José Ortega
y Gasset (1883-1955) considerava que os Liberais Doutrinários representaram
o que de mais interessante houve no século XIX na Europa. Isso porque eles
criaram o marco de referência para as mudanças políticas ocorridas no seio dos
Estados nacionais, na França, em Portugal, na Espanha e nos países da América
Latina. Uma vez consolidadas as instituições independentes das metrópoles
espanhola e portuguesa, os países ibero-americanos amadureceram no reformismo
de inspiração liberal, pela mão dos Doutrinários e dos
precursores deles, como Benjamin Constant de Rebecque (1767-1830) e Madame de
Staël (1766-1817). Mas, por outro lado, inspiraram-se, também, no
republicanismo revolucionário de feição rousseauniana e, nos momentos de
antítese autoritária, no bonapartismo ou no tradicionalismo à la Joseph
de Maistre (1753-1821) ou à la Luís de Bonald (1754-1840).
Síntese
paradoxal da dupla inspiração em Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) e Napoleão Bonaparte
(1769-1821) foi, por exemplo, Simón Bolívar (1783-1830), embora ele pretendesse
ser mais discípulo do filósofo de Genebra do que encarnação do Imperador dos
Franceses. As mudanças sociais foram pensadas, outrossim, à luz dos socialistas
utópicos seguidores de Augusto Comte (1898-1857) e de Henri-Claude de
Saint-Simon (1860-1925), bem como nos escritores que, no final do século XIX,
vulgarizaram os ideais socialistas, como Émile Zola (1840-1902).
Esta tese da
inspiração estrangeira (ibérica e ibero-americana, especialmente) nos autores
franceses, aliás, não é nova. É do próprio François Guizot (1787-1874), que na
sua Histoire de la civilisation
en Europe[1] (capítulo
14), ao fazer o balanço do que a França significou no contexto da civilização
ocidental, afirma que a marca registrada dessa influência consistiu em ter
realizado, de maneira superlativa, todas as grandes mudanças que foram
concretizadas, de forma moderada, pela Inglaterra. A França, efetivamente, viu
derrubar-se o mundo feudal muito cedo, sob o tacão de ferro de Filipe o Belo
(1268-1314), deu ensejo ao mais radical dos absolutismos monárquicos que
possibilitou a Luís XIV (1638-1715) afirmar "L'État c'est moi",
efetivou de maneira cruenta a revolução burguesa descabeçando literalmente
o Ancien Régime, consolidou um modelo jacobino de República
alicerçado no democratismo rousseauniano, que passou a ser o arquétipo pelo
qual se pautaram as novas Repúblicas surgidas na América Espanhola e
Portuguesa, ao longo do século XIX, etc., bem como as chamadas “Revoluções
Democráticas”, como a Bolchevique, de 1917, na Rússia.
A respeito
desse caráter superlativo das realidades e das idéias políticas na França —e no
continente europeu, em contraposição à Inglaterra—, escreveu Guizot: "Ao
contrário, nos Estados do continente, cada sistema, cada princípio, tendo
desfrutado do seu momento e dominado da maneira mais completa, mais exclusiva,
o seu desenvolvimento produziu-se em muita maior escala, com mais grandeza e
brilho. A realeza e a aristocracia feudal, por exemplo, comportaram-se na cena
continental com mais audácia, amplitude e liberdade. Todos os experimentos
políticos (chamemo-los assim) foram mais exteriores e mais acabados. Daí
resultou que as idéias políticas —falo das idéias gerais e não do bom senso
aplicado à direção dos negócios— elevaram-se a maior altura e desenvolveram-se
com mais vigor racional. Cada sistema, pelo fato de ter-se apresentado, de
certa forma, sozinho e de ter permanecido durante muito tempo em cena, pôde ser
considerado, no seu conjunto, pôde-se remontar aos princípios, descer até às
suas últimas conseqüências e estabelecer, plenamente, a sua teoria".[2]
Quanto ao
liberalismo, a experiência dos doutrinários está bem mais
próxima de nós, ibero-americanos, do que as lições que nos poderiam dar os
ingleses ou os norte-americanos. Isso porque a França do século XIX reproduzia,
com grande fidelidade, as contradições que vivemos nos nossos países nessa
centúria e ao longo do século XX, como também neste paradoxal início de
milênio. A evolução política contemporânea, na Espanha, em Portugal, na América
espanhola ou no Brasil, processou-se de forma muito mais parecida à França do
século XIX, do que aos Estados Unidos ou à Inglaterra. As idas e vindas da
nossa política oscilaram entre os extremos do feroz caudilhismo e do anárquico
democratismo.
As lutas dos
liberais ibero-americanos, em defesa da liberdade e do governo representativo, aproximaram-se,
muito mais, dos ingentes esforços, feitos por Guizot e pelos demais doutrinários, para
dotar a França de instituições que garantissem a frágil planta da democracia,
do que das pacientes reformas de William Pitt (1759-1806) e William Evart
Gladstone (1809-1898) na Inglaterra, que levaram ao pleno desenvolvimento do
Império britânico, alicerçado na livre iniciativa, na consolidação de uma
majoritária classe média e na tranquila
e rotineira representação de interesses. A idéia é de José Ortega y Gasset, que
concluía, em 1937: "este grupo de doutrinários, de quem todo
mundo riu e fez troça, é, no meu entender, o mais valioso que houve na política
do Continente, ao longo do século XIX".[3]
A
repercussão das idéias dos doutrinários no mundo ibérico e
ibero-americano começou, aliás, já no século XIX. Os liberais espanhóis,
liderados por Antonio Cánovas del Castillo (1828-1897), e que integraram a
denominada Geração dos Doutrinários de 1845, inspiraram-se,
diretamente, nos seus homólogos franceses, notadamente em Guizot.[4] A
influência deste pensador fez-se sentir, em Portugal, já nas ideias de
Alexandre Herculano (1810-1877). Algo semelhante ocorreu, no Brasil, entre os
denominados por Oliveira Vianna (1883-1951) de Homens de Mil, que
constituíram a geração de estadistas formados por dom Pedro II (1825-1891) e
que foram os responsáveis pela estabilidade política do Segundo Reinado. Um
desses Homens de Mil foi o visconde de Uruguai, Paulino Soares
de Sousa (1807-1866), que fundamentou boa parte do seu Tratado de Direito Administrativo, nas idéias e nas propostas
reformistas de Guizot.[5]
Outros estadistas como o Conselheiro José Tomás Nabuco de Araújo (1813-1878) e
o seu filho, Joaquim Nabuco (1849-1910), confessavam-se seguidores de
outro doutrinário, o mestre de Guizot e seu padrinho político,
Pierre-Paul Royer-Collard (1763-1825).[6]
Entre os
argentinos, para citar apenas um nome, encontramos um importante tributário da
dinâmica histórica idealizada por Guizot, em Domingo Faustino Sarmiento
(1811-1888), que foi presidente do seu país e escreveu essa magnífica obra que conta
a história das origens do patrimonialismo platino, intitulada: Facundo, civilización o barbarie, publicada em 1846.[7] Efetivamente,
Sarmiento, como já o fizera Guizot em relação à Europa, considerava a formação
argentina como fruto dialético da contraposição de dois princípios: a liberdade
bárbara do gaúcho, encarnado em Facundo Quiroga (1788-1835) e em Juan
Manuel Rosas (1793-1877) e o princípio centralizador da ordem, que faz uso do
direito, construindo o Estado sobre as leis (papel civilizador que pretendia
desempenhar o próprio Sarmiento e a elite de educadores-políticos por ele
inspirada).[8]
Desenvolverei
dois itens nesta apresentação: I – Breve síntese biobibliográfica de Paulino
José Soares. II – O Liberalismo Conservador do visconde de Uruguai.
