A obra
recentemente publicada por Denis Rosenfield, intitulada: O Estado
fraturado,[2] é um balanço, feito à luz
da filosofia política e da sociologia, do drama vivido pelo Estado brasileiro
nas últimas décadas, notadamente, durante o ciclo lulo-petista (2003-2016), que
praticamente desmontou as instituições republicanas, numa maré de corrupção,
fisiologismo, infiltração ideológica marxista-leninista e compadrio. A obra do
professor Rosenfield analisa criticamente o momento mencionado, alargando a sua
visão para as reformas que os Estados europeus sofreram, ao longo do século XX,
centrando a atenção na saga que a social-democracia percorreu nesse século. Em
quatro pontos (I - Democracia e autoridade, II - Autoridade estatal e retórica,
III - O Positivismo e a política científica, IV - A questão democrática), o
autor desenvolve uma análise crítica e historiográfica, que joga luz sobre os
atuais momentos de perplexidade que se abatem sobre a Nação brasileira.
É deveras
dramática a situação de anomia vivida pelo Estado brasileiro, após o ciclo
lulopetista. Tal situação é assim caracterizada pelo autor: "O resultado é
evidente: a dissolução da autoridade pública e o enfraquecimento do Estado
Democrático de Direito. Ou seja, em nome da democracia e dos direitos humanos,
a própria democracia e os direitos humanos são pervertidos. A autoridade
pública, por sua vez, vem a ser identificada ao exercício arbitrário da força.
A violência fica franqueada aos particulares, que não estão mais obrigados a
seguir nenhuma lei, enquanto o Estado deve renunciar ao monopólio do exercício
da força. Chega-se, paradoxalmente, a uma situação em que policiais não podem
reprimir e juízes não podem punir. Criam-se, assim, condições de dissolução do
Estado e, por via de consequência, da democracia. O próximo passo é a própria
captura do Estado pelo crime organizado, seja em suas formas políticas, seja em
suas formas propriamente criminosas, como é o caso do Rio de Janeiro" [O
Estado fraturado, p. 29].
O
desmantelamento institucional patrocinado por Lula e o PT produziu efeitos
perversos para a economia do país. Eis a forma em que, sem meias-palavras, o
autor denuncia o desmonte da economia nacional: "Do ponto de vista
econômico, o país sofreu um processo de intervenção estatal progressiva na
seara econômica, sobretudo a partir da segunda metade do segundo mandato do
presidente Lula. O Estado foi apresentado como um Poder demiurgo, capaz de
qualquer realização, conquanto seus recursos fossem, também, apresentados como
ilimitados. A coisa pública poderia ser vilipendiada, pois sempre haveria uma
reparação estatal de tipo financeiro. A economia de mercado passaria, então, a
ser conduzida por esses ditos representantes da vontade ilimitada, como se para
tal tivessem sido eleitos. A Constituição e a lei seriam meros detalhes a serem
considerados ou não, conforme as conveniências políticas e os interesses
particulares. Na perspectiva da encenação política e, sobretudo, de sua
retórica, as aparências democráticas seriam mantidas. De uma forma decidida, o
Brasil acentuou os traços de seu capitalismo de compadrio, evoluindo, se assim
se pode dizer, para um capitalismo de comparsas" [O Estado fraturado,
p. 78].
A síntese de
todos os males encontra-se, segundo o professor Rosenfield, na morte do
espírito público, que constituiu uma entropia fatal para as perspectivas do
Brasil como Nação. A respeito, frisa o autor: "A noção de coisa pública
desapareceu e veio a ser, mesmo, assim percebida pela sociedade. A classe
política, em seu sentido genérico, passou a ser considerada como composta de
criminosos e aproveitadores dos mais diferentes tipos. Em consequência, a
imagem do Poder Legislativo foi, em muito, enfraquecida. Se uma questão se
coloca a respeito deste Poder é a de que não mais exerce a função de
representação política que deveria ser sua. Em termos institucionais, dir-se-ia
que é um Poder que só mantém capacidade de decisão, no que diz respeito aos
interesses particulares e fisiológicos de seus membros. Não se pode dizer que
eles mantenham, hoje, uma fatia da soberania, de decisão, salvo neste seu
sentido muito particular de consecução de interesses particulares,
desvinculados da cena pública" [O Estado fraturado, p. 79].
