“A pressuposição transcendental de toda
ciência da cultura (reside) no fato de que somos civilizados, dotados da
capacidade e da vontade de tomar posição, conscientemente, com relação ao mundo
e de lhe dar sentido” (Max Weber, Ensaios sobre a teoria da ciência,
citado por Catherine Colliot-Thélène).
A grande contribuição de Max Weber
(1864-1920) no terreno epistemológico, consistiu em ter reformulado as chamadas
por ele ciências da cultura, no
contexto da perspectiva transcendental kantiana, dando prosseguimento, assim, à
tarefa iniciada por Heinrich Rickert (1863-1936). Correspondeu tal contribuição
a uma autêntica revolução copernicana - para utilizar a expressão do próprio
Emmanuel Kant (1724-1804) - do saber sociológico, que tinha sofrido, nas suas
primeiras sistematizações, ao longo do século XIX, de um reducionismo fácil à
natureza, na fisiologia social
saint-simoniana e na física social
comteana, herdeiras, por sua vez, da idéia de matemática política, acalentada por pensadores do século XVIII,
como o Marquês de Condorcet (1743-1794), por exemplo.[1]
Estes temas, objeto de estudo do livro da
filósofa francesa Catherine Colliot-Thélène (1950), intitulado: Max
Weber e a história,[2]
são de alto interesse no contexto da cultura brasileira, anacronicamente ainda
atrelada ao cientificismo comteano, herdado de figuras de prol do nosso
pensamento sociológico, como, por exemplo, Euclydes da Cunha (1866-1909). A
força dessa feição cientificista decorre, sem dúvida, como já tem sido
suficientemente provado por Antônio Paim (1927),[3]
da velha tradição pombalina em que se formou a primeira geração da intelligentsia brasileira, justamente
aquela que fez a nossa independência de Portugal. Tão indiscutivelmente forte é
o peso dessa tradição no período contemporâneo, que terminou castrando do élan dialético a versão brasileira do
marxismo, estranhamente casado com o cientificismo comteano, como foi mostrado
sucessivamente por Antônio Paim[4]
e Leandro Konder (1936-2014).[5]
Esta apreciação é confirmada, efetivamente,
pela versão cientificista do marxismo desenvolvida por autores como Leônidas de
Rezende (1889-1950),[6]
Hermes Lima (1902-1978),[7]
João Cruz Costa (1904-1978),[8]
Alvaro Vieira Pinto (1909-1987),[9]
Roland Corbisier (1914-1005),[10]
etc., em que pese a lúcida crítica efetivada por um pensador marxista da talha
de Caio Prado Junior (1907-1990)[11]
para quem, a “prefixação de etapas” dos marxiano-comtistas brasileiros,
“através das quais evoluem ou devem evoluir as sociedades humanas, faz rir”.
Catherine Colliot-Thélène parte para uma
análise desassombrada dos pressupostos filosóficos de Max Weber, abrindo,
assim, uma porta nova para a abordagem do pensamento do grande sociólogo
alemão, até hoje ainda pouco reconhecido no terreno dos estudos filosóficos,
especialmente na França. Colliot-Thélène lembra, com propriedade, a respeito,
que essa restrição deve ser tributada, em parte, na conta do próprio Weber, que
deixou claro, em várias oportunidades, a sua preocupação com a delimitação da
positividade dos estudos sociológicos, essencialmente diferentes da indagação
filosófica.
Em relação à raridade que representa, na
tradição cultural francesa, a abordagem filosófica de Weber, Colliot-Thélène[12]
escreve: “Max Weber não é um autor desconhecido na França, mas jamais o
pensamento francês apreciou a dimensão propriamente
filosófica de sua obra. A falta de uma atenção séria a ela não se explica,
suficientemente, pela não tradução de uma parte importante de seus escritos: a
linguagem weberiana é, incontestavelmente, árdua, mas, não mais do que aquela
de numerosos autores alemães, que nem por isso deixaram de ser traduzidos, a
partir do momento em que se despertou o interesse para a sua reflexão. Muito
mais do que a dificuldade da sua linguagem, a rigidez das separações entre
disciplinas, em nosso país, constitui o maior obstáculo a uma justa apreciação
da importância deste autor (...). As tradições de que se nutre a filosofia
francesa contemporânea são diversas: os hegelianos, os herdeiros do transcendentalismo
kantiano e fichtiano, os fenomenologistas, os heideggerianos não falam todos a
mesma linguagem, e suas divergências freqüentemente se traduzem em polêmicas
virulentas. Entretanto, a desconfiança para com as ciências humanas,
singularmente para com a sociologia, encontra-se entre todos, apenas com graus
na acentuação política”.
