Em
pesquisas anteriores[1]
aproximei as tipologias sociológicas e as preocupações culturológicas do grande
pensador fluminense Oliveira Vianna (1883-1951), dos tipos ideais e da pesquisa axiológica
desenvolvidos por Max Weber (1864-1920).
Pretendo, neste post, ampliar essa análise, abrangendo a sociologia de Gilberto Freyre
(1900-1987), com o objetivo de ilustrar
a forma em que os estudos sobre o patriarcalismo desenvolvidos pelos dois
sociólogos, servem de base para a
compreensão do Estado patrimonial brasileiro.
A
fim de cumprir com o meu propósito,
desenvolverei os seguintes itens:
I - Gilberto Freyre e Oliveira Vianna,
autores malditos. II - Patrimonialismo: a tradição política luso-brasileira. III - O estudo dos valores que presidiram à
formação social brasileira, segundo
Gilberto Freyre e Oliveira Vianna. IV - O
estudo do patriarcalismo em Gilberto Freyre e Oliveira Vianna, como base para compreender a realidade do
Estado patrimonial brasileiro.
I -
Gilberto Freyre a Oliveira Vianna,
autores malditos.
Para
ninguém é mistério que, ao nos
depararmos com o propósito de expor o pensamento de Gilberto Freyre e de
Oliveira Vianna, enfrentamos o que corriqueiramente
se chama um abacaxi. Ambos são autores malditos. Ser autor in no Brasil, é como a
moda. Se desagrada ao que está
convencionado, é a morte. Se se acomoda aos padrões estabelecidos, é a glória. Talvez o início do descrédito de Gilberto
Freyre e de Oliveira Vianna esteja aí:
em ter elaborado uma sociologia
fora dos padrões usuais.
No
sentir de Wanderley-Guilherme dos Santos (1935-2019)[2], é possível nuclear as análises do pensamento
político-social brasileiro, ao redor de
três modalidades principais: a “matriz
institucional”, a matriz “sociológica” e
a matriz “ideológica”. Por “matriz
institucional”, o mencionado autor
entende “a organização, classificação e
avaliação do pensamento social brasileiro,
segundo marcos organizacionais e institucionais”.3 Já por “matriz sociológica”, entende-se a análise que se desenvolve
tomando como parâmetro características da estrutura econômico-social, quer ”(…)
para explicar variações ocorridas sobretudo no conteúdo das preocupações dos investigadores
sociais, como decorrência de
modificações processadas na estrutura socioeconômica, quer,
em casos extremos, para deduzir
os atributos ou dimensões do processo social”.[3] A fórmula posta em voga pelo Instituto
Superior de estudos Brasileiros, na
segunda metade da década de 50, de que
tudo é colonial na Colônia,[4] exemplifica,
segundo Wanderley-Guilherme, a
matriz sociológica.
Por
“matriz ideológica” o citado autor entende “a preocupação de analisar os textos
brasileiros de reflexão social com o objetivo explícito de buscar sua
caracterização conceitual própria, independentemente dos azares conjunturais da
empiria. Não se trata de afirmar que a empiria histórica é irrelevante para a
formação do pensamento social, nem que
esse mesmo pensamento não se refira em algum momento ao transcurso
histórico. Apenas se reivindica a
diferenciação e análise conceitual como procedimentos legítimos e necessários
na apropriação adequada dos determinantes estritamente conceituais do presente”.[5]
Dos
três ângulos propostos por Wanderley-Guilherme dos Santos, para classificar as
análises de pensamento político-social brasileiro, podemos centrar a atenção na “matriz
ideológica”, a fim de analisarmos, à luz dela,
a forma em que Gilberto Freyre e Oliveira Vianna elaboraram uma
sociologia fora dos padrões usuais.
Qual
foi a “matriz ideológica” que deu
embasamento à sociologia brasileira, ao
longo do século XX? Wanderley-Guilherme considera que essa matriz foi a
dicotômica, que consiste em atribuir a
origem das crises a uma oposição arquetípica de fatores. “Foi talvez Euclides
da Cunha (1866-1909) - frisa o citado autor - no ensaio Da Independência à
República, publicado pela primeira
vez em 1900, quem chamou a atenção para
a existência de dois Brasis: um, urbanizado,
litorâneo, desenvolvendo-se com
os benefícios da atenção governamental;
outro constituído pelas populações rurais, estagnado,
sobrevivendo por si mesmo, fora
do âmbito da ação ou interesse governamentais (…)”. Embora este esquema seja apenas incidental
no contexto geral do ensaio, é altamente importante na medida em que estabelece
a fórmula intelectual para a análise política que estava por vir, a saber,
“descobrir uma dicotomia à qual pudesse ser racionalmente atribuída a
origem das crises; traçar a formação da dicotomia no passado histórico
nacional; propor a alternativa política
para a redução da dicotomia. Tal é a
estrutura básica do paradigma”.[6]
Ora, considera Wanderley-Guilherme, “este estilo dicotômico de percepção
permanece indiscutível desde então”, tendo-se tornado o “milieu” preferido
pelos nossos cientistas sociais. A entrada das categorias marxistas na análise
sociológica, encaixou-se nesse esquema,
que já tinha servido de marco epistemológico às abordagens de inspiração
positivista.
Colocado
o pensamento sociológico de Gilberto Freyre e de Oliveira Vianna, face à matriz ideológica dicotômica que
prevaleceu, vemos que ambos os autores
fogem a essa perspectiva. O pernambucano, na medida em que escapa do ponto de
vista metropolitano-dicotômico,
dedicando-se a formular amplo painel integrador da vida brasileira, ao redor da Casa Grande. A respeito desse aspecto totalizante da
sociologia freiriana, frisa Jean
Duvignaud (1921-2007):[7] “Encontramos um outro aspecto do método deste
autor na instituição de uma ‘totalidade
orgânica’, de uma coesão
dialética que envolveria todas as manifestações de uma sociedade ou de um
período da história, e cuja forma
comandaria os movimentos interiores.
Mas uma esfera enraizada num solo,
numa terra cujo eixo seria uma relação material entre os homens e a
natureza. Reencontraríamos aqui uma das
‘idéias força’ de Marcel Mauss (1872-1950), a noção de ‘fenômeno social total’
unindo, numa mesma análise, atividades
divergentes que geralmente apelam para estudos especializados diferentes
(religião, economia, estética, etc.) mas que um núcleo único reúne. Ou, ainda,
esta outra idéia que Georges Gurvitch (1894-1965) propôs pela primeira
vez, nesse colóquio de Cérizy dedicado a
Gilberto Freyre, ou seja a idéia do ‘fenômeno psíquico total’, que possuiria sua autonomia própria, simbólica,
ao mesmo tempo consciente e inconsciente, sem entretanto coincidir plenamente com a
sociedade nem tampouco dela emanar ou refleti-la”.