I – Breve síntese biobliográfica de Paulino José Soares de
Sousa.
Paulino José
Soares, visconde de Uruguai, nasceu em Paris em 1807.[9]
Muito jovem ainda, veio para o Brasil em companhia dos seus pais, José Antônio (1777-1838)
e Antônia Madalena Soares de Sousa, tendo fixado residência na Província do
Maranhão. Começou, ali, a sua formação humanística. Com a idade de quinze anos
viajou para Portugal, a fim de iniciar, na Universidade de Coimbra, os estudos
de Direito. Nessa Universidade cursou até o quarto ano da carreira jurídica. Em
decorrência do fato de ter sido fechada essa Casa de Estudos com motivo da
revolução favorável a Dom Miguel de Bragança (1801-1866), o nosso autor viu-se
obrigado a se transladar ao Brasil, tendo concluído a sua formação superior na
Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, na capital paulista. Após o
recebimento do título de bacharel, em 1831, ingressou na magistratura, tendo
sido nomeado Juiz de Fora na cidade de São Paulo. Oito meses
depois foi transladado à Corte, no Rio de Janeiro, onde desempenhou,
inicialmente, o cargo de Juiz criminal e responsável pela Intendência da
Polícia. Pouco tempo depois, ocupou o cargo de Juiz cível da segunda vara da
Corte. Em abril de 1833, o nosso autor casou com Ana de Macedo Álvares de
Azevedo.
A partir de
1837, Paulino Soares ingressou na vida política, tendo sido eleito várias vezes
deputado pelo Rio de Janeiro e chegando até o alto cargo de senador do Império,
em 1849. A partir da sua eleição para a Câmara, o nosso autor vinculou-se ao
Partido Conservador (que tinha sido criado em 1837), ao lado de Bernardo
Pereira de Vasconcelos (1795-1850), marquês de Paraná. Exerceu em cinco
oportunidades as funções de ministro de Estado, à frente das pastas de Justiça
e dos Estrangeiros. Foi nomeado membro do Conselho de Estado pelo Imperador Dom
Pedro II, tendo sido de grande relevo a sua colaboração na formulação do
arcabouço administrativo do Império, bem como no delineamento da política
exterior brasileira, na segunda metade do século XIX. Em dezembro de 1854,
recebeu do Imperador o título de visconde de Uruguai. No ano seguinte, foi
incumbido da missão de representar o Império perante a corte de Luís Napoleão
(1808-1873), ao ensejo da negociação em torno da espinhosa questão da
demarcação de limites com a Guiana Francesa. A tese sustentada pelo nosso autor
(que indicava o rio Oiapoque como marco divisório dos territórios dos dois
países) terminou sendo acolhida pelo governo francês.
Paulino José
Soares, que ostentava a comenda de oficial da Ordem Imperial do Cruzeiro, foi
agraciado, em 1850, pelo rei de Nápoles, com a Grã Cruz da Ordem de São Genaro.
Recebeu, outrossim, do rei da Dinamarca, a condecoração da Ordem Real de
Danebrog, em 1852. Nesse mesmo ano, foi condecorado com a Ordem Imperial da
Coroa de Ferro, pelo Imperador da Áustria e com a da Ordem de Cristo, pelo rei
de Portugal. O nosso autor foi membro da Academia Tiberina de Roma, da Academia
Arqueológica da Bélgica, da Academia Britânica de Ciências, Artes e Indústria,
da Sociedade de Zoologia e Aclimatação de Paris, da Sociedade Animadora das
Ciências, Letras e Artes de Dunquerque, do Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro e do Rio da Prata e da Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional do
Rio de Janeiro. Veio a falecer em 15 de julho de 1866.
O cerne da
produção intelectual de Paulino Soares de Sousa centrou-se na construção dos
alicerces administrativos do Império, tendo-se colocado, decididamente, em
contra dos autores que propugnavam por uma organização federativa,
enfraquecendo o poder central. Paulino foi um dos homens públicos que deram
corpo à idéia do regresso, ou seja, de construção das instituições
brasileiras ao redor da figura monárquica. Como já foi frisado, o nosso autor
inspirou-se nos doutrinários franceses, notadamente em François Guizot. No
segundo item desta apresentação será destacada essa faceta do seu pensamento.
Se referindo à principal obra de Paulino José Soares, o Ensaio sobre o Direito Administrativo,
frisou o jurista Themístocles Brandão Cavalcanti (1899-1980): “A obra do
Visconde de Uruguai, modestamente intitulada de Ensaio, tem dois tomos. Sente-se no autor o político
preocupado com os problemas gerais da administração, com o valor e significação
das instituições políticas e administrativas vigentes e, também, o estudioso e
erudito assoberbado com a quantidade do material acumulado, material
legislativo e doutrinário, precisando, com tudo isso, construir uma obra que
exprimisse a síntese de toda a doutrina que então prevalecia. Esta obra teria
grandes proporções, e o Ensaio
sobre o Direito Administrativo, em dois tomos, é apenas a introdução ao que deveria
ser um verdadeiro tratado. O Ensaio contém
o material necessário ao estudo do Direito Administrativo. Ali se estudam os
elementos fundamentais do Direito Administrativo e, principalmente, a estrutura
do Estado e da Administração, o problema da centralização, do Poder Moderador,
da administração graciosa e contenciosa, do Conselho de Estado”.[10]
II – O Liberalismo Conservador de Paulino José
Soares de Sousa.
Destacarei
três aspectos, nesta exposição do pensamento do visconde de Uruguai. Em
primeiro lugar, mostrarei de que maneira Guizot foi o inspirador do Liberalismo
Conservador luso-brasileiro. Em segundo lugar, ilustrarei a influência
específica do estadista francês sobre Paulino José Soares de Sousa. Em terceiro
lugar, tecerei algumas considerações acerca do conceito de ética pública em
Paulino e em Guizot, mostrando a profunda semelhança entre ambos os estadistas.
1) O
pensamento político de Guizot, fonte do Liberalismo Conservador luso-brasileiro.
