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quinta-feira, 21 de dezembro de 2017

BRASIL: COMO SAIRMOS DA CASINHA DE CACHORRO


Artigo publicado no jornal O Estado de São Paulo, de autoria  do jornalista Fernão Lara Mesquita ("O Brasil na casinha de cachorro, 20-12-2017, p. A2), destaca o caráter entrópico e determinista dos vícios do estatismo no Brasil. Assim começa o jornalista o seu arrazoado: "Em nenhum campo mais que no da política 'o meio é a mensagem'. É o sistema que faz as pessoas, e não o contrário. Há sempre um elemento de 'o ovo ou a galinha', nesse raciocínio, mas o fato é que, como McLuhan demonstrou na sua obra, a alteração do meio, ou seja, da tecnologia institucional em uso, é muito mais determinante para definir ou mudar os resultados (as mudanças sociais e comportamentais necessárias) do que o conteúdo que transita por esse meio (o discurso do bem ou mesmo a boa intenção que, porventura, tenha nascido sincera). O caso brasileiro é um exemplo eloquente. Seja quem for que ingresse na política ou no serviço público do jeito que o 'sistema' opera hoje, acaba por se corromper (...)". E por ai vai o jornalista Lara Mesquita  surfando na eterna onda do patrimonialismo brasileiro que, como frisava Raymundo Faoro, possui uma duração sine fine.

Felizmente o autor do artigo abre uma janela de esperança ao enxergar, em exemplos históricos como o da Suíça ou o dos Estados Unidos, comunidades políticas que fizeram um pacto em prol de manter vivo um caldo de cultura que propiciasse a aparição de virtudes públicas. A propósito, frisa: "O sistema político faz a riqueza ou a pobreza das nações. É uma falácia o argumento de que o Brasil jamais poderia ter um sistema civilizado. Os suíços e os americanos, entre outros, não nasceram como são hoje. Eles ficaram como são hoje porque por uma conjunção específica de acontecimentos históricos, cada um em seu momento, adotaram um sistema que resulta num filtro de seleção positiva. Não têm um sistema político que têm porque eram mais educados, mais ricos ou mais virtuosos que os demais no ponto de partida. É o contrário, eles ficaram mais ricos e educados porque instituíram um filtro de seleção positiva. A matéria-prima é a mesma aqui e lá, mais inclinada para o vício que para a virtude. Apenas lá, ao contrário daqui, o Estado trabalha para desimpedir os caminhos para a virtude e atravancar os que conduzem ao vício. Tanto que o melhor do que hoje 'assinam' como produção própria, foi feito por estrangeiros fugitivos de sistemas nos quais só o vício consegue passagem".

Alargando um pouco este arrazoado de Fernão Lara Mesquita, poderíamos dizer que o Brasil, no passado, já fez opções mais interessantes do que esta modorrenta república patrimonialista do "presidencialismo de coalizão" ou de "cooptação", como se tornou praxe no ciclo lulopetralha. Ao longo do século XIX, entre 1840 e 1889, funcionou aqui um modelo parlamentarista presidido pelo Imperador, com instituições de governo representativo e com o funcionamento do Poder Moderador que dirimia os conflitos entre os poderes públicos. Foi meio século de estabilidade política e de regularidade democrática, com possibilidade de alargamento da representação como revela a Lei Saraiva, já no fim do período imperial. A elite republicana, capitaneada pelos castilhistas, terminou fazendo com que as questões conflituosas do Império, como a denominada "questão militar", tomassem um volume até então desconhecido e conspirassem contra a estabilidade do sistema. Da queda do Império surgiu um modelo republicano em que passou a ser esquecida a questão do aperfeiçoamento da representação, embalados os espíritos pela razão cientificista e determinista que tudo equacionaria de cima para baixo, em nome da ciência. Antônio Paim, em Momentos decisivos da História do Brasil (1ª edição São Paulo: Martins Fontes, 2000) lembra que fizemos, então, uma opção pelo atraso, na trilha de opções pouco inteligentes que, anteriormente, tinham seguido os princípios da Contra-Reforma, em que ainda chafurda a esquerda de inspiração pombalina.

