Madame de Staël como Corinne - Pintura sobre tela de Vigée-Lebrun - 1809 |
Comemorou-se
este ano, precisamente no dia da festa nacional da França (14 de julho), o
bicentenário da morte de Madame de Staël (1766-1817). Este artigo é dedicado à
memória da grande escritora e serviu de base à palestra que fiz, na Confederação Nacional do Comércio, no Rio de Janeiro, em 7 de novembro.
O autor mais estudado na França ao longo do ano 2000 foi Madame de Staël. A análise da sua obra foi objeto das monografias de Bacharelado em Literatura e Humanidades, por determinação do Ministério da Educação da França. Por que essa escolha? Responderia brevemente: em primeiro lugar, porque o seu livro mais importante, De la Littérature considerée dans ses rapports avec les institutions sociales (Acerca da Literatura considerada nas suas relações com as instituições sociais) completou duzentos anos.
Em
segundo lugar, porque Madame de Staël é tremendamente atual. Ela representa,
efetivamente, um espírito aberto à modernidade, mas, ao mesmo tempo, crítico
dela, a partir de uma perspectiva que supera o individualismo exagerado dos que
unicamente buscam o proveito imediato, olhando só para os próprios interesses.
E, paralelamente, com uma consciência clara da defesa incondicional da
liberdade e do reconhecimento de que é possível conciliar os interesses
individuais com os da comunidade.
Madame
de Staël foi uma pessoa excepcional. Podia-se odiá-la ou amá-la, mas ninguém
ousaria desconhecer o seu valor. Stendhal considerava que ela era "a
mulher mais extraordinária que jamais viveu". Para Benjamin Constant
tratava-se de "um ser à parte, um ser superior, desses que possivelmente
aparecem um a cada século". O próprio Napoleão, embora a olhasse com
extremada desconfiança e a tivesse perseguido pela vida afora, chegou a
confessar em certa ocasião: "É necessário reconhecer, depois de tudo, que
se trata de uma mulher de grande talento; ela permanecerá". Essa atitude
de amor ou ódio foi herdada pela crítica literária em relação à nossa autora.
Somente nas últimas décadas foi possível reconstruir um ambiente de
imparcialidade intelectual em face da obra de Madame de Staël, isso em grande
medida devido ao trabalho de estudiosos dedicados como Simone Balayé.
A
propósito das dificuldades encontradas para se chegar a esse equilíbrio,
escreve a mencionada pesquisadora: "Se cada um de seus livros encontrou um
vasto público, apaixonadamente hostil ou favorável, aos poucos foi sendo
construída ao seu respeito uma lenda que mascarou a obra, assim como a pessoa.
As paixões políticas e religiosas ocuparam aí lugar de destaque. Madame de
Staël incomoda pelo seu espírito de livre exame e pela educação que ela herdou
das Luzes. Ela tem sido atacada por gentes de todos os partidos: os jacobinos,
os ultradireitistas, mais tarde a velha guarda clássica, às vezes os
românticos, apesar de que se alimentaram com o seu pensamento (...). É somente
nos últimos trinta anos que estudos imparciais a colocaram no justo lugar"
[Balayé, 1985: 7].
A
verdade é que a brava escritora não deu trégua ao absolutismo napoleônico,
tendo sido a mais importante crítica e ferrenha opositora do Imperador. Pagaria
caro pela sua ousadia liberal: foi cruelmente desterrada. A reflexão de Madame
de Staël deitou, assim, as bases para o trabalho ulterior de fundamentação do
liberalismo doutrinário francês, efetivado por Benjamin Constant de Rebecque
(com quem, aliás, teve laços amorosos), François Guizot e o próprio
Tocqueville. A noção tocquevilliana de interesse bem compreendido não se
poderia entender sem referência à obra de Madame de Staël.
