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Capa da obra de Ricardo Vélez Rodríguez, lançada em 2008, sobre o Patrimonialismo na América Latina. |
O fenômeno do populismo está na crista da onda, não apenas na América
Latina, mas pelo mundo afora também. Baste lembrar o perfil populista
apresentado, hoje, pelos líderes de grandes potências como Estados Unidos
(Donald Trump, com o seu slogan de empreendedor agressivo que apregoa: “America
first”), Xi Jinping (que vestiu a velha casaca de Imperador e se apresenta como
novo líder da ortodoxia comunista) e Vladimir Putin (o salvador da Rússia).
As incertezas geradas pela globalização do mercado de trabalho nos países
desenvolvidos (pondo em risco a antiga política do welfare state); a inclusão na economia de mercado de nações até há
pouco tempo dependentes de regimes totalitários (como no Leste europeu); a onda
de regimes democráticos surgidos na América Latina nos últimos vinte anos e que
não conseguiram responder a contento aos reptos crescentes das suas sociedades;
as reformas de inspiração liberal, feitas nas economias dos países
sub-desenvolvidos, ao longo das últimas décadas, à luz do “Consenso de
Washington”, reformas que, se bem reduziram a inflação de modo geral, no
entanto não tiveram os resultados esperados do ângulo da produtividade, ainda
muito sufocada pelas tradições estatizantes e familísticas na gestão da coisa
pública; a democratização sui generis (com
forte presença de uma liderança tradicional e carismática), em países do mundo
islâmico (Turquia, Síria, Líbia, Irã); a entrada das nações africanas no
período pós-colonial (ao longo da segunda metade do século passado) no caminho
da regularização da vida democrática, (num contexto ainda marcado fortemente
pelo tribalismo); a desaceleração da
economia estadunidense durante os governos Clinton e Obama e os freios que esse
fenômeno produziu em outras economias, particularmente no nosso Continente,
essas seriam algumas das variáveis que têm contribuído para o surgimento do
populismo, que pode ser considerado, nas versões mais radicais, como uma
espécie de doença que afeta às democracias no momento em que entram em crise
(de crescimento ou de desgaste).
Mas, também não se pode negar que, nas versões soft, o populismo é,
fundamentalmente, um estilo de fazer política, com líderes carismáticos
corajosos que olham para onde os políticos tradicionais deixaram de olhar, para
o lado individual de pessoas que sofrem com as crises dos sistemas, muito além
das grandes tipificações sociológicas.
Neste último caso, encontramos populistas que tomam o leme da nau que
ameaça naufragar e inspiram, em suas sociedades, graças ao carisma de que
gozam, novas esperanças que terminam se tornando porta de saída para a
vivificação de instituições caducas. Nesse estilo de governo com tintes
fortemente carismáticos, mas que termina dando alento às instituições
desgastadas, podemos identificar a ação de estadistas como Donald Trup, nos
Estados Unidos, Emanuel Macron, na França, Álvaro Uribe Vélez na Colômbia,
François Legault (o conservador que acaba de ganhar as eleições para
primeiro-ministro da província de Québec no Canadá) ou o recente fenômeno de
Jair Bolsonaro no Brasil, que conseguiu unificar as oposições diante do
fracasso estrondoso do lulopetismo, ao redor de uma proposta que olha para as
reivindicações da classe média, fortemente premida pelas vagas de violência,
corrupção, cinismo ideológico e incompetência. Reação característica diante da
aparição desse tipo de lideranças reconstrutoras é adotada pela imprensa de
esquerda que, célere, batizou impropriamente o novo estilo como “fascismo”.
Atendendo às versões menos moderadas da síndrome populista, observamos
que Nações desenvolvidas, como a França, viram surgir, nos pleitos eleitorais
dos últimos quinze anos, figuras de caráter populista situadas em vários
parâmetros do espectro ideológico, como Jean-Marie Le-Pen, Michel Bové ou
Ségolène Royal. Na Itália, às voltas com a dramática redução do crescimento
econômico se firmou o populista Berlusconi. Na América Latina, é rica a plêiade
de líderes populistas que chegaram ao poder nos últimos vinte anos: o casal
Kirschner na Argentina, o coronel Chávez na Venezuela, o presidente Correa no
Equador, Evo Morales na Bolívia, o bispo Lugo no Paraguai, o líder sindical
López Obrador no México, etc. No Brasil, o populismo carismático de Lula abiu
espaço para a aventura lulopetista, com a derrubada da economia nos governos
presididos pelo “poste” Dilma Rousseff e a interminável série de affaires de
corrupção, ao ensejo do Mensalão e do Petrolão, objeto da Operação Lava-Jato.
Fenômeno tão amplo merece ser estudado com detalhe. Não me deterei numa
caracterização do Populismo, nas suas várias manifestações ao longo do século
XX. Isso exigiria um trabalho de mais fôlego, só para dar conta de populismos tradicionais
como o varguista, no Brasil, o peronista, na Argentina, o gaitanista (seguido,
depois, pelo rojas-pinillista ou anapista),
na Colômbia, o ensejado pela longa hegemonia do Partido Revolucionário Institucional
no México, ou o encarnado por ditadores militares como Juan Vicente Gómez ou
Pérez Jiménez, na Venezuela. Fixarei a
atenção no denominado neopopulismo,
que acompanha as reações das sociedades hodiernas perante a globalização
econômica. Tratarei, portanto, de fenômeno atual, que se circunscreve às duas
últimas décadas do século passado e que abarca, obviamente, as quase duas
décadas transcorridas do presente século XXI.
Pretendo, nesta exposição, desenvolver dois aspectos: I) o conceito de neopopulismo; II) de que forma esse
fenômeno afeta a vida democrática da América do Sul, atualmente e no futuro
próximo?
I) O conceito de neopopulismo.