Em relação ao segundo motivo que
conduziu à apreciação de Weber, na França, numa exclusiva abordagem sociológica, Colliot-Thélène[13]
escreve: “(...) A bem da verdade, o próprio Weber passou o bastão a seus
futuros críticos; freqüentemente sublinhou que a característica estritamente
empírica de seu projeto de conhecimento excluía levar em consideração as questões
tradicionais da filosofia, questões essas que tocam o sentido da vida e do mundo, assim como a justificação última das
normas da ação. Ele deixava tudo isso por conta do pensamento especulativo (...). Uma ciência empírica devia restringir sua ambição à ordenação racional do
domínio empírico: eis um dos Leitmotivs
dos textos metodológicos weberianos (...)”.
Seria pouco objetivo, no entanto,
generalizar a apreciação não filosófica de Weber a outros contextos, além do
francês e do correspondente à sociologia acadêmica brasileira. No Brasil, por
força da vulgata marxista e da
“escolastização divulgadora” behaviorista,[14]
que se estabeleceram nas Universidades, poder-se-ia identificar essa restrição
a uma compreensão humanística da obra do sociólogo alemão, quando não a recusa
ao estudo do pensamento weberiano, simploriamente alcunhado de “sociologia
burguesa” ou “idealista”. Em que pese essa limitação e o patrulhamento
mencionado, autores os mais variados da sociologia brasileira, a maior parte
deles situados fora do meio universitário, revelam uma criativa assimilação das
idéias e das tipologias de Weber, como, por exemplo, no pensamento de Gilberto
Freyre (1900-1987), Oliveira Vianna (1883-1951), Sérgio Buarque de Holanda
(1902-1982), Emílio Willems (1905-1997), Otto Maria Carpeaux (1900-1978), Alberto
Guerreiro Ramos (1915-1982), Juarez Brandão Lopes (1925-2011), Mário Wagner
Vieira da Cunha (1912-2003), Octavio Ianni (1926-2004), L. A. Costa Pinto
(1920-1963), Maria Isaura Pereira de Queiroz (1918-2018), Roberto Cardoso de
Oliveira (1928-2006), Fernando Henrique Cardoso (1931), Clodomiro Vianna Moog
(1906-1988), Raymundo Faoro (1925-2003), Hélio Jaguaribe (1923-2018), Florestan
Fernandes (1920-1995), Antônio Paim (1927), José Osvaldo de Meira Penna (1917-2017),
Maurício Tragtenberg (1929-1998), Simon Schwartzman (1939), Fernando
Uricoechea, etc., segundo levantamentos feitos por Fernando Correia Dias (1926-2012),[15]
Vamireh Chacon (1934)[16]
e Ricardo Vélez-Rodríguez (1943).[17]
Fora do Brasil e da França, no entanto, parece
indiscutível que a interpretação filosófica de Weber é coisa corriqueira.
Conforme escreve Vamireh Chacon,[18]
“Na Europa, a sociologia clássica alemã era herdeira da antecedente filosofia
clássica de Kant e de Hegel. Os idealistas, culturalistas, historicistas e neokantistas, além dos
preocupados em Husserl com o empirismo se extremando em empiricismo, todos
tinham em comum uma resistência humanista”. Já no que tange aos Estados Unidos,
o fato de ter sido publicada ali a obra de Reinhard Bendix (1916-1991), em 1960
(Max
Weber, an intellectual portrait), é muito revelador, especialmente
pela ampla acolhida que teve, na comunidade acadêmica, a interpretação
humanística do pensamento weberiano proposta pelo autor, alemão de nascimento e
naturalizado americano.
