
questões diretamente relacionadas à metodologia monográfica. Eis as palavras de
Romero a respeito: “Resta-nos (...) referir a nomenclatura social de Henri de
Tourville, o ilustre continuador e reformador da doutrina de Le-Play, o grande
espírito que melhor aplicou o método da observação na ciência social. Quando
demos a primeira edição deste livro (...), não conhecíamos, ainda, os
consideráveis estudos dessa escola, cujos processos e métodos adotamos, porque
eles vêm reforçar as doutrinas capitais do evolucionismo sociológico de Herbert
Spencer (1820-1903). A nomenclatura de Henri de Tourville foi organizada em
1886, no mesmo ano em que apareceu a Introduction à la Sociologie de de
Greef (...) e é esta: Meios de Existência, o Lugar, o Trabalho, a
Propriedade, os Bens Móveis, o Salário, a Poupança (sobras econômicas), a
Família, o Modo de Existência, a Patronagem, o Comércio, as Culturas
Intelectuais, a Religião, a Vizinhança, as Corporações, a Comuna, as Uniões de
Comunas, a Cidade, a Região (divisão da Província), a Província, o Estado, a
Expansão da Raça, o Estrangeiro, a História da Raça, a Posição ou Hierarquia da
Raça. Esta nomenclatura é desenvolvida e sustentada em graves argumentos.
Parece-nos, porém, mais uma série de questões e problemas a serem estudados
pelos processos de observação, do que uma classificação dos fenômenos
sociológicos”.[5]
No
Prólogo à segunda edição da sua obra intitulada: Doutrina contra doutrina: o
Evolucionismo e o Positivismo no Brasil, o nosso autor escreve: “As páginas
precedentes, a este assunto consagradas na primeira edição deste livro, devem
agora ser ampliadas e retificadas pelo que aprendemos nos estudos dos
discípulos da escola de Le-Play, cujos processos fundamentais adotamos, além de
grande parte de suas conclusões sobre a índole das nações antigas e modernas. A
família, estudada quer historicamente, quer na atualidade, apresenta quatro
modalidades típicas, do maior valor para quem quiser compreender a índole das
sociedades a quem servem de base fundamental. Uma sociedade vale pelo que vale
nela a família. Os quatro tipos são: família patriarcal, família quase
patriarcal, família-tronco (“souche”), família instável, aceitando as
modificações feitas nas idéias de Le-Play, por seus discípulos. O velho mestre
só tinha classificado três tipos e acertadamente foi corrigido neste ponto”.[6]
Antes
de analisar a exposição que Sílvio Romero fez do seu método sociológico e da
forma em que ele criticou o monocausalismo, destacarei os aspectos fundamentais
da metodologia lepleyana. Segundo frisou um dos mais importantes discípulos de
Le-Play, Edmond Demolins, no opúsculo intitulado: Le-Play et son oeuvre de
réforme sociale,[7]
o autor buscava identificar, na paciente análise dos fenômenos sociais, as leis
que garantiriam a paz das sociedades. Ora, essas leis, cientificamente
descobertas, deveriam ser imutáveis, em que pese o fato de, somente mediante a
experiência, poderem ser conhecidas.
“Habituado
pelos seus estudos profissionais — escreve Demolins de Le-Play — ao rigor dos
cálculos matemáticos e das observações científicas, ele se recusava a aceitar,
como muitos dos seus condiscípulos [da Escola Politécnica de Paris], os
sistemas teóricos e a priori das diversas escolas sociais. Deveria haver,
pensava ele, um critério que permitisse reconhecer, com toda evidência
científica, as causas que produzem a prosperidade ou a decadência das
sociedades. Esse critério não poderia estar presente nas invenções teóricas e
arbitrárias, mas nos fatos sociais metodicamente observados. Efetivamente,
posto que existem leis para as sociedades de formigas e de abelhas, elas devem
existir, também, para a sociedade dos homens, que é mais elevada e mais
perfeita, e essas leis não poderiam variar com os países e as épocas. Elas
deveriam ser imutáveis e serem reconhecidas pelo fato de que ensejariam, sempre,
a paz e a estabilidade. Trata-se, pois, não de se trancar no seu gabinete, como
Rousseau, para dissertar ali, doutoralmente, sobre a constituição dos povos,
mas de percorrer o mundo para ali recolher fatos, muitos fatos que, uma vez