Dentre as muitas descrições conceituais em voga, deter-me-ei na elaborada
por Pierre-André Taguieff, que me parece a mais adequada para caracterizar o fenômeno
populista nas suas mais recentes manifestações. Para este autor, “o populismo,
oscilando entre o autoritarismo e o hiper-democratismo, bem como entre o
conservadorismo e o progressismo reformista – não poderia ser considerado nem
como uma ideologia política, nem como um tipo de regime, mas como um estilo
político, alicerçado no recurso sistemático à retórica de apelo ao povo e à
posta em marcha de um modelo de legitimação de tipo carismático, o mais
adequado para valorizar a mudança. É
justamente porque se trata de um estilo, uma forma vazia preenchida do seu
jeito por cada líder, que o populismo pode ser posto ao serviço de objetivos
antidemocráticos, bem como de uma vontade de democratização” [Taguieff, 2007:
9]. Dois estudiosos brasileiros, Alberto Oliva e Mário Guerreiro [2007: 7],
fazem uma caracterização semelhante: “Longe de ser uma doutrina, o populismo é
um modo de fazer política e de exercer o poder”.
Destacarei, a seguir, 12 características que acompanham ao fenômeno do neopopulismo definido, segundo acabamos
de ver, como um estilo político de
amplo espectro ideológico. Alicerçar-me-ei, na identificação dessas
características, também nos estudos desenvolvidos por outros estudiosos entre
os que se contam Alan Greenspan, Horacio Vasquez-Rial, Simon Schwartzman,
Alberto Oliva, Mário Guerreiro, Alvaro Vargas Llosa, Francisco Wefort, Guillermo
O´ Donnell, etc.
1) Soteriologia. O
estilo político do neopopulismo se
encarna na figura do salvador do povo,
quando se juntam os aspectos da retórica fácil com os relativos à modalidade de
legitimação que Max Weber [1977: 847-888] identificava como carismática. A
respeito, frisa Taguieff [2007: 10]: “a combinação do populismo-retórico com o
populismo-legitimação carismática encarna-se na figura do demagogo ou do
tribuno do povo, personagem que é, ao mesmo tempo, expressão, guia e salvador do povo, e que se apresenta como homem providencial e realizador de
milagres – ou de um porvir maravilhoso”. O povo, para o líder populista, é uma
entidade mítica afinada misteriosamente com o seu carisma pessoal. Essa feição
arcaica do populismo é assim destacada por Taguieff [2007: 31-32]: “É
necessário não desconhecer a dimensão mitológica de todo populismo, que reside
na tese, sempre pressuposta, de que o
povo existe e de que ele é dotado de uma unidade que lhe confere a sua
identidade (ou a unicidade de sua figura), em face das elites ou das potências
ameaçadoras, ou contra elas”.
2) Personalismo. O líder
populista trabalha somente para a sua causa pessoal e, para isso, elabora um
discurso em que esta aparece identificada com a causa do povo, dando ensejo,
assim, a uma deformação do princípio da soberania; ele é um demagogo cínico. A respeito da alteração
que o princípio da soberania sofre nas mãos do líder populista, escreve Taguieff
[2007: 10-11]: “O princípio democrático da soberania, isolado e privilegiado em
relação aos princípios liberais da separação e limitação dos poderes, pode ser
objeto de interpretações diversas e inspirar múltiplas práticas, para as quais
ele serve de modo de legitimação. Nesse sentido, o populismo é definível como a
demagogia da época democrática, ou como a forma mínima assumida pela demagogia,
quando o povo é tratado como uma categoria que pertence ao domínio do sagrado e
fazendo parte de um culto”.
É na trilha do reforço à sua ação individual que o líder populista, no
sentir de Oliva e Guerreiro, coloca toda a sua iniciativa política, a fim de
manter os subordinados numa condição de dependência pessoal dele. A propósito,
os mencionados estudiosos destacam o seguinte: “O fato de povo ser uma entidade de difícil caracterização permite aos
populistas se apresentarem como seus porta-vozes. A nebulosidade do conceito de
povo propicia as mais diferentes formas de retórica engabeladora. É da ambigüidade
que se nutre o populismo. A busca de um contato direto com as massas tem geralmente por objetivo manipular tanto
seu imaginário quanto suas carências. A despeito de todas as sublimações, o
sonho dos populistas é exercer o poder da forma a mais concentrada possível” [Guerreiro
– Oliva, 2007: 7].
3) Demagogia. O líder neopopulista
é um demagogo que explora sistematicamente, no seu discurso, o ressentimento
das massas contra as elites. Esse ressentimento alicerça-se, no caso
latino-americano, como frisa Álvaro Vargas Llosa [2007: 19], no fato de que
“temos uma cultura de pedintes, em lugar de uma cultura de criadores de
riqueza”. A respeito desse artifício, escreve Taguieff: “Supõe-se, de início,
que um líder é populista, quando se
esforça por fazer crer para fazer agir, se dirigindo diretamente ao povo para melhor manipulá-lo e
utilizá-lo. O que vem a conferir ao termo populismo
o sentido do velho termo demagogia é
ou bem o ato de agradar ao povo, e mais particularmente, a parte baixa do povo, para fazê-lo agir ou aceitar alguma coisa,
sob a condição de que esse discurso agradável implique uma denúncia dos
supostos responsáveis pelos males que são deplorados – no caso, as elites. É
por isso que numerosos intérpretes do fenômeno populista insistem na exploração
cínica, pelo líder, do ressentimento das massas contra as elites. O que leva a
reduzir o populismo a alguma coisa como a patologia da democracia
liberal/pluralista” [Taguieff, 2007: 11/12].
