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segunda-feira, 27 de abril de 2020

PARÂMETROS SOCIOLÓGICOS DA MORAL SOCIAL BRASILEIRA


Introdução - Toda sociedade que aspire ao amadurecimento democrático precisa discutir a questão da moral social. Esta discussão, no seio da cultura brasileira, tradicionalmente foi atribuída a instâncias verticais, encampadoras do poder de decisão sobre os cidadãos. Tais instâncias, na nossa história cultural,  polarizaram-se ao redor de quatro grandes núcleos: Família Patriarcal, Estado, Mídia e Igreja. Em torno a essas forças centrípetas consolidaram-se os modelos de moral social. É meu propósito, nesta exposição,[1] identificar tais modelos e  discutir a sua validade, face aos requerimentos hodiernos do ideal democrático que é, sem dúvida,  o grande desideratum da sociedade brasilera. 
É necessário, de entrada, partir de algumas precisões conceituais.[2] Por moral entendemos um conjunto de normas de conduta, adotado como absolutamente válido por uma comunidade humana, numa época determinada. Por ética entendemos a reflexão sistemática sobre a moral. Esta, por sua vez,  abarca uma dupla dimensão: pessoal e social. A moral, na sua dimensão pessoal, foi definida por Max Weber[3] como moral de convicção, que consiste no imperativo categórico da consciência, o qual não admite negociação  e exige total obediência, sem calcular as conseqüências, se aproximando do ideal do “sim, sim, não, não” apregoado por Cristo no Evangelho. Mas a moral pode ser, também, considerada na sua dimensão social e consiste, então, no mínimo comportamental a ser exigido de todos os membros de uma determinada sociedade, para que ela funcione como todo orgânico.

Irmã gêmea da moral social é a moral de responsabilidade que caracteriza o ideal comportamental do homem público, de quem se espera que proceda respeitando o imperativo da sua consciência, mas levando em consideração, também, os resultados previsíveis da sua ação. Esse ideal moral também se encontra presente naquele princípio evangélico que aconselha ser “prudentes como serpentes”  e “singelos como pombas”, onde a singeleza pode ser interpretada como obediência à voz da consciência e a prudência como obediência ao princípio do cálculo dos resultados da ação.

A moral social, de outro lado, pode ser considerada como passível de duas tipologias: vertical e horizontal. A caraterística da primeira consiste em ser estruturada a partir de uma minoria social que impõe o seu ideal comportamental ao resto da sociedade. A segunda consiste na moral social de tipo consensual, que emerge a partir da negociação entre interesses divergentes e se consolida como consenso a partir dessa negociação. A temática da moral social de tipo consensual foi colocada pelos moralistas ingleses a partir do século XVII, no contexto do mais amplo esforço em que se engajou a intelligentsia britânica desse período, para pensar as instituições do governo representativo.

Oito modelos de moral social podem ser identificados na nossa história cultural: de saber de salvação, pombalino, castilhista-getuliano, messiânico-populista, salvador militar, patrimonialista, estetizante e consensual. Analisarei cada um deles, destacando a relação que possuem com os núcleos de poder social ao redor dos quais se consolidaram (família patriarcal, Estado, mídia, Igreja). É importante salientar, entretanto, que tais modelos não constituem categorias estanques nem reificações concretas, se tratando, melhor, de tipos ideais encontradiços, muitas vezes, entrelaçados na complexa realidade social. Assim, por exemplo, os modelos messiânico-populista, salvador militar e patrimonialista acham-se tradicionalmente geminados nos vários tipos de caudilhismo em que a nossa história é particularmente rica. Especial atenção dedicarei à análise do modelo consensual, pelo fato de ser ele, hodiernamente, o único que garante a completa institucionalização da democracia no Brasil, superando os vícios do patrimonialismo e do democratismo.

I - O modelo do “saber de salvação”.

No período colonial, estruturou-se a concepção de moral social chamada por Luis Washington Vita[4] (1921-1968) de “saber de salvação”. Consistia ela na convicção de que o homem está na terra como “passando uma noite ruim numa pousada ruim”, segundo as palavras da mística espanhola Santa Teresa de Avila (1515-1582). Se o que interessa é a salvação da alma, se não somos mais do que “um vil bicho da terra e um pouco de lodo”, segundo a expressão de Nuno Marques Pereira[5] (1652-1733)  pouco interessava, logicamente, este mundo e a organização racional do convívio político. A "res publica” ficava nas mãos de Deus, destino que nos séculos XVII e XVIII concretizou-se no absolutismo alicerçado em razões religiosas. Sem dúvida que o ideal monástico da fuga do mundo, apregoado no Brasil por Marques Pereira no seu ensaio, publicado mais de cinco vezes, em Portugal, ao longo do século XVIII e intitulado: Compêndio narrativo do peregrino da América,[6] levava a reforçar o poder absoluto do monarca.

Em que pese o fato de essa proposta ter sido formulada no período colonial, não podemos deixar de reconhecer a sua presença nas propostas teocrático-moralizantes de tradicionalistas inspirados no passado medieval, como Plínio Correia de Oliveira (1908-1995). A inspiração ética do tradicionalismo insere-se, quando aplicada à política, no contexto do pensamento anti-utópico descrito por Karl Mannheim (1893-1947):[7] a proposta dos tradicionalistas é a negação das utopias perseguidas pelos progressistas.[8] Como uma das idéias-chave destes sempre foi a valorização da razão e da liberdade individual, os tradicionalistas defendem a tutela da tradição sobre o indivíduo.[9] No caso de Plínio Correia de Oliveira, fundador e primeiro ideólogo do movimento Tradição, Família e Propriedade, essa tutela estabelecer-se-ia mediante uma volta ao passado medieval, quando a Igreja controlava a consciência das pessoas. A moralidade da "res publica"  estaria garantida quando voltássemos a adotar uma estrutura de "cristandade", com a Igreja exercendo o controle sobre os costumes, com a ajuda de "ordens militares" como os Templários.

II - O modelo pombalino.

A essência das reformas efetivadas, em Portugal, por Sebastião José de Carvalho e Melo (1699-1782), Marquês de Pombal, consistia na "aritmética política", que segundo Antônio Paim (1927)[10] baseava-se em dois princípios: o Estado, convertido em empresário e possuidor da ciência aplicada, garante a riqueza da nação; em segundo lugar, compete ao Estado, presidido pelo déspota ilustrado, regular a moral dos cidadãos e a ordem social e política.

A questão da moralidade (tanto a privada quanto a pública) era, portanto, função do Estado que, numa concepção hegeliana avant la lettre ganhava a caraterística de ente moral. A problemática moral escapa, conseqüentemente, do foro individual ou da iniciativa de grupos sociais, para se situar no terreno do Leviatã que, segundo se supõe, conseguirá garantir a moralidade pública e a ordem social. As reformas efetivadas pelo Marquês tiraram da Igreja as funções educativas e de controle direto sobre os costumes, para colocá-las sob o império do Estado, num contexto de galicanismo eclesial, ou de cooptação do poder espiritual pelo temporal.

Convém lembrar que a geração que fez a Independência formou-se na Universidade pombalina[11] e, graças a isso, a idéia estatizante que inspirava a moralidade pública, entrou a formar parte essencial do patrimônio cultural brasileiro. Não foi, somente, a tendência ao empreguismo orçamentívoro que o Brasil herdou do ciclo pombalino, mas, também, a idéia, fortemente enraizada na cultura política, de que a questão moral não é incumbência do indivíduo, mas que é função exclusiva do Estado.

Essa passagem da questão moral do âmbito individual e social para o estatal, produziu no Brasil um fortalecimento muito grande do autoritarismo. Quando a tendência centrípeta e estatizante do cientificismo pombalino se encontrou com a filosofia comteana, na segunda metade do século XIX, deu ensejo à forma autoritária e moralizadora do positivismo, que empolgou os próceres da República, com Benjamim Constant Botelho de Magalhães (1836-1891) à testa. Plantada no terreno fértil das Faculdades de Direito, essa tendência formou várias gerações  de advogados republicanos, inspirados, como Júlio de Castilhos (1860-1903), por exemplo, no mais ardente jacobinismo moralizador.[12]

À sombra do estatismo pombalino encontrou refúgio um submodelo de moral social, que tinha se desenvolvido na cultura ibérica, ao longo dos séculos XV e XVI, e que foi identificado por Américo Castro (1885-1972),[13] Jaime Jaramillo Uribe (1917-2015) e por Oliveira Vianna[14] (1883-1951). Trata-se do submodelo que identifico como "ética do atalho"  ou do "não trabalho" e que consiste no preconceito em face ao trabalho produtivo, considerado como castigo pelo pecado original, e que conduz ao ideal da apropriação "heróica" da riqueza na guerra santa contra o infiel e à identificação do trabalho como atividade de párias e não de senhores. Tanto a cultura espanhola quanto a portuguesa, no período dos descobrimentos e da colônia, estiveram profundamente enraizadas nesse complexo cultural, que encontrou formulação prática na idéia do Estado-empresário, guindado por Pombal à dignidade de demiurgo produtor de riquezas. A mediação estatal libertava o homem ibérico do castigo do trabalho produtivo e garantia a posse das riquezas produzidas pelo Pai-Estado. Em trabalhos anteriores,[15] tenho identificado esse submodelo de "ética do atalho" como fonte culturológica do fenômeno da corrupção, estreitamente vinculado ao "complexo de clã" ou "espírito de patota".

III - O modelo castilhista-getuliano.

 Como continuadora do modelo estatizante pombalino, a ditadura castilhista, iniciada, no Rio Grande do Sul, por Júlio de Castilhos (1860-1093), consolidada ali por Borges de Medeiros (1863-1961) e continuada, a nível nacional, por Getúlio Vargas (1882-1954), constituiu eficaz reificação do espírito hobbesiano no Brasil. O modelo da ditadura castilhista alicerçava-se em dois princípios: de um lado, na busca da regeneração moral da sociedade a partir de uma intervenção autoritária do Estado; de outro,  na legitimação dessa presença estatal mediante o apelo à ciência, no contexto do princípio comteano de que "o poder vem do saber".[16] 

Castilhos revelou-se mais autoritário que o próprio Comte (1798-1857). Se bem é certo que a "física social" do filósofo de Montpellier ensejava uma visão determinista do homem como destacava, com propriedade, Stuart Mill[17] (1806-1873), o regenerador francês não caia, no entanto, no estatismo. Chegar-se-ia à ordem social e política, no seu entender,  mediante um processo pedagógico e moralizador, efetivado, pacificamente, por uma elite de cientistas e apóstolos da humanidade, que tentaria mudar as mentes e os corações a partir de uma pregação desinteressada. Já o gaúcho Júlio de Castilhos acreditava, diretamente, no poder do Estado que, consolidado de forma autoritária, imporia a ordem social e política de forma compulsória.

A questão da moralidade pública, tão apregoada pelos castilhistas e tão vivida por eles no seu ideal de "reino da virtude" (deve-se reconhecer, com justiça, o seu fervor, quase religioso, na administração dos dinheiros públicos) seria incumbência do Estado. O ditador, supremo legislador, era o grande centro de moralização da sociedade. Os castilhistas tornaram realidade a idéia do Estado artífice da revolução moralizadora que, numa visão antecipada do leninismo,  os socialistas portugueses, Joaquim Pedro de Oliveira Martins (1845-1894) e Antero de Quental (1842-1891), tinham concebido, em fins do século XIX.
O modelo getuliano expandiu-se a nível nacional, tendo modernizado e viabilizado, tecnocraticamente, o modelo castilhista. Dois princípios guiaram a estruturação do Estado autoritário e modernizador de Vargas: de um lado, o do equacionamento técnico dos problemas; de outro, o da alergia antidemocrática, concretizada no slogan de inspiração castilhista: "o regime parlamentar é um regime para lamentar". A questão da moralidade pública foi reduzida, por Getúlio, a simples problema técnico, que deveria ser equacionado pelo Estado autoritário, com o auxílio dos conselhos técnicos integrados à administração.
[18]
IV - O modelo messiânico-populista.

Este modelo da moral social brasileira está profundamente enraizado na cultura, pois foi herdado da tradição sebastianista portuguesa. O sebastianismo, na sua essência, corresponde ao que Jacob Leib Talmon[19] (1916-1980) identifica como um modelo de "Messianismo Político". Originada na gesta de Alcácer-Quibir, quando, em batalha contra os sarracenos, o rei português dom Sebastião foi morto, a tradição sebastianista desenvolveu-se junto com a crença de que o rei não teria morrido, teria se ocultado e voltaria para libertar o seu povo. Essa tradição passou a inspirar boa parte da literatura popular brasileira, especialmente nos remotos e miseráveis sertões do nordeste. Prova dessa rica influência foi elaborada por Euclydes da Cunha (1866-1909),[20] quando relatou as lutas de Antônio Conselheiro (1830-1897) conta o governo republicano, no final do século XIX. O escritor peruano e Prêmio Nobel de Literatura, Mário Vargas Llosa (1936)[21] deu vida ao relato do sociólogo brasileiro, no seu romance intitulado: A guerra do fim do mundo.
A corrupção, a exploração, o desespero das massas oprimidas, todos os males que o povo humilde sofre, encontrarão remédio definitivo na gesta histórica de um novo salvador, que a Providência enviará. Tal é a essência da crença sebastianista que hoje, como ontem, sobrevive na alma popular brasileira. Prova de que essa crença é, ainda hoje, oxigênio que dá vida à esperança popular, foi a entrevista que José Henrique Nazareth (aposentado em 2013, com 78 anos de idade)[22] um humilde contínuo do palácio presidencial brasileiro, concedeu à revista Istoé, em 1990. À pergunta: - "Agora Collor o que é?" – Nazareth respondeu: "Ele é o corpo e o sangue de Cristo, é esse o sangue que vai transformar, que vem a nós como um novo Belém, a terra prometida. Ele é o Messias que vai levar o povo à terra onde vamos comer mel".

Não é necessário destacar o enorme cabedal de paternalismo autoritário que se encerra nessa mentalidade. A duríssima e longa ditadura getuliana, durante as décadas de 30 e 40, bem como o posterior ciclo salvador militar, deram provas suficientes dos extremos de paternalismo e de manipulação popular de que é capaz o messianismo republicano brasileiro.

V - O modelo salvador militar. 

Juarez Távora (1898-1975), um dos oficiais do Exército que protagonizaram as famosas revoluções tenentistas, ao longo dos anos vinte, revelou, em certa oportunidade, a índole salvadora que assumiram as intervenções militares ao longo do período republicano. Estreito colaborador de Vargas no governo provisório (1930-1934), que se organizou depois da revolução de 1930, procurou um dos assessores jurídicos do governo, o sociólogo Oliveira Vianna, e lhe pediu que elaborasse um modelo de Constituição. Como no modelo apresentado pelo assessor não aparecesse definido o papel dos militares, assim o explicou: "A nossa atitude em política é a de quem observa um banquete. Quando o banquete se converte em rega-bofe, então entraremos com a espada moralizadora".[23]

As Forças Armadas entenderam, dessa forma salvadora, o seu papel na política brasileira, ao longo do período republicano: assim foi durante a República Velha (1891-1930), com as chamadas "salvações"; assim foi durante o longo governo getuliano (1930-1945), que se apoiou na jovem oficialidade do Clube 3 de Outubro; assim foi quando Getúlio deixou o poder em mãos do marechal Eurico Gaspar Dutra (1883-1974), depois da Segunda Guerra Mundial em 1945; assim foi em 54,  com a intervenção dos chefes militares, que levou o presidente constitucional Getúlio Vargas ao suicídio; assim foi em 64, com a chamada "revolução salvadora".
Não há dúvida, como sugere Alfred Stepan[24] (1936-2017) de que essa concepção salvadora encaixou na praxe do "poder moderador", à qual se acostumaram os brasileiros, ao longo de mais de cinquenta anos de Império. Desaparecida a figura do Imperador, a partir da instauração da República, em 1889, continuou presente, contudo, a idéia de que um poder superior ao Parlamento e ao jogo político-partidário, deveria exercer uma espécie de tutela sobre a sociedade, a fim de evitar que os interesses privados dos políticos terminassem prevalecendo sobre o interesse público. As Forças Armadas, no sentir de Stepan, passaram a exercer essa função moderadora.

Paulo Mercadante[25] (1923-2013) destaca o fato de que, no cumprimento de sua missão salvífica e moderadora, os militares brasileiros inspiraram-se no modelo weberiano da ética de convicção (baseada na preservação do valor absoluto da honra), e rejeitaram (porque o consideravam oportunista) o modelo de ética de responsabilidade, identificado por Weber[26] como próprio do homem público, que calcula, nas suas ações, o resultado que delas provirá.  Essa visão salvadora, baseada no código de honra, encontrou primorosa manifestação no final do Império, quando, por causa da chamada "questão militar", o marechal Deodoro da Fonseca (1827-1892) desembainhou no Parlamento a espada e exclamou: "a honra do Exército está acima da lei!".

Antônio Paim[27] (1927) lembra que esse sentido da moral de convicção que não admite negociações, fez com que a intervenção militar de 1964 se revestisse de feição autoritária. Esse espírito revelar-se-ia, entre outras coisas, na forma autoritária em que foram entendidos os "objetivos nacionais permanentes" os quais, formulados pela elite militar, passaram a ser interpretados como paradigmas inquestionáveis pelos líderes da ESG.

VI - O modelo patrimonialista. 
Nas suas obras fundamentais Oliveira Vianna[28] destacou um fato fundamental da formação social brasileira: a tendência a confundir público com privado. Não existe, na mentalidade do povo, nem na das elites, claramente definida, a linha de demarcação entre interesses familiares e aqueles pertencentes à esfera pública. Parece como se ambas ordens de interesses coexistissem, de modo indiferenciado, no mesmo universo. Esse fato levou a sabedoria popular a cunhar slogans como "aos amigos marmelada, aos inimigos bordoada"; "aos amigos os cargos, aos inimigos, a lei"; "governar é nomear, demitir e prender"; "é dando que se recebe", etc.

A idéia subjacente a todas essas expressões é a de que a coisa pública é patrimônio familiar para ser distribuído entre consanguíneos, amigos e apaniguados. Nada mais ilustrativo dessa mentalidade do que os "trens da alegria", com que ocupantes de cargos públicos recompensam, generosamente, familiares e amigos. Outro exemplo eloquente desse espírito privatizante e orçamentívoro, são as gordas remunerações que, na nossa história republicana, membros dos corpos legislativos aprovam em benefício próprio, fato que levou Simon Schwartzman (1939)[29] a escrever que, enquanto a política é, para outros povos, um meio de beneficiar os negócios, para os brasileiros é o grande negócio.

A origem desse espírito privatizante é situada por Oliveira Viana no "complexo de clã", proveniente do latifúndio. A primeira experiência que tivemos como povo, logo depois do descobrimento, foi a da casa grande, presidida pela figura todo-poderosa do "senhor de engenho", autoridade patriarcal amada e temida ao mesmo tempo, que com a "guarda de corp" ao seu serviço, garantia a sobrevivência de clientes, familiares, amigos e apaniguados, perseguindo os seus inimigos até a morte. Em que pese o fato de o Brasil ter-se convertido, a partir dos anos 70, num país predominantemente urbano, a tendência privatizante herdada do "complexo de clã” é, ainda, o pano de fundo que inspira, muitas vezes, a participação política. Seria uma fantasia ignorar, hodiernamente, essa tendência herdada do "complexo de clã". É verdade que a participação em partidos estruturados programaticamente, que caracteriza a vida política brasileira nas últimas décadas, promete mudanças significativas. Mas, ainda, há muito clientelismo e espírito familístico nas nossas estruturas políticas.

A discussão da moralidade pública passa, necessariamente, pelo caminho da crítica ao "complexo de clã", que afeta a cultura política. Não se pode falar em gestão ética da coisa pública, enquanto a noção de República coincidir mais com a de coisa nossa ou "res privata". José Murilo de Carvalho (1939)[30] escreveu a respeito:  "(...) a República fracassou até agora. A proposta republicana, seja no modelo liberal, seja no autoritário, significa sempre participação, reforma social, desenvolvimento da cidadania, da vida pública. De um sistema político que incorpore a população, um sistema que não procure excluir, mas que, ao contrário, procure construir uma nação. A nossa República não tem, nesse ponto, um saldo muito positivo para apresentar".

VII - O modelo estetizante. 
Segundo Mário Vieira de Mello[31] (1912-2006) o brasileiro adotou, no terreno moral, um comportamento estetizante. A bondade ou malícia dos atos humanos não se deduz do seu ajustamento, ou não, a um imperativo categórico proveniente da consciência moral, mas da exteriorização, como num palco, dos próprios sentimentos.
A propósito, afirma Viera de Mello:[32] "(...) De um modo geral (o brasileiro) parece ser, nos nossos dias, um homem que se contempla a si mesmo e que contempla os outros como se o mundo fosse um grande palco e como se a vida devesse estar destituída de sentido, no caso de que não pudesse se constituir como um espetáculo ao qual assistiriam um certo número de pessoas assíduas e atentas. Esse traço que se encontra certamente em outros países que, como o nosso, tenham sido submetidos à influência do estetismo, apresenta-se naturalmente na nossa psicologia em graus muito variados, indo desde o simples desejo de não deixar passar inadvertido um mérito, uma ação, uma qualidade ou uma intenção louvável, até as manifestações excessivas de um exibicionismo sem pudor ou de um cabotinismo indiferente às exigências mais rudimentares da modéstia. O brasileiro de nossos dias é pouco sensível às qualidades da alma que são menos óbvias, as qualidades que são, por assim dizer, invisíveis. Escapa-lhe completamente o sentido valioso de um gesto de renúncia, de uma palavra não proferida, o valor moral associado à repressão silenciosa de um movimento de egoísmo, de vaidade ou de orgulho. A exteriorização dos sentimentos parece constituir para ele a única garantia de que tais sentimentos existem. Essa psicologia de extrovertidos poderia naturalmente, através de explicações de tipo supostamente científico, ser justificada à luz das condições raciais e somáticas do povo ou climáticas do país. Mas, em verdade, é a compreensão do mundo como um palco a que conduz o brasileiro a uma exteriorização excessiva dos seus sentimentos que, muitas vezes, não é possível levar a cabo sem uma certa falta de sinceridade (...)".

Manifestação concreta desse modelo ético deu-se, a meu ver, no fenômeno do chamado "bacharelismo", ou comportamento estetizante do advogado brasileiro de início de século. Rui Barbosa (1849-1923), máxima expressão da advocacia, assumiu, na sua vida pública, a condição de ator, profundamente admirado ou odiado. "Durante muito tempo a imagem de Rui Barbosa  - escreve Nelson Saldanha (1933-2015)[33] -  representou um símbolo de enorme relevância, tanto para as elites intelectuais quanto para o público comum. Um símbolo que ocasionalmente funcionou ao contrário, com oscilações entre a idolatria e o repúdio. Símbolo do bacharel e do advogado, bem como do orador liberal, do jornalista palavroso, da cultura que chegou a ser chamada de 'ornamental', Rui Barbosa não foi apenas uma vocação: a sua figura foi promovida pela circunstância, cujos valores e tendências em matéria cultural ele exemplarmente encarnou. O 'ruismo', como adesão de várias gerações ao seu estilo verbal e aos conteúdos que defendeu, foi fenômeno explicável nos quadros da classe média brasileira, fascinada pelo saber e pelas hipérboles. O Rui Barbosa polimórfico e versátil correspondeu à dispersão que foi regra entre os intelectuais da época: jornalismo, advocacia, teoria política e, ao mesmo tempo, a vida entre os livros e no gabinete (...)".

VIII - O modelo de moral social de tipo consensual.

Antônio Paim foi quem primeiro propôs este modelo na sua obra intitulada: Modelos éticos,[34] escrita em 1983 e publicada posteriormente. Ali, o autor analisa a forma em que foi tematizada, pela primeira vez, a moral social na Inglaterra no século XVII, e segue os passos que ela percorreu ao longo dos séculos XVIII, XIX e XX.  Assim como Kant (1724-1804) firmou as bases da moral do dever (chamada por Weber de "ética de convicção"), os moralistas ingleses formularam a moral social de tipo consensual. Na sua essência, ela consistiria no seguinte: nas sociedades modernas, multitudinárias e pluralistas, vários padrões de moral individual (fixados pela família, a igreja,, a escola e o convívio social) muitas vezes se contrapõem. Sem que isso signifique relativização da moral individual, cuja essência consiste no imperativo categórico ou consciência do dever moral,  tornou-se necessária a formulação negociada de uma moral social,  que indique o mínimo que passará a ser exigido de qualquer cidadão. Não é desejável que esse mínimo seja fixado por uma determinada confissão religiosa; poder-se-ia dizer que ela seria privilegiada face às outras. Também não é desejável que esse mínimo seja fixado de forma imperativa pelo Estado: além de não ser ele ente moral (pois é fruto, como frisa Thomas Paine (1737-1809), de nossas fraquezas e não das nossas virtudes), ficaria seriamente comprometida a evolução democrática da sociedade.

A questão da moral social, de tipo consensual, remete-nos a outra, igualmente essencial: a necessidade de promover a educação básica, a fim de que a sociedade possa deliberar acerca de seus problemas morais. É claro que, numa sociedade de pobres e analfabetos, impor-se-á, autoritariamente, a minoria ilustrada e poderosa. Isso não significa que a questão da moral social deva ser relegada às calendas gregas, mas que deve haver uma equilibrada evolução da sociedade nos planos econômico, político e cultural.

Falar em moral social de tipo consensual no Brasil de hoje  - como em qualquer país latino-americano ou do terceiro mundo -, implica em encarar os problemas do estatismo, dos graves desequilíbrios na distribuição da riqueza, do analfabetismo, etc. O primeiro passo, certamente, consiste em chegar à convicção de que não haverá democracia, enquanto os nossos povos não tenham a capacidade de fixar, por si próprios, de maneira consensual, a moral social que deve presidir o convívio político. Sem essa base moral, os decretos e as leis são letra morta. Somente a consciência moral é base para a democracia e para a mudança. Como frisa Michel Crozier[35] (1922-2013), "não se muda a sociedade por decreto".

Na sociedade brasileira, tradicionalmente, (ao longo da nossa história quadrissecular), a moral social foi formulada de maneira vertical, quer pela Igreja  - quando ainda prevalecia a cultura agrária -, quer pelo senhor de engenho  - nos remotos tempos da casa grande -, quer pelo Estado autoritário  - até o final do ciclo militar -, quer pela mídia  - nos tempos, mais recentes, da abertura e da atual experiência democrática -. Um fato novo, no entanto,  começou a se generalizar no país, notadamente, após a Constituição de 1988 a qual, embora carregada, ainda, de vícios corporativistas e casuístas[36], pode ser chamada de "Constituição cidadã", justamente pelo fato de ter sido concebida a partir da perspectiva do cidadão, não do Estado (como era praxe na nossa tradição constitucional). 

Esse fato novo é o seguinte: a sociedade brasileira tem tomado, paulatinamente, consciência de que ela própria deve se engajar na discussão e na fixação dos princípios de moral social. Essa consciência tem-se desenvolvido, com maior intensidade, após o affaire Collor de Mello, que conduziu à renúncia de um mandatário eleito a partir da pregação do binômio moralidade-modernidade. Desiludida em face à incapacidade moralizadora do Estado, a sociedade tem acordado para múltiplas e variadas iniciativas que possuem, como base comum, a preocupação com a discussão dos princípios da moral social, bem como com o pressuposto de que ela deve ser formulada consensualmente.

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NOTAS


[1] Trabalho apresentado na Reunião da ANPOF, Aguas de Lindoia, SP, 19 a 23 de Outubro de 1996. Algumas datas foram atualizadas.
[2] PAIM, Antônio. Modelos éticos. São Paulo: Ibrasa; Curitiba: Champagnat. 1992.
[3] Cf. WEBER, Max. Ensaios de sociologia. (Tradução de W. Dutra). Rio de Janeiro: Zahar. 1981. WEBER, Max. Ciência e política: duas vocações. (Tradução de L. Hegenberg e Octani Silveira da Mota; prefácio de M. T. Berlinck). São Paulo: Cultrix, 1993.

[4] VITA, Luís Washington (organizador). Antologia do pensamento social e político no Brasil. (Seleção e notas de L. W. Vita). Washington: União Panamericana; São Paulo: Grijalbo. 1968, p. 17-18.
[5] Cf. MOOG Rodrigues, Anna Maria (organizadora e introdutora). Moralistas do século XVIII (Antologia). Rio de Janeiro: PUC/Documentário/Conselho Federal de Cultura. 1979.
[6] Cf. PEREIRA, Nuno Marques. Compêndio narrativo do peregrino da América. 6ª edição. (Nota e estudo de Varnhagen, Leite de Vasconcelos, Afrânio Peixoto, Rodolfo García e Pedro Calmon). Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Letras, 1939, 2 vol., (Coleção Afrânio Peixoto). 7ª edição. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Letras, 1988, 2 vol.
[7] Cf.  MANNHEIM, Karl. Ideología y utopía: introducción a la sociología del conocimiento. 2ª edição. Madrid: Aguilar. 1966.
[8] Cf. CORDI, Cassiano. O tradicionalismo na República Velha. Rio de Janeiro: Universidade Gama Filho (tese de doutorado em Pensamento Brasileiro). 1984. MACEDO, Ubiratan Borges de. A liberdade no Império. São Paulo: Convívio. 1977.
[9] Cf. VÉLEZ Rodríguez, Ricardo. Liberalismo y conservatismo en América Latina. Bogotá: Tercer Mundo. 1978, p. 85-112.
[10] Cf. PAIM, Antônio. A querela do estatismo. 1ª edição, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1978.PAIM, Antônio, (organizador). Pombal na cultura brasileira. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro/Associação Cultural Brasil-Portugal, 1982.
[11] Cf. BARRETTO, Vicente. A ideologia liberal no processo de independência do Brasil. Brasília: Câmara dos Deputados, 1973. 
[12] VÉLEZ Rodríguez-RODRÍGUEZ, Ricardo. O Castilhismo. 2ª edição, Rio de Janeiro: Universidade Gama Filho, 1994. VÉLEZ Rodríguez, Ricardo. "Pressupostos éticos na organização do Estado", in: Ensaio, Rio de Janeiro, I, no. 4, pgs. 43-52, 1994. VÉLEZ Rodríguez, Ricardo. A ditadura republicana segundo o Apostolado Positivista. 2ª edição, Rio de Janeiro: Universidade Gama Filho, 1994. VÉLEZ Rodríguez,  Ricardo. A propaganda republicana. 2ª edição, Rio de Janeiro: Universidade Gama Filho, 1994.
[13] Cf. CASTRO, Américo. España en su historia. Buenos Aires: Eudeba. 1950. JARAMILLO Uribe, Jaime. El pensamiento político colombiano en el siglo XIX. Bogotá: Temis, 1974.
[14] Cf. VIANNA, Francisco  José de Oliveira. Introdução à história social da economia pré-capitalista no Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1958.
[15] Cf. VÉLEZ Rodríguez, Ricardo.  "Autoritarismo e corrupção", in: Convivium, São Paulo, no. 2, 1985.
[16] Cf. VÉLEZ Rodríguez, Ricardo. Castilhismo, uma filosofia da República. Porto Alegre: EST; Caxias do Sul: Universidade de Caxias do Sul, 1980. VÉLEZ-Rodríguez, Ricardo. O Castilhismo. 2ª edição, Rio de Janeiro: Universidade Gama Filho, 1994.
[17] Cf. MILL, John Stuart. Comte y el positivismo. (Tradução de D. Negro Pabón). 2ª edição. Buenos Aires: Aguilar, 1972.
[18] Cf. VÉLEZ Rodríguez, Ricardo. "Tradição centralista e Aliança Liberal", Introdução. In: BRASIL, CONGRESSO NACIONAL, CÂMARA DOS DEPUTADOS, Aliança Liberal: Documentos da campanha Presidencial. Brasília: Câmara dos Deputados, 1982.
[19] Cf. TALMON, J. L. Mesianismo político: la etapa romántica. (Trad. de Antonio Gobernado). México: Aguilar, 1969, p. 21-140.
[20] CUNHA, Euclydes da. Os sertões. São Paulo: Abril Cultural, 1979.
[21] VARGAS Llosa, Mario. La guerra del fin del mundo. 1ª edição. Barcelona: Seix Barral, 1981.
[22] Cf. FERNÁNDEZ, Bob. "O poder segundo Very well: contínuo do Planalto há 28 anos, José Nazareth faz uma radiografia do país a partir de suas entranhas". In: Istoé-Senhor, São Paulo, no. 1070, p. 8, 1990.
[23] Apud ALMEYDA, Dayl de. "Oliveira Vianna dita normas", in: Vasconcellos Torres, Oliveira Vianna, sua vida e sua posição nos estudos brasileiros de sociologia. Rio de Janeiro/ São Paulo: Freitas Bastos, 1956, p. 184.
[24] Cf. STEPAN, Alfred. Os militares na política. (Tradução de I. Tronca). Rio de Janeiro: Artenova, 1975.
[25] Cf. MERCADANTE, Paulo. Militares & civis: a ética e o compromisso. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.
[26] Cf. WEBER, Max. Ciência e política: duas vocações. (Tradução de L. Hegenberg e Octani Silveira da Mota; prefácio de M. T. Berlinck). São Paulo: Cultrix, 1993.
[27] Cf. PAIM, Antônio. A querela do estatismo. 1ª edição. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1978.
[28] VIANNA, Francisco José de Oliveira. Populações meridionais do Brasil e Instituições políticas brasileiras. (Introdução de Antônio Paim), 1ª edição num único volume. Brasília: Câmara dos Deputados, 1982.
[29] SCHWARTZMAN, Simon. Bases do autoritarismo brasileiro. 1ª edição, Rio de Janeiro: Campus, 1982. 
[30] CARVALHO, José Murilo de. "Ainda não proclamamos a República", in: Jornal do Brasil, 5-11-89, primeiro caderno, 1989, p. 13.
[32] MELLO, Mário Vieira de. Desenvolvimento e cultura: o problema do estetismo no Brasil, p. 87.
[33] SALDANHA, Nelson. "Rui Barbosa e o bacharelismo liberal", in: Adolpho Crippa (organizador), As idéias políticas no Brasil, São Paulo: Convívio, vol. II, 1979, p. 164.
[34] Cf. PAIM, Antônio. Modelos éticos. São Paulo: Ibrasa; Curitiba: Champagnat, 1992. 
[35] Cf. CROZIER, Michel. On ne change pas la société par décret. Paris: Grasset, 1979.
[36] Cf. MERCADANTE, Paulo (organizador). Constituição de 1988: o avanço do retrocesso. Rio de Janeiro: Rio Fundo Editora, 1990.


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