Em
relação à forma em que Oliveira Vianna foge à matriz ideológica
dicotômica, lembremos a crítica que o
sociólogo fluminense tece contra o monocausalismo em ciências sociais. Longe de
serem pautadas as sociedades por “leis gerais” (como a física social dos
positivistas), prevalece o conceito de
multiplicidade de fatores. No prefácio à terceira edição da sua obra Evolução
do povo brasileiro,[8] em 1937,
Oliveira Vianna reage contra a forma unilinear de entender a evolução
das sociedades, como se houvesse “leis
gerais” que as comandassem; acolhendo os conceitos do sociólogo e criminalista francês
Gabriel Tarde (1843-1904), o nosso autor considera que existem múltiplas
tendências na evolução das organizações sociais, e que é impossível reduzi-las a um único esquema. Existe hoje, à luz das ciências sociais, o
“heterogêneo social” contraposto ao “homogêneo social” de Herbert Spencer (1820-1903).[9]
No
campo social, encontra-se multiplicidade
e linhas de evolução, e de fatores que
intervêm nessas linhas. “Para essa multiplicidade de tipos - frisa Oliveira Vianna - , para essa
variedade de linhas de evolução, para esse heterogenismo inicial, contribui um
formidável complexo de fatores de toda ordem, vindos da Terra, vindos do Homem, vindos da Sociedade, vindos
da História: fatores étnicos, fatores
econômicos, fatores geográficos, fatores históricos, fatores climáticos, que a ciência cada vez
mais apura e discrimina, isola e
classifica. Estes predominam mais na
evolução de tal agregado; aqueles, mais na evolução de outro; mas,
qualquer grupo humano é sempre conseqüência da colaboração de todos
eles; nenhum há que não seja a
resultante da ação de infinitos fatores,
vindos, a um tempo, da Terra,
do Homem, da Sociedade e da
História. Todas as teorias, que faziam
depender a evolução das sociedades de uma causa única, são, hoje, abandonadas e peremptas: não há, atualmente,
monocausalismos em ciências sociais”.[10]
Do
exposto, fica claro de que forma
Gilberto Freyre e Oliveira Vianna fogem, no seu pensamento sociológico, da matriz ideológica dicotômica, que terminou por prevalecer na sociologia
brasileira. Não estranha, assim,
o ostracismo a que foram submetidas as suas obras. Apenas agora começam a ser superados esses
preconceitos, [11] embora continue a circular, ainda, literatura
enviesada que desconhece, sumariamente, o valor deles no panorama sociológico
nacional.[12]
II -
Patrimonialismo: a tradição política
luso-brasileira.
Segundo
Max Weber,[13] os Estados modernos são de dois tipos, de acordo ao seu processo de formação: contratualistas ou patrimoniais. Os primeiros
correspondem às nações da Europa ocidental,
herdeiras da tradição feudal
fortemente contratualista e alicerçada no controle moral ao poder. Ao emergirem nesse contexto os Estados
modernos, consolidaram-se de forma
contratual entre as classes em pugna, tendo ensejado, ao longo dos quatro
últimos séculos, o moderno parlamentarismo. Os segundos, os Estados
patrimoniais, correspondem àqueles em
que um poder centrípeto, de forte
tendência patriarcal, se sobrepôs às outras forças sociais, tratando-as como instâncias domésticas, sobre as quais se estendia implacável a
autoridade do rei. Esta foi a feição assumida pelos Estados surgidos na
Península Ibérica, bem como na Rússia. Weber e, posteriormente, Karl August Wittfogel
(1896-1988),[14]
estenderam o modelo do estado patrimonial além das fronteiras do mundo
moderno, arrolando, nesse contexto, os
antigos Estados hidráulicos (o Egito dos faraós, o império chinês, notadamente sob a dinastia Liao, os califados árabes, os impérios pré-colombianos inca e asteca, etc.).
A característica
fundamental das formações políticas patrimoniais é, segundo Wittfogel, o fato de constituírem
Estados mais fortes do que a sociedade. Neles,
o poder político não é entendido como instância pública, como busca do bonum commune, como res publica, mas como res
privata, coisa nossa. Há uma
confusão radical entre o público e o privado.
Weber e, também, Karl Wittfogel, anotaram outras características típicas
dos Estados patrimoniais: neles, surge como instância auxiliar do soberano um
estamento pré-burocrático, porquanto não pautado por regras impessoais, mas
alicerçado na fidelidade pessoal. De
outro lado, a lei não exprime uma
ordenação que vale para toda a sociedade, mas, apenas, constitui casuísmo a ser
utilizado pela autoridade central a seu bel-prazer. A sociedade, outrossim,
comporta-se de forma passiva e insolidária, sendo a única força a autoridade centrípeta
do rei ou do soberano absoluto, que é
invocada para solucionar qualquer pendência. A religião, que no seio da Europa feudal, constituiu
instância de poder espiritual irredutível ao imperium, no contexto
patrimonial passa a ser cooptada pelo poder do monarca.
O
Estado português, já desde a revolução
de Avis (1385),[15]
consolidou-se como Estado patrimonial. Alexandre Herculano (1810-1877)[16]
destacou a ausência de feudalismo em Portugal e a forma em que os príncipes
cristãos, que venceram os sarracenos, passaram a administrar o reino como
propriedade particular, tendo sido, nesse ponto, contaminados pela cultura
política muçulmana. Lúcio de Azevedo (1855-1933), na sua obra: Épocas de
Portugal Econômico, identificou o
reino de Portugal como empresa do rei, que presidiu inicialmente uma monarquia
agrária, para se tornar, depois,
“mercador de mercadores”. O
mercantilismo da empresa ultramarina esteve indissociavelmente ligado à
característica centrípeta e privatizante do exercício do poder monárquico. Raymundo Faoro, no seu clássico estudo, de 1958, intitulado: Os
donos do poder, analisou,
detalhadamente, a forma em que se consolidou o estamento burocrático da
monarquia portuguesa, alicerçado totalmente na fidelidade pessoal ao
monarca, na progressiva substituição da
nobreza de sangue pela de funcionários públicos, na submissão da burguesia à
empresa do rei, bem como na incorporação
do direito romano, a partir da ação
decisiva do Mestre de Avis, dom João I de Portugal (1357-1433).
Herdamos
de Portugal a estrutura patrimonial do Estado. Esse fato tem sido estudado, além
de Raymundo Faoro (1925-2003), que foi pioneiro no Brasil nesse tipo de
análise, por Lúcio de Azevedo,[17]
Simon Schwartzman (1939)[18],
Antônio Paim (1927)[19],
Fernando Uricoechea[20], Wanderley-Guilherme dos Santos[21]
e José Oswaldo de Meira Penna (1917-2017)[22].
O ponto central dessa caracterização seria este: consolidou-se, entre nós, um Estado mais forte do que a sociedade, em que o poder centrípeto do Imperador, ao
longo do século XIX, ou do Executivo, no
período republicano, criaram forte
aparelho burocrático alicerçado no sentimento de fidelidade, com elevada tendência improdutiva e
privatizante, de forma a considerar a res publica como res privata a ser administrada domesticamente, ensejando, assim, as conhecidas práticas do
empreguismo, do nepotismo e da corrupção
sob as suas várias manifestações.