Essa patologia, nos casos mais extremados, conduz ao esmagamento de
qualquer oposição, em obediência aos imperativos da “vontade soberana do povo”,
expressos no imperativo unipessoal do líder carismático. Modalidade de
democratismo que termina sepultando as possibilidades de construção de uma
democracia pluralista verdadeiramente moderna. A propósito, escreve Taguieff
[2007: 29], enfatizando a ambigüidade do fenômeno populista, que oscila “entre
um hiper-democratismo (realização do sonho da transparência veiculada pelo
ideal da democracia direta) e um antidemocratismo alimentado por pulsões ou
pretensões autoritárias. Este é um aspecto essencial daquilo que pode ser
caracterizado como a ambigüidade do
populismo. Mas podemos entender também, por populismo, alguma coisa como um
democratismo abusivo, uma demissão das elites da inteligência e do saber em
face da massa, cujo poder funciona, desde logo, como poder de decisão. O
triunfo da doxa constitui uma figura
da tirania do maior número, índice do reino da quantidade. O povo sempre teria
razão contra aqueles que o contradizem, tidos como rivais ou inimigos”. É uma
versão atual e bem latino-americana da tirania
da maioria, que Tocqueville [1992: 300-318] identificava como um dos riscos
da democracia.
4) Sedução. O líder neopopulista
é um sedutor das massas populares, utilizando, para isso, a mídia e as
pesquisas de opinião. “Nas democracias representativas modernas – frisa
Taguieff [2007: 12] -, que se inclinam em direção à democracia de opinião,
trata-se, para todo populista, de
induzir o maior número possível de cidadãos a votarem no sedutor que ele
encarna, notadamente no meio de uma popularidade construída, legitimada e
medida pelas pesquisas de opinião. Trata-se de levá-los a confiar no líder, se
esforçando por seduzir, por todos os meios disponíveis, o maior número possível
de eleitores”.
O caráter sedutor do populismo hodierno assoma nos apelos para reforçar a
confiança das massas no líder. Confiem em
mim! Essa seria a palavra de ordem. Modalidade ampla de paternalismo, que
convive muito bem com as antigas formas de patimonialismo, nos contextos em que
se preservaram tais formas de dominação, alheias ao contratualismo
europeu-ocidental. A propósito, Taguieff escreve: “Ora, a análise das formações
populistas permite estabelecer que o fenômeno neopopulista, na Europa, não pressupõe
a existência de uma coerência doutrinária, que conferiria identidade a uma ideologia populista. Isso vale, também,
para as formas neopopulistas que surgem com as novas democracias pós-ditatoriais
ou pós-totalitárias, democracias frágeis,
que se observam notadamente na América Latina ou na Europa do Leste. A mensagem
neopopulista se reduz a um confiem em
mim! Ou sigam-me! Slogans
pronunciados por demagogos expertos na exploração dos recursos mediáticos. A
bem da verdade, não há ideologia populista, somente havendo sínteses entre
protestas populistas e tal ou qual construção ideológica. O populismo constitui
um estilo político alicerçado na convocação ao povo, bem como sobre o culto da
defesa do povo, compatível, em princípio, com todas as grandes ideologias
políticas (liberalismo, nacionalismo, socialismo, fascismo, anarquismo, etc.)”.
5) Contestação. O neopopulismo contemporâneo parece
emergir do desgaste das democracias representativas, a fim de apresentar uma
alternativa democrática, de caráter contestatório. Na América Latina, como
destaca O´ Donnell [1986: II, 935] tal fenômeno ocorre como reação contra
“formas tradicionais de dominação autoritária” que conduziram a “democracias de
participação restrita”. Seja como for, o populismo é uma resposta diante de
práticas políticas insatisfatórias e que não representam os interesses da
sociedade. A propósito deste ponto, escreve Taguieff [2007: 15]: “A crise da
representação, interpretada nos anos 1990 como crise de confiança nas democracias pluralistas, parece ter feito
surgir condutas ou atitudes de desconfiança que, pela sua normalização social,
tendem a desenhar a figura de uma antidemocracia
de caráter contestatório”. Nos hodiernos populismos
telúricos latino-americanos (chavista, zapatista, “moralista”, etc.), os
líderes aparecem como iconoclastas dos sistemas tradicionais de governo. Tudo
deve ir por água abaixo: leis, decisões judiciais, instituições das denominadas
democracias burguesas, dando a
impressão de que se colocou em marcha um verdadeiro tsunami que levará tudo para
o fundo, só restando o líder populista e o povo. Essa iconoclastia aparece como
operação de limpeza a ser efetivada, à maneira rousseauniana, pelos “puros” (o
líder e os seus asseclas).
Consolida-se, assim, um tipo de populismo contestatório, que é
caracterizado por Taguieff [2007: 20], nos seguintes termos: “Enfim, o apelo
direto ao povo contra os de cima ou
contra os do outro lado orienta-se
pela dupla prescrição de romper com o sistema político existente e de mudá-lo: acabar com a burocracia, a partidocracia, a
plutocracia, etc. Apelo à mudança,
que amiúde assume a forma de um varrer a
sujeira ou de uma grande operação de
limpeza. Quando prevalece a função tribunícia que expressa politicamente a
protesta social, o populismo pode ser chamado de contestatório”.
6) Ação direta. O líder neopopulista
apela para a vinculação direta entre ele e o povo, dispensadas mediações
institucionais, como as que dizem relação ao governo representativo. É uma
espécie de ação direta do líder carismático
sobre as massas, em que, certamente, são utilizadas as novas tecnologias como a
comunicação on line, via chats, blogs ou foros de debate. A propósito, escreve Taguieff: [2007: 16]:
“Enquanto que, nas democracias pluralistas instaladas e tranqüilas, a política
supõe mediações e contemporizações – sendo que os debates e as deliberações
requerem tempo, bem como mediadores e lugares de mediação -, o imaginário
antipolítico do populismo centra-se totalmente na rejeição das mediações,
consideradas inúteis ou nocivas. Os líderes populistas propõem-se a derrubar a
barreira ou a distância, ou seja, qualquer diferença entre governantes e
governados, representantes e representados, ou bem sugerem que eles possuem o
poder para abolir qualquer distância entre os desejos e a sua satisfação, de
suspender este aspecto do princípio da realidade que é constituído pela
inserção na duração, pelo respeito aos prazos, pela contemporização”.