coordenados, deverão revelar o segredo das sociedades humanas, bem como as leis
fundamentais que os povos não podem desconhecer, sem cair na decadência e na
decomposição”.[8]
Demolins
considerava que a sociologia leplayana se defrontava com uma dificuldade
básica: como organizar a multidão heterogênea de fenômenos observados? No
entanto, as primeiras viagens de estudos feitas por Le-Play na Europa, logo lhe
revelaram o caminho para organizar os fatos apreendidos: tratava-se de estudar,
pacientemente, as condições em que viviam os povos que tinham conseguido
conservar a paz social e a estabilidade. De outro lado, o sociólogo francês
compreendeu que “deveria se despojar, de entrada, de todos os preconceitos que
a sua educação e o meio em que vivia poderiam ter sedimentado no seu espírito,
a fim de aceitar todas as verdades que lhe fossem reveladas pela observação,
mesmo que elas contradissessem as suas mais caras crenças”.[9]
Essa observação, cientificamente conduzida, permitiria ao estudioso “fazer, de
alguma maneira, a autópsia do corpo social, classificar os fatos observados
numa ordem científica e daí induzir as conseqüências, com uma evidência capaz
de ensejar a convicção de qualquer espírito desejoso de chegar à verdade”.[10]
Entendendo
o corpo social como um grande organismo, Le-Play considerava que as leis gerais
do mesmo deveriam já estar escritas nas suas células. Daí por que ele achava
que se deveria, primeiro, analisar as idéias, costumes e instituições da vida
privada, que se encontravam presentes, com anterioridade ontológica, na
família. Nisso consistia, basicamente, o método monográfico. A respeito,
Demolins escrevia: “(...) Le-Play encontrou a revelação do método das
monografias num fato que foi colocado em evidência pelas suas diversas
observações, a saber, que a verdadeira constituição de um povo repousa nas
idéias, nos costumes e nas instituições da vida privada, mais do que nas leis
escritas; a vida privada é a que imprime o seu caráter à vida pública; a
família é a que constitui o princípio do Estado”.[11]
Estava
formulado, destarte, o método monográfico. De acordo com ele, a pesquisa
sociológica deveria se debruçar sobre as tipologias familiares, a fim de
observar as leis fundamentais que presidiam à sua organização para, depois,
formular os princípios reitores da organização do Estado. Demolins concluía
nestes termos: “(...) Desta forma, a maneira de proceder estava naturalmente
indicada. Tratava-se de observar, nos mínimos detalhes, um certo número de
famílias, a fim de descobrir ali, na sua fonte mais profunda, as causas da
força e da fraqueza, da prosperidade ou da decadência das nações. Limitado
assim à família, o trabalho de observação que teria sido vago, indefinido e sem
conclusões possíveis, se tivesse sido aplicado quer aos indivíduos isolados,
quer ao conjunto dos fatos sociais, converter-se-ia em algo preciso e
concluente”.[12]
2)
O método monográfico em Sílvio Romero e a sua crítica ao monocausalismo em
ciências sociais.
Como
foi destacado no item anterior, Sílvio Romero, seguindo a proposta de Henri de
Tourville, alargou o universo inicialmente indicado por Le-Play para os seus
estudos monográficos, passando da família à sociedade, entendida esta não como
um todo unitário a ser estudado a partir de um único ângulo, mas como
totalidade complexa, passível de ser analisada a partir de “uma série de
questões e problemas a serem estudados pelos processos de observação”. Essas
questões e problemas tinham sido assim enunciados por Tourville: meios de
existência, o lugar, o trabalho, a propriedade, os bens móveis, o salário, a
poupança, a família, o modo de existência, a patronagem, o comércio, as
culturas intelectuais, a religião, a vizinhança, as corporações, a comuna, as
uniões de comunas, a cidade, a região, a província, o Estado, a expansão da
raça, o estrangeiro, a história da raça e a posição ou hierarquia da raça. Ora,
Sílvio Romero adotou o método monográfico aplicado a essas variáveis, pelo fato
de ser compatível com “as doutrinas capitais do evolucionismo sociológico de
Spencer”.