Assim identificava Antônio Paim esse fenômeno de perda de rumo: "Momentos decisivos da nossa história são aqueles nos quais o pais poderia ter seguido rumo diverso do escolhido: veja três desses momentos, com perdão de Tobias Barreto, para quem, por sua conotação cabalística, o número três nunca deveria ser invocado nas análises que aspirassem à consistência. O primeiro configura-se nos séculos iniciais, quando escolhemos a pobreza e nos deixamos ultrapassar pelos Estados Unidos, depois de termos sido mais ricos. O segundo no século XIX, quando optamos pela unidade nacional mas nos revelamos incapazes de consolidar o sistema representativo. Finalmente, o terceiro, no século XX, quando estruturamos definitivamente o Estado Patrimonial, recusando terminantemente o caminho da democracia representativa. Neste fim de milênio pode estar sendo decidido um quarto momento que, entretanto, somente se apresenta como interrogação: seremos capazes de enterrar o patrimonialismo?" (Paim, Momentos decisivos da história do Brasil, ob. cit., Apresentação, p. XI).

Vou partir, para minha análise da problemática do nosso "em berço esplêndido da malandragem" (que nos garante vivermos apertados numa casinha de cachorro), de dois princípios filosóficos que me parecem norteadores nesta discussão: em primeiro lugar, o princípio escolástico de que "ab esse ad posse valet illatio", ou seja: "é válida a conexão entre ser e poder ser". Se algo é, ora bolas, é porque poderia ser. Existem funcionários públicos brasileiros que não são corruptos. Mesmo que isso contradite o que, em geral, se pensa do funcionalismo no Brasil. E em que pese o fato de práticas que favorecem a corrupção estarem em andamento. Me referirei a este ponto num relato autobiográfico que farei logo mais.

Em segundo lugar, o princípio da liberdade. Somos livres e, portanto, podemos tomar decisões que se contraponham ao que está estabelecido. Esse seria o começo da mudança social. Em que pese o fato de o caminhar da História nos apresentar tendências, podemos, graças ao nosso livre-arbítrio, nos contrapormos a essa maré. Alexis de Tocqueville destacava que se tornou um lugar comum da historiografia "dos tempos democráticos" negar a capacidade do ser humano para tomar decisões. Frisava a respeito: "Os historiadores que vivem nos séculos democráticos não recusam, pois, apenas atribuir a alguns cidadãos o poder de agir sobre o destino do povo; ainda tiram aos próprios povos a faculdade de modificar a sua própria sorte e os submetem ora a uma providência inflexível, ora a uma espécie de cega fatalidade. Segundo eles,  cada nação é invencivelmente ligada, pela sua posição, sua origem, seus antecedentes, sua natureza, a certo destino, que nem todos os esforços poderiam modificar. Tornam as gerações solidárias umas das outras e, remontando assim, de época em época e de acontecimentos necessários em acontecimentos necessários, à origem do mundo, compõem uma cadeia cerrada e imensa, que envolve todo o gênero humano e o prende. Não lhes basta mostrar como se deram os fatos; comprazem-se ainda em mostrar que não podiam dar-se de outra forma. Consideram uma nação que chegou a certo ponto da sua história e afirmam que foi obrigada a seguir o caminho que a conduziu até ali. Isto é muito mais fácil que mostrar como teria podido fazer para seguir um melhor caminho" (Tocqueville, Alexis de. A democracia na América, trad. de N. Ribeiro da Silva, 2ª ed., Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1977, p.  377).

Tocqueville previa a entropia histórica que o historicismo provocaria na cultura humana do século XX à sombra do dogmatismo totalitário. Se o determinismo é a regra dos atos humanos, a fatalidade é senhora da história e a liberdade pessoal desaparece. A respeito, afirmava: "Se essa doutrina da fatalidade, que tem tantos atrativos para aqueles que escrevem a história nos tempos democráticos, passando dos escritores a seus leitores, penetrasse assim em toda a massa de cidadãos e se apoderasse do espírito público, pode-se prever que logo paralisaria o movimento das sociedades novas e reduziria os cristãos a turcos. Direi mais: que semelhante doutrina é particularmente perigosa à época em que nos encontramos; nossos contemporâneos acham-se muitíssimo inclinados a duvidar do livre-arbítrio, porque cada um deles sente-se limitado por todos os lados pela sua fraqueza, mas ainda atribuem de boa vontade força e independência aos homens reunidos em corpo social. É necessário que nos guardemos de obscurecer essa ideia, pois se trata de restabelecer a dignidade das almas e não de completar a sua destruição" (Tocqueville, A democracia na América, ob. cit., ibid.).

Mas voltemos ao primeiro princípio filosófico que mencionava atrás: há funcionários públicos honestos no Brasil, logo é possível que eles existam. 38 anos se passaram a partir do momento em que decidi vir morar neste país, tendo-me tornado brasileiro por naturalização, há vinte anos atrás.