Trata-se, certamente, da irrupção pura e simples da magia na vida
política. O líder-salvador tem o poder extraordinário de satisfazer
instantaneamente os desejos das massas, só com a dinâmica onipotente de sua
vontade, e sem que intermedeiem outras instâncias pessoais ou institucionais. O líder-salvador pode encarnar uma tradição
ancestral de antigas civilizações, como é o caso de Evo Morales, identificado e
coroado por um grupo de intelectuais bolivianos na qualidade de “líder supremo
dos indígenas do Continente Americano” [Carranza – Ustariz, 2006: 9], antes de
ser aclamado como tal pelo povo camponês, quando da sua eleição para a
presidência de seu país. Essa relação direta entre líder populista e povo se
expressa, no mundo contemporâneo, pela utilização freqüente da consulta direta
via referendum ou plebiscito,
promovida pelo líder a fim de firmar a sua vontade sobre quaisquer
procedimentos institucionais alheios aos seus propósitos. É a prática que um neopopulista, como Chávez, soube utilizar de maneira perfeita.
7) Semelhança popular. Apela-se, no contexto do populismo
contemporâneo, para restabelecer uma relação de semelhança entre o líder e o
povo. As antigas elites são desprezadas, na medida em que não se assemelham à
massa popular, não possuem a sua alma. O governo, para ser legítimo, tem de estar
presidido por alguém que tenha a cara e a
alma do povão. Essa tese da ausência de semelhança entre líderes e
liderados e da necessidade de restabelecê-la é antiga e se remonta a fontes
diversas: Rousseau, Robespierre e Stuart Mill. [Cf. Taguieff, 2007: 17].
No seio dos hodiernos populismos suscitados pela integração européia,
prevalece a denúncia de que as elites subordinadas a Bruxelas teriam traído o
povo das suas nações, tendo-se colocado a serviço de interesses internacionais.
Essas elites não retratam a cara dos seus povos respectivos. A respeito, o Taguieff
escreve: “O que chama a atenção do leitor, à primeira vista, em relação aos
discursos nacional-populistas contemporâneos é, de um lado, a oposição à
construção européia (indo do euro-ceticismo até a pura e simples rejeição), e,
de outro lado, a denúncia virulenta contra a globalização. O antieuropeismo não
é aqui mais do que uma variável do antielitismo: se a União européia é objeto
de críticas, é porque ela seria construída e dirigida por elites separadas do povo e convertidas em
estrangeiras em face dos povos europeus. Quanto aos atores sociais mobilizados
pelos partidos populistas, podem ser caracterizados, genericamente, como perdedores da globalização. Na retórica
do novo populismo, à denúncia do sistema político vigente se junta, pois, a de
que se trata de uma realidade mundialista,
interpretada como um complô contra os povos e as nações. O antielitismo e a
antiglobalização formam um círculo vicioso que se alimenta do imaginário
conspiratório” [Taguieff, 2007: 28]. Esse seria um dos elementos preponderantes
do neopopulismo de Donald Trump, segundo vários dos seus críticos.
8) Ampla fenotipia. Sendo o neopopulismo
um estilo propriamente dito, o seu
formato pode informar diversos conteúdos. Três são, segundo Taguieff, as principais
manifestações do fenômeno: populismo político, agrário e cultural. Eis a
caracterização que deles traça o mencionado autor: “Os populismos políticos
apresentam-se como mobilizações ou como regimes compatíveis com qualquer
ideologia (socialismo, comunismo, nacionalismo, fascismo, anarquismo,
liberalismo, etc.). Assim, os cesarismos populistas latino-americanos são
formas de nacionalismo; há populismos que são reacionários, até mesmo racistas,
mas não se lhes pode desconhecer nem as realizações parciais da democracia
populista (na Suíça, por exemplo), nem o populismo
dos políticos, que pode ser definido, segundo Margaret Canovan, como o
apelo à reunião do povo para além das diferenças ideológicas. Os populismos
agrários, alicerçados na idealização do povo-camponês,
ou na estrita defesa dos seus interesses, podem estar ligados a uma forma de
messianismo (o populismo russo), a uma reação antiurbana e antiestatizante (o
radicalismo dos proprietários rurais de certos Estados norte-americanos) ou a
uma variante do nacionalismo étnico (Polônia, Romênia). Quanto ao populismo
cultural, manifesta-se na literatura, na pintura ou no cinema, todas as vezes
que, nessas manifestações artísticas, predominam temas referidos à vida do povo
comum, do povinho ou da gente do lugar, como se dizia
antigamente ou, como se diz hoje, das massas
ou dos de baixo”. [Taguieff, 2007:
20-21].
9) Denuncismo. O estilo neopopulista
de fazer política está acompanhado, quase sempre, de uma variante da mídia: a
imprensa que denuncia, de forma sistemática, os males sociais como provenientes
das artimanhas dos de cima contra os de baixo. “A sensibilidade populista
confunde-se amiúde com a sensibilidade em face da miséria, e o estilo populista
com o estilo proletário ou plebeu. O seu postulado ideológico é que
os Grandes ou Os de cima mentem e se enriquecem às expensas das pessoas comuns,
descritas como vítimas que sofrem. Essa sensibilidade que mistura sentimentos
de revolta e compaixão se expressa, encenada e instrumentalizada com fins
comerciais, em numerosos diários e semanários que rivalizam em matéria de
denúncia contra as elites, mediante a revelação de escândalos que as inculpam.
É nesse sentido que se pode dizer que há uma imprensa populista (...)”
[Taguieff, 2007: 21].