No
contexto do positivismo evolucionista que o empolgava, Sílvio Romero
considerava que não se podia mais admitir a contraposição entre ciências da
natureza e ciências do homem. ”Semelhante antinomia — escreveu o pensador
sergipano — foi um dos grandes embaraços ao espírito científico dos velhos
tempos. A intuição evolucionista de nossa época atravessou esta barreira e
arredou este empecilho. O homem é apenas um fenômeno no imenso mundo dos
fenômenos; a sociedade, um grande fato observável no meio de milhares de outros
fatos também observáveis. (...). Por amor ao método, podemos, ainda hoje, falar
da Natureza e da Humanidade, como os dois grandes todos, as duas enormes somas
de fenômenos, as duas colossais esferas diversas de fatos que, tendo muitos
pontos de contato, são igualmente capazes de dar lugar a duas peculiares
ciências: a Naturalística, Naturologia, Cosmológica, Cosmologia, ou qualquer
outra denominação mais perfeita, de um lado, e a Sociologia, Socialística,
Socionomia, ou qualquer outro nome mais bem-feito, de outro lado”.[13]
Entendendo
a filosofia à maneira positivista, como classificação das ciências, e a
história à maneira spenceriana, como apreensão do processo evolutivo do
espírito humano, Romero classificou as ciências em quatro grandes grupos: a)
Propedêuticas (Lógica — ou formas do mundo subjetivo — e Matemática — ou formas
do mundo objetivo); b) Naturalística (Mecânica, Física, Astronomia ou Física
Celeste, Geogenia — Geologia, Mineralogia e Geografia —, Química, Biologia e
Psicologia); c) Transição (Antropologia, Etnografia e Lingüística) e d)
Socialística (Indústria ou Ciências das Indústrias ou Economia Política, Arte e
Ciência das Artes — ou Estética —, Religião e Ciência das Religiões —ou Crítica
Religiosa, Direito e Ciência do Direito — ou Jurisprudência, Política — ou
Ciência da Política e da Administração do Estado — e Moral e Ciência da Moral —
ou Ética).[14]
Essa
classificação centrava-se, como frisamos atrás, ao redor de dois grandes pólos:
a Natureza e o Homem. O princípio que rege a classificação romeriana é de cunho
evolucionista e foi identificado pelo nosso pensador como “da complexidade
crescente”. Eis a forma em que Romero exprimia esse princípio, no contexto da
explicação por ele formulada acerca da classificação das ciências: “A
explicação deste quadro didático da classificação das ciências é fácil. Predomina
nele o princípio da complexidade crescente, base de toda classificação
racional. Inicia-se a série pelo que pode haver de mais geral e simples: as
formas e relações, quer do mundo subjetivo, quer do objetivo. As idéias aí
reinantes de coexistência e sucessão, simbolizadas nos conceitos de espaço e
tempo, dão lugar à Lógica e à Matemática, que constituem uma espécie de
Propedêutica geral do estudo das ciências. Após esta propedêutica se destacam
os dois grandes objetos de conhecimento: a Natureza, o Mundo, o Universo, como
lhe queiram chamar, e o Homem, a Humanidade, a Sociedade”.[15]
Retomando
a idéia romântica de Zeitgeist (espírito do tempo), num contexto de
positivismo dinamizado pela concepção evolucionista, Romero destacava que o
clima dos novos tempos era, no terreno da classificação das ciências, o da
interrelação dinâmica entre elas, de forma que a renovação das ciências
naturais provocava a reformulação das humanas. Na sua obra intitulada: Ensaio
de Filosofia do Direito, Romero escrevia a respeito: “Aqueles que formamos
idéia exata das evoluções do pensamento humano, sabemos que a lei de seu
desenvolvimento é um agente de transformações. Todas as ciências avançam nessa
translação; umas agem sobre as outras, e é deste modo que as morais
experimentam, sempre, o impulso provindo das físicas e naturais. Uma vez que
tenham estas últimas revelado alguma verdade nova, cumpre àquela modificar suas
concepções. É sabida a revolução que fez no mundo filosófico a descoberta das
verdadeiras leis do Universo. A própria história, que é o receptáculo supremo
de todos os avanços triunfais das idéias, modifica-se também por elas”.[16]
Quais
são as condições de cientificidade da sociologia? Certamente, destaca Sílvio
Romero, não poderíamos exigir que nela se desse sempre e infalivelmente a
previsão constante e a verificação imediata. Mas, nem por isso a sociologia
carece de estatuto científico. No seu Ensaio de Filosofia do Direito, o
nosso pensador fixava assim esse estatuto: “Decerto, se de ciência formularmos
um conceito exagerado, se dissermos, verbi gratia, que só é ciência ‘um
complexo de conhecimentos organizados e sistematizados de forma que neles se dê
sempre e infalivelmente previsão constante e verificação imediata’; se dermos
tal definição, a Sociologia não é ciência; porém, com ela saem do quadro