Ao longo desse período de quase quatro décadas, encontrei funcionários públicos honestos e competentes em todas as áreas: Docência, Magistratura, Forças Armadas, Saúde Pública, Serviços em geral, Parlamento, Poder Executivo, Serviço Diplomático, etc. Claro que no terreno da minha especialização, a Docência, tenho encontrado, ao lado de excelentes profissionais, pessoas que não se interessam pela qualidade do serviço que prestam. Isso também tenho observado em outras áreas. No campo acadêmico, terminei concursando numa Universidade Federal e me aposentei nesse serviço. A minha primeira experiência como funcionário público deu-se, no início dos anos 80, na Universidade Estadual de Londrina. Jovem professor, aspirava a trabalhar numa instituição pública, a fim de poder terminar a pesquisa de doutorado que tinha iniciado na Universidade Gama Filho em 79.

Concursei em Londrina, trocando o corre-corre em São Paulo (onde lecionava como horista em duas universidades, além do trabalho na Editora Convívio como editor da Revista Convivium e colaborador da Agência de Artigos e Notícias Planalto, pertencente a essa Editora). Para mim foi maravilhoso trocar esse corre-corre por um único trabalho, como professor do Departamento de História e Filosofia da UEL. Tudo foi um paraíso no início: ia para a Universidade no começo da manhã,  passava o dia dando  aulas e terminando a pesquisa do doutorado na bela sala que me foi atribuída, no campus coberto de verde e com as belas perobas que davam um toque rústico ao ambiente acadêmico. Após o primeiro mês, um dos professores mais antigos me chamou para uma conversa reservada: falou-me que o corpo docente gostava de mim, assim como os alunos, mas que eu estava prejudicando os colegas, pelo fato de permanecer o dia todo no campus. Falou-me que os alunos já estavam reclamando que os outros professores não tinham a mesma presença na Universidade, limitando os seus horários somente ao período da manhã ou da noite, quando em geral ocorriam as aulas. E me pediu em nome dos colegas: não apareças senão para dar as tuas aulas. Achei estranho o pedido, mas como não queria me atritar com os colegas sendo professor novo, passei a ficar em casa preparando aulas e pesquisando para a minha tese, tendo substituído o verde campus pelo estreito apartamento onde morava. Ao finalizar o primeiro ano, alguns colegas postularam o meu nome para ser nomeado chefe do departamento de História e Filosofia.

Cai no canto de sereia de voltar às atividades administrativas, que tinha jurado não exercer mais (tinha sido pro-reitor da Universidade de Medellín, na Colômbia, durante quatro anos, antes da minha vinda ao Brasil). A primeira providência que tive de encarar no novo cargo foi a de elaborar o quadro de horários para o ano seguinte. Peguei no Departamento de Recursos Humanos da Universidade o quadro de contratações do corpo docente com a sua dedicação, de acordo ao contrato celebrado com a Universidade (ainda os professores eram vinculados à sombra da CLT). Aos professores com contrato de 40 horas distribui as suas atividades ao longo do dia, preservando a limitação de horário para os que tinham cargas inferiores. Foi o pandemônio: os professores mais velhos revoltaram-se contra a minha proposta de horário. Um deles, gaúcho sem pelos na língua, falou-me que não obedeceria o horário assinalado, pois isso impediria as suas atividades econômicas. Soube que tinha uma imobiliária, dedicando à Universidade somente às noites, quando o seu contrato era de 40 horas. Apareceram outros colegas insatisfeitos. Um deles tinha fazenda, e passava nela a parte da manhã e da tarde, somente comparecendo para dar as aulas à noite, embora tivesse também um contrato de 40 horas. Não modifiquei os horários assinalados de acordo à carga horária e, em reunião de Departamento muito tumultuada, frisei que cada um teria de cumprir com o que estava determinado pelo respectivo contrato de trabalho.

Os colegas foram à Reitoria para apresentar queixa contra mim e o Reitor, o saudoso professor José Carlos Pinotti, me apoiou. Ao gaúcho bravo que falou que não cumpriria com o horário assinalado, prometi que, se mostrasse dedicação, lhe ajudaria a conseguir uma bolsa na USP ou na UNICAMP para que fizesse os almejados estudos de Mestrado e Doutorado. Resumo: esse colega fez o seu Mestrado e o seu Doutorado, com brilhantismo, tendo-se dedicado às atividades acadêmicas e tendo dado um jeito para que um familiar seu tocasse o negócio da imobiliária. Foi saneada a questão da dedicação acadêmica. Ninguém morreu nem foi defenestrado. Cheguei à conclusão de que o que faltava nas Universidades públicas era ter administradores responsáveis que fizessem frente ao desleixo com que alguns encaravam o serviço público. Esse foi o meu batizado na gestão pública brasileira. As pessoas cuidavam dos seus interesses particulares. Faltava que, na parte administrativa, houvesse alguém que vestisse a camisa da instituição.