Precursora
dos doutrinários. Destaquemos duas idéias que justificam plenamente esse
honroso título. Em primeiro lugar, a profissão de fé incondicional na
liberdade. A propósito, escreve Madame de Staël em Dix années d'exil:
"Não é para me escusar pelo meu entusiasmo em relação à liberdade, que
explicito as circunstâncias pessoais que contribuíram para tornar mais caro para
mim esse ideal. Creio que devo me orgulhar desse entusiasmo em lugar de me
escusar, pois quis dizer desde o início que o grande reproche do imperador
Napoleão contra mim, é o amor e o respeito que sempre tive pela verdadeira
liberdade. Esses sentimentos foram-me transmitidos como uma herança, a partir
do momento em que pude refletir acerca dos altos ideais dos quais derivam e das
belas ações que eles inspiram. As cenas cruéis que desonraram a Revolução
Francesa, não sendo mais do que tirania sob modalidade popular, não fizeram
esmaecer em mim, creio, o culto à liberdade. Poderíamos nos desencorajar em
relação à França. Mas, se este país tivesse a desgraça de não possuir o mais
nobre dos bens, não era necessário por isso proscreve-lo da terra. Quando o sol
desaparece do horizonte dos países do Norte, os habitantes dessas regiões não
amaldiçoam os seus raios, que luzem ainda em outros lugares mais felizardos do
céu" [Staël, 1996a: 46].
Uma
segunda idéia que torna Madame de Staël precursora dos doutrinários: somente um
regime alicerçado numa Constituição de inspiração liberal, garantirá o
exercício da liberdade. Achava que uma Carta inspirada na que tinha vigência na
Inglaterra, poderia evitar na França os males do despotismo. "A
Inglaterra, para ela - frisa Jacques Godechot - é a terra da liberdade. É
graças a essa liberdade que a Inglaterra conseguiu vencer Napoleão". De
que liberdade se trata? Fundamentalmente da liberdade individual, "a
liberdade de ir e vir, a liberdade de cada um, tanto homem quanto mulher, viver
como lhe aprouver" [Godechot, 2000: 28].
Vale
a pena, portanto, traçar um rápido esboço da vida e da obra da grande
escritora, que prenunciou o movimento da emancipação feminina, num momento em
que às mulheres só se reconhecia o direito de ficar em casa ou ir para o
convento.
Desenvolverei neste artigo os seguintes itens: I - Perfil biobibliográfico de Madame de Staël; II - A crítica de Madame de Staël ao absolutismo napoleônico.
I
- Perfil biobibliográfico de Madame de Staël
Anne-Louise-Germaine
Necker de Staël-Holstein, popularmente conhecida como Madame de Staël, nasceu
em Paris em 1766 e morreu na mesma cidade em 14 de julho de 1817. Era filha de
Jacques Necker (1732-1804), o banqueiro genebrino que foi Ministro de Finanças
de Luís XVI e de Suzanne Curchod, de origem suíça e filha de um pastor
protestante. A propósito das raízes familiares de Jacques, vale a pena lembrar
que o pai deste, Charles-Frédéric Necker, era prussiano, tendo sido advogado e
preceptor do filho de Bernstorff, o primeiro ministro alemão de George I, rei
da Inglaterra e eleitor de Hanôver. Este soberano tinha enviado
Charles-Frédéric a Genebra em 1725, a fim de que dirigisse uma pensão para
jovens estudantes ingleses. Ali casou com Jeanne-Marie Gautier, pertencente à
oligarquia genebrina e naturalizou-se suíço. Os avós de Germaine eram,
portanto, cosmopolitas. Jacques Necker, lembra Godechot, "pretendia
descender, por parte da mãe, de Jacques Coeur, o ministro de Carlos VII, e por
parte do pai de um Necker que vivia na Irlanda no tempo de Guilherme o
Conquistador, tendo adotado o escudo de armas dele" [Godechot, 2000: 9].
Jacques
Necker foi nomeado ministro representante da Suíça em Paris em 1768, em
decorrência do fato do grande sucesso econômico obtido pelo seu Banco, o Necker
et Tellusson, ao ensejo da Guerra dos Sete Anos (1756-1763). Jacques ficou
muito rico, sendo a sua fortuna calculada entre 7 e 8 milhões de libras-ouro.