Em
que pese o fato do caráter inexorável assinalado por Raymundo Faoro para essa
tendência patrimonial tradicional no Estado brasileiro, Simon Schwartzman e
Antônio Paim salientam um componente modernizador, que deu lugar à nova
tradição, identificada, por eles, como
“patrimonialismo modernizador” ou “neopatrimonialismo”.
Consiste este, no sentir de Paim,[23]
na incorporação da ciência moderna pelo Estado centralizador, fato que se realiza, em Portugal, a partir
das reformas pombalinas e que se projeta entre nós na geração que fez a
independência (formada, toda ela, na nova universidade aberta às ciências e às
técnicas) e que organiza os primeiros
institutos de estudos superiores, entre
os que cabe destacar a Real Academia Militar,
criada, em 1810, por Rodrigo de Sousa Coutinho (1755-1812), conde de
Linhares. A tendência modernizadora, vinculada
ao cientificismo em mãos do Estado,
ensejou ampla prática centralizadora e estatizante, já a partir do próprio Marquês de
Pombal. O ministro de D. José I
(1714-1777) pôs em execução o modelo do Estado empresário, gerador da riqueza da Nação e da ordem
política e moral, mediante a
incorporação da ciência moderna. Longe
de ensejar a participação da sociedade,
o modelo pombalino fazia desta eterno menor de idade, submetido à tutela
do soberano.
Para
os teóricos do patrimonialismo modernizador, o autoritarismo não seria a sina a
que irremediavelmente estaria condenado o Estado brasileiro. De forma semelhante a como países de tradição
patrimonial - Espanha e Portugal, por exemplo -
se modernizaram, incluindo, nesse processo, o exercício do ideal
democrático através da representação, o
Brasil poderá se tornar, no sentir
deles, uma nação plenamente moderna e
democrática, em que o Estado cumpra
apenas as funções que são imprescindíveis e em que a sociedade participe,
ativamente, do processo econômico e político,
mediante o estímulo à livre iniciativa, à representação e ao jogo
político partidário.
III
- O estudo dos valores que presidiram à formação social brasileira, segundo
Gilberto Freyre e Oliveira Vianna.
O
pensamento sociológico, desde suas
origens até os nossos dias, tem
percorrido um caminho inverso ao trilhado pelos seres vivos: da esclerose do cientificismo saint-simoniano
e comteano (que considerava a sociologia uma “fisiologia social” ou uma “física
social”, dotada de leis irretorquíveis e
geradora de certezas absolutas) passamos,
no século XX, a um tipo de saber
fundado, apenas, em certezas probabilísticas,
alicerçadas em generalizações estatísticas, muito mais próximas do contínuo fluir que caracteriza
a vida. A grande contribuição dada por
Max Weber à evolução hodierna da sociologia,
consistiu em ter assinalado, para ela,
como objeto de estudo, não apenas
os tipos ideais, que poderiam exprimir transitoriamente as relações
sociais, mas, também, os valores
inspiradores da ação humana. Descortinou-se, assim,
para o pensamento sociológico, todo um universo, ao se ver ele projetado sobre a complexa base
axiológica em que se alicerçam as sociedades.
Aproximou-se, destarte, a sociologia das humanidades, que constituem o arcabouço conceitual que nos
permite compreender o mundo dos valores.
Weber
encaminhou o seu estudos dos valores,
como frisa Reinhard Bendix (1916-1991),[24]
numa posição complexa e intermediária “entre o racionalismo e o reducionismo”, que
empolgaram os estudos científicos da sociedade ao longo dos séculos XVIII e
XIX, respectivamente; consequentemente, ele “sustentou que os princípios morais
existem em um contexto social e histórico”, tentando encontrar, na análise dos
valores, o significado daqueles.
A
grande contribuição de Gilberto Freyre e de Oliveira Vianna aos estudos
sociológicos consiste, justamente, em ter reivindicado a importância do estudo
dos valores, na tentativa em prol de compreender a sociedade brasileira. Freyre, certamente, conheceu o pensamento
weberiano, sendo que, já nas primeiras
edições de Casa Grande e Senzala,
faz menção ao sociólogo alemão, como
lembra Vamireh Chacon (1934), “a propósito das relações entre calvinismo, judaísmo e catolicismo no quadro do
capitalismo”.[25]
O pensador romeno Zevedei Barbu (1914-1993) identificou, de forma mais precisa,
a feição weberiana do método aplicado pelo sociólogo pernambucano, com as seguintes palavras: “(…) Gilberto Freyre encontra grandes afinidades
com a sociologia interpretativa de Weber, especialmente com a abordagem
empatética. Para esse fim, ele acrescentou uma série de instrumentos
complementares ou mais abrangentes, tais como ‘penetração empatética’ e ‘estudo
empatético de valores e símbolos. Esse
núcleo weberiano foi adicionalmente agregado a algumas noções de variável
importância metodológica, como o ‘conceito de personalidade’ e o de
‘desdobramento consciente da personalidade’”.[26]
Já
Oliveira Vianna, embora não faça
referência sistemática à obra de Weber,
que conhece, realiza, ao longo
dos seus estudos da sociedade brasileira,
notadamente no que tange à sua “culturologia do Estado”, uma análise do ângulo dos valores, que se
aproxima, muito, da forma em que o pensador alemão extrai do processo histórico
os seus tipos ideais.[27]
Em
que pese a influência weberiana apontada, a respeito da preocupação
axiológica, na sociologia de Gilberto
Freyre, Zevedei Barbu a filia
imediatamente à escola dos historiadores dos Annales, que “(…) idealizaram
um conceito de história como sendo um ponto de
convergência entre todas as
ciências sociais, com especial
referência à psicologia, à sociologia, à antropologia e um toque de
existencialismo”.[28] A influência dessa escola foi canalizada,
sobretudo, através de Lucien Febvre (1878-1956). Barbu estabelece a seguinte relação, face à
metodologia utilizada por ambos os autores:
“Voltando ao método comparativo,
tanto Febvre quanto Freyre sustentam que a fonte prima e a estrutura do
processo histórico devem ser localizadas na experiência cotidiana de uma
determinada comunidade humana. Indo
além, ambos argumentam que as experiências de cunho valorativo, ou seja, significativas,
possuem uma importância epistemológica mais elevada, no sentido em que revelam
aspectos fundamentais da vida social (…)”.[29]
Freyre, portanto,
ao seguir pela trilha da influência febvriana, elabora análise axiológica semelhante à
empreendida por Weber. Segundo
Barbu, o sociólogo pernambucano “(…)
parte da convicção de que o material do conhecimento histórico não pode ser
outro senão aquele recolhido das experiências do dia-a-dia. Finalmente,
admite, ainda, que o tipo de experiências que mais o interessam são
aquelas com sentido valorativo, isto é, as que na sociedade brasileira se
caracterizam como ‘valores rurais,
telúricos e agrários’. Como se pode notar, trata-se de valores
fundamentais nas sociedades rurais-tradicionais. Entretanto, os valores são
consignados historicamente, e
conseqüentemente, quando a sociedade brasileira atingir ‘um alto grau de
urbanização’, os valores urbanos passarão a prevalecer (…)”.[30]
Ora, esses valores fundamentais são captados no
seio de experiências vividas”, que
abarcam sentimentos, emoções, hábitos,
etc. No contexto dessas “experiências vividas”, capta-se, emocionalmente,
o que Gilberto Freyre chama de “história recebida”, aberta ao passado, ao presente e ao futuro. Eis a forma em que Barbu explica a apreensão
desse universo, na sociologia freiriana:
“O que é esse ‘algo’ que penetra e age como parte distinta da consciência
humana, sem perder sua identidade?