10) Feição antipolítica. Estilo eminentemente individual de
relacionamento entre o líder carismático e o povo, o neopopulismo é,
paradoxalmente, antipolítico, na
medida em que rejeita qualquer institucionalização no exercício do poder; o
líder populista aproxima-se, destarte, do ideal do mínimo institucional, com a
finalidade de manter incólume a sua relação de prestígio pessoal em face do
povo. García Márquez [2005: 41], em O Outono do Patriarca, deixou clara
esta característica, ao mostrar a despreocupação do líder – Juan Vicente Gómez,
encarnado no Autocrata solitário – para
com a estrutura do Estado, reduzido aos limites da sua casa. Qualquer mediação que escape ao seu
poder pessoal incomoda. Qualquer liderança que apague a sua presença deve ser
banida. Taguieff [2007: 22] completa, da seguinte forma, a descrição desta
característica do populismo contemporâneo: “As novas formas de populismo, na
Europa especialmente, caracterizam-se pela sua orientação antipolítica, que se
revela na aparição de paradoxais partidos anti-partidistas nos contextos
marcados pela crise da representação política, até mesmo pela crise de
confiança nas democracias representativas. Daí provém a rejeição à classe
política, que implica, por sua vez, na negação das diferenças
político-ideológicas institucionalizadas e dos próprios partidos”.
A classe política, para os líderes neopopulistas,
é totalmente corrupta, não vale a pena o trabalho de moralizá-la ou
modificá-la, deve-se prescindir dela. Os novos governantes devem surgir
diretamente do seio do povo, sem mediações partidárias ou institucionais.
Apela-se, aqui, para o antigo sentimento jacobino da pureza ou da virtude.
Somente é puro ou virtuoso aquele que provém das entranhas populares.
A respeito deste ponto, escreve Taguieff [2007: 23-24]: “O eco que
encontram os líderes populistas depende, notadamente, de um fator
circunstancial: o sentimento, fortemente espalhado, de que a classe política, afastada, até mesmo
segregada do povo é toda ela corrupta, não reformável. Através da tomada de
consciência dessa crise profunda de legitimidade, desenvolve-se a convicção de
que é necessário, em conseqüência, mudar as elites dirigentes, fazê-las surgir
do povo, a fim de que os governantes se
assemelhem aos governados, que os representantes se aproximem, portanto,
dos representados. Essa exigência democrática de similitude é lembrada, entre
outros, por John Stuart Mill. O ideal consiste no seguinte: os governantes
devem ser, de modo insofismável, filhos do povo. É isso precisamente que Platão
recusava no regime democrático, em que os governantes se assemelham aos
governados e os governados aos governantes, fazendo da democracia um tipo de
governo intrinsecamente contingente. Esse é, também, um velho sonho dirigido
especialmente, na modernidade européia, contra o quase-racismo existente no
Antigo Regime entre as classes superiores e as inferiores, dos de cima (de sangue claro e puro) e dos de baixo (de sangue vil e abjeto). Trata-se, pois,
de democratizar o elo representativo pela aproximação e a maximização da semelhança
entre representantes e representados. Lucien Jaume destaca criteriosamente que
o clube dos Jacobinos assimilou, de Rousseau, aquilo que o poderia legitimar, a
saber: a tese normativa de que somente
delegados ou mandatários virtuosos (à imagem de um povo virtuoso) poderiam
reconciliar a soberania do povo com a sua representação, ou ainda que, para
falar como Robespierre, se o corpo representativo não é puro e quase identificado com o povo, a liberdade se perde”.
A opção neopopulista pela antipolítica,
cruzada com a secular tradição patrimonialista ibero-americana que faz da coisa
pública negócio a ser tangido pelos donos do poder, como se fosse a sua
propriedade privada, transfere para o reino do Estado uma atitude de não
profissionalismo e de espírito familístico, que fazem com que aquele perca a
competitividade necessária nos tempos atuais. A respeito desse fenômeno,
Guerreiro e Oliva [2007: 9] destacam o seguinte, adotando, nesse ponto, os
arrazoados do cientista político Torquato di Tella: “O fato é que existe uma
forma subdesenvolvida de se fazer
política, de se administrar e prover serviços públicos essenciais. A maioria
dos países da América do Sul não consegue encaminhar soluções objetivas para
seus problemas e dilemas sóciopolítico-econômicos. Talvez por isso muitos de
seus governantes sejam aprendizes de ditadores e recorram à retórica escapista
de que só a revolução dá jeito”.
11) Antielitismo. Os hodiernos populismos possuem uma enorme carga
de ressentimento em face das dificuldades que enfrentam os países em vias de
desenvolvimento. Os problemas sociais são atribuídos, de forma maniquéia, à
presença, no cenário internacional do mundo globalizado, de nações líderes ou
poderosas. Esse sentimento ganha destaque em face dos Estados Unidos (especialmente
nos casos latino-americano e árabe), ou de Israel (no caso palestino). Taguieff
[2007: 23] detalha, da seguinte forma, esta característica: “Quanto ao
antiamericanismo que, depois do início dos anos 90, revela-se, via de regra,
associado a um anti-sionismo
virulento, aparece em todas as formas, de esquerda e de direita, do novo
populismo. O antielitismo assume ali, corriqueiramente, a forma clássica da
teoria do complô: (Dizem-nos mentiras;
somos enganados; somos passados para trás),
sobre a base da convicção de que o povo é vítima de um complô organizado contra
ele pelos de cima ou pelos de fora ou pelos de lugar nenhum, identificados com as elites transnacionais ou
cosmopolitas (os novos donos do mundo),
que encarnam o mal político. O antielitismo deriva, amiúde, em
conspiracionismo: a globalização é
imaginada como a fonte de todos os males da humanidade”.
Vásquez Rial [2003: 247] também destacou a presença do binômio
antiamericanismo / anti-semitismo nos discursos de líderes neopopulistas na Conferência Mundial contra o Racismo, a
Discriminação Racial, a Xenofobia e a Intolerância, reunida em Durban, em 2001,
pouco antes dos ataques de 11 de setembro. No caso do neopopulismo brasileiro, é de se destacar o antiamericanismo que
inspirou a política externa dos governos de Lula. No plano internacional, o
governo brasileiro preferiu se distanciar dos Estados Unidos e se alinhar com a
França, sem levar em consideração que, como frisam Viola e Leis [2007: 121],
este país “é o que mais fortemente se contrapõe à agenda econômica brasileira”.