A tarefa de
reconstruir as instituições republicanas, esfaceladas pela aventura criminosa
do PT no poder, foi precariamente cumprida pelo transitório governo de Michel Temer
(1940), em decorrência da presença, no seio do Estado, no atual cenário, de
atores políticos comprometidos com a velha ordem de coisas. Essa presença ficou
clara sobretudo no Parlamento, com a inspiração de não poucos congressistas no
mais descarado fisiologismo, como moeda de troca para a aprovação das reformas
necessárias. Essa pescaria em águas turvas viu-se agravada pela falta de
espírito público de alguns integrantes do Ministério Público e do Judiciário,
que extrapolaram em suas funções de combate à corrupção, movidos por mesquinhos
interesses políticos e defesa de privilégios. Os eventos ocorridos na passagem
de Rodrigo Janot (1956) pela direção da Procuradoria Geral da República, bem
como as confusas e contraditórias decisões do Supremo Tribunal Federal,
embaladas em rocambolesca retórica jurídica, terminaram jogando mais lenha na
fogueira da crise institucional, com grave recado de insegurança jurídica, num
momento em que era necessária firmeza no combate ao crime organizado e à
corrupção. Esperava-se que os agentes do Estado passassem à sociedade uma
mensagem de tranquilidade, no funcionamento das instituições. Ocorreu todo o
contrário e, hoje, nos ressentimos dessa insegurança, que abre as portas para a
ação deletéria do condenado Lula e da sua turma. O imperativo categórico deles
hoje consiste em tornar realidade o princípio de "quanto pior
melhor".
Qual é a
causa remota, situada na origem do Estado moderno, que, retomada na nossa
tradição republicana, deu ensejo às atuais aventuras do populismo lulopetista,
que se irmanam a outras desgraças vividas, atualmente, por povos
latino-americanos, como o cubano, o venezuelano e o nicaraguense?
Para o
professor Rosenfield, o caminho errado tomado, no Brasil, pelo PT e coligados
decorre de uma deformação da tradição social-democrata, que já tinha acontecido
em alguns países europeus, ao ensejo do esforço de reconstrução no segundo
pós-guerra. Tudo justificado pelo esforço dos governos nacionais para garantir,
às populações famintas, a sobrevivência e o progresso econômico e social. A
velha tradição liberal, que tinha animado aos sociais-democratas, no início do
século XX, com as reformas comandadas, na Alemanha, por Eduard Bernstein (1850-1932),
foi sendo em parte posta de lado, dando ensejo a um estatismo que crescia sobre
os direitos individuais. O professor Rosenfield lembra que para o liberalismo
clássico lockeano, a defesa do indivíduo e dos seus direitos inalienáveis à
vida, à liberdade e à propriedade privada era um ponto sagrado. Esse aspecto,
contudo, passou a ser relativizado, no contexto europeu, por parte de teóricos
da social democracia e se espelhou, também, em concepções jurídicas que tiveram
grande destaque, como a veiculada pelo professor americano John Rawls
(1921-2002) ou na visão de socialismo democrático de líderes como o alemão Willy
Brandt (1913-1992).
De maneira
semelhante, na tentativa em prol de garantir o bem-estar geral, no seio
do Welfare State, os nossos socialistas caboclos consideraram
que o caminho deveria ser o do crescimento descontrolado do Estado, que seria o
natural benfeitor da sociedade e com cujas políticas públicas de distribuição
de renda, via "bolsa família" e outras iniciativas desse teor,
garantir-se-ia o acesso de todos aos bens e serviços essenciais, bem como a
aquisição da casa própria. O Estado de Bem-Estar Social poderia avançar, com
legitimidade, sobre a propriedade dos cidadãos mais abastados, na tentativa de
inaugurar uma nova classe média, com os outrora marginalizados e pobres.
O Estado
inchado tinha legitimidade para isso, em decorrência das largas cifras
eleitorais com que os candidatos petistas foram contemplados, nas eleições de Luís
Inácio Lula da Silva (1945) e Dilma Vana Rousseff (1947). Gozado como o
Castilhismo, no Rio Grande do Sul, argumentava de forma parecida. Júlio de
Castilhos (1860-1903) e colaboradores defendiam-se, no início da República, da
acusação de terem se desviado do constitucionalismo adotado na Carta de 1891,
com a tradição estatizante que tornou todos os poderes públicos reféns do
Executivo hipertrofiado. Ora, os reformadores castilhistas tinham legitimidade,
pois tinham sido eleitos!
O Estado
teria legitimidade, inclusive, para desmontar qualquer oposição que setores
liberais e conservadores tentassem fazer. As propostas de controle social da
mídia, elaboradas por militantes no governo, como o ex-guerrilheiro Franklin
Martins (1948) achava, pareciam perfeitamente justificáveis. Os petistas foram
eleitos, logo tinham legitimidade para acuar, à margem da lei, as classes mais
favorecidas. Essa carta branca estava na origem não só das políticas sociais
estatizantes desenvolvidas pelos petistas, mas, também, das iniciativas menos
santas de comprar adesões de outros partidos políticos no Congresso, dando
ensejo ao Mensalão. Ora, como os salvadores da Pátria eram eles, poderiam,
também, cooptar, via empréstimos generosos do BNDES, setores do empresariado, a
fim de fazer crescer os "campeões de bilheteria", que, de outro lado,
garantiriam ao partido do governo polpudas comissões com obras sobre faturadas.