François
Guizot representou, para o pensamento político luso-brasileiro do século XIX, o
marco de referência conceitual do Liberalismo Conservador, um de cujos máximos
expoentes foi Paulino Soares de Sousa. A problemática vivida pelo Império
Brasileiro, na sua etapa inicial (correspondente ao Primeiro Reinado e ao
Período Regencial, e que se estende entre 1824 e 1840), era bem semelhante à
vivida pela França da época da Restauração (1814-1830). A vida política
decorria, no Brasil, (no período apontado) entre os extremos do absolutismo e
do democratismo rousseauniano. De forma semelhante, na França da Restauração,
os abismos estavam identificados, de um lado, com o espírito reacionário
dos ultras, que aspiravam os ares do Ancien Régime, e
com o bonapartismo, que constituía a versão burguesa do absolutismo; de outro
lado, com o jacobinismo revolucionário e o democratismo rousseauniano, que
tinham ensejado a Revolução de 1789 e o Terror.[11]
A queda
do Ancien Régime, ao tirar todo poder à Igreja, colocou no seu
lugar o homem de letras, certamente um intelectual diferente daquele do
Iluminismo, porquanto sensível à realidade histórica da época. A sua missão
consistiria em erguer um poder espiritual que iluminasse a sociedade com as
luzes de uma religião civil, diferente, por certo, da proposta por Rousseau,
porquanto compatível com uma sociedade estruturada em várias ordens de
interesses. Essa nova religião civil deveria garantir a unidade do tecido
social, ao redor de uma gama de interesses comuns a todas as classes e os seus
dogmas seriam objeto de um processo pedagógico ministrado pelos homens de
letras, que teriam, também, funções proféticas (porquanto pregoeiros de uma
nova era) e dirigentes (seriam, ao mesmo tempo, líderes da sociedade da sua
época). Françoise Mélonio (1953) sintetizou o perfil desses novos líderes, com
as seguintes palavras: "Saber para poder, superar a filosofia crítica das
Luzes para elaborar os novos dogmas, tal é o objetivo que todos, com não poucas
variações, perseguem, Jouffroi como Guizot, Comte, Hugo, Lamartine, Renan ou
Renouvier".[12]
"Passar
a França pós-revolucionária a limpo", esse poderia ter sido o princípio
inspirador dos chamados doutrinários, Guizot à testa. Quanto
ao nome dessa corrente, assim explica Pierre Rosanvallon (1948) o seu
significado: "A denominação de doutrinários, que parece ter
sido utilizada pela primeira vez em 1817 nos corredores da Câmara dos
Deputados, referia-se, no início, unicamente a Ennemond-Camille Jordan (1771-1821),
Victor de Broglie (1785-1870) e Pierre-Paul Royer-Collard (1763-1845). A
expressão caracterizará, em seguida, a corrente indissociavelmente intelectual
e política que se estruturará progressivamente ao redor de Guizot, aparecendo
este, após 1820, como o verdadeiro líder do que no início não era mais do que
um pequeno grupo de parlamentares".[13] O
grupo dos doutrinários esteve também integrado por Charles de Rémusat
(1797-1875) e de Serre. Tocqueville, como frisa Ubiratan Macedo (1937-2007),
"a rigor, não pode ser agregado aos doutrinários, mas é impensável sem
eles e corresponde, certamente, ao corolário de sua obra".[14]
O projeto
político de Guizot correspondia ao ideal de “finalizar a Revolução, construir
um governo representativo estável, estabelecer um regime que, fundado na Razão,
garantisse as liberdades. Esses objetivos definem a tripla tarefa que se impõe
a si mesma a geração liberal nascida com o século. Tarefa indissoluvelmente
intelectual e política, que especifica um momento bem determinado do
liberalismo francês: aquele durante o qual o problema principal é prevenir a
volta de uma ruptura mortal entre a afirmação das liberdades e o
desenvolvimento do fato democrático. Momento conceitual que coincide com o
período histórico (da Restauração e da Monarquia de Julho), no curso do qual
essa tarefa está praticamente na ordem do dia e que se distingue, ao mesmo
tempo, do momento ideológico, que prolonga a herança das Luzes, e
do momento democrático, que se inicia depois de 1848".[15]
Tarefa
intelectual e política. Efetivamente, a essência da proposta de Guizot
consistiu em pensar as novas instituições que garantissem, no plano político, o
exercício da liberdade. Esse pensar as novas instituições não era ato de uma
elite intelectual desligada da sociedade. Era função de uma elite, sim, pensar
os novos conceitos. Mas eles deviam se espraiar pelo resto da sociedade. Guizot
apostava no uso social da razão. A propósito, perguntava:
"O que é necessário para que os homens possam fundar uma sociedade um
pouco durável, um pouco regular?" E respondia: "É preciso,
evidentemente, que tenham um certo número de idéias suficientemente
desenvolvidas, para que convenham a essa sociedade, que respondam às suas
necessidades, às suas relações. É preciso, além do mais, que essas idéias sejam
comuns à maior parte dos membros da sociedade; enfim, que elas exerçam um certo
domínio sobre as suas vontades e as suas ações".[16]
Essa tarefa
político-pedagógica era pensada num pano de fundo histórico, inserindo as instituições
políticas no contexto mais amplo do espírito do tempo. A função
pedagógico-política do intelectual consistia em fazer descobrir aos franceses a
sua própria história. Guizot pretendia cumprir esse papel, em relação ao seu
país, doutrinando as classes médias, as únicas que conseguiriam manter a
unidade nacional, numa perspectiva de não privatização do poder por castas ou
estamentos. O pensador francês estabelecia um estreito elo de ligação entre a
conquista das liberdades individuais e a construção do Estado. Em relação a
esse ponto, escreve Rosanvallon:[17]
"A construção do Estado e o nascimento do indivíduo vão de mãos dadas: os
dois se fundam sobre a destruição das ordens fechadas".
As obras de
caráter histórico de Guizot tinham como finalidade ensinar às classes médias
essa sua importante missão de construir, na França, o Estado e a civilização. O
líder dos doutrinários e primeiro representante da chamada escola
histórica, "quer dar uma memória às classes médias, lhes restituindo a
história".[18]
A inserção da preocupação histórica, como parte essencial da tarefa dos
intelectuais, formou parte do clima que se seguiu na França, e na Europa em
geral, à Revolução Francesa. Talvez aí radicassem as reservas com que Guizot
enxergava a obra de Comte, dogmática demais segundo o seu ponto de vista, em
boa medida por não levar em consideração, suficientemente, os fatos históricos.[19]
Ao passo que os philosophes do século XVIII davam as costas
ostensivamente à realidade, transformando o seu discurso numa abstração,
(Tocqueville aderiria posteriormente, em L'Ancien Régime et la
Révolution, a essa crítica), os doutrinários faziam
questão de se definirem como homens do seu tempo, que buscavam as raízes da
própria sociedade na sua história. Tarefa de evidente inspiração hegeliana, na
qual Guizot, com insuperável maestria de sociólogo e filósofo, elaborou as
categorias dialéticas à luz das quais passou a ser entendida a problemática
social, no seio do Liberalismo francês. Guizot entendia a sociedade européia
numa dupla perspectiva: socio-política e cultural. Em ambos os contextos
identificava a essência da realidade como fundamentalmente dialética. O
hegelianismo de Guizot não provinha de uma leitura direta, de parte do nosso
autor, das obras do filósofo alemão, mas da influência de Victor Cousin
(1792-1867).