científico todas as suas companheiras, restando apenas a Matemática. Mas isto é
absurdo. Para haver ciência é suficiente a delimitação dos assuntos, a
possibilidade de aplicar-lhes o método, a sistematização geral, a indução de
leis fundamentais, a previsão mais ou menos segura em vários casos, a
verificação na maioria das hipóteses. Destarte, a Sociologia entra no quadro. O
mais é exagero”.[17]
Em
que pese a presença, na sociologia romeriana, de uma herança determinística,
proveniente, sem dúvida, da sua inspiração positivista (fato que levou Romero a
formular, como já foi mostrado, o princípio de que as ciências morais
“experimentam sempre o impulso provindo das físicas e naturais”), o pensador
sergipano deixou claro, contudo, no que tange às ciências sociais, a
inexistência de hierarquias ou possíveis substituições entre as variáveis
estudadas. Isso equivale, sem dúvida, a rejeitar a idéia de monocausalismo. A
propósito, escreveu o nosso autor no seu Ensaio de Filosofia do Direito:
“Não há lugar aqui para hierarquias quaisquer, nem para substituições possíveis
ou prováveis. O mais que neste terreno se poderá praticar é distribuir por
grupos os fenômenos sociais, ou criações fundamentais e irredutíveis da
humanidade, segundo a nossa expressão. Será alguma coisa de análogo ao que
Herbert Spencer fez com as ciências. Assim, as sete ordens de fenômenos da
nossa classificação: Criações Industriais ou Econômicas, Criações Religiosas,
Criações Artísticas ou Estéticas, Criações Científicas, Criações Jurídicas,
Criações Morais, Criações Políticas, se podem distribuir em dois grandes
grupos: criações ou fenômenos atinentes a necessidades práticas, por assim dizer,
materiais da vida social, e criações ou fenômenos atinentes a necessidades
teóricas, ou ideais”.[18]
Não
é difícil descobrir, neste ponto, a inspiração de Romero em Le-Play. Segundo
testemunho de Demolins, uma vez aplicado o método monográfico a um grande
número de famílias, o sociólogo francês descobriu que “os povos devem chegar a
duas necessidades essenciais, primordiais, cuja satisfação é, para eles, de uma
absoluta necessidade: o ensino da lei moral, que reprime nos indivíduos a
tendência ao mal e a posse do pão cotidiano, que permite satisfazer as
necessidades da existência. As sociedades que preenchem estas condições são
felizes e prósperas e as que não as equacionam são sofredoras e infelizes”.[19]
Romero
agrupou, nas criações do grupo prático, a indústria, o direito, a moral e a
política e, nas do grupo teórico, a religião, a arte e a ciência. E não duvidou
em destacar o caráter equivalente e irredutível de todas elas. A respeito, o
nosso autor escreveu, no seu Ensaio de Filosofia do Direito: “É claro
que tal distribuição de fenômenos, coevos, contemporâneos em todas as fases do
desenvolvimento social, não deve desconhecer a interdependência que eles mantêm
entre si, nem a irredutibilidade que devem conservar, e têm conservado de fato
até hoje, a despeito de quaisquer pretensões ilusórias e passageiras em
contrário”.[20]
Comentando
a afirmação de Immanuel Kant (1724-1804) de que “Há duas coisas que enchem a
minha alma de respeito e admiração: o céu estrelado por cima de nossas cabeças
e a lei moral dentro de nós”, o pensador sergipano escreveu, destacando a
perfeita compatibilidade entre poesia e ciência: “E Kant sabia bem o que era o
céu estrelado, ele, o grande autor da hipótese cosmogônica dos gases de que
Laplace apenas fez o cálculo, e sabia, melhor ainda, o que era a lei moral,
ele, um dos mais autorizados predecessores da teoria da descendência apenas
desenvolvida por Darwin. Um grande sábio ou um grande gênio não deixa de
inspirar respeito, até ao mais materialista e mecanicista de todos os homens.
As belezas da Natureza não foram ainda despoetizadas pela Ciência, a despeito
das declamações em contrário. Não existe, em suma, antinomia entre conhecimento
e veneração, dado de barato que houvéssemos mister de um culto da humanidade, o
que não é absolutamente preciso. O que nos cumpre é conhecer os problemas,
todos os problemas da vida social, para minorar os males, se possível for, da
pobre humanidade, começando por tirá-la da tentação da sociolatria”.[21]
O
nosso autor rejeita, como se pode observar, a religião da humanidade comteana,
que fazia da sociedade objeto de culto, não objeto de estudo. Mas, mesmo
reconhecendo o estatuto científico da sociologia, Romero destaca a secreta
vinculação que encadeia toda a série de criações do espírito humano (entre as
quais se encontra a poesia), sob o primado do “espírito preparado pela crítica
científica”. A respeito, o pensador sergipano escreveu, no seu Ensaio de
Filosofia do Direito: “É uma verdade já muito repetida que a poesia e a
arte sempre trazem o cunho dos tempos que atravessam. Qual é o cunho do nosso?