Mas voltemos ao ponto central que foi
destacado no início deste artigo: a contribuição de Weber às ciências da cultura consistiu na ruptura
com a concepção substancialista, que pretendia enxergar, nos fatos históricos,
uma estrutura ontológica subjacente, cuja intuição daria ensejo a um historicismo
dogmático, do tipo cultuado por Friedrich von Savigny (1779-1861) e pela escola
histórica alemã. A crítica outrora levantada por David Hume (1711-1776) e Emmanuel
Kant (1724-1804) contra a denominada metafísica
dogmática, é retomada por Weber para dessacralizar, de vez, a coisificação
da história. O defeito básico da escola histórica, na versão de Wilhelm Roscher
(1817-1894), Karl Gustav Knies (1821-1898) e do próprio Leopold von Ranke (1795-1886)
consistia em pretender hipostasiar conceitos universais (vício que Weber
denomina de emanantismo). Tal
perspectiva fornece um conhecimento de tipo substancialista. O próprio Weber
(na obra intitulada: Gesammelte Aufsätze sur Wissenschaftlehre), citado por
Colliot-Thélène,[19]
escreve a respeito: “A pressuposição metafísica do conteúdo de verdade desse
conhecimento era que os conteúdos conceituais situam-se, como as realidades
metafísicas, atrás da realidade, e que esta procede necessariamente deles, à
maneira pela qual as proposições matemáticas decorrem umas das outras”.
A ciência social que Weber tematizou,
longe de absolutizar ou entificar categorias, buscava, apenas, compreender a
realidade da vida, à luz das tipologias sociológicas elaboradas pela razão, que
se revestem de um caráter instrumental (e, portanto, passageiro). Eis as
palavras do sociólogo alemão (extraídas da mesma obra que foi mencionada no
parágrafo anterior), na citação de Colliot-Thélène:[20]
“A ciência social que nos propomos praticar é uma ciência da realidade.
Queremos compreender, em sua especificidade, a realidade da vida que nos rodeia
e na qual nos encontramos, a conexão e a significação cultural de suas diversas
manifestações em sua configuração atual, de um lado, e as razões que fizeram
com que, historicamente, ela se desenvolvesse sob esta forma e não sob outra,
de outro lado”. A proposta weberiana, frisa Colliot-Thélène, consistia, pois, em “(...) realizar o que a escola histórica
quis fazer, mas com os meios inadequados, a saber, a transformação da história em ciência empírica”.
A metodologia que Weber utilizou para
realizar o seu objetivo estava orientada, portanto, a estudar, empiricamente,
os fenômenos singulares, tratando de identificar as séries daqueles que se
repetem, mas sem pretender ultrapassar a imanência do real. A perspectiva individual
do agir humano, de outro lado, aparece, sempre, mediatizada por valores não
passíveis de universalização. A respeito, Colliot-Thélène[21]
escreve: “Pensar claramente no quadro de uma ciência vinculada ao empírico: tal
é o Leitmotiv da metodologia weberiana. Em outras palavras, tirar as conseqüências
gnosiológicas de uma vinculação com este mundo, que é o destino de nossa época
(...)”.
Pressuposto o posicionamento de Weber
face à tarefa eminentemente empírica da história e da sociologia, quais as relações
que se podem estabelecer entre ele e Karl Marx (1818-1883)? Para
Colliot-Thélène,[22]
Weber tem de comum, com Marx, basicamente, duas coisas: em primeiro lugar, “as
questões que animam suas pesquisas e o objeto de estudo que elas definem. Este
objeto foi, desde o início, o capitalismo” que, no sentir de Weber, é “(...) a
força mais determinante do destino de nossa vida moderna”. Em segundo lugar,
Weber assume - como Marx - um ponto de vista impessoal ao estudar as relações
mercantis. Essa impessoalidade traduz-se, no sentir de Colliot-Thélène, no
caráter profissional objetivo (e não personalista, como no mundo feudal) que
assume, na modernidade, a administração burocrática (Weber), e na “separação
dos trabalhadores de seus meios de produção” (Marx). Colliot-Thélène enxerga,
na definição deste aspecto, um traço comum a ambos os autores mencionados. A
respeito, escreve: “Weber retoma essa análise e generaliza a sua força,
explicando, notadamente da mesma maneira,
a formação de um dos dois pilares do Estado moderno (o segundo sendo o
direito racional): o funcionalismo burocrático. À semelhança do operariado na
empresa capitalista, os soldados, hoje,
em qualquer nível burocrático, não são mais, de nenhuma maneira,
possuidores dos meios que permitem conduzir a guerra do que os funcionários o
são dos meios da administração; e isto é um elemento fundamental para se explicar
as particularidades do funcionamento, tanto da política como da economia
ocidentais contemporâneas”.[23]
Sem dúvida que é perfeitamente válido
assinalar elos de ligação entre Marx e Weber, como os identificados por
Colliot-Thélène, de forma semelhante a outros autores, que tentaram encontrar a
herança transcendental kantiana e hegeliana em Marx, como, por exemplo, Rodolfo
Mondolfo (1877-1976)[24]
ao tematizar o conceito de “materialismo histórico enquanto humanismo
realístico”, ou como Antônio Paim[25]
faz, ao reivindicar a hermenêutica do pensamento de Marx no contexto crítico da
“esquerda hegeliana”. Pode-se, também, partir para um esforço semelhante ao de
Colliot-Thélène, identificando a aproximação entre o pensamento marxista (na
versão lukacsiana) e o weberiano , como por exemplo faz, de forma magistral,
José Guilherme Merquior (1941-1991)[26].