No terreno
da história da cultura, o pensador francês considerava que a civilização
européia era fruto do confronto entre dois princípios que se contrapunham
dialeticamente: o da liberdade e o da ordem. O primeiro, identificado com o
legado dos bárbaros, cujo élan era constituído por uma
liberdade selvagem, vizinha da anarquia; o segundo princípio, identificado com
a ordem imposta pelo Império Romano e pelas instituições herdadas dele, pela
Igreja. Em relação a este ponto, Guizot escrevia: "Devemos aos Germanos o
sentimento enérgico da liberdade individual, da individualidade humana. Ora,
num contexto de extrema grosseria e ignorância, esse sentimento é o egoísmo em
toda a sua brutalidade, em toda a sua insociabilidade (....). A Europa tratava
de sair desse estado (...). Restavam, aliás, grandes ruínas da civilização
romana. O nome do Império, a lembrança dessa grande e gloriosa sociedade,
agitavam a memória dos homens, dos senadores das vilas sobretudo, dos bispos,
dos sacerdotes, de todos os que tinham a sua origem no mundo romano. Entre os
bárbaros mesmos, ou entre os seus ancestrais bárbaros, muitos tinham sido
testemunhas da grandeza do Império; tinham servido nas suas legiões, eles o
tinham conquistado. A imagem, o nome da civilização romana impunha-se-lhes;
eles sentiam a necessidade de imitá-la, de reproduzi-la, de conservar alguma
coisa dela. Nova causa que os deveria puxar para fora do estado de
barbárie".[20]
Esses dois
princípios, o da liberdade e o da ordem, constitutivos da civilização européia,
precisaram, no entanto, de uma força que os amalgamasse numa experiência
histórica concreta. O pensador francês achava que essa foi a missão dos grandes
homens, que apareceram providencialmente, como é o caso de Carlos Magno
(742-814). Em relação a esses importantes atores da história humana, frisava
Guizot: "Há homens aos quais o espetáculo da anarquia e da imobilidade
social golpeia e revolta, que são sacudidos por esses fatores, como se estes
constituíssem um fato ilegítimo, e que são invencivelmente possuídos pela
necessidade de mudar esse fato, de colocar alguma regra, algum princípio geral,
regular, permanente, no mundo observado por eles. Poder terrível, amiúde
tirânico, e que comete mil iniquidades, mil erros, pois é acompanhado pela
fraqueza humana; poder, no entanto, glorioso e salutar, pois ele imprime à
humanidade, pela mão do homem, uma forte sacudida, um grande movimento".
No terreno
sócio-político, Guizot considerava que a realidade da Europa era constituída
pela luta de classes. Nada mais alheio, para ele, à realidade política da
França e da Europa, do que o sonho utopista dos que achavam que seria possível
uma espécie de entropia política, como se as relações sociais pudessem ser
reduzidas uni-linearmente a uma única ordem de interesses. Mas, ao mesmo tempo,
o pensador francês tinha consciência de que a época era a das classes
médias, as únicas capazes de dotar a França de instituições livres e
estáveis, superando os excessos da revolução e do absolutismo. Ora, essas classes
médias identificavam-se, na França da Restauração, com a burguesia. Esta
devia acordar e despertar a sua consciência de que se tratava de uma classe
chamada a garantir a unidade francesa, fazendo frente à dissolução do Terror e
ao anacronismo do Absolutismo bonapartista. Eis aí, formulado, claramente, o
conceito da consciência de classe. Sem dúvida nenhuma que Karl Marx
(1818-1883) fez uso desse arcabouço conceitual (luta de classes, consciência de
classe, classe habilitada para exercer o domínio na sociedade). Georgi Plekhanov
(1856-1918), aliás, tinha destacado esse ponto, com rara probidade intelectual
que reconhecia ser Marx herdeiro de um liberal-conservador, na formulação dos
seus conceitos sociológicos chaves. Guizot considerava-se o profeta dessa
situação histórica, o pregoeiro da nova ordem de coisas, de uma política
alicerçada no conceito de luta de classes, e de uma burguesia que era chamada à
responsabilidade histórica, indelegável, de garantir o exercício da liberdade,
mediante a criação de instituições que, salvaguardando a ordem, possibilitassem
o amadurecimento da civilização européia. O pensador francês atribuía à
burguesia o papel de pregoeira da Verdade histórica.
Acerca da
influência de Guizot em Marx, escreve Rosanvallon:[21]
"Poderá ser observada a atração exercida por Guizot sobre certos teóricos
de inspiração marxista, na medida em que ele tinha sido considerado, por Marx e
Engels, como um dos historiadores burgueses que tinham inventado a
noção de luta de classes".[22]
Plekhanov, aliás, na sua obra: Os princípios fundamentais do marxismo,
considerava que Marx descobriu a concepção materialista da história, inspirado,
em parte, na teoria do interesse material que movimenta as
classes sociais, presente nas obras de Guizot, Francis-Auguste Mignet (1796-1884)
e Augustin Thierry (1795-1856).[23]
A burguesia,
no sentir de Guizot, deveria garantir as instituições que alicerçassem o
exercício da liberdade, mediante a organização da representação. Esta
consistia, cumulativamente, na luta em prol dos interesses de classe e na
tentativa de, mediante a explicitação desses interesses no terreno do discurso,
dar ensejo à racionalidade social, que era fruto do entrechoque das opiniões.
Desse processo dialético emergiria o conceito de representação. Esta seria
considerada, quando estabelecido o domínio da burguesia mediante esse processo
de explicitação, como a média da opinião. Não há dúvida de que
esses conceitos entraram fundo no discurso político do século XIX, tanto na
França quanto no Brasil. Só para lembrar um exemplo dessa influência no nosso
meio: Joaquim Francisco de Assis Brasil (1857-1938)[24]
definia a representação como a média da opinião.
2) A influência de Guizot no Liberalismo
Conservador de Paulino José Soares de Sousa.