Reconhecem todos: o espírito preparado pela crítica científica, pelo criticismo
filosófico e pelo transformismo biológico (...). A poesia não é uma sombra misantrópica,
sem alegrias, sem esperanças, que não quer assistir às lutas, às glórias do
século. Não é uma força que vai perdendo a vida, que não anda, que se sente
morrer, que desespera de si. Como tudo, ela é forçada a seguir o foco de onde
se desentranha, a onda que a leva. Este foco, esta onda são o próprio homem; se
este não cansa, a poesia não deve parar. A poesia vive conosco, palpita no seio
da humanidade, é um dos seus predicamentos imanentes. O homem interior
reforma-se com as evoluções da história e novas inspirações se mostram no seio
da literatura. Na vasta obra da poesia e da arte, transformadas pela ciência e
pelas novas inclinações da cultura contemporânea, todos os assuntos têm o
direito de apresentar-se. Nem será isto sua característica especial. A questão
não é de número e sim de intuição. A poesia e a arte devem, pelas
transformações filosóficas, moldar suas criações; e a poesia, sobretudo, não
escapa a esta necessidade; é a que mais se lhe deve acomodar. Se a intuição
criticista espancou da ciência o sobrenatural, indicando o caráter e a seriação
de todas as crenças humanas; se o colocou em região inacessível ao pensamento,
quando mostrou as leis da evolução histórica, não deve a poesia ser obstinada
em conservar suas velhas fantasias. As artes, dando às causas seu inteiro
rigor, não se conformam por si; dependem de um material estranho que lhes
fornece a vida: o espírito do tempo”.[22]
Mas,
indagamos: se o espírito do tempo é conformado à luz da resposta crítica dada
pela razão face à natureza, não estaria o pensador sergipano privilegiando uma
ordem de fenômenos, os naturais, sobre o fenômeno humano? E se, no interior
deste último, o espírito do tempo é forjado ao ensejo da resposta crítica que a
razão dá, seguindo a corrente assinalada pelas ciências da natureza, não estará
a poesia prisioneira da razão científica? Não parece que o nosso autor consiga
superar essa aporia, em decorrência de sua inspiração positivista e
spenceriana, em que pese a profissão de fé humanista que o vimos fazer ao se
referir à criação poética.
Sílvio
Romero dedicou especial atenção à discussão acerca de se a sociologia negava a
liberdade humana. Essa problemática tinha sido levantada por Tobias Barreto,
que afirmava: “Enquanto não se provar ser a vontade humana uma força motriz,
como o calor ou a eletricidade, a sociologia nada vale”.[23]
O nosso autor considerava que a dificuldade levantada pelo fundador da Escola
do Recife decorria de um duplo equívoco: em primeiro lugar, postular um único
tipo de causalidade para todas as ciências, o mecanicista; em segundo lugar,
afirmar um conceito de liberdade à maneira dos escolásticos, como liberdade
absoluta ou liberum arbitrium indifferentiae. Ora, Sílvio Romero mostrou
que nem uma nem outra hipóteses eram válidas. No seu Ensaio de Filosofia do
Direito, o grande sergipano afirmou: “Opinamos de modo diverso: admitimos
com Tobias Barreto a liberdade, e com Spencer a sociologia. Não existe
incompatibilidade entre as duas afirmações. O próprio filósofo brasileiro nos
fala de uma ciência do Direito, como disciplina da sociedade, ciência que
deveria ser impossível se onde se desse a liberdade, como no Direito, não
chegasse a Ciência. Esse preconceito (...) provinha de outro ainda maior: supor
que só [de] mecanismos, só de coisas mecânicas é que pode haver ciência. Tal a
razão por que ele acrescenta —‘enquanto não se provar ser a vontade humana uma
força motriz, como o calor ou a eletricidade, a Sociologia nada vale’. Nosso
trabalho neste ponto está, pois, indicado pelo próprio filósofo, nosso amigo:
provar a existência da liberdade e conciliá-la com a Ciência. A primeira parte
da empresa é quase desnecessária, porquanto ele próprio admite a liberdade.
Ninguém hoje acredita mais, nem defende a liberdade absoluta (...). Sustenta-se,
apenas, a liberdade relativa, fato indiscutível da consciência. Reconheceu-se,
e Tobias Barreto mais tarde, também, entrou nesta direção, ser ela um predicado
da inteligência mais do que da vontade”.[24]
Qual
era o conceito positivo que de liberdade tinha Sílvio Romero e em relação ao
qual firmava o conceito de Sociologia como ciência humana? Seguindo a teoria de
Wilhelm Wundt (1832-1920), o pensador sergipano definiu a liberdade como
sentimento em que entram elementos da inteligência e da vontade.