Em decorrência da política de reformas deslanchada por Luís XVI com a finalidade
de frear a crescente impopularidade da monarquia francesa, Necker foi convidado
em 1777 para substituir Turgot no ministério das Finanças. Destaquemos que
Necker era contra a concepção fisiocrática de Turgot. Não foi fácil vencer as
resistências para que um banqueiro estrangeiro e, ainda por cima, protestante,
assumisse o importante cargo, embora houvesse a tradição, na França, de
ministros estrangeiros como Concini e Mazarin. A situação foi contornada
sendo-lhe atribuída a função de "diretor adjunto das Finanças". Mas,
de fato, Necker foi um autêntico primeiro-ministro, que pôs em execução uma
moderada política de contenção de gastos e de extinção dos privilégios que em
muito oneravam os cofres públicos. (Além da pesada burocracia, integrada pela nobreza,
o orçamento definhava em decorrência dos gastos exigidos pela participação da
França na guerra das colônias britânicas da América contra a Inglaterra).
O
caminho reformista empreendido por Necker granjeou-lhe o ódio de Maria
Antonieta e de amplos setores da nobreza aliada a ela, fato que conduziu à sua
demissão em 1781. O estopim foi o opúsculo intitulado Compte rendu
au Roi publicado nesse mesmo ano, em que o Directeur des Finances
e primeiro-ministro apresentava o quadro das receitas e das despesas do Estado,
ressaltando o peso que tinham os gastos com a nobreza improdutiva denominada de
"frelons" (zangões). Os preconceitos deste estamento
aumentaram em decorrência da sugestão de Necker para a efetivação de uma
reforma política que estabelecesse uma espécie de representação provincial, com
a finalidade de diminuir a importância dos intendentes do Rei.
No
capítulo IV da obra Considérations sur la Révolution Française,
Madame de Staël fez uma detalhada descrição das reformas pretendidas pelo seu
pai. Em relação à proposta da representação provincial, a filha de Necker
escrevia: "(Ele) sentia mais vivamente que ninguém de que forma o bom
desempenho de um ministro é pouca coisa no meio de um reino tão vasto e tão
arbitrariamente administrado como a França, e esse foi o motivo para
estabelecer assembleias provinciais, ou seja, conselhos integrados pelos
principais proprietários de cada província, nos quais se discutiria a fixação
dos impostos e os interesses locais da administração. Turgot tinha concebido a
idéia. Mas nenhum ministro do rei, antes de Necker, tinha tido a coragem de se
expor à oposição que deveria encontrar uma instituição deste gênero. Ele previa
que os parlamentos e os cortesões, raramente solidários entre si, a combateriam
com a mesma força" [Staël, 2000: 95].
Já
fora do governo, Necker publicou, em 1784 o seu Traité de
l'administration des finances de France, que em muito desagradou a
nobreza, fato que o levou a sofrer o desterro a vinte léguas de Paris. No
entanto, após a desastrada gestão das finanças públicas efetivada por Brienne e
Lamoignon, Luís XVI chamou de novo Necker para assumir a direção nacional das
finanças, integrando-o ao ministério. O pai de Germaine deu continuidade à
política reformista de sua gestão anterior, restabelecendo as assembleias
representativas provinciais, intervindo na livre circulação de cereais a fim de
fazer frente à fome e anunciando a convocação dos Estados gerais. Tratava-se de
uma política econômica liberal que terminou saindo cara ao próprio Necker, pois
teve de emprestar ao tesouro real a vultuosa soma de 2 milhões de libras, que
somente seriam pagas quarenta anos depois, na Restauração.
Diante
de reiteradas pressões da nobreza, o Rei demitiu novamente Necker em 11 de
julho de 1789, poucos dias antes de eclodir a Revolução, que foi acelerada pela
notícia da demissão do popular primeiro-ministro, fato que motivou o pânico
financeiro. Poucos dias depois da toma da Bastilha, no entanto, o soberano
chamou novamente Necker. Ao se opor à radicalização protagonizada no seio da Assembleia
Nacional pelos Jacobinos e sofrer a pesada oposição de Mirabeau e de outros
líderes, Necker abandonou definitivamente o governo, em setembro de 1789.