Para Paulino
Soares de Sousa, a elite imperial tinha uma missão fundamental: garantir a
criação e o funcionamento de instituições que garantissem, no Brasil, o
exercício da liberdade e o progresso da sociedade, seguindo o exemplo dos
dirigentes franceses e britânicos. O terreno onde se deveria travar essa luta
era, para Paulino, o do direito administrativo, já que à luz deste poderiam ser
pensadas as instituições do governo, bem como os meios jurídicos e práticos que
garantissem o seu funcionamento. Essa era a finalidade primordial do seu Ensaio
de Direito Administrativo, publicado em 1862. A respeito, escreve
Themistocles Brandão Cavalcanti: "Ali se estudam os elementos fundamentais
do Direito Administrativo e principalmente a estrutura do Estado e da
administração, o problema da centralização, do Poder Moderador, da
administração graciosa e contenciosa, do Conselho de Estado. O conteúdo próprio
das normas administrativas não estava ainda bem caracterizado e, por isso
mesmo, não tinha a doutrina a merecida expansão. Afora, portanto, os elementos
básicos de direito administrativo bem expostos no princípio da obra, o autor
deu singular importância a duas instituições fundamentais da Política
Constitucional do Império e que teriam influência preponderante no
desenvolvimento do nosso direito administrativo e do nosso direito político - o
Poder Moderador e o Conselho de Estado".[25]
O trabalho
do visconde não foi pura e simples elucubração teórica. Como Guizot em relação
à França, Paulino considerava que deveriam ser pensadas as instituições
brasileiras à luz da história e da cultura nacionais. O Ensaio é
fruto do profundo conhecimento que tinha do país, amadurecido na sua
participação em vários órgãos do Governo Imperial, entre 1840 e 1862. A obra
foi motivada pela viagem que o visconde realizou à Inglaterra e à França, com a
finalidade de estudar o funcionamento das Instituições Públicas. A respeito,
Paulino escreve o seguinte testemunho: "Na viagem que ultimamente fiz à
Europa não me causaram tamanha impressão os monumentos das artes e das
ciências, a riqueza, força e poder material de duas grandes nações: a França e
a Inglaterra, quanto os resultados práticos e palpáveis da sua administração.
Os primeiros fenômenos podemos nós conhecê-los pelos escritos que deles dão
larga notícia. Para conhecer e avaliar os segundos não bastam descrições. Tudo
ali se move, vem e chega a ponto com ordem e regularidade, quer na
administração pública, quer nos estabelecimentos organizados e dirigidos por
companhias particulares. Nem o público toleraria o contrário. As relações entre
a administração e os administrados são fáceis, simples, benévolas e sempre
corteses. Não encontrava na imprensa, nas discussões das câmaras, nas
conversações particulares essa infinidade de queixas e doestos, tão frequentes
entre nós, contra verdadeiros ou supostos erros, descuidos e injustiças da
administração, e mesmo contra a justiça civil e criminal. A população tinha
confiança na justiça quer administrativa, quer civil, quer criminal. E é sem
dúvida por isso que a França tem podido suportar as restrições que sofre na
liberdade política".[26]
O visconde
regressou da sua viagem à Europa com o firme propósito de pensar as
instituições que garantissem, no Brasil, o exercício da liberdade. Esse é o
imperativo categórico, que o distancia da pura teoria e da pura prática, e que
o aproxima do ideal dos doutrinários. Eis a forma em que ele entende o seu
propósito: "Convenci-me ainda mais de que se a liberdade política é
essencial para a felicidade de uma nação, boas instituições administrativas
apropriadas às suas circunstâncias, e convenientemente desenvolvidas não o são menos.
Aquela sem estas não pode produzir bons resultados. O que tive ocasião de
observar e estudar produziu uma grande revolução nas minhas idéias e modo de
encarar as coisas. E se quando parti ia cansado e aborrecido das nossas lutas
políticas pessoais, pouco confiado nos resultados da política que acabava de
ser inaugurada, regressei ainda mais firmemente resolvido, a buscar
exclusivamente no estudo do gabinete aquela ocupação do espírito, sem a qual
não podem viver os que se habituaram a trazê-lo ocupado".[27]
A primeira
convicção que tinha o visconde de Uruguai —como de resto os demais estadistas
da sua época— é a de que a monarquia constitucional era o regime que melhor se
adaptava às necessidades brasileiras. Essa convicção é bem verdade, tinha sido
sedimentada pela obra pioneira de Silvestre Pinheiro Ferreira (1769-1846). Mas
o interessante é que Paulino encontrava no próprio Guizot um arrazoado claro e
favorável à monarquia brasileira. Efetivamente, o pensador francês, na nona
lição da sua Histoire de la Civilisation en Europe, tinha deixado
claro que a monarquia foi, na Europa e notadamente na França, a primeira
garantia de legalidade no início da modernidade, por cima da turbulenta
atmosfera de particularismos em pugna. Referindo-se especificamente ao Brasil,
escrevia Guizot: "Abri a obra onde M. Benjamin Constant tem representado
de forma tão engenhosa a realeza como um poder neutro, um poder moderador,
elevado por cima dos acidentes, das lutas da sociedade e somente intervindo nas
grandes crises. Não é essa, por assim dizer, a atitude do soberano de direito
no governo das coisas humanas? É necessário que haja nessa idéia algo de muito
especial que chame a atenção das pessoas, pois ela passou com extraordinária
rapidez dos livros aos fatos. Um soberano fez dessa idéia, na constituição do
Brasil, a base mesma do seu trono; a realeza é ali representada como um poder
moderador, elevado por cima dos poderes ativos, como um espectador e um juiz
das lutas políticas".[28]
Paulino era
consciente da complexidade da tarefa empreendida. Pensar as instituições do
direito administrativo era algo mais do que conceber os termos de uma
Constituição Política. Implicava, também, criar os caminhos jurídicos e
institucionais que permitissem a boa administração e que se enraizassem,
portanto, na cultura e nos hábitos do país. É significativo dessa preocupação o
texto de Guizot (tirado da obra L'Église et la Societé Chrétiennes,
publicada em 1861) que serve de epígrafe à obra de Paulino, e que
reza assim: "Não basta estabelecer num país eleições, câmaras e o governo
parlamentar, para libertá-lo dos seus males, dar a todos os bens que lhes são
prometidos e poupá-los das funestas conseqüências de todos os erros que ali se
cometem. As condições do bom governo dos povos são mais complicadas; não se
satisfaz a todos os interesses, não se garantem todos os direitos colocando uma
constituição no lugar de um velho poder, e não se pode ter instituído em Turim
um parlamento italiano sem ter fundado na Itália a liberdade".[29]
Paulino
Soares de Souza considerava que, no processo de construção das instituições que
garantiam, no Brasil, o exercício da liberdade, as condições assemelhavam-se
muito às da França pós-revolucionária. A experiência inglesa de self-government era
mais distante. A nossa prática do municipalismo esteve, sempre, vinculada à
garantia da legislação e das instituições por um poder central, que se soerguia
por sobre o universo de particularismos e castas predispostos à privatização do
poder. A prática do direito administrativo inspirou-se, no caso de Portugal e do
Brasil, na tradição francesa, centralizadora, diferente da tradição anglo-saxã,
eminentemente descentralizadora.