Não foi necessária uma revolução para que os funcionários públicos cumprisem a contento com as suas funções. Cheguei à conclusão que o que estava faltando no Brasil era boa gestão e determinação de quem exercesse os cargos diretivos no setor público. Isso que experimentei na Universidade, vê-se em outros setores da gestão pública. Metade pelo menos do problema de desenvolvimento do país é de falta de correta gestão dos recursos humanos. Claro que temos políticas erráticas alicerçadas em legislação torta, que põe as instituições a serviço dos indivíduos que nelas trabalham, sacrificando o bem comum. É o caso das Agências Reguladoras a partir dos governos petistas. Foram entregues aos "companheiros" do Partido do Governo, para que as gerissem em benefício de uma patota. Mas é perfeitamente possível corrigir essa deformação, colocando à frente das citadas Agências profissionais competentes que zelem pelo bom serviço da área que lhes foi encomendada.

Conclusão: é possível, sim, sairmos da casinha de cachorro em que as práticas patrimonialistas nos trancafiaram nestes anos de desleixo e de corrupção sistêmica. As soluções propostas por Tocqueville e o Mestre Antônio Paim são claras: a liberdade reside em nós e podemos tomar decisões que mudem o curso da nave em que a Nação viaja. Já houve momentos brilhantes na nossa história, como lembra Paim, em que o Brasil tomou decisões certas, do ângulo dos consensos sociais para fazer deste país uma grande Nação orgulhosa de si mesma. Por que não voltarmos a esses exemplos de decisões certas e não tomarmos, hoje, o rumo que vale a pena? Nada de soluções escatológicas. Basta coragem e bom senso.

2 comentários:

  1. Professor Ricardo. Algo similar aconteceu comigo, também numa universidade federal. Numa reunião de departamento - eu era chefe de departamento - reclamaram de eu criar cursos. Isto só aumentava o trabalho, disseram!

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  2. Já é altura do contribuinte deixar de ser preguiçoso/parvo!
    (manifesto em divulgação, ajuda a divulgar)
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    O CONTRIBUINTE NÃO PODE PASSAR UM CHEQUE EM BRANCO A NENHUM POLÍTICO!
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    Leia-se, DEMOCRACIA SEMI-DIRECTA: isto é, votar em políticos não é (não pode ser) passar um cheque em branco... isto é, ou seja, os políticos e os lobbys pró-despesa poderão discutir à vontade a utilização de dinheiros públicos... só que depois... a 'coisa' terá que passar pelo crivo de quem paga (vulgo contribuinte).
    -» Explicando melhor, em vez de ficar à espera que apareça um político/governo 'resolve tudo e mais alguma coisa'... o contribuinte deve, isso sim, é reivindicar que os políticos apresentem as suas mais variadas ideias de governação caso a caso, situação a situação, (e respectivas consequências)... de forma a que... o contribuinte/consumidor esteja dotado de um elevado poder negocial!!!
    -» Dito de outra maneira: são necessários mais e melhores canais de transparência!
    [mestres/elite em economia já 'enfiaram' trapalhadas financeiras monumentais... quem paga, vulgo contribuinte, não pode deixar de ter uma palavra a dizer!]
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    Exemplo:
    Todos os gastos do Estado [despesas públicas superiores, por exemplo a 1 milhão (nota: para que o contribuinte não seja atafulhado com casos-bagatela)], e que não sejam considerados de «Prioridade Absoluta» [nota: a definir...], devem estar disponíveis para ser vetados durante 96 horas pelos contribuintes na internet num "Portal dos Referendos"... aonde qualquer cidadão maior de idade poderá entrar e participar.
    -» Para vetar [ou reactivar] um gasto do Estado deverão ser necessários 100 mil votos [ou múltiplos: 200 mil, 300 mil, etc] de contribuintes.
    {ver blog « http://fimcidadaniainfantil.blogspot.pt/ »}
    .
    Uma nota: a Democracia Directa não tem interesse - serve é para atafulhar o contribuinte com casos-bagatela.

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