De
qualquer forma, Jacques Necker foi muito valorizado pela sociedade francesa e
pelas cortes europeias. Após a sua demissão do ministério das Finanças, recebeu
convites de José II da Áustria, de Catarina II da Rússia, dos reis da Polônia e
de Nápoles, para ocupar o mesmo cargo. O pai de Germaine preferiu, no entanto,
se retirar ao castelo de Coppet, na Suíça, onde terminaria os seus dias em 1804
[cf. Godechot, 2000: 10-11]. Antes da sua morte, porém, Necker escreveu várias
obras, entre as quais podemos mencionar as seguintes: De
l'Administration de Monsieur Necker par lui-même (1791), Du
pouvoir exécutif dans les grands États (1792), Réflexions
offertes à la nation française (esta obra, que pretendia defender
o soberano, motivou a reação dos jacobinos e de outros elementos exaltados,
fazendo com que os bens de Necker na França fossem confiscados e que ele
próprio fosse inscrito na lista dos emigrados). O pai de Germaine escreveu
também o Cours de morale religieuse (1800) e Dernières
vues de politique et de finances (1802), obra que o indispôs com
Bonaparte, em decorrência das críticas efetuadas por Necker contra o modelo de
República autoritária proposto pelo Primeiro Cônsul na Constituição de 1800.
Mas
voltemos à formação recebida por Madame de Staël. No salão dos Necker, em
Paris, reuniam-se todas as celebridades da época. Germaine recebeu de seus pais
uma sofisticada educação, em que prevaleceram a influência da cultura britânica
e o protestantismo. A respeito, Axel de Blaeschke escreve: "A anglofilia
de Madame de Staël era antiga e não de natureza puramente livresca. Ela se alicerça
na sua experiência pessoal, iniciada no seio de uma família totalmente
direcionada para o país de além-Mancha. De seu pai, ela herdou a predileção
pela bicameralismo inglês como forma de organização política; de sua mãe, a
admiração pela poesia inglesa; e dos dois, a atração por Shakespeare. Depois da
sua segunda viagem à Inglaterra, ela teve oportunidade para aprofundar e
alargar essa aquisição cultural. Não é de admirar que o quadro da literatura
inglesa seja, em De la Littérature, de longe o mais completo
e o mais seguro. Como síntese, supera os estudos feitos por Voltaire e outros
predecessores. A literatura inglesa é aquela que mais respira o espírito de um
país livre (...)" [Blaeschke, 1998: LXVIII-LXIX].
Segundo
testemunho da pedagoga Albertine Necker de Saussure (prima de Germaine), no
livro intitulado: Notice sur le caractère et les écrits de Madame de
Staël (Paris, 1820), a nossa autora tinha uma brilhante
inteligência, que se manifestou precocemente. Ainda menina divertia-se com as
eruditas conversas dos amigos do seu pai, entre os que se contavam Raynal,
Buffon, Marmontel, Grimm e Gibbon. A jovem Germaine escreveu, entre 1781 e
1785, três romances intitulados Mirza, Adelaïde
et Théodore e Pauline, que foram publicados dez
anos mais tarde [cf. Staël, 1997]. De 1786 data um drama em verso
intitulado Sophie. Nesse mesmo ano, Germaine casou com o
barão Éric-Magnus de Staël-Holstein, adido da embaixada da Suécia em Paris,
tendo recusado casar-se com William Pitt, que seria depois Primeiro Ministro
inglês [cf. Larousse, 1865: 1046; Blaeschke, 1998: IX; Godechot, 2000: 11].
A
primeira obra de fôlego de Madame de Staël, publicada em 1788,
intitulava-se: Lettres sur le caractère et les écrits de
Jean-Jacques Rousseau e testemunha a grande influência que o
filósofo genebrino exerceu na sua formação. Saint-Beuve, talvez o mais
importante estudioso da obra de Madame de Staël no século XIX, escreveu em
relação ao ensaio mencionado: "As Lettres sur Jean-Jacques são
uma homenagem de reconhecimento ao autor admirado e preferido, a quem Madame de
Staël se liga mais estreitamente. Todas as obras seguintes (...) em diversos
gêneros, romance, moral, política encontram-se pressagiadas com antecipação
neste rápido e harmonioso canto de louvor aos escritos de Rousseau, como uma
grande sinfonia se antecipa, já inteira depois de ser concebida, na sua
abertura. O sucesso destas Lettres, que respondia ao
espírito do tempo, foi universal" [apud Larousse, 1865: 1046].
Outras
influências recebidas por Madame de Staël na sua formação, foram as de
Montesquieu, Turgot e Condorcet. Ela conseguiu, a partir de todas essas fontes,
elaborar uma síntese pessoal aberta à liberdade e contrária ao determinismo, em
boa medida pela sábia incorporação de princípios filosóficos novos, provenientes
da Inglaterra e da Alemanha.