Todas essas são aproximações válidas,
que não ferem o sadio princípio de interpretar a obra dos pensadores no contexto
de dois parâmetros, ambos estreitamente ligados (que reconhecem a obra como
eminentemente histórica): o da evolução das idéias do autor e o do contexto sócio-cultural
em que aquelas foram formuladas. É precisamente levando em consideração esse
duplo contexto, que não se pode entender a semelhança mais profunda que Colliot
Thélène[27]
encontra entre Marx e Weber, ao redor do objeto da história. Eis as palavras da
autora a respeito: “(...) Max Weber propôs, então, uma caracterização do objeto
da história análoga à de Marx: os indivíduos reais, sua ação, as condições e os
efeitos desta ação. Essa fórmula banal exprime, na verdade, o projeto de uma
história específica que se limita conscientemente à explicação da gênese das
políticas e das estruturas sociais, isto é, da trama de causalidades
constituídas por suas determinações recíprocas”.
Ora, a perspectiva epistemológica de
Marx não se limita conscientemente à facticidade social, mas vai além, em virtude
da “natureza mística do marxismo”,[28]
decorrente das influências espinosana[29]
e saint-simoniana[30].
Embora Marx tivesse rejeitado a abstração metafísica feita por Ludwig Feuerbach
(1804-1972) acerca da essência humana e reivindicasse a concreção histórica da
mesma[31],
no entanto, termina pagando um caro tributo ao historicismo substancialista, ao
tentar enxergar, para além dos fenômenos sociais e dos seus entrelaçamentos, um
sentido salvacionista na luta das forças produtivas que, no comunismo, passarão
a ser interpretadas “como criação dos homens que nos precederam”. O existente
prometido pelo comunismo será a culminância do processo histórico, dotado, portanto,
de um conteúdo ontológico superior, “base real para tornar impossível tudo o
que existe independentemente dos indivíduos”.[32]
Bem diferente da escatologia marxista é
o radical compromisso de Weber com o caráter empírico da sociologia por ele
formulada. Já no início de Economia e Sociedade, Weber
destaca o alcance limitado que pretende dar à sociologia e ao significado da
ação social: “Deve entender-se por sociologia (no sentido aqui aceito dessa
palavra, empregada com tão diversos significados): uma ciência que pretende
entender, interpretando-a, a ação social para, dessa forma, explicá-la
causalmente no seu desenvolvimento e efeitos. Por ação deve entender-se uma conduta humana (que pode consistir num
fazer externo ou interno, ou em omitir ou permitir) sempre que o sujeito ou os
sujeitos da ação teçam, nela, um sentido subjetivo. A ação
social, portanto, é uma ação na qual o sentido mencionado por um sujeito ou
sujeitos é referido à conduta dos outros, norteando-se por ela no seu
desenvolvimento”.[33]
Logo a seguir, Weber completa: “Por sentido
entendemos o sentido mencionado e subjetivo dos sujeitos da ação (...)”. Nada,
portanto, de “sentido transcendente da história”, nem de “base para uma nova
interpretação finalística dos fatos humanos”. Weber exclui, clara e
corajosamente, qualquer aventura substancialista no terreno das ciências da
cultura. Evidentemente que faz isso motivado pela especial sensibilidade que o
empolgava, face à liberdade de pensamento, ameaçada pelo dogmatismo.