12) Nacionalismo. De um modo paradoxal, os neopopulismos telúricos latino-americanos (Chávez, Correa, Morales,
Lugo) partem para um acirramento da onda estatizante, a fim de reagir contra as
privatizações efetivadas pelas elites liberal-conservadoras nos momentos
anteriores. Elas teriam traído a causa do povo ao entregar às multinacionais a
riqueza do país. Sem que tal processo signifique uma racionalização do Estado,
os novos messias partem para estatizar em nome do povo, politizando, nos casos
mais moderados (como no populismo petista) as agências reguladoras, que são
tiradas do domínio dos técnicos e entregues às lideranças sindicais, essas sim
representativas do povão. No contexto dessa nacionalização, emerge uma
espécie de mágica econômica, que produz resultados alvissareiros.
É o denominado por Alan Greenspan de “populismo econômico”, caracterizado
da seguinte forma: “O populismo econômico imagina um mundo mais simples e
direto, no qual as estruturas teóricas não passam de dispersões em relação às
necessidades evidentes e prementes. Seus princípios são simples. Se há
desemprego, o governo deve contratar os desempregados. Se o dinheiro está
escasso e as taxas de juros, em conseqüência, estão altas, o governo deve impor
limites artificiais ou, então, imprimir mais dinheiro. Se as importações estão
ameaçando empregos, proíba as importações” [Greenspan, 2008: 326].
Esta característica nacionalizante, na Europa hodierna, tomou um rumo sui generis: o da contestação antimundialista
que exclui imigrantes, no desenvolvimento de um modelo econômico
nacional-populista. Nele, as oportunidades de trabalho devem ser preservadas,
exclusivamente, para os representantes da autêntica
nação (francesa, alemã, austríaca, etc.). A propósito, Taguieff [2007: 26]
escreve: “A segunda vaga populista tem-se caracterizado pela geminação da
dimensão contestatória e a de origem nacionalista, privilegiando o motivo da
identidade – essencialmente definido contra a ameaça da imigração-invasão.
Essa tendência irrompeu na França, onde a entrada em cena política do Front
national (FN) produziu-se em 1983-1984, ao mesmo tempo em que se impunha a
figura emblemática de Jean-Marie Le Pen, o seu líder carismático. Essa onda logo
afetou a Áustria, com o avanço do Partido da liberdade (FPÖ), encarnado em Jörg
Haider a partir de 1986. A evolução dessas duas formações políticas ilustra a
oscilação do novo populismo entre um pólo contestatório e um pólo de
identidade: enquanto predomina o exercício da função tribunícia (expressão
política do mal-estar social, da raiva de grupos ameaçados ou excluídos), o
populismo é de tipo contestatório; já quando prevalecem as preocupações com a
identidade (defesa da identidade nacional, rejeição à imigração) apresenta-se
como um nacional-populismo”.
II) De que forma o fenômeno do neopopulismo afeta a vida
democrática da América do Sul, atualmente e no futuro próximo?
Inserido o estilo populista de governar no contexto da tradição
patrimonialista latino-americana, a principal conseqüência é o reforço à
tendência que faz da política iniciativa do líder patrimonial, num contexto de
espírito clânico e familista. Efetivamente, no patrimonialismo encontramos a privatização
da iniciativa política por parte dos denominados “donos do poder”. A sociedade
é fraca. O Estado é mais forte do que a sociedade. E, no interior deste, a ação
do líder é mais forte do que as iniciativas dos membros da sociedade.
Na atual conjuntura latino-americana observamos isso: a preponderância de
políticas personalistas, formuladas pelos líderes neopopulistas, muitas vezes na contramão das expectativas das
respectivas sociedades: ocorreu isso na Venezuela dos presidentes Chávez e
Maduro, no Equador do ex-presidente Correa, na Bolívia do presidente Morales,
na Argentina nos tempos do casal Kirchner e no Brasil dos ex-presidentes Lula e
Dilma. Para que as políticas públicas formuladas correspondessem, de fato, aos
interesses nacionais, tornar-se-ia necessária a presença atuante dos
respectivos Congressos. No entanto, o que se observa é que em todos os países
mencionados, o Poder Executivo entrou em atrito com os outros poderes, tendo
havido uma evidente hipertrofia daquele. Quando não houve confronto declarado
com o Legislativo e o Judiciário, registrou-se amplo processo de cooptação por
parte do Executivo (com as conseqüentes práticas corruptas de mensalões e outras modalidades
cooptativas). Os Presidentes, via de regra, terminaram assumindo um papel
crucial e hipertrofiado no comando do Estado, a partir de reformas constitucionais,
como as efetivadas na Venezuela, no Equador e na Bolívia. Formuladas a partir
dos pontos de vista particulares de cada um desses mandatários, as políticas
públicas terminam-se chocando com os interesses diversificados das suas
respectivas sociedades, tendo dado ensejo a profundos conflitos que, como o que
ainda está acontecendo na Bolívia, põem em tela de juízo o excessivo
centralismo do governo nacional.
Vários autores destacaram essa característica
do populismo, dentre eles: Benjamin Arditi, Gino Germani, Susanne Gratius e
Ernesto Laclau. O Populismo abrange uma série de práticas de centralização do
poder e de relativização das instituições, destacando, em contrapartida, o peso
que têm as relações de caráter direto entre o líder populista e as multidões
que se sentem espelhadas nele.
Não é de hoje, aliás, que se sedimentou essa
característica, como se pode ver pela presença dela em versões anteriores, nos
casos de Facundo Quiroga, na Argentina do século XIX, segundo a análise feita
por Domingo Faustino Sarmiento em Facundo: civilização e barbárie no
pampa argentino (1846), ou na belíssima versão romanceada por
García Márquez em O outono do patriarca (1975) , da
sanguinolenta e modernizadora ditadura (1908-1937) de Juan Vicente Gómez na
Venezuela.