A propósito,
escrevia Paulino: "O sistema francês, inteiramente diverso do anglo-saxônico,
mais ou menos modificado, é o mais simples, mais metódico, mais claro e
compreensivo, e o que mais facilmente pode ser adotado por um país que arrasa,
de um só golpe, todas as suas antigas instituições, para adotar as
constitucionais ou representativas, e isto muito principalmente quando esse
país larga as faixas do sistema absoluto, e abrindo pela primeira vez os olhos
à luz da liberdade, está mal, ou não está de todo preparado para se governar em
tudo e por tudo a si mesmo. (...). Adotados em um país, como nós adotamos, os
pontos cardeais desse sistema, organizado o país segundo o seu espírito em
geral, não é possível proscrevê-lo, sem adotar o contrário, e sem a completa
mudança de toda a organização existente. O sistema administrativo francês
concede pouco ao self government, é um e muito uniforme,
preventivo e muito centralizador. Alarga muito a direção, tutela a fiscalização
do Governo. Admite largamente a hierarquia. Reduz o Poder Judicial ao Civil e
Criminal. (...) Este sistema é muito ligado, lógico e harmônico, e tem
incontestáveis vantagens. Depois de bem montado e desenvolvido é o que
apresenta melhores condições de resistência e estabilidade. (...). Cada
indivíduo tem menos ingerência nos negócios públicos, porém o seu direito está
mais bem resguardado e garantido do que em muitos países que se dizem livres.
Bem desenvolvido e executado, como o é na França, não se dão as violências, e
as injustiças flagrantes, das quais apresentam não raros exemplos países que,
aliás, gozam de liberdade. A França não goza de uma completa liberdade
política, mas não há talvez país melhor administrado, e onde a segurança
pessoal, o direito de propriedade, e a imparcialidade dos tribunais sejam
melhor assegurados e garantidos".[30]
Paulino Soares
de Sousa não renunciava à prática do self government. Não
escondia a sua admiração por essa forma de governo, na forma em que foi
belamente descrita por Tocqueville na sua Democracia na América. É
explícita a admiração de Paulino pelo regime de self government que
Tocqueville encontrou na América, e que ele aproxima do regime de liberdade
municipal. A respeito, escreve o visconde: "Um povo, diz Tocqueville, pode
sempre estabelecer Assembleias políticas, porque ordinariamente encontra, no
seu seio, certo número de homens nos quais as luzes substituem até certo ponto
a prática dos negócios.(...). A liberdade municipal escapa, para assim dizer,
aos esforços do homem. É raro que seja criada pelas leis; nasce por algum modo
por si mesma. São, a ação contínua das leis e dos costumes, as circunstâncias
e, sobretudo o tempo, que conseguem consolidá-la. De todas as nações do
continente da Europa, não há talvez uma só que a conheça. É, contudo, na
Municipalidade que reside a força dos povos livres. As instituições municipais
são, para a liberdade, o que as escolas primárias são para a ciência: põem a
liberdade ao alcance do povo, fazem com que aprecie o seu gozo tranquilo, e
habituam-no a servir-se dela. Sem instituições municipais pode uma nação dar-se
um governo livre, mas não tem o espírito da liberdade”.[31]
Mas, à
semelhança de Guizot, Paulino era consciente de que a liberdade democrática
requeria uma base moral, que não estava suficientemente consolidada entre nós.
Para atingir o estágio da plena democracia, seria necessário primeiro educar o
povo nos hábitos do respeito ao bem público e da participação na gestão
responsável da res publica. A tirania é a conseqüência da
construção afoita da democracia, sem as bases morais que tornam o self
government uma instituição a serviço da liberdade e não do despotismo.
Em relação a esse ponto, escrevia o visconde: "Assim é e deve ser, ao
menos a certos respeitos, naqueles afortunados países, onde o povo for
homogêneo, geralmente ilustrado e moralizado, e onde a sua educação e hábitos o
habilitem para se governar bem a si mesmo. Quais e quantas são as nações entre
as quais se tem podido estabelecer o self government? Ide
estabelecê-lo em certos lugares da Itália, entre os Lazzaroni, no México, e nas
Repúblicas da América Meridional! O pobre Soberano, o povo, deixar-se-á iludir,
e será vítima do primeiro ambicioso esperto (....). Nos países nos quais ainda
não estão difundidos, em todas as classes da sociedade, aqueles hábitos de
ordem e legalidade, que únicos podem colocar as liberdades públicas fora do
alcance das invasões do Poder, dos caprichos da multidão, e dos botes dos
ambiciosos, e que não estão, portanto, devidamente habilitados para o self
government, é preciso começar a introduzi-lo pouco a pouco, e sujeitar
esses ensaios a uma certa cautela, e a certos corretivos. Não convém
proscrevê-lo, porque, em termos hábeis, tem grandes vantagens, e nem o Governo
central, principalmente em países extensos e pouco povoados, pode administrar
tudo. É preciso ir educando o povo, habituando-o pouco a pouco, a gerir os seus
negócios".[32]
Sintetizando:
Paulino advogava por um direito administrativo centralizador, como o francês,
que na sua aplicação, no entanto, estivesse pedagogicamente aberto à prática
do self government. "Isto não tira que seja possível e
muito conveniente, —frisava o estadista do Império—, no desenvolvimento e
reforma das nossas instituições administrativas, ir dando (à sociedade), (a)
parte de self government que (as instituições) encerram, mais
alguma expansão temperada com ajustados corretivos, habituando, assim, o nosso
povo ao uso de uma liberdade prática, séria e tranquila, preservando sempre o
elemento monárquico da Constituição, porque, por fim de contas, é para aqueles
povos que nela nasceram e foram criados, essa forma de governo, rodeada de
garantias e instituições livres, a que melhor pode assegurar uma liberdade
sólida, tranquila e duradoura".[33]
Trata-se de uma proposta de autêntico liberalismo conservador, como
a defendida pelos doutrinários, notadamente Guizot.
Na sua
análise da realidade brasileira, Paulino Soares de Sousa adotava, como pano de
fundo, a perspectiva histórica proposta por Guizot. O grande problema no estudo
da nossa realidade, considerava Paulino, é o fato de os estudiosos
esquecerem-se da própria realidade. A propósito, escrevia: "Tive muitas
vezes ocasião de deplorar o desamor com que tratamos o que é nosso, deixando de
estudá-lo, para somente ler superficialmente e citar coisas alheias,
desprezando a experiência que transluz, em opiniões e apreciações de estadistas
nossos".[34]
A
perspectiva histórica, identificada com o conhecimento das próprias raízes
(que, como vimos no item 1, inspirou a Guizot na elaboração das soluções
institucionais para a França do seu tempo), era, também, a perspectiva adotada
por Paulino. "É preciso, frisava ele, primeiro que tudo estudar e conhecer
bem as nossas instituições, e fixar bem as causas porque não funcionam, ou
porque funcionam mal e imperfeitamente. Convém muito o estudo e o conhecimento
todo que sobre elas pensaram os nossos homens de Estado, e o dos fatos próprios
do país, que podem esclarecer o assunto".[35]
Sobre esta
base histórica de conhecimento das próprias origens, ardentemente defendida por
Paulino Soares de Souza e os demais estadistas do Império, alicerçar-se-ia a
etapa posterior da emergência da sociologia brasileira, com Silvio Romero
(1851-1914) e Oliveira Vianna (1883-1951), na adoção do método monográfico.