Justamente em virtude das razões
anteriormente expostas, não parece válida a generosa conclusão a que chega
Colliot-Thélène,[34]
quando afirma que “Weber herdou (de Marx) uma
pré-concepção determinada da matéria da historicidade humana (...)”. Ora,
em que consistiria essa misteriosa “pré-condição determinada”? Se por tal
expressão entendêssemos a “facticidade” das ciências da cultura, que lidariam,
unicamente, com os fenômenos da experiência e com os seus entrelaçamentos, estaríamos
face à herança transcendental kantiana e (no caso de Weber), do neo-kantismo de
Rickert. Não há dúvida de que, tanto Marx quanto Weber, são tributários, cada qual
à sua maneira, da herança transcendental. No caso de Marx, os estudos de
Mondolfo encarregaram-se de mostrar essa filiação.
À luz dessa herança, é válido o
arrazoado de Colliot-Thélène acerca da comum vigência, em Marx e em Weber, do
termo Diesseitigkeit, que expressa,
segundo a autora, “a constituição própria da vida do homem moderno”,[35]
que poderia receber, com propriedade, a designação de “espaço humano”, na
trilha do pensamento de Pufendorf, interpretado num contexto transcendental.[36]
Mas as coisas para Marx assumem outra
feição. Tributário do racionalismo panenteísta espinosano, que o leva a buscar
uma raíz profunda de onde tudo provém, Marx termina abandonando a perspectiva
transcendental e formulando, já na própria Ideologia alemã, uma escatologia
da história, que em muito supera os limites da pura e simples facticidade.
Isso, em virtude da tendência simplificadora do pensamento marxiano a reduzir o
fenômeno humano a uma variável monocausalista: as forças produtivas. E em
virtude, também, do legado salvacionista saint-simoniano. Nesse sentido, é
claro que, citando as palavras de Colliot-Thélène[37]
“a obra weberiana não oferece nada equivalente”. Certamente, parece válido afirmar
que Marx inaugura, em A ideologia alemã, uma
antropologia de rigorosa inspiração materialista. Mas o seu pensamento não pára
aí. O substancialismo historicista também está presente.
A epistemologia weberiana é, sem dúvida,
a principal feição filosófica do sociólogo alemão e ela se insere, rigorosamente,
nos limites críticos assinalados pelo neo-kantismo. Muito oportuna é a
caracterização que desse aspecto faz Colliot-Thélène:[38]
“As polêmicas que (Weber) conduz nos diferentes ensaios reunidos na Wissenschaftlehre
(Teoria da ciência) se atêm, no essencial, às questões de ordem gnoseológica:
os modos de conceituação específicos das ciências humanas (ciências “da
cultura”, na terminologia de Weber, continuando Rickert), a articulação dos
esquemas típico-ideais, a elaboração de hipóteses causais e os procedimentos de
validação e de falsificação dessas hipóteses, em suma, a lógica da
demonstração, concentram sua atenção. Por outro lado, a ontologia e a
antropologia implícitas a estas considerações metodológicas não são nunca
sistematicamente tematizadas”. Eis a essência do perfil filosófico weberiano.
Faltaria indicar, unicamente, a abertura de Weber à apreciação do mundo dos
valores, se mantendo fiel, no entanto, à perspectiva transcendental, e fugindo,
destarte, a um tratamento ontologizante da questão axiológica, vício em que
incorrem não poucos autores contemporâneos, como, por exemplo, os seguidores da
chamada “escola de Cracóvia”.[39]
No tocante à apreciação weberiana do mundo
dos valores, Colliot-Thélène[40]
considera que a originalidade do sociólogo alemão consistiu na formulação do
binômio conceitual Kulturmensch /
Naturmensch, de nítida inspiração kantiana.
O “homem da cultura”contrapõe-se ao “homem da natureza”, justamente porque
sabe relativizar o valor do seu próprio universo, toda vez que não há uma
representação do real válida de uma vez por todas. “O Kulturmensch - frisa Colliot-Thélène[41]
- é um homem que atribui, deliberadamente, um sentido ao mundo porque não há mais
sentido que valha com a evidência do dado incontestável: apenas nas culturas
superiores os homens ultrapassam a inserção no sentido para refletir sobre ele.