A revolução bolivariana do falecido
coronel Chávez, peça-chave da sua proposta política, cindiu ao meio, com
certeza, a sociedade venezuelana. Aqueles setores populares que recebiam
generosamente as verbas oficiais, través de inúmeros programas assistencialistas
financiados com os petrodólares, deram o seu apoio incondicional ao Chefe do
Estado. De qualquer forma, a aliança do chefe do Estado “con los de abajo”,
típica do neopopulismo, tem sido uma
das notas características do regime venezuelano, bem como a sua política de
“mano dura” para com as classes médias, os intelectuais, os empresários
(ameaçados volta e meia com a estatização do respectivo setor produtivo) e a
imprensa. Sem mencionar os acontecimentos que, uma década atrás, em 2007, involucraram
o excêntrico presidente venezuelano de então, Hugo Chávez (um ator marxista-narcisista, como dizia o
jornalista Andrés Oppenheimer), com as FARC, ao redor do problema dos reféns da
narcoguerrilha colombiana e das obscuras transações ligadas aos lucros desse
grupo armado.
Valha recordar aqui, também, a decisão do falecido presidente Chávez de
criar linhas de aceitação para a sua política antiimperialista e de cruzada
bolivariana, seduzindo outros países da região com os sus petrodólares. Na alça
da mira da política exterior bolivariana de Chávez estavam, de início, dois
países sul-americanos: Bolívia e Equador, possuidores de riquezas petrolíferas
e de gás natural. Era grande o interesse de Chávez pela Bolívia, situada no
coração da América do Sul, a partir de cujo território poderia expandir, de
forma mais fácil, a sua “revolução” pelo cone sul do Continente.
A telúrica “revolución indígena” do presidente Morales, irmã gêmea da
“revolução bolivariana” de Chávez, partiu para uma agressiva política de
estatizações no terreno da mineração e da exploração de hidrocarbonetos, aliada
a uma decidida ação de expropriações de terras nas áreas produtivas. Problemas
de desabastecimento, de carência de créditos externos para a exploração
petroleira e de ordem pública ocorreram na Bolívia, com a queda correspondente
nos índices de crescimento econômico e os problemas sociais conhecidos de
todos.
É de se destacar, de novo, aqui, a aliança, típica do neopopulismo, entre o Executivo
hipertrofiado “y los humildes”, os indígenas quéchuas e aymaras, tradicionais
plantadores de folha de coca, em cujo benefício, segundo a retórica
governamental, são feitas todas as reformas revolucionárias. Mas que, com
certeza, estão a pagar a conta da elevação dos preços dos alimentos e dos combustíveis.
Poder-se-ia falar, no caso boliviano, da “utopía arcaica” (que puxa o fio da
história para trás), de que falava Vargas Llosa [1996] ao analisar a obra de um
dos grandes autores do gênero indigenista,
José Maria Arguedas, autor do clássico romance intitulado Los
ríos profundos. É uma utopia situada no passado longínquo do império
incaico, impossível de ser revivido.
No Equador do ex-presidente Correa, observa-se a mesma aliança entre o
chefe do Estado e “los de abajo”, os cholos,
historicamente explorados como denunciava o grande romancista Jorge Icaza, na
década de vinte do século passado, no seu belo romance Huasipungo. Após vários
governos que foram colocados em questão pelos movimentos indígenas, o
mandatário mencionado, formado em reconhecida universidade estadunidense,
elaborou ampla proposta de reformas que fortaleceram o executivo sobre os
demais poderes. Ambiciosa ação legislativa em benefício das comunidades
indígenas foi deflagrada pelo ex-presidente equatoriano, ao passo que denunciava
o tratado que o Equador tinha com os Estados Unidos para a manutenção da Base
de Manta, e negociava a mesma com os chineses. Entusiasticamente apoiado pelo
presidente Chávez, Correa partiu para uma agressiva política de confronto com o
governo da Colômbia, a partir da morte do segundo homem das FARC, Raul Reyes,
em território equatoriano, pelas forças armadas colombianas. Parece que, tanto
no caso equatoriano quanto no boliviano, os petrodólares do presidente Chávez foram
um argumento forte para apoiar a “revolução bolivariana”, que buscava integrar
os países da América do Sul ao redor da Venezuela, e em confronto com os
Estados Unidos.
Na Argentina do casal Kirchner, permaneceu clara a aliança do governo com
os grandes sindicatos de trabalhadores, reforçando, assim, a tradição populista
do peronismo, na qual se situavam esses novos atores políticos. Era clara a
simpatia – e a dependência em matéria de petrodólares para as eleições – dos
governos do casal Kirchner em face do presidente Chávez. O confronto com os
tradicionais produtores rurais deixou clara a aliança “con los de abajo”, mas
aumentou, com certeza, os problemas de desabastecimento, tendo comprometido, de
outro lado, a capacidade exportadora do país.
No Brasil, a política desenvolvida pelo presidente Lula, ao longo de seus
dois mandatos, deixou clara uma coisa: a aliança neopopulista do governo com os denominados “movimentos sociais”, no
contexto ideológico da denominada “revolução cultural gramsciana” [cf.
Vélez-Rodríguez, 2006a: 71-99]. Movimento dos Sem Terra, Movimento dos Afetados
por Barragens, Movimento dos Quilombolas, Movimento dos Indígenas, Movimento
dos Sem Teto, etc., são inúmeras as entidades contempladas pelos generosos
recursos oficiais, distribuídos à torta e à direita por centenas de Ongs, cuja gestão fugiu ao controle do
governo. Isso para não falar do programa “Bolsa Família”, que se tornou
verdadeira festança assistencialista, devido ao fato de que não havia
seguimento do Estado em face desses benefícios, que em muito fizeram crescer os
gastos públicos. (Fica evidente, aqui, a presença do modelo ético pombalino do
“Estado Empresário que garante a riqueza da nação”). Era clara a tolerância
oficial em face dos desmandos de movimentos como o MST, cujos ativistas peitavam
autoridades locais, destruíam patrimônio público, invadiam propriedades
produtivas, desconheciam sumariamente decisões da justiça, aniquilavam centros
de pesquisa agropecuária, tudo em aliança com grupos internacionais como Via Campesina e contando com a
complacência do ministério da Reforma Agrária [Cf. Vélez-Rodríguez, 2005].