Trata-se das experiências vividas pela comunidade como um todo. O ‘todo’ deve
ser aqui evidenciado, pois as
experiências vividas como totalidade possuem um significado histórico e
ontológico que as experiências isoladas não têm. A história contém, ou melhor
dizendo, é a maior estrutura de experiência no mundo do homem, e, como tal,
o mais completo quadro de referência para o modo humano de ser; ela molda as experiências presentes, passadas e futuras. Em outras palavras, podemos dizer que é uma
verdade bastante conhecida o fato de que a consciência somente surge como
dimensão distinta da vida humana, quando se percebeu clara e generalizadamente
que a existência humana é uma entidade tridimensional, isto é, vida
concomitantemente no presente, no
passado e no futuro. Em termos mais empíricos, o senso histórico ou consciência
histórica do homem, somente torna-se plenamente articulado, se e quando for
possível perceber e aceitar como fato que,
no período que antecede o presente,
as pessoas se vestiam, comiam, bebiam,
sentiam e pensavam diferentemente da época atual. Nas palavras de Freyre, é a
‘história recebida’, que muda a si mesma durante o processo”.[31]
Os
valores fundamentais que, segundo Gilberto Freyre, devem ser estudados e que
constituem a base da “história recebida” na cultura brasileira, são -
conforme insinuou atrás o texto citado de Barbu - os do Brasil rural. É o mesmo autor romeno que identifica esses
valores, como uma espécie de “primeira
intuição” de onde decorre toda a obra do
sociólogo pernambucano. “Existe (…), -
frisa Barbu - um outro tipo de
experiência, que chamarei
transfenomenal, pois ela constrói uma ponte entre uma situação
concreta e o todo, sendo apenas vagamente prefigurada na intuitio prima. Trata-se da casa, da família e da personalidade,
três focos ativos na fenomenologia do mundo de Gilberto Freyre. (…) (Eles) se
me afiguraram como a trindade da existência humana: casa = receber o mundo (o que é exterior não
é humano); família = multiplicar e criar
o mundo do homem; e personalidade =
ver, encontrar e conhecer o mundo (…)”.[32]
Oliveira
Vianna, por sua vez, também confere grande importância ao estudo
dos valores, no esforço em prol de compreender a sociedade brasileira. Os
valores são denominados pelo sociólogo fluminense de complexo cultural, conceito que explica da seguinte forma: “(…)
o complexo representa um conjunto objetivo de fatos, signos ou objetos, que, encadeados num sistema, se correlacionam
a idéias, sentimentos, crenças e atos correspondentes (…). É toda
uma multidão de fatos, objetos, signos,
utensílios, etc., que se prendem a usos, costumes,
tradições, crenças, artes,
técnicas, que, por sua vez, se prendem igualmente a idéias, sentimentos,
condutas, tudo correlacionado com
estes tópicos peculiares da atividade econômica: e cada um destes tópicos forma um complexo”.[33]
Em
todo complexo cultural, encontramos dois tipos de elementos: externos ou objetivos (fatos, coisas,
signos, tradições), e internos ou subjetivos (sentimentos, idéias,
emoções, julgamentos de valor, etc.). Os primeiros constituem os chamados
elementos transcendentes da cultura, ao
passo que os segundos são os seus elementos imanentes. A interrelação desses
dois grupos de elementos é complexa. Oliveira Vianna a explica assim: “Estes
elementos conjugados ou associados formam um sistema articulado, onde vemos objetos ou fatos de ordem
material, associados a reflexos condicionados,
com os correspondentes sentimentos e idéias. Estes elementos penetram o
homem, instalam-se mesmo dentro da sua fisiologia: e fazem-se enervação, sensibilidade, emoção,
memória, volição, motricidade.
Os quadros mentais do indivíduo se constituem de acordo com estes
complexos: estes lhes dão das coisas e
do mundo uma ‘representação coletiva’, como diria Émile Durkheim (1858-1917).
Tanto que já se começa a lançar os fundamentos de uma nova especialização
científica: a sociologia do conhecimento
de que a obra de Karl Mannheim (1893-1947) é,
decerto, um belo exemplo”.[34]
Do
ponto de vista psicológico,
portanto, um complexo cultural é
um sistema ideio-afetivo, do qual se derivam atitudes ou comportamentos com
projeção social, numa sincronia de sensibilidades, emoções,
sentimentos, preconceitos, preferências,
repulsões, julgamentos de valor,
deliberações, atos omissivos ou comissivos de conduta. Oliveira Vianna chama a atenção para um fato
importante: quando se pretende mudar um
determinado complexo cultural, a nível exclusivamente objetivo ou transcendente,
(promulgando, por exemplo, uma nova Constituição, em nome de Deus ou do povo), as
possibilidades de sucesso de tal mudança são mínimas, pois a ela opor-se-á o elemento subjetivo ou
imanente (sentimentos, crenças, preconceitos,
praxes seculares dessa comunidade humana). Por isso,
salienta o sociólogo fluminense,
têm fracassado tantas reformas no nosso meio latino-americano: porque os reformadores, imbuídos de espírito legalista, acham que, mudando as leis, vão mudar os
hábitos da população, que permanecem,
sempre, alheios ao formalismo externo. Oliveira Vianna endossa a afirmação de Karl
Gustav Jung (1875-1961) de que os traços culturais imanentes se transmitem pelo
“inconsciente coletivo”, e “tudo é como se eles se imprimissem ou se
contivessem nos genes das próprias raças formadoras”.
O sociólogo fluminense dedicou boa parte da sua obra à
análise do complexo cultural que lhe pareceu mais marcante no Brasil
rural: o chamado, por ele, de “complexo
de clã”. Eis a forma em que caracterizou a presença desse complexo na vida
política brasileira: “Em toda essa
psicologia da vacuidade ou ausência de motivações coletivas da nossa vida
pública, há um traço geral que só por si bastaria para explicar todos os outros
aspectos (…). Este: a tenuidade ou fraqueza da nossa consciência do bem
coletivo, do nosso sentimento da
solidariedade social e do interesse público.