E esta é a condição fundamental que torna possível uma ciência da cultura”. Por esse caminho, consideramos,
Weber supera a pecha de etnocentrismo europeizante e se abre a uma visão de
diálogo intercultural.
A inspiração filosófica weberiana é
semelhante à trilha aberta pelos culturalistas brasileiros.[42]
No terreno da metodologia das ciências sociais, os pressupostos gnosiológicos
de Weber aproximam-se muito da perspectiva transcendental adotada pelo chamado
“culturalismo sociológico”,[43]
que deita raízes, de um lado, na adoção do método monográfico do sociólogo
francês Frédéric Le Play (1806-1882)[44]
e, de outro, na crítica ao monocausalismo[45]
e na adoção da perspectiva transcendental.
No que tange, especificamente, à
situação de Weber no terreno dos estudos históricos, Arno Wehling (1947)[46]
sintetizou, de forma clara, o perfil do sociólogo alemão: “Weber também representa
caso à parte, pois está na mesma corrente diltheyana de rejeição do cientificismo
nos planos ontológico, epistemológico e metodológico. Sua concepção da história
também rejeita en passant o
historicismo, quer romântico, quer cientificista, em nome de uma nova
epistemologia conceptualista. Por
este motivo, pode afirmar que a história era simultaneamente uma ciência positiva, contra os que chamou
de metafísicos, por utilizarem conceitos transcendentes e apriorísticos e os
denominados positivistas, que buscavam as leis da história, em um conhecimento parcial referido ao
sujeito, contra naturalistas,
preocupados com leis, ingênuos que
admitiam a objetividade dos próprios fatos e metafísicos - onde incluía o
marxismo - que encontravam a essência dos fenômenos nas forças profundas”.
Qual é o
estatuto lógico da sociologia weberiana enquanto pertencente às “ciências da
cultura”? A essa questão Colliot-Thélène[47]
dedica o último capítulo de sua obra, sob o título de: “A lógica da
compreensão”. A autora parte da definição que Weber dá de sociologia, como “uma
ciência que pretende compreender interpretativamente a ação social e assim explicá-la
causalmente em seu curso e em seus efeitos”. A sociologia, para o pensador
alemão, deveria ser “compreensiva”, em decorrência do duplo fato de o seu objeto
ser a ação humana e de esta possuir um sentido alicerçado em valores. “Tocamos
aí - frisa Colliot-Thélène[48]
- no lugar exato onde se reúnem, por se determinar mutuamente, a epistemologia
de Max Weber e sua representação da história de Ocidente. Digamo-lo brevemente
(...) que toda ação dotada de sentido seja potencialmente
racional é, antes de tudo, uma condição da própria sociologia compreensiva. A
compreensão da ação é, com efeito, um momento central da argumentação desta
sociologia que, enquanto ciência, pretende uma validade universal: a tradução
da ação significativa em termos racionais é um corolário desta pretensão
constitutiva da ciência”.
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NOTAS
[1] Cf. COMTE, Augusto. Curso
de filosofia positiva. - Discurso sobre o espírito positivo.- Catecismo
positivista. (Tradução de J. A. Giannotti e M. Lemos ; notas de M. Lemos;
seleção de textos feita pela Editora Abril). 1a. edição. São Paulo: Abril
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physiologie sociale. Oeuvres choisies. (Introdução de G. Gurvithc).
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de Caritat, marquês de. Matemáticas y sociedad. (Tradução e
seleção de textos de R. Rashed). 1a. edição em espanhol. México: Fondo de
Cultura Económica. 1990.
[2] COLLIOT-THÉLÈNE, Catherine. [1995]. Max
Weber e a história. (Tradução de E. Biavanti Pereira). São Paulo:
Brasiliense.
[3] PAIM, Antônio. (Organizador). Pombal
na cultura brasileira. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro / Fundação
Cultural Brasil-Portugal. 1982.
PAIM, Antônio. A querela do estatismo: a
natureza dos sistemas econômicos. 2a. edição. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro. 1994.
[4] PAIM, Antônio. História das idéias filosóficas
no Brasil. 3a. edição. São Paulo: Convivio; Brasília: INL/Fundação
Pró-Memória. 1984. PAIM, Antônio. A
questão do socialismo, hoje. São Paulo: Convívio, 1981.