No
seu Ensaio de Filosofia do Direito escreveu a respeito: “A liberdade não
é um princípio peculiar da vontade, nem privativo da inteligência, é produto
inteiramente similar aos sentimentos. A crítica profunda de Wundt tirou
completamente a limpo a natureza complexa destes últimos, em que entram
elementos da sensibilidade e da inteligência, reunidos sinteticamente. É o que,
parece-nos, acontece com a liberdade; é um sentimento em que entram elementos
da inteligência e da vontade. É tão inatacável como o são o sentimento do belo,
o sentimento da honra, o sentimento do amor ou outro qualquer, que tem as suas
raízes nas profundezas mais recônditas da psicologia humana. Admitida assim a
liberdade, não é mister identificá-la a um produto mecânico para conciliá-la
com a Ciência. Semelhante rigor levar-nos-ia, também, a não admitir como
ciência nem a Psicologia, nem a Estética, nem a Moral, nem a própria Biologia,
naquilo em que esta mesma não admite explicações mecânicas, na opinião de Kant,
abraçada por Tobias Barreto. É, além disso, um abuso injustificável pretender
que só do mecânico pode existir ciência. A razão deste desacerto reside no fato
de suporem seus autores que só existe previsão nos fatos mecânicos das ciências
exatas. Já Spencer provou contra (James) Froude (1818-1894) que a última
afirmativa não é exata, isto é, provou que, em Sociologia, há muitas vezes
previsão e que esta nem sempre existe nas ciências exatas”.[25]
3)
A herança do método monográfico de Sílvio Romero na sociologia de Francisco
José Oliveira Vianna (1883-1951).
O
método monográfico da escola de Le-Play, complementado com a assimilação que do
mesmo fez Sílvio Romero, teve influência significativa na obra de Oliveira
Vianna, notadamente nos seus estudos de Sociologia do Direito. Analisando as
relações entre Direito, Cultura e Comportamento Social, Oliveira Vianna
lembrava que dos oito métodos enumerados por Jacobsen como utilizáveis no
estudo da ciência política, do direito público e das instituições do Estado
(histórico, comparativo, filosófico, experimental, biológico, psicológico e
legístico), só apenas um tinha sido aplicado no Brasil, o legístico, que “(...)
vê a sociedade política apenas como uma coleção de direitos e obrigações
expressos em lei e tende a não levar em conta as forças sociais e extralegais,
sem as quais, entretanto, não seria possível nenhuma explicação que corresponda
aos fatos da vida do Estado”.[26]
Quanto
ao moderno método científico ou sociológico, que se caracteriza pela
objetividade dos seus critérios, Oliveira Vianna supunha que, em geral, os
nossos juristas o consideraram uma impertinência, continuando fiéis à
metodologia de Rui Barbosa (1849-1923). O pioneirismo nesse campo estava
representado, no sentir do sociólogo fluminense, por Alberto Torres (1865-1917),
Sílvio Romero, Euclides da Cunha (1866-1909) e por ele mesmo. A respeito,
escreveu: “O segundo tipo de estudos — do direito como costume ou cultura — tem
o seu primeiro padrão nos estudos de Torres, começando com a pioneiragem de
Sílvio e Euclides. Depois, no estudo sistemático e rigorosamente científico
que, nos meus livros, venho fazendo da história e da sociologia das nossas
instituições políticas e partidárias”.
Oliveira
Vianna informava ter sido Sílvio Romero quem primeiro o influenciou, desde
1900, quando ainda era estudante. O elemento mais importante dessa influência
foi a revelação da escola lepleyana, cujo critério monográfico Oliveira Vianna
achou desde então o mais apropriado para o estudo do povo brasileiro. O
ulterior encontro com Alberto Torres (em 1914), quando o nosso autor já era
bacharel em Direito, bem como o estudo dos sociólogos americanos, vieram
aprofundar a herança recebida.