Esta tenuidade ou esta pouca densidade do nosso sentimento do interesse
coletivo é que nos dá a razão científica do fato de que o interesse pessoal ou
de família tenha, em nosso povo - no comportamento político dos nossos homens
públicos -, mais peso, mais força,
mais importância determinante do que as considerações do interesse
coletivo ou nacional. Este estado de
espírito tem uma causa geral (…): e
esta razão científica é a ausência da compreensão do poder do Estado como órgão
do interesse público. Os órgãos do
Estado são, para estes chefes de clãs, locais ou provinciais, apenas uma força
posta à sua disposição para servir aos amigos e aos seus interesses, ou para
oprimir os adversários e os interesses destes”.[35]
Tanto a sociologia de Gilberto Freyre quanto a de
Oliveira Vianna, identificam uma base
axiológica sobre a qual se estruturou a sociedade brasileira: o espírito
familístico, que o pernambucano
genialmente analisa, vivo, nas relações domésticas da Casa Grande e que o
fluminense surpreende in fieri, no fundo do nosso compadrio político. A partir dessa intuição primordial, ambos os autores construirão, com rigorosa metodologia, o seu universo sociológico: sensual, cálido,
plástico, integrador, impregnado dos cheiros da mesa do senhor de
engenho em Casa Grande e Senzala;[36] polimorfo, lógico,
conceitual, fielmente verificado,
sine ira ao studio, na precisa anatomia das ações e reações do
corpo social, efetivada pelo observador arguto e minucioso em Instituições Políticas
Brasileiras.[37] Freyre apresenta-nos a versão
mito-poética da essência da vida social brasileira, que Oliveira Vianna traduz numa trabalhada
amálgama de tipos ideais, hauridos da
nossa história regional e local.
IV –
O estudo do patriarcalismo em Gilberto Freyre e Oliveira Vianna, como base para
compreender a realidade do Estado patrimonial brasileiro.
Ninguém
como Gilberto Freyre ou Oliveira Vianna conseguiu retratar, com maior
fidelidade, o quadro de patriarcalismo brasileiro. Referindo-se ao primeiro, escreve Vamireh Chacon: “Marx (1818-1883) costumava
dizer que o maior crítico da sociedade burguesa fora Honoré de Balzac
(1799-1850), que proclamara escrever ‘à
luz de dois faróis, o Trono e o
Altar’, e não o socialista Émile Zola
(1840-1902), prejudicado pelo afã
proselitista… Poderíamos, também, ver o Brasil patriarcal - paternalista, ainda sobrevivente, melhor em Gilberto Freyre que em vários
analistas marxistas, sem Marx…”.[38]
De
acordo com o conjunto de valores que lhe permitem compreender a realidade brasileira
(valores rurais, telúricos e
agrários, conforme foi salientado em
páginas anteriores), Gilberto Freyre dá
especial importância à histoire intime
da Casa Grande, onde nasce e se
desenvolve esse conjunto axiológico. Sob
este ângulo, Gilberto Freyre é pioneiro.
Desse pioneirismo dá testemunho o historiador britânico Asa Briggs (1921-2016), ao afirmar:
“(…) Na verdade, não conheço
nenhum historiador como ele, brasileiro
ou não brasileiro, em qualquer língua, antes de 1933 (…)”.[39]
Parece
ao estudioso romeno Zevedei Barbu que a sociologia freiriana, no plano horizontal, percorre uma trajetória do centro para
fora: a partir da família patriarcal reconstrói
a sociedade global. A respeito, frisa o mencionado autor: “(…) O ponto central consiste na família, a
unidade social mais concreta, a qual ele descreve em detalhe, sempre focalizando as circunstâncias
concretas da comunidade portuguesa no Brasil.
A partir dos relacionamentos homem-mulher, marido-esposa, pai-filhos,
mãe-filhas, ele descreve tudo em
termos de inter-relações, e tão
vividamente, que cada traço pode ser
tomado como uma unidade, ou, melhor dizendo, como narrativa do Brasil do ponto de vista da
família. Contudo, o principal é que Freyre assim o faz com
plena consciência - transmitida ao
leitor - de que não se trata de uma
tipologia, senão de um caso
historicamente concreto, a família portuguesa vivendo em isolamento dentro de
uma ordem social patriarcal, com visíveis traços feudais, e com um modo de produção agrário-tradicional
(…)”.[40]
A
bem da verdade, não se trataria de uma
sociedade patriarcal de tipo feudal,
como frisa Barbu, mas, como o próprio Gilberto Freyre salienta, de “uma sociedade semifeudal - uma minoria de brancos e brancarrões
dominando patriarcais, polígamos, do alto das casas-grandes de pedra e
cal, não só os escravos criados aos
magotes nas senzalas como os lavradores de partido, os agregados,
moradores de casas de taipa e de palha,
vassalos das casas-grandes em todo o rigor da expressão”.[41]
A
reconstrução do microcosmo da Casa Grande,
de onde emerge a vida sócio-política brasileira: eis o cerne da contribuição sociológica de
Gilberto Freyre. Ninguém melhor do que o próprio autor de Casa Grande e
Senzala para traçar as linhas mestras desse pequeno universo social,
político: de produção (a monocultura
latifundiária); de trabalho (a
escravidão); de transporte (o carro de
boi, o banguê, a rede,
o cavalo); de religião (o
catolicismo de família, com capelão
subordinado ao pater familias, culto dos mortos, etc.);
de vida sexual e de família (o patriarcalismo polígamo); de higiene do corpo e da casa (o
“tigre”, a touceira de bananeira, o banho de rio, o banho de gamela, o banho de assento, o lava-pés); de política (o
compadrismo). Foi ainda fortaleza, banco,
cemitério, hospedaria, escola,
santa casa de misericórdia amparando os velhos e as viúvas, recolhendo órfãos. Desse patriarcalismo absorvente dos tempos
coloniais a casa-grande do engenho Noruega, em Pernambuco, cheia de salas,
quartos, corredores, duas cozinhas de convento, despensa,
capela, puxadas, parece-me
expressão sincera e completa. Expressão
do patriarcalismo já repousado e pacato do século XVIII; sem o ar de fortaleza
que tiveram as primeiras casas-grandes do século XVI (…)”.[42]
Outra
não é a contribuição dada à sociologia brasileira por Oliveira Vianna.[43]
A sua perspicaz observação, o seu
exigente método de análise, foram o
instrumento de que se valeu o sociólogo fluminense para reconstruir, a partir
de tipos sociológicos hauridos da nossa história, o intrincado pano de fundo da evolução
política brasileira. Amplo conhecedor da
nossa formação social, o pensador
fluminense partiu da análise do “complexo de clã”, que surgiu como produto cultural do
latifúndio. O nosso insolidarismo secular nos fechou, durante séculos, numa visão que não ultrapassava os limites do
clã. Porque foi o latifúndio a primeira
realidade organizacional realmente consolidada que o nosso país conheceu, ao emergir das sombras do descobrimento e ao
se processar o primigênio surto de interiorização ocorrido com as bandeiras
vicentistas. O complexo de clã nasceu
ali, ao redor da Casa Grande, sob a
figura protetora do senhor de engenho,
única autoridade patriarcal,
inapelável, indelegável, unipessoal,
carismática, violenta e paternal, ao mesmo tempo. Poderíamos aproximar
com sucesso essa autoridade clânica do latifúndio, da figura do pater familias tão bem estudada por Weber.