Eclodida
a Revolução Francesa, Madame de Staël aspirou a desempenhar, nela, um papel
ativo. Rejeitada pelos republicanos, renegada pelos partidários do Rei, ela era
identificada como partidária da monarquia constitucional. Fazia votos pelo
triunfo do sistema bicameral inglês. A sua posição política granjeou-lhe
inúmeras perseguições. Surgiram contra ela panfletos desrespeitosos e
violentos. Mas conseguiu se manter por cima dessas baixas intrigas. Deixou a
sua apreciação acerca dos acontecimentos revolucionários na obra
intitulada: Considérations sur la Révolution Française, que
seria publicada postumamente. Após uma estadia na Suécia, Madame de Staël veio
se estabelecer na região de Vaud, no castelo de Coppet, na Suíça, onde Necker
tinha se recolhido desde 1790.
A
escritora ficou muito impressionada com a violência do processo revolucionário
e a duras penas conseguiu escrever um único livro neste período: a sua Mémoire
pour la défense de Marie-Antoinette, que foi publicado em agosto de
1793, na Inglaterra e na Suíça, com o título de Réflexions sur le
procès de la reine par une femme [Staël, 1996b]. A obra em apreço
foi escrita logo depois do panfleto de Necker intitulado: Réflexions
présentées à la nation française sur le procès intenté à Louis XVI,
publicado no outono de 1792 [cf. Thomas, 1996: 7].
A
defesa esboçada por Madame de Staël na sua Mémoire de 1793 não pretendia ser
uma peça jurídica, como ela própria reconhecia no prólogo. A novel escritora
apelava para a sua condição de mulher, simplesmente. Eis as palavras da nossa
autora a respeito: "O meu nome, não sendo útil, deve permanecer
desconhecido; mas, para destacar a imparcialidade deste escrito, devo dizer
que, entre as mulheres chamadas para ver a rainha, sou uma daquelas que menos
tiveram com essa princesa relações pessoais. Estas reflexões merecem, por isso,
o crédito de todos os corações sensíveis, pois não foram inspiradas pelos
motivos (utilitaristas) que animam a todos" [Staël, 1996: 17]. Julia
Kristeva enxerga neste escrito traços de modernidade, ao se posicionar Madame
de Staël de forma crítica, ao mesmo tempo contra a selvajaria revolucionária, o
terror imposto em nome da maioria e o massacre dos débeis, especialmente as
mulheres.
A
respeito, Kristeva frisa: "Quando Madame de Staël implora clemência para
Maria Antonieta, tenho certeza de que em seu pleito se misturam o orgulho
ferido da humanista que abomina o massacre, a cólera da aristocrata diante da
selvajaria da opinião comum e a revolta de uma feminista bem antecipada,
insurgida contra a opressão às mulheres. Tudo isso é largamente suficiente para
sustentar, se não para provocar, uma certa inclinação para a infelicidade.
Germaine de Staël advoga pela inocência da Rainha, sua feminilidade, sua
estranheza, sua maternidade. Sustenta que, a partir de um grau elevado, a queda
é mais dolorosa. Definitivamente, considera injuriadas por esse sacrifício
todas as mulheres, em sua fraqueza social e em sua fragilidade de mães. (...)
Mesmo diante do suplício, o pensamento da glória não abandona Madame de Staël.
Mas são a fraqueza e a dor femininas, ferozmente varridas pela tirania
revolucionária, que lhe parecem superiores" [Kristeva, 2002: 178-179].
Em
1795, Madame de Staël escreveu as suas Réflexions sur la paix
adressées à Pitt e aux Français, em que advogava por uma aproximação
entre a França e a Inglaterra e que obteve, em pleno Parlamento, os elogios de
Fox. A propósito desse escrito, frisou Sainte Beuve: "Uma mescla de
comiseração profunda e de justiça calma, o chamamento a todas as opiniões não
fanáticas ao esquecimento, à conciliação, o temor pelas reações iminentes e
extremistas que renascem umas das outras, esses sentimentos, tão generosos
quanto oportunos, marcam, ao mesmo tempo, a elevação da alma e das
perspectivas. Há algo de inspiração antiga nessa jovem mulher que se arrisca a
falar ao povo, de pé sobre os escombros fumegantes" [apud Larousse, 1865:
1046]. No final desse mesmo ano Madame de Staël publicou o seu Essai
sur les factions e, no início de 1796, a obra intitulada De
l'influence des passions sur le bonheur des individus et des nations.