Para
Oliveira Vianna era um fato que o método sociológico aplicava-se, cada vez com
maior intensidade, ao campo do direito. A grande preocupação aqui era com a
objetividade, que ele entendia assim: “Objetividade — eis o caráter que
distingue esta face moderna da ciência do direito, esta nova metodologia, esta
nova atitude dos espíritos em face do fenômeno jurídico. Estudar a vida do
direito criminal, do direito constitucional, do direito internacional com a
mesma objetividade com que Lucien Levy
Bruhl (1857-1939) estudou as funções mentais nas sociedades primitivas, ou Alfred
Radcliffe-Brown (1881-1955) os ritos mágicos dos indígenas das Ilhas Adaman, ou
Bronislaw Malinowski (1884-1942) a vida dos insulares da Melanésia —eis o ideal
do moderno estudo do direito como ciência social, seja o Direito Privado, seja
o Direito Público”.[27]
Mas
o método monográfico não deveria se restringir, no conceito de Oliveira Vianna,
aos estudos de sociologia do direito. Deveria, ao contrário, ser o método que
inspirasse a pesquisa sociológica, em qualquer terreno em que ela se
desenvolvesse. No campo social, encontra-se multiplicidade de linhas de
evolução, e de fatores que intervêm nessas linhas. “Para essa multiplicidade de
tipos —escrevia Oliveira Vianna—, para essa variedade de linhas de evolução,
para este heterogenismo inicial contribui um formidável complexo de fatores de
toda ordem, vindos da Terra, vindos do Homem, vindos da Sociedade, vindos da
História: fatores étnicos, fatores econômicos, fatores geográficos, fatores
históricos, fatores climáticos, que a ciência cada vez apura e discrimina,
isola e classifica. Estes predominam mais na evolução de tal agregado; aqueles,
mais na evolução de outro: mas, qualquer grupo humano é sempre conseqüência da
colaboração de todos eles; nenhum há que não seja a resultante da ação de
infinitos valores, vindos, a um tempo, da Terra, do Homem, da Sociedade e da
História. Todas as teorias, que faziam depender a evolução das sociedades da
ação de uma causa única, são hoje teorias abandonadas e peremptas: não há
atualmente monocausalismos em ciências sociais”.[28]
Entre
todos esses fatores, e sem pretender ensejar uma explicação monocausalista,
Oliveira Vianna considerava de alta importância o elemento por ele chamado de
“ambiente cósmico”, ligado, basicamente, às condições do solo. Achava que em
seu tempo prevaleciam, em ciências sociais, os trabalhos monográficos, que
tentavam identificar os elementos específicos que intervinham em determinado
meio “cósmico”. Esses trabalhos deveriam ter como ponto de partida uma única
preocupação: conhecermo-nos a nós mesmos, deixando de lado as tentativas de
acomodar a nossa realidade a modelos teóricos pré-fixados.
A
grande contribuição dada por Oliveira Vianna ao método monográfico da escola
lepleyana, adotado por Sílvio Romero, foi o fato de tê-lo desvinculado do
contexto positivista e evolucionista em que tinha sido inicialmente formulado.
A respeito, escrevia o sociólogo fluminense: “Desde o momento em que a ciência
confessava a sua ilusão e reconhecia que as leis gerais, a que havia chegado,
não correspondiam à realidade das formas infinitas da vida, compreendi que a
melhor coisa a fazer não era insistir por encerrar a nossa evolução nacional
dentro dessas fórmulas vãs ou querer subordinar nosso ritmo evolutivo a um
suposto ritmo geral da evolução humana — ao evolucionismo spenceriano, como fez
Sílvio Romero, à teoria filogenética de Ernst Haeckel (1834-1919) como fez
Fausto Cardoso (1864-1906), ou à lei dos três estados, como têm feito os
positivistas sistemáticos. Pareceu-me trabalho inútil esforçar-me por descobrir,
nos acontecimentos da nossa história, a revelação dessas leis gerais, de que a
própria ciência acabava de instaurar o processo de falência. O mais sábio
caminho seria tomar, para ponto de partida, o nosso povo e estudar-lhe a gênese
e as leis da própria evolução. Se estas coincidissem com as supostas leis
gerais, tanto melhor para a ciência e para nós; se não, ficaríamos, pelo menos,
‘conhecendo-nos a nós mesmos’ —o que já seria alguma coisa, porque valeria o
consolo de estarmos com a sabedoria dos antigos”.[29]
Conclusão
Grande
foi a repercussão que teve, na sociologia brasileira, a adoção do método
monográfico lepleyano e a crítica efetivada por Sílvio Romero ao monocausalismo
em ciências sociais. Poder-se-ia afirmar, sem exagero, que o pensador sergipano
constituiu-se no precursor da sociologia brasileira. O seu método monográfico
seria posteriormente utilizado por estudiosos da talha de Euclides da Cunha e
Oliveira Vianna.
É
evidente que, como homem da sua época, Sílvio Romero deixou-se influenciar pelo
espírito do século, o positivismo evolucionista spenceriano. Tanto Sílvio
Romero quanto Le-Play, de outro lado, caem na tentação de pretender encontrar,
por trás dos fenômenos rigorosamente observados, leis gerais que pautam a
evolução das sociedades. Mas, não há dúvida de que Sílvio Romero deitou as
bases da metodologia monográfica, que utilizaria, posteriormente, um dos
grandes vultos do culturalismo sociológico brasileiro do século XX, Oliveira
Vianna, que, de outro lado, abriu-se ao estudo dos valores — como fizera Max
Weber (1864-1920) — ao analisar a problemática dos “complexos culturais”.