Empréstimos do BNDES a governos estrangeiros, que se mostrassem favoráveis às
pretensões hegemônicas do PT, eram plenamente justificáveis. Os militantes petistas
poderiam, até, comprometer, com desvios bilionários, a saúde financeira de uma
próspera estatal como a Petrobrás. Essa foi a origem do Petrolão, denunciado
pela Operação Lava-Jato.
Considero,
contudo, que o arrazoado do professor Rosenfield não foi completo. Faltou
analisar a fonte primeira dessa tentativa estatizante, surgida no seio do
pensamento social-democrata e dos partidos socialistas em geral. Lembro, a
propósito, que o precursor dos doutrinários, Benjamin Constant de Rebecque (1767-1830),
na obra intitulada: Principes de Politique applicables à tous les
Gouvernements,[3] colocou o dedo na ferida,
quanto atribuiu a Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) a torta ideia de que a soberania
popular não tem limites por ter emergido da "vontade geral". Essa é,
no meu entender, a causa da deturpação do sentido do republicanismo brasileiro,
como deixei exposto em duas obras de minha lavra: Castilhismo, uma
filosofia da República [4] e O Republicanismo Brasileiro.[5]
Ora, quando
os Positivistas derrubaram a Monarquia, fizeram-no a partir da convicção de que
o poder estabelecido não tem limites, pelo fato de encarnar a "vontade
geral", em decorrência do fato de terem sido balizadas as instituições
republicanas na ciência. A aplicação sistemática desse princípio positivista à
política nacional ocorreu por obra de Getúlio Vargas, que foi quem materializou
a ideia da ausência de limites para a soberania, herdado do castilhismo
sul-riograndense. O Estado brasileiro getuliano tornou-se uma entidade
todo-poderosa e mais forte do que a sociedade, pelo fato de ter ancorado na
ciência aplicada, mediante os Conselhos Técnicos Aplicados à Administração.
Essa é a causa de todos os nossos males de deformação do espírito republicano,
que Alexis de Tocqueville (1805-1859) definia como "O reino tranquilo da
maioria", enquanto, no Brasil, passou a identificar-se com ”O reino
intranquilo da minoria".
À luz do
Estado tecnocrático todo-poderoso, justificar-se-iam todas as medidas
excepcionais tomadas pelos donos do poder, para financiar as operações do
lulopetismo, como as pedaladas fiscais. E se explica, assim, de outro lado, a
desfaçatez lulista, ancorada na convicção de que não deve prestar contas a
ninguém, pelo fato de o líder ter sido
eleito pela maioria dos eleitores.
Ora, a
soberania é limitada e se restringe à gestão do Estado, no sentido de preservar
as leis e instituições que garantem os direitos inalienáveis dos cidadãos, sendo
que, sobre eles, não tem nenhum poder a "vontade geral", expressa no
voto. Esta só se refere à organização e preservação, pelos governantes eleitos,
das Instituições, com a finalidade de garantir os direitos inalienáveis dos
cidadãos, que, em nenhum momento, podem ser espoliados deles.
BIBLIOGRAFIA
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introd. de Étienne Hoffmann, Paris: Hachette, 1997.
PAIM, Antônio. “Rosenfield,
Denis L.”. Dicionário bio-bibliográfico de autores brasileiros”.
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D
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VÉLEZ Rodríguez, Ricardo. Castilhismo,
uma filosofia da República. 2ª edição. Apresentação de Antônio Paim.
Brasília: Senado Federal, 2010.
VÉLEZ
Rodríguez, Ricardo. O Republicanismo Brasileiro. Londrina:
Instituto de Humanidades, 2012, (edição digital).
NOTAS
[1] Cf. PAIM,
Antônio. “Rosenfield, Denis L.”. Dicionário bio-bibliográfico de autores
brasileiros”. Salvador / Bahia; Brasília: Senado Federal, 1999, Coleção
Biblioteca Básica Brasileira, p.426-427.
[2]
ROSENFIELD, Denis L. O Estado fraturado – Reflexões sobre a autoridade, a
democracia e a violência. Rio de Janeiro: Topbooks, 2018, 273 p.
[4] VÉLEZ
RODRÍGUEZ, Ricardo. Castilhismo, uma filosofia da República. 2ª
edição. Apresentação de Antônio Paim. Brasília: Senado Federal, 2010.
[5]
VÉLEZ RODRÍGUEZ, Ricardo. O
Republicanismo Brasileiro (Londrina:
Instituto de Humanidades, 2012, edição digital).
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