[5] KONDER, Leandro. A derrota da dialética: a
recepção das idéias de Marx no Brasil. Rio de Janeiro: Campus. 1988.
[6] REZENDE, Leônidas de. O
capital e seu desenvolvimento. Rio de Janeiro: Editora Guimarães Mota.
1932. REZENDE, Leônidas de. Introdução
ao estudo da economia política. Rio de Janeiro: Jornal do Brasil. 1949.
[7] LIMA, Hermes. Direito da revolução.
Salvador-Bahia: Imprensa Oficial. 1926. LIMA, Hermes. Introdução à ciência do direito.
São Paulo: Companhia Editora Nacional. 1932.
[8] COSTA, João Cruz. Contribuição
à história das idéias no Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio. 1956. COSTA,
João Cruz. Panorama da história da filosofia no Brasil. São Paulo:
Cultrix. 1960.
[9] PINTO, Alvaro Vieira. Consciência
e realidade nacional. Rio de Janeiro: Iseb, 2 vol. 1960.
[10] CORBISIER, Roland. Formação
e problema da cultura brasileira. Rio de Janeiro: Iseb. 1958. CORBISIER,
Roland. Filosofia política e liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra. 1974.
[11] PRADO JÚNIOR, Caio. A
revolução brasileira. São Paulo:
Brasiliense. 1966.
[12] COLLIOT-THÉLÈNE, Catherine. Max
Weber e a história. (Tradução de E. Biavanti Pereira). São Paulo:
Brasiliense, p. 11-12, 1995.
[13] COLLIOT-THÉLÈNE, Catherine. Max
Weber e a história. Ob. cit. p. 12.
[14] CHACON, Vamireh. “Uma weberiana brasileira”.
Apresentação à obra de Reinhard Bendix, Max Weber, um perfil intelectual.
(Tradução de E. Hanna e J. Viegas Filho).
Brasília: Editora da Un. B., pg. 17. 1986.
[15]DIAS, Fernando Correia. “Presença de
Max Weber na sociologia brasileira contemporânea”. In: Revista de Administração de
Empresas, Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 14, no. 4,
julho/agosto, pgs. 49-50, 1974.
[16] CHACON, Vamireh. “Uma weberiana brasileira”.
Apresentação à obra de Reinhard Bendix, Max Weber, um perfil intelectual. (Tradução
de E. Hanna e J. Viegas Filho). Ob. cit.,
pgs. 11-20. 1986.
[17] VÉLEZ Rodríguez, Ricardo. Oliveira
Vianna e o papel modernizador do Estado brasileiro. Rio de Janeiro:
Universidade Gama Filho. (Tese de doutorado em Pensamento Brasileiro).
1982, p. 29-42. 1982.
[18] CHACON, Vamireh. “Uma weberiana brasileira”.
Apresentação à obra de Reinhard Bendix, Max Weber, um perfil intelectual, ob. cit., p. 16.
1986.
[19] COLLIOT-THÉLÈNE, Catherine. Max
Weber e a história. Ob. cit. p. 27.
[20] COLLIOT-THÉLÈNE, Catherine. Max
Weber e a história. Ob. cit. p. 25-26.
[21] COLLIOT-THÉLÈNE, Catherine. Max
Weber e a história. Ob. cit., p. 37-38.
[22] COLLIOT-THÉLÈNE, Catherine. Max
Weber e a história. Ob. cit., p. 45.
[23] COLLIOT-THÉLÈNE, Catherine. Max
Weber e a história. Ob. cit. p. 47
[24] MONDOLFO, Rodolfo. Estudos
sobre Marx. (Histórico-críticos). (Tradução de E. Alves Dantas). São
Paulo: Mestre Jou, 1967, p. 215-311. 1967.
[25] PAIM, Antônio. História das idéias filosóficas
no Brasil. 3a. edição. São Paulo: Convivio; Brasília: INL/Fundação
Pró-Memória, p. 55, 58, 1984.
[26] MERQUIOR, José Guilherme. O marxismo
ocidental. (Tradução de R. de Sá Barbosa). 2a. edição. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1987, p. 109 seg. 1987.
[27] COLLIOT-THÉLÈNE, Catherine. Max
Weber e a história. Ob. cit., p. 63.