Paralelamente, nenhuma medida foi tomada pelo governo para que os
arruaceiros passassem a respeitar as instituições de direito. Tudo sob as
bênçãos estapafúrdias da Comissão da Pastoral da Terra y do Conselho
Indigenista Missionário da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil. Políticas
atentatórias contra a soberania nacional foram postas irresponsavelmente sobre
o tapete, com assinatura de documentos e declarações em foros internacionais
que, se tivessem sido levados à prática, teriam conduzido a sérios riscos para
a manutenção da unidade nacional em terras indígenas, como aconteceu na criação
da reserva “Raposa Serra do Sol”, em Roraima, seriamente questionada por
juristas, intelectuais, empresários e militares.
Na retórica do ex-presidente Lula, aparecia como leitmotiv dos seus pronunciamentos a denúncia contra as maquinações
das denominadas elites, que estariam tentando preservar privilégios em face das
demandas do povão. Lula situava-se, nos palanques, ao lado dos humildes, dos
descamisados, dos pretos, índios e quilombolas. Mas, de outro lado, preservava
as linhas mestras da política macroeconômica herdada dos governos anteriores, o
que lhe possibilitou atrair as inversões externas e a entrada de divisas
necessárias para manter o crescimento econômico, em que pese o absurdo aumento
do gasto público e o calote do governo à dívida interna, que mais do que
triplicou ao longo dos últimos anos.
Era clara a simpatia do ex-presidente Lula pelo seu homólogo venezuelano,
a quem deu apoio estratégico num momento decisivo para a permanência de Chávez
no poder, tendo enviado um navio da Petrobrás a fim de garantir o
abastecimento, ameaçado pela greve geral em 2003. O populismo do carismático
Lula coexistia perfeitamente com a estrutura patrimonial do Estado, que levou o
partido do governo a gerir a coisa pública como propriedade privada, com os
desmandos de corrupção generalizada que mancharam a memória do outrora
moralizante grupo de petistas alçados ao poder em 2002. Populismo e tradição
patrimonialista fundiram-se, certamente, em macunaímico carnaval, que deitou
por terra a moral pública e que entronizou o cinismo do bateu-levou ou da ética totalitária gramsciana, que visa à
hegemonia do proletariado. Consolidou-se, no Brasil, novo modelo de neopopulismo de esquerda, de tipo
peleguista e estatizante ao qual se opôs, com coragem, o candidato presidencial
Jair Messias Bolsonaro.
Conclusão.
O neopopulismo na América do
Sul, como estilo praticado por governantes carismáticos no seio da mais ampla
estrutura patrimonialista da sociedade, conduziu estes países, certamente, a um
longo período de estagnação, em decorrência da falta de racionalidade na gestão
do Estado. Compadrio, corrupção, autoritarismo, falta de transparência,
desaguaram em enfraquecimento progressivo da democracia e perda da capacidade
competitiva, num mundo em que este fator é fundamental para garantir a
sobrevivência em meio a países que, como a China e a Índia, crescem de forma
continuada e agressiva. O neopopulismo
traduziu-se, assim, via de regra, em fator de atraso para os países
latino-americanos.
É bem verdade que a onda neopopulista
encontrou os nossos países com uma boa situação econômica, em parte decorrente
das medidas saneadoras realizadas ao longo dos anos 90 do século passado, no
terreno do controle sobre a inflação e em parte, também, em virtude da
valorização das commodities
produzidas na região, no mercado internacional. Assim, como frisava Álvaro
Vargas Llosa, [2007: 19], “o que está ocorrendo agora é que os populistas têm
muito dinheiro à sua disposição, desde Hugo Chávez até Nestor Kirschner”. Mas a
situação, não podemos negar, mudou fortemente, tendo aparecido dificuldades
decorrentes da instabilidade dos mercados internacionais. Em face dessas
incertezas, uma nova geração de governantes aparece no Peru, no Chile, no
Equador, na Colômbia, na Argentina e no Brasil. Essa nova geração não se despiu
por completo do estilo populista. Mas o pôs a serviço da reconstrução das
instituições. O exemplo de Álvaro Uribe Vélez, na Colômbia, é muito
significativo e abriu espaço para uma nova geração de mandatários, da qual o
atual presidente colombiano, Ivan Duque, é digno representante.
Do neopopulismo praticado pelas lideranças de esquerda na América Latina
nas décadas anteriores ficou clara uma lição: pretender substituir a
representação política pela política de participação direta do povo em praça
pública, é uma infantilidade que sempre sai cara. Nas sociedades de massas, a
deliberação da democracia participativa pressupõe e complementa, não substitui,
a democracia representativa. Essa vã tentativa escora-se num pressuposto falso,
decorrente do democratismo rousseauniano:
a legitimidade de quem é eleito pelo voto direto confere-lhe uma soberania
total, sendo que o mandato conferido em eleições refere-se a aspectos limitados
que não abarcam a totalidade da vida social. Presidentes eleitos são legítimos
para agirem dentro dos marcos da soberania limitada assinalada pela
Constituição, não para exercerem um poder discricionário. Esta crítica já tinha
sido feita, no início do século XIX, por Benjamin Constant de Rebecque, nos
seus Princípios
de política. A nossa tradição patrimonialista simplesmente passou uma
borracha sobre estes ensinamentos do liberalismo doutrinário.
Somente uma crítica continuada acerca dos mecanismos de ensimesmamento,
de autoritarismo e de espírito antiliberal presentes nos vários neopopulismos na América Latina,
afastar-nos-á da cilada da utopia arcaica
que ameaça nos levar de volta ao passado.
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