A
instalação no castelo de Coppet marca uma nova etapa na vida intelectual de
Madame de Staël. Insatisfeita com o seu casamento, ela decide superar com a
vida intelectual as frustrações afetivas. Em 1800 escreve a sua mais importante
obra, que já foi mencionada: De la Littérature. A idéia
central da obra consiste na sua fé inabalável no progresso do espírito humano.
A propósito desse leitmotiv, escreve a autora: "Ao percorrer
as revoluções do mundo e a sucessão dos séculos, salta à vista uma primeira
idéia que sempre chamou a minha atenção; é a perfectibilidade da espécie
humana. Não penso que essa grande obra da natureza moral tenha sido jamais
abandonada; nos períodos luminosos como nos séculos de trevas, a marcha gradual
do espírito humano não tem sido interrompida" [Staël, 1998: 40-41].
A
perfectibilidade humana era entendida pela nossa autora num ousado sentido
liberal: como aperfeiçoamento dos seres humanos, não exclusivo de uma classe,
mas alargado a todas as camadas sociais; esse aperfeiçoamento deveria, para ser
autêntico, implicar o exercício da liberdade individual e a sua consolidação
num regime que a respeitasse e que ela denominava de república. A concepção de
Madame de Staël lembra a esboçada por Immanuel Kant na sua Paz
perpétua (publicada em 1795). A escritora francesa considerava que
somente se conseguiria implantar uma república que respeitasse a liberdade, se
as luzes fossem espalhadas pela sociedade e não ficassem restritas a um pequeno
número de pensadores. Esse
processo de democratização corresponderia aos escritores, que deveriam estar
comprometidos com o conhecimento das raízes culturais do próprio país, a fim de
que as propostas liberalizantes ancorassem num chão cultural firme. Todo esse
processo seria denominado por Madame de Staël de civilização. A
Revolução Francesa foi uma tentativa de encontrar o caminho para a
perfectibilidade. Mas viu-se frustrada a partir do momento em que os
revolucionários se inseriram num contexto cientificista, determinista e
sensualista, que os exonerava de preocupações morais. Corresponderia aos
escritores, transformados em agentes de renovação social, retomar o rumo das
reformas frustradas.
Ora,
encontramos aqui os germes doutrinários fundamentais, que inspirarão o
liberalismo de Constant de Rebecque, de Guizot e de Tocqueville. Sintetizando,
o que a autora pretendia era, em primeiro lugar, defender a liberdade ameaçada
pelo bonapartismo e, em segundo plano, renovar o espírito da crítica a partir
do seguinte princípio: "A Literatura é a expressão da sociedade" [cf.
Lotterie, 2000: 9-22; Mélonio - Noiray, 2000: 3-7].
A
mencionada obra de Madame de Staël foi injustamente criticada por algumas
revistas como Décade Philosophique, Mercure e Débats.
Somente Chateaubriand fez do livro uma avaliação relativamente equilibrada, nos
seguintes termos que destacavam o seu valor filosófico, bem como a inspiração
tradicionalista do autor de Le Génie du Christianisme:
"Madame de Staël confere à filosofia o papel que eu atribuo à religião.
(...) A minha loucura consiste em tentar enxergar Jesus Cristo em todas partes,
enquanto Madame de Staël quer ver em tudo a perfectibilidade. (...)
Desagrada-me que Madame de Staël não tenha desenvolvido o sistema das paixões
do ângulo religioso. A perfectibilidade não é, a meu ver, o instrumento
adequado para medir as fraquezas humanas (...). Algumas vezes Madame de Staël
parece ser cristã; logo depois, a filosofia prevalece. Em alguns momentos,
inspirada pela sensibilidade natural, ela põe a nu a sua alma. Mas, logo a
seguir, a argumentação se levanta e vem contrariar os impulsos do coração
(...). Este livro é, pois, uma mistura singular de verdades e erros. (...). Eis
o que ousaria lhe dizer, se tivesse a honra de conhecê-la: Vós sois, sem
dúvida, uma mulher superior. (...). A vossa expressão possui, em geral, força,
elevação. (...). Mas, em que pese todas essas qualidades, a vossa obra está bem
longe de ser o que poderia ter sido. O estilo é monótono, sem movimento e muito
misturado com expressões metafísicas. O sofisma das idéias perdura, a erudição
não satisfaz e o coração é muito sacrificado ao pensamento. O vosso talento
somente se desenvolveu pela metade, pois a filosofia o sufoca (...)" [cit.