Paulino e os restantes "homens de mil" do Segundo Reinado foram,
assim, os precursores da ciência social desenvolvida pelos seguidores do
"culturalismo sociológico".
De forma
semelhante a como Guizot entendia a civilização ocidental como uma luta entre
os princípios de liberdade e de ordem, Paulino concebia a nossa vida política
como pautada por dois grandes princípios jurídicos, contrapostos, mas
complementares: aquele que consolidava os direitos individuais em face do
Estado (chamado de direito público interno ou constitucional) e aquele que garantia
o funcionamento do Estado (chamado de direito administrativo). Paulino definia
o direito constitucional ou político como aquele
que compreendia "aquelas matérias que constituem o chamado direito público
propriamente dito" e que tem como finalidade garantir "a
inviolabilidade dos direitos civis e políticos, que têm por base os direitos
absolutos que derivam da mesma natureza do homem, e se reduzem a três pontos
principais, a saber: liberdade, segurança individual e propriedade". Já
o direito administrativo era definido por ele como "a
ciência da ação e da competência do Poder Executivo, das administrações gerais
e locais, e dos Conselhos Administrativos, em suas relações com os interesses ou direitos dos
administrados, ou com o interesse geral do Estado".[36]
O equilíbrio
entre ambas as ordens de direito, a constitucional e a administrativa, exige
que, do ponto de vista da legislação, não se fixem apenas os direitos dos
cidadãos, mas também os seus deveres (correspondentes aos direitos da sociedade).
A respeito deste atualíssimo ponto (o problema da nossa Constituição de 1988 é,
justamente, a hipertrofia dos direitos do cidadão, esquecendo os seus deveres),
escrevia Paulino: "É necessário, também, que a legislação não se limite a
estabelecer e a proteger direitos, é também preciso que fixe e defina bem as
obrigações. Um dos grandes erros, observa Laferrière, da Assembléia
Constituinte da França, seguido em outros países inexperientes que a tomaram
por modelo, consistiu em ter protegido mais os direitos do homem do que os da
sociedade, e em ter desconhecido e estabelecido com timidez a união
indispensável e fundamental do direito e do dever. É agradável ter somente
direitos, e os aduladores do povo fogem de falar-lhe em deveres. A legislação
inglesa e americana ocupam-se especialmente em fixar os deveres".[37]
Na
formulação dessa dupla vertente (direitos e deveres do cidadão), Paulino
alicerçava-se em Guizot, fazendo referência ao seguinte texto, extraído
de Mémoires pour servir à l'histoire de mon Temps: "Duas
idéias constituem os dois grandes caracteres da civilização moderna e lhe
imprimem o seu formidável movimento; sintetizo-os nestes termos: —há direitos
universais inerentes unicamente à condição humana e que nenhum regime pode legitimamente
recusar a homem nenhum—; há direitos individuais que decorrem unicamente do
mérito pessoal de cada homem, sem levar em consideração as circunstâncias
exteriores do nascimento, da fortuna, ou da posição social, e que todo homem
que os porta em si mesmo deve ter a possibilidade de desenvolver. O respeito
legal aos direitos gerais da humanidade e o livre desenvolvimento das
capacidades naturais, desses dois princípios, bem ou mal entendidos, têm
decorrido, ao longo do último século, os bens e os males, as grandes ações e os
crimes, os progressos e os descaminhos que ora as revoluções, ora os governos
mesmos têm feito surgir, no seio das Sociedades Europeias".[38]
Fazendo-se
eco do hegelianismo soft que inspirava a Guizot, Paulino
considerava que os grandes atores da história não são, no século XIX, apenas os
indivíduos, mas também, e de forma decisiva, as massas. Um governo que olhe
apenas para a perspectiva individual, não consegue atingir o seu escopo. A nota
caraterística da política moderna consiste em levar em consideração a
perspectiva das massas, pois é nelas que passou a residir a força e a
legitimidade dos governos.
Eis a forma
em que o estadista brasileiro fundamentava o seu pensamento a respeito deste
ponto: "Os seguintes profundos trechos de Monsieur Guizot —Des moyens
de gouvernement— explicam e completam o meu pensamento. Quando se
considera o poder, não isolado e em si mesmo, mas na sua relação íntima com a
sociedade, a sua ação apresenta-se sob um duplo aspecto. Ele deve tratar, de um
lado, com essa massa geral de cidadãos que ele não vê, mas que o sofrem, o
sentem e o julgam; de outro lado, com indivíduos que tal ou qual causa aproxima
de si e que estabelecem com ele uma relação pessoal ou direta, já se trate de
que eles lhe sirvam nas suas funções, ou de que ele próprio sinta necessidade
de se servir de sua influência. Agir sobre as massas e agir através dos
indivíduos, é isso que se chama governar. Dessas duas partes do governo, o
poder é inclinado a negligenciar a primeira. Fraco e pressionado, é absorvido
pelo trabalho de tratar com os indivíduos. Nada mais comum do que vê-lo
esquecer que há um povo no qual vai terminar parando tudo quanto ele faz. Dos
erros do poder, esse é sobretudo o mais fatal, pois é nas massas, no povo mesmo,
que ele deve encontrar a sua força principal, os principais meios de governo. O
público, a nação, o país, é lá que reside a força, lá que é possível consegui-la.
Tratar com as massas, essa é a grande mola do poder. Em seguida vem a arte de
tratar com os indivíduos; arte necessária, mas que, sozinha, de nada vale e
produz pouco efeito".[39]
3) A ética
pública de Guizot e de Paulino José Soares de Sousa.
Não são
poucas as novidades que nos apresentam Guizot e os doutrinários, no seu
arrazoado acerca das condições históricas da França de meados do século XIX. Da
mesma forma, são muitas as lições de ciência política que podemos tirar da
leitura do Ensaio sobre o Direito Administrativo de
Paulino Soares de Sousa. Gostaria de terminar estas reflexões destacando um
ponto que me parece essencial no pensamento de ambos os autores: o seu conceito
de ética pública. Quatro aspectos podem ser assinalados (tanto em
Guizot como em Paulino):
Em primeiro
lugar, o imperativo categórico do governante consiste em transformar as
instituições do seu país, para garantir aos seus concidadãos, de maneira
eficaz, o exercício da liberdade, no contexto do estudo diuturno das tradições
históricas da nação.
Em segundo
lugar, é necessário que o governante, na sua ação, não se perca na perspectiva
individual, mas que enxergue, sempre e sem vacilação, o fundo que constitui a
essência da legitimidade política: a vontade das massas. O folclore político
resumiu esse ideal no princípio de: "ouvir o clamor das ruas".