[28] VILLAVERDE, Leo. A natureza mística do marxismo:
uma análise crítica. São Paulo:
Editora Il Rung, 1986.
[29] SALAZAR, Freddy. Marx y Spinoza: problemas del
método y del conocimiento. Medellín: Universidad de Antioquia, 1986. VÉLEZ
Rodríguez, Ricardo. “Filosofia e espiritualidade judaica no pensamento de
Baruch Espinosa”. In: Carta Mensal, Rio de Janeiro, 39,
no. 468, 1994, pgs. 3-19.
[30] SAINT-SIMON, Henri Claude, conde de. La
physiologie sociale. Oeuvres choisies. (Introdução de G. Gurvithc).
Paris: Presses Universitaires de France, 1965. LUBAC, Henri de. La
postérité spirituelle de Joachim de Flore. Paris: Lethielleux-Namur, 2
vol., 1979. GURVITCH, Georges. Introdução à obra de Henri-Claude de Saint-Simon,
La
Physiologie sociale. Paris: Presses Universitaires de France, 1965. VÉLEZ
Rodríguez, Ricardo. ”As raízes filosóficas do marxismo”, in: Comunicações
Filosóficas. Universidade Federal de Juiz de Fora, I, no. 1 (1990):
pgs. 3-12.
[31] MARX, Karl e Friedrich ENGELS. A
ideologia alemã, 1- Feuerbach. (Tradução de C. Bruni e M. A. Nogueira).
6a. edição. São Paulo: Hucitec, 1987, p. 13.
[32] MARX, Karl e Friedrich ENGELS. A
ideologia alemã, 1- Feuerbach. Ob. cit. p. 110.
[33] WEBER, Max. Economía y sociedad.
(Tradução de J. Medina Echavarría et alii).
2a. edição em espanhol. México: Fondo de Cultura Económica, 1977, vol. I, p.
5-6.
[34] COLLIOT-THÉLÈNE, Catherine. Max
Weber e a história. Ob. cit., p. 40.
[36] Cf. HELL, Victor. La
idea de cultura. (Tradução de H. Martínez Moctezuma). México: Fondo de
Cultura Económica, 1986, p. 26 seg.
[37] COLLIOT-THÉLÈNE, Catherine. Max
Weber e a história. Ob. cit., p. 50.
[38] COLLIOT-THÉLÈNE, Catherine. Max
Weber e a história. Ob. cit., ibid.
[39] Cf. WOJTYLA, Karol. Max
Scheler y la ética cristiana. (Tradução de G. Haya). Madrid: Biblioteca
de Autores Cristianos, 1982. P. 94-95.
[40] COLLIOT-THÉLÈNE, Catherine. Max Weber
e a história. Ob. cit., p. 44-45.
[41] COLLIOT-THÉLÈNE, Catherine. Max
Weber e a história. Ob. cit., p. 95.
[42] Cf. REALE, Miguel. Experiência
e cultura: para a fundação de uma teoria geral da experiência. São
Paulo: Grijalbo/Edusp. 1977. PAIM, Antônio. Problemática do culturalismo.
2a. edição. Porto Alegre: Edipucrs; Londrina: Cefil. 1995.
[43] Cf. SOUZA, Francisco Martins de. O
culturalismo sociológico de Alcides Bezerra. São Paulo: Convivio. 1981.
[44] Cf. DEMOLINS, Edmond. Le
Play et son oeuvre de réforme sociale. Paris: La Réforme Sociale. 1884.
[45] Cf. ROMERO, Sílvio. Obra
filosófica. (Introdução e seleção de L. Washington Vita). Rio de Janeiro: José Olympio. 1969. VIANNA,
Francisco José de Oliveira. Evolução do povo brasileiro. Rio de
Janeiro: José Olympio, 1956. Cf. VIANNA, Francisco José de Oliveira. Instituições
políticas brasileiras. 3a. edição. Rio de Janeiro: Record, 1974, 2 vol.
[46] WEHLING, Arno. A invenção da história: estudos
sobre o historicismo. Rio de Janeiro: UGF; Niterói: UFF. 1994, p. 25.
[47] COLLIOT-THÉLÈNE, Catherine. Max
Weber e a história. Ob. cit., p. 99-128.
[48] COLLIOT-THÉLÈNE, Catherine. Max
Weber e a história. Ob. cit., p. 113.
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