BIBLIOGRAFIA
DEMOLINS, Edmond [1884]. Le-Play
et son oeuvre de réforme sociale. Paris: La Réforme Sociale.
PAIM,
Antônio [1992]. “Romero (Sílvio)”. In: Lógos, Enciclopédia
Luso-Brasileira de Filosofia. (Edição organizada por Roque Cabral et
alii). Lisboa/São Paulo: Editorial Verbo, pp. 806/808.
TOUCHARD,
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espanhol de J. Pradera). Madrid: Tecnos, 1972.
VIANNA,
Francisco José de Oliveira [1956]. Evolução do povo brasileiro.
4a. edição, Rio de Janeiro: J. Olympio.
VIANNA,
Francisco José de Oliveira [1974]. Instituições Políticas Brasileiras.
Volume I, Fundamentos Sociais do Estado. 3. edição, Rio de Janeiro: Record.
VITA,
Luis Washington [1969]. "Introdução". In: Sílvio Romero, Obra
filosófica. (Introdução e seleção de Luís Washington Vita). Rio de
Janeiro: José Olympio; São Paulo: Edusp, pg. XI-XXIII.
[A
primeira parte deste texto, relativa ao perfil biobibliográfico de Sílvio
Romero, foi preparada, especialmente, para o Proyecto Ensayo, da
Universidade de Georgia, em março de 2003 (www.ensayistas.org).
A segunda parte, referente à sociologia de Sílvio Romero, foi apresentada como
comunicação no II Colóquio de Filosofia Luso-Brasileira, realizado em Ponta
Delgada, Ilha de São Miguel, Açores - Portugal, no mês de outubro de 1994.]
[2] TOUCHARD, Jean. História de las Ideas
Políticas. (Tradução ao espanhol de J. Pradera). Madrid: Tecnos, 1972.
P. 522.
[3] PAIM, Antônio. “Romero (Sílvio)”. In: Lógos,
Enciclopédia Luso-Brasileira de Filosofia. (Edição organizada por Roque
Cabral et alii). Lisboa/São Paulo: Editorial Verbo, 1992, pp. 806/808.
[4]
ROMERO, Sílvio. Obra Filosófica.
(Introdução e seleção de Luís Washington Vita). Rio de Janeiro: José Olympio;
São Paulo: Edusp. 1969, p. 499-500.
[5]
ROMERO, Sílvio. Obra Filosófica.
(Introdução e seleção de Luís Washington Vita). Rio de Janeiro: José Olympio;
São Paulo: Edusp. 1969, p. 608.
[6]
ROMERO, Sílvio []. Obra Filosófica.
(Introdução e seleção de Luís Washington Vita). Rio de Janeiro: José Olympio;
São Paulo: Edusp. 1969, p. 230; 629.
[7]
DEMOLINS, Edmond. Le-Play et son oeuvre de réforme sociale. Paris:
Aux Bureaux de la Réforme Sociale, 1884.
[14]
Cf. ROMERO,
Sílvio. Obra Filosófica. (Introdução e seleção de Luís Washington
Vita). Ob. cit., p. 515.
[15]
ROMERO,
Sílvio. Obra Filosófica. (Introdução e seleção de Luís Washington
Vita). Ob. cit., p. 516.
[16] ROMERO,
Sílvio. Obra Filosófica. (Introdução e seleção de Luís Washington
Vita). Ob. cit., p. 528.
[17] ROMERO,
Sílvio. Obra Filosófica. (Introdução e seleção de Luís Washington
Vita). Ob. cit., p. 545-546.
[19] DEMOLINS, Edmond. Le-Play et son oeuvre de
réforme sociale. Paris: La Réforme Sociale. 1884, p. 10.
[26] VIANNA,
Francisco José de Oliveira. Instituições Políticas Brasileiras. Volume I,
Fundamentos Sociais do Estado. 3. edição, Rio de Janeiro: Record. 1974,
p. 33-34.
[27] VIANNA,
Francisco José de Oliveira. Instituições Políticas Brasileiras. Volume I,
Fundamentos Sociais do Estado. Pg.35.
[28] VIANNA,
Francisco José de Oliveira. Evolução do povo brasileiro. 4a.
edição, Rio de Janeiro: J. Olympio. 1956, p.26-27.
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