Em terceiro
lugar, cabe ao governante o compromisso pedagógico de formar, mediante a
educação cívica, a consciência do bem público nos seus governados, de forma que
eles não reivindiquem apenas os seus direitos, mas que acordem, também, para os
seus deveres. No sentir de Guizot, essa tarefa traduzia-se em acordar nas
classes médias a consciência da sua responsabilidade histórica. Algo semelhante
pensava o visconde de Uruguai: tratava-se de formar, a partir de um eleitorado
censitário, um núcleo disciplinado ao redor da idéia de nação e sensível às
demandas do bem público.
Em quarto
lugar, não há na caminhada histórica da sociedade um final utópico, em que
todas as contradições sejam resolvidas. O processo de luta de classes
permanecerá como caraterística essencial à vida política. O que Guizot e
Paulino destacam é que essa luta pode ser civilizada pelo debate parlamentar e
pela prática, cada vez mais aperfeiçoada, da representação. Aqui radica a
diferença fundamental entre liberais e socialistas. Estes últimos terminaram
acreditando no "fim utópico da história", na conquista de um paraíso
em que desaparecesse a luta pela defesa dos próprios interesses.
Muitas
coisas poderíamos escrever acerca da tremenda atualidade da ética pública
apresentada por Guizot e adotada por Paulino José Soares de Sousa. Reste
apenas, expressar o nosso sentimento de admiração em face desses grandes
pensadores-estadistas, que conseguiram encarnar o princípio da moral de
responsabilidade no momento histórico em que viveram.
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[Este texto foi
especialmente elaborado, em 2004, para o Proyecto Ensayo Hispánico,
da Universidade de Georgia, Estados Unidos. A parte correspondente ao
pensamento de François Guizot foi tirada do artigo de Ricardo Vélez Rodríguez intitulado:
“François Guizot e a sua influência no Brasil”, publicado em Carta Mensal, Rio de
Janeiro, vol. 45, no. 536, novembro de 1990: pg. 41-60. O Proyecto Ensayo
Hispánico pode ser acessado no seguinte endereço: www.ensayistas.org ].
NOTAS
[1]
GUIZOT, François. Histoire de la Civilisation em Europe depuis la chute
de l´Empire Romain jusqu´a la Révolution Française. 8ª edição. Paris:
Didier, 1864.
[2]
GUIZOT,
François. Histoire de la Civilisation em Europe depuis la chute de
l´Empire Romain jusqu´a la Révolution Française. Ob. cit., p. 383-384.
[3]
ORTEGA Y GASSET, apud DÍEZ del Corral, Luis. El Liberalismo Doctrinario. 4ª Edição.
Madrid: Centro de Estudios Constitucionales. 1984.
[5]Cf. SOUSA,
Paulino José Soares de, visconde de Uruguai. (Apresentação de Themístocles
Brandão Cavalcanti). Ensaio sobre o Direito Administrativo. Rio
de Janeiro: Imprensa Nacional. 1960.
[6]
Cf. CHACON, Vamireh. "Royer-Collard e Destutt de
Tracy: liberais quase esquecidos". In: Revista Brasileira de
Filosofia. São Paulo, vol. 52, no. 206 (abril - junho de
2002): pgs. 229.
.
[7]
Cf. SARMIENTO, Domingo Faustino. Facundo –
Civilização e barbárie no pampa argentino. (Tradução e introdução
de Aldyr Garcia Schlee). Porto Alegre:
Editora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul / Editora da Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul, 1996.
[8]
Cf. SARMIENTO, Domingo
Faustino. 1996. Facundo – Civilização e barbárie no pampa
argentino. Ob. cit.
[9]
Temos consultado a obra de referência de SISSON, Sébastien Auguste (1824-1898), Galeria
dos Brasileiros Ilustres. Brasília: Senado Federal – Secretaria
Especial de Editoração e Publicações, 1999, 2 volumes.
[10] CAVALCANTI,
Themístocles Brandão. "Apresentação". In: Paulino Soares de SOUSA, Ensaio
sobre o Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Imprensa
Nacional, 1960, p. VII.
.
[11]
Cf. MACEDO, Ubiratan e Ricardo VÉLEZ Rodríguez. Liberalismo
doutrinário e pensamento de Tocqueville. Rio de Janeiro: Universidade
Gama Filho; Londrina: Instituto de Humanidades, vol. 1º. do Curso de Introdução
Histórica ao Liberalismo, 1996.
[12]
MÉLONIO, Françoise. "1815-1880". In: BAECQUE, Antoine de e
Françoise MÉLONIO, Histoire culturelle de la France, vol. 3 - Lumières
et liberté, les dix-huitième et dix-neuvième siècles. Paris:
Seuil, 1998, p. 195 seg.
[14]
MACEDO, Ubiratan. "O Liberalismo doutrinário". In: Antônio
Paim (Organizador). Evolução histórica do Liberalismo. Belo
Horizonte: Itatiaia, 1987, p. 33.
[16] GUIZOT, François. Histoire de la Civilisation en Europe depuis la chute de
l'Empire Romain jusqu'à la Révolution Française. 8a. Edição cit., p.81.
[19]Cf. LITTRÉ, Émile. "Préface d'un disciple". In: Auguste COMTE, Principes
de Philosophie positive. (Prefácio de Émile Littré). Paris:
Baillière, 1868. Pg. 28.
[20] GUIZOT,
François. Histoire de la Civilisation en Europe
depuis la chute de l'Empire Romain jusqu'à la Révolution Française. 8a. Edição, cit. p. 82-83.
[22]
A respeito,
Rosanvallon menciona os seguintes autores, além de Plekhanov: Robert Fossaert (1927-2015)
com o seu ensaio intitulado "La théorie des classes chez Guizot et
Thierry", in: La Pensée, jan. - fev. 1955 e B. Reizou
com a obra L'historiographie romantique française, 1815-1830. Moscou,
s. d.
[23]PLEKHANOV, G.
V. Os princípios fundamentais do marxismo. (Prefácio
de D. Riazanov; tradução de Sônia Rangel). 2ª edição. São Paulo: Hucitec,1989,
p. 59.
[24]BRASIL,
Joaquim Francisco de Assis. Do governo presidencial na República
brasileira. Lisboa: Editora Nacional, 1896, p. 81.
[25]
CAVALCANTI, Themístocles Brandão. "Apresentação". In: Paulino
Soares de SOUSA, Ensaio sobre o Direito
Administrativo. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional,
1960, pg. VII-VIII.
[27] SOUSA, Paulino
José Soares de. Ensaio sobre o Direito
Administrativo. Ob. cit., p. 5-6.
[28]
GUIZOT, François. Histoire de la
Civilisation en Europe depuis la chute de l'Empire Romain jusqu'à la Révolution
Française. Ob. cit., p. 256.
[29] Apud SOUSA, Paulino José
Soares de. Ensaio sobre o Direito Administrativo,
ob. cit., 1960, folha de rosto.
[38] SOUSA, Paulino José
Soares de. Ensaio sobre o Direito Administrativo, ob. cit., p.
448, nota 8.
[39] Apud SOUSA, Paulino José
Soares de. Ensaio sobre o Direito Administrativo, ob. cit., p.
502-503.
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