por Larousse, 1865: 1046]. A partir da crítica da Chateaubriand à obra de
Madame de Staël, nasceu uma duradoura amizade entre os dois grandes escritores
que passaram a representar a renovação da literatura francesa no início do
século XIX.
O
romance Delphine foi publicado por Madame de Staël em
1802. A obra teve um grande sucesso devido, em parte, às discussões religiosas
que acabavam de ser levantadas por Chateaubriand em Le Génie du
Christianisme. Mas a repercussão favorável deveu-se também ao fato de
que no romance eram claramente identificáveis importantes figuras do momento
como Benjamin Constant de Rebecque, Talleyrand e a própria Madame de Staël. Nem
por isso deixou de suscitar críticas injustas. Um artigo de autor anônimo,
publicado no Mercure de France, afirmava o seguinte:
"Delphine fala do amor como uma bacante, de Deus como um quaker, da morte como um granadeiro e da
moral como um sofista".
A
partir de 1797 Madame de Staël regressou a Paris para morar no seu Hôtel na rue
de Grenelle, perto da rue du Bac. O seu marido a acompanhou, tendo retomado as
funções de embaixador da Suécia perante a República Francesa. O barão de
Staël-Holstein morreu cinco anos depois, em 1802. A nossa autora passou então a
residir em Saint-Brice, nos arredores de Paris, onde organizou o seu salão, em companhia de Madame
Récamier, e passou a exercer influência nos círculos políticos, tendo
conseguido, por exemplo, que fosse entregue a Talleyrand a pasta dos negócios
estrangeiros. O seu salão converteu-se, então, no ponto de encontro de todos os
descontentes com o autoritarismo do primeiro Cônsul. Esse fato, aliado às frequentes
viagens que ela fazia ao castelo de Coppet para encontrar o seu pai, bem como a
publicação, por ele, da obra Dernières vues de politique et de
finances de Monsieur Necker [Necker, 1802: 2 vol.] (em que a nossa
autora tinha colaborado), desagradaram a Bonaparte. Além do mais, como frisa
Larousse, "na cena política do novo regime não havia lugar para as
mulheres". O conflito com Bonaparte sobreveio rapidamente e afastou Madame
de Staël do palco político nos quinze anos seguintes. O exílio a que foi
condenada a escritora foi a conclusão lógica desses eventos [cf. Jaume, 2000].
Desterrada,
a nossa autora deixou a sua residência de Saint-Brice no início de 1803 e
partiu para a Alemanha, permanecendo dois anos em Weimar. Entrou em contato com
Goethe e Schiller. Reveladoras da forma em que Madame de Staël personificava
com brilhantismo o Zeitgeist francês são as seguintes palavras
de Schiller, em carta dirigida a Goethe: "Ela representa o espírito
francês sob uma luz verdadeira e muito interessante. Em tudo que chamamos de
filosofia e, consequentemente, em todas as questões elevadas e decisivas,
encontramo-nos em desacordo com ela e todas as conversas não podem mudar nada.
Mas a sua natureza e o seu sentimento valem mais do que a sua metafísica. A sua
bela inteligência toca o poder do gênio. Ela não nos aceita nada de obscuro, de
inatingível e tudo quanto não consegue esclarecer à sua luz, simplesmente não
existe para ela. Destarte, ela tem grande medo da filosofia idealista que, a
seu ver, conduz ao misticismo e à superstição, e esta é a atmosfera que a
aniquila. Não há para ela o sentido do que chamamos de poesia. De uma obra
deste gênero só assimila a paixão, a eloquência e o sentido geral. Mas se o bom
às vezes lhe escapa, jamais admitirá o mal" [apud Larousse, 1865: 1047].
De
Weimar Madame de Staël dirigiu-