A
organização política na época colonial consolidar-se-ia a partir da única
realidade social conhecida pelo nosso “povo-massa”: o clã parental. Era ele que realmente garantia a
sobrevivência ao indivíduo, contra a
“anarquia branca” que, numa visão
privatista do poder (típica, aliás, da formação
política patrimonial caracterizada pela sociologia weberiana), enquadrava dentro da órbita centrípeta dos interesses
parentais as instituições formais:
câmaras municipais, juízes de
paz, etc.
O
Estado moderno, de abrangência
nacional, deveria construir-se a partir
dessa realidade. As tentativas de passar
da atomização clânica a uma democracia formal levariam, fatalmente, ao reforço
das antigas formas privatistas de exercício do poder: isso aconteceu, segundo Oliveira Vianna, em 1824, quando da
instituição do regime parlamentar e em 1891, quando da adoção, puramente formal,
do federalismo presidencialista de inspiração norte-americana.
Dois
momentos-chave identificou Oliveira Vianna na tentativa de consolidar o Estado
nacional, superando o “complexo de clã”
e fazendo emergir uma mística nacional: o segundo Reinado e o Estado
getuliano. Dom Pedro II (1825-1891) e
Getúlio enfeixaram, nas suas mãos, o maior acúmulo de poder que governante algum
já conseguiu ter ao longo da história brasileira. A genialidade política de ambos decorria do
fato de terem encarnado uma autoridade de cunho patriarcal, mas pondo-a a serviço de um processo
modernizador, que tinha como finalidade
a definitiva consolidação do Estado nacional,
que se sobrepusesse aos clãs.
O
sociólogo fluminense explica de que forma Dom Pedro II conseguiu colocar a
serviço da mística nacional os clãs parentais,
organizando, a partir deles, os clãs políticos, que por sua vez se integrariam
nos dois Partidos, o Liberal e o
Conservador. A elite imperial de “homens de 1000” (figura bíblica que
identificava os líderes do povo escolhido) consolidou, ao longo do país, a idéia de Nação, sob a
decidida autoridade do Imperador.
Faltou
a Oliveira Vianna, é certo, saber
valorar, nas suas devidas dimensões, a experiência parlamentar do Império, que ele identificou, pejorativamente, como
mais um formalismo do nosso “marginalismo liberal”. Mas, essa falha do nosso autor, talvez deva
ser tributada na conta dos próprios liberais republicanos que, como Rui Barbosa
(1849-1923), fizeram uma crítica indiscriminada às instituições da
monarquia, sem perceberem, no entanto, o
alto valor pedagógico e modernizador do Parlamentarismo Imperial e do Poder Moderador.
O
Estado getuliano seria, para Oliveira
Vianna, o segundo momento modernizador
da história brasileira. Sobrepondo-se à privatização do poder político,
decorrente da queda do Império, e à adoção da instituição republicana, calcada da
Carta norte-americana, com o conseqüente
sacrifício do Poder Central no altar do vácuo federalista, Getúlio conseguiu reerguer um Centro de poder
nacional. Ao seu redor, em autentico élan modernizador, o estadista gaúcho deflagrou amplo processo
de reformas econômicas, sociais,
trabalhistas e educacionais, que
permitissem ao Estado intervir nos principais setores da vida nacional, a fim de sobrepor a unidade política e o
sentimento nacional à colcha de retalhos de interesses clânicos em que tinha
afundado a República Velha. Verdadeiro esforço pedagógico que visava o
surgimento de uma nova consciência social,
como a pretendida pelo processo centralizador do Império. O direito
social, presente na legislação
trabalhista getuliana, seria elemento fundamental desse processo.
A
pauta modernizadora de Oliveira Vianna,
se bem conseguiu influir nas primeiras reformas do governo provisório de
Vargas, por meio da inspiração que no
sociólogo fluminense encontraram os jovens oficiais do Clube 3 de Outubro que
rodeavam Getúlio, com Juarez Távora
(1898-1975) à cabeça, não foi seguida,
entretanto, pelo autoritarismo do
estadista são-borjense. Castilhista tout-court foi a inspiração do Estado-Novo.
O
processo redemocratizante posterior à queda de Getúlio em 45, foi sem dúvida, estudado com afinco pelo
nosso autor, que não chegou a
identificar verdadeiras aspirações modernizadoras na classe política sediada no
Parlamento. O voraz clientelismo e o espírito familístico que vieram à tona reproduziram
os hábitos privatistas da República Velha.
Por isso, talvez, na parte final da sua meditação sociológica
(expressa, magistralmente, em Instituições Políticas Brasileiras),
Oliveira Vianna frisa que o caminho da democratização deve percorrer, primeiro,
a etapa da conquista dos direitos civis dos cidadãos, para, depois, se converter em processo de
construção dos canais de participação política. Ao Poder Judiciário, autônomo e desligado do vezo familístico que
afetava à classe política, o nosso autor atribui esse importante papel.
Oliveira
Vianna teve como cenário para a sua reflexão sociológica o Brasil rural, que acordava para o primeiro surto de
industrialização e de formação das grandes cidades. Mas os elementos teóricos
encontrados pela sua genial meditação sobre a realidade brasileira, norteiam a forma em que deveríamos abordar os
problemas atuais. Amante declarado da
democracia (é indisfarçável, por
exemplo, o entusiasmo com que descreve a
secular luta do povo inglês para construir a democracia representativa, enquadrando o absolutismo monárquico em
limites fixados pelo costume e pelo direito daí emergente), toda a sua reflexão
foi endereçada no sentido de encontrar o verdadeiro caminho para a democracia
no Brasil, que seria o coroamento do
esforço modernizador empreendido pelo Estado intervencionista e centralizador. E
não poupou críticas à retórica liberal,
que se limitava a apregoar a volta oitocentista a um individualismo laissezferista.
Preocupado
com o conteúdo ético da vida política brasileira, o sociólogo fluminense não só
analisou os aspectos institucionais ligados ao processo modernizador do
Estado, como também se deteve no estudo
do conteúdo psicológico das nossas atividades partidárias e da ausência de
“motivações coletivas”. Falando em
linguagem filosófica, diríamos que
Oliveira Vianna se preocupou com a formulação de uma ética consensual, que
alicerçasse o processo de modernização institucional e o sentimento de nação.
As
sociologias de Gilberto Freyre e de Oliveira Vianna, pelo fato de partirem da
análise detalhada do fenômeno do patriarcalismo brasileiro, constituem base conceitual sólida para a
compreensão da realidade mais abrangente do Estado patrimonial, que é constituído, essencialmente, pelo
alargamento de uma autoridade patriarcal originária, que se estende sobre territórios, pessoas e coisas extrapatrimoniais, enxergando-os como instâncias domésticas. Sem a compreensão prévia da realidade da
Casa Grande e do Latifúndio que a acompanha,
não se pode entender, cabalmente, a evolução centrípeta do Estado
patrimonial brasileiro. As sociologias
calcadas em arquétipos dicotômicos, como
a marxista, não conseguem enxergar esse
universo nuclear, magistralmente
estudado por Freyre e Oliveira Vianna.
Conclusão.
Tentei
caracterizar, ao longo deste artigo, as sociologias de Gilberto Freyre e de
Oliveira Vianna, como originais
contribuições que fogem à moda dicotômica,
por onde enveredaram no Brasil as ciências sociais, e que conseguem elaborar tipologias hauridas
da nossa história, a fim de compreender
o processo nuclear e centrípeto da formação sócio-política brasileira, a partir
do patriarcalismo. Aproximei a sociologia de ambos os autores, do modelo de pesquisa axiológica desenvolvido
por Weber, destacando a valiosa
contribuição prestada por eles às ciências sociais, no nosso meio, permitindo-lhes um arejamento
humanístico, interdisciplinar, crítico do positivismo. Em que pese a
insubstituível aportação teórica de Freyre e de Oliveira Vianna, as suas
tipologias atrelam-se, ainda demais, ao Brasil rural.
O
Brasil posterior a 1970 tornou-se urbano. Muito esforço criativo foi feito, no
sentido de caracterizar com novos conceitos sociológicos, os profundos câmbios que afetaram a nossa
realidade. Freyre e Oliveira Vianna, necessariamente, deverão ser superados.
Mas permanecerá, como norte que guie aos
novos estudiosos, a inspiração
interdisciplinar e culturológica desses dois autores, que, aberta à história, em toda a sua
complexidade, partiu para uma crítica desassombrada de todos os dogmatismos.
O
mais significativo trabalho foi feito, ao longo das últimas décadas do século
XX e no que vai corrido deste século, pela corrente do Culturalismo Sociológico
que, inspirado no método monográfico firmado por Sílvio Romero (1851-1914) e
continuado por Oliveira Vianna, partiu para melhor entender a organização
social, pondo-a em relação com os institutos do governo representativo e no
contexto de uma epistemologia neokantiana das ciências sociais. Essa evolução
mais recente identifica-se com as etapas contemporâneas do nosso pensamento
sociológico.
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[1]
Cf. VÉLEZ Rodríguez,
Ricardo. Oliveira Vianna e o papel modernizador do Estado brasileiro. (Apresentação de Antônio Paim). Londrina: Editora da
Universidade Estadual de Londrina, 1997.
Também da minha autoria, cf. “A
idéia de cultura em Oliveira Vianna”, Convivium, São Paulo,
31 (6): pg. 395-414, nov./dez.
1983. Da minha autoria,
ainda, “Tradición patrimonial y
administración señorial en América Latina”,
Revista Universidad de
Medellín, n° 44: pgs. 81-136,
set./nov. 1984.
[2] SANTOS, Wanderley-Guilherme dos. Ordem
burguesa e liberalismo político,
São Paulo, Duas Cidades, 1978,
p. 25.
[7]
DUVIGNAUD, Jean. “Gilberto Freyre, sociólogo humanista”. Gilberto
Freyre na Un.B.; conferências e
comentários de um simpósio internacional,
realizado de 13 a 17 de outubro de 1980, Brasília,
Editora Universidade de Brasília,
1981, p. 69/70.
[8]
VIANNA, Francisco José de
Oliveira. Evolução do povo brasileiro,
4ª edição, Rio de Janeiro, José Olympio,
1956, p. 26/27.
[11]
É palpável o interesse crescente pelo estudo, hoje,
no Brasil, do pensamento sociológico
de Gilberto Freyre e de Oliveira Vianna.
Teses de mestrado e doutorado nas Universidades, artigos,
foros de debates, etc., testemunham essa mudança. Em relação a Gilberto Freyre, frisava assim o padre Fernando Bastos de
Avila (1918-2010), no Simpósio
Internacional sobre o sociólogo pernambucano,
promovido, em 1980, pela Universidade de Brasília: “Por isso atribuo o sentido de uma verdadeira
consagração ao episódio ocorrido no último Congresso da Sociedade Brasileira
para o Progresso da Ciência (SBPC),
quando me pareceu que a juventude descobria Gilberto Freyre. Os congressos da SBPC têm sido oxigenados
por ciclones juvenis e, no último desses
ciclones, deu-se o encontro de Gilberto
Freyre com a juventude. Símbolo
comovente, que hoje se repete nesse
auditório, e que transfere para o
cenário acadêmico o fenômeno que o próprio Gilberto Freyre, na sua obra Além do apenas
moderno (Sugestões em torno de possíveis futuros
do homem, em geral e do homem brasileiro, em particular). Rio de Janeiro: José Olympio, 1973), já havia detectado no cenário familiar. Sobre o vão central da geração adulta,
parece existir uma misteriosa comunicação,
uma secreta cumplicidade entre as gerações por ela separadas. Vejo no fato o sentido humanista da
perenidade de um autor e de uma obra na qual começam a se reconhecer os
jovens, esses contemporâneos do futuro”(
AVILA, Fernando
Bastos de, “Gilberto Freyre e o desafio
da cultura luso-tropical”, in: Gilberto Freyre na Un.B., Brasília:
Editora da Universidade de Brasília, 1980, p. 79). No caso de Oliveira Vianna, acontece movimento semelhante. Começam a
aparecer estudos que, de forma
desapaixonada, tentam analisar o pensamento sociológico do grande cientista fluminense.
Cito, apenas, dois: de QUEIROZ, Paulo Edmundo de Souza, Sociologia
política de Oliveira Vianna (São Paulo,
Convívio, 1975); e, da minha
lavra, Oliveira Vianna e o papel modernizador do Estado brasileiro, (ob.cit.,
nota 1).
[12]
É o caso, por exemplo, das obras de
VIEIRA, Evaldo Amaro, Autoritarismo
e corporativismo no Brasil: Oliveira
Vianna & Companhia,
(2ª edição, São Paulo, Cortez,
1981) e de TAVARES, José Nilo, Autoritarismo
e dependência: Oliveira Vianna e Alberto
Torres, (Rio de Janeiro, Achiamé,
1979), que reduzem a obra do
sociólogo fluminense, ora à defesa
incondicional do Estado corporativo, ora
à apologia do autoritarismo tout-court, ou das teses racistas do conde francês Arthur
de Gobineau (1816-1882). Já, no sentir
do cientista político americano Philippe C. Schmitter (1936), em seu livro: Interest Conflict and Political Change in Brazil, “A obra de Oliveira Vianna não é estudada
hoje, talvez, por motivo de sua associação com o pensamento
racista e corporativista no período de 1920 a 1930” (cit. por QUEIROZ, Paulo Edmur de Souza, Sociologia
política de Oliveira Vianna,
ob.cit., p. 7). No que concerne aos preconceitos sofridos
pela obra de Gilberto Freyre, o padre
Bastos de Avila lembra as radicais críticas, de origem clerical, endereçadas ao sensualismo tropical de Casa Grande e Senzala
(AVILA, Fernando Bastos de, “Gilberto Freyre e o desafio da cultura
luso-tropical”, ob.cit., p.77). A radical crítica “progressista” contra a
obra do autor pernambucano, poder-se-ia
ilustrar, deliciosamente, com o seguinte testemunho do próprio Gilberto
Freyre: “(…) Igual indignação foi a de
historiadores convencionais, à qual se
juntaram incompreensões de antropólogos, também fechados em antropologismos
superados. Protestos de moralistas, ao mesmo tempo que patriotas. Um desses
- antes e depois desse seu efêmero furor contra mim - amigo por mim querido e admirado. Admiradíssimo: Vicente do Rego Monteiro (1899-1970). Pois o
grande modernista da pintura brasileira,
em certo momento, [alertou contra
o] terrivelmente perigoso Casa Grande
e Senzala, com ódio semelhante ao, por algum tempo,
teológico. Tanto que chegou a este extremo:
o de clamar para que o livro fosse queimado em praça pública. (…) Igual atitude teve contra o octogenário
(…) o também renovador modernista (…) Oswald de Andrade (1890-1954), a quem, por algum tempo, dei a impressão de vir corrompendo a mocidade
brasileira com um, para ele, reacionarismo contrário a quanto fosse modernismo
e progressismo messiânicos. De tal modo indignou-se com minha presença, para ele de todo perniciosa, na cultura brasileira, que ao noticiar-se a morte em combate, pela polícia nordestina, do então famoso Lampião (Virgulino Ferreira
da Silva, 1898-1938), exclamou: ‘Não adianta.
Mataram Lampião mas Gilberto Freyre continua vivo’ ” (FREYRE, Gilberto.
“Menos especialista que
generalista”, in: Gilberto Freyre na Un.B.,
ob.cit, p. 149).
[13]
Cf. WEBER, Max. Economía y Sociedad. (Tradução ao espanhol de J. Medina
Echavarría et alii), 1ª. Edição em espanhol. México: Fondo de Cultura Económica. 1944,
vol. 1 e 4.
[14]
Cf. WITTFOGEL, Karl. Le despotisme oriental: étude comparative du pouvoir
total. (Trad. de Micheline Pouteau). Paris: Minuit, 1977.
[15]
Cf. FAORO, Raymundo. Os donos do poder: formação do patronato político
brasileiro. 1ª edição. Porto Alegre: globo, 1958.
[16]
Cf. HERCULANO, Alexandre. História de Portugal. Lisboa: Bertrand
& Aillaud, 1914, vol. I.
[17]
Cf. AZEVEDO, Lúcio de. Épocas de Portugal econômico. 4ª edição.
Lisboa: a. M. Teixeira, 1978.
[18]
Cf. SCHWARTZMAN, Simon. Bases do autoritarismo brasileiro. 1ª
edição. Rio de Janeiro: Editora Campus, 1982.
[19]
Cf. PAIM, Antônio. A querela do estatismo. 1ª edição. Rio de
Janeiro: Tempo Brasileiro, 1978.
[20]
Cf. URICOECHEA, Fernando. O Minotauro imperial. São Paulo: DIFEL,
19678.
[21]
Cf. SANTOS, Wanderley Guilherme dos. Ordem burguesa e liberalismo
político. São Paulo: Duas Cidades, 1978.
[22]
Cf. PENNA, José Osvaldo de Meira. O Dinossauro - Uma pesquisa sobre o Estado, o
patrimonialismo selvagem e a nova classe de intelectuais e burocratas.
São Paulo: Queiroz, 1988.
[23]
Cf. PAIM, Antônio. A querela do estatismo. Ob. cit., cap. I.
[24]
Cf. BENDIX, Reinhard. Max Weber, um perfil intelectual. (Tradução
de Elisabeth Anna e José Viegas Filho).
Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1986, p. 362.
[25]
CHACON, Vamireh. “Uma weberiana brasileira”, (apresentação á obra, já citada,
de Reinhard BENDIX, Max Weber, um perfil intelectual, p. 11.
[26]
BARBU, Zevedei. “A contribuição de Gilberto Freyre à sociologia histórica”, in:
Gilberto Freyre na Universidade de Brasília. Ob. cit., p. 50-51.
[27]
Cf. VÉLEZ Rodríguez, Ricardo. “A ideia de cultura em Oliveira Vianna”. Revista Convivium,
art. cit., n. 1.
[28]
BARBU, Zevedei. “A contribuição de Gilberto Freyre à sociologia histórica”.
Art. cit., p. 54.
[29]
BARBU, Zevedei. Art. cit., p. 58.
[30]
BARBU, Zevedei. Art. cit., p. 57-58.
[31]
BARBU, Zevedei. Art. cit., p. 59.
[32]
BARBU, Zevedei. Art. cit., p. 52-53.
[33]
VIANNA, Francisco José de Oliveira. Instituições políticas brasileiras.
3ª edição. Rio de Janeiro: Record, 1974, vol. I, p. 74.
[34]
VIANNA, Francisco José de Oliveira. Ob. cit., ibid.
[36]
Cf. FREYRE, Gilberto. Casa grande e senzala. 25ª edição. Rio de
Janeiro: José Olympio, 1987.
[37]
Cf. VIANNA, Francisco José de Oliveira. Instituições políticas
brasileiras, edição citada, 1974.
[38]
CHACON, Vamireh. “Uma fenomenologia de Gilberto Freyre”. In: Gilberto
Freyre na Universidade de Brasília, ob. cit., p. 30.
[39]
BRIGGS, Asa. “Gilberto Freyre e o estudo da história social”. In: Gilberto
Freyre na Universidade de Brasília, ob. cit., p. 60.
[40]
BARBU, Zevedei. “A contribuição de Gilberto Freyre à sociologia histórica”.
In: Gilberto Freyre na
Universidade de Brasília. Ob. cit., p. 60.
[41]
FREYRE, Gilberto. Casa grande e senzala. Formação da família brasileira
sob o regime da Economia Patriarcal. 25ª edição. Rio de Janeiro: José
Olympio, 1987, (prefácio à primeira edição, p. IX -XIV).
[42]
FREYRE, Gilberto. Casa grande e senzala. Ob. cit., p. XIII-XIV.
[43]
A tipologia sociológica de Oliveira Vianna acerca da formação política
brasileira, encontra-se, fundamentalmente, nas suas obras: Populações
meridionais do Brasil e Instituições políticas brasileiras,
que foram editadas (com prefácio de Antônio Paim), num único volume, pela
editora da Câmara dos Deputados, em 1983, na coleção “Pensamento Político
Republicano”. Cf. VÉLEZ Rodríguez, Ricardo. “Vargas e Oliveira Vianna: o
estatismo e seus dois intérpretes”. In: Cultura – O Estado de São Paulo,
4/12/1983, ano III, número 182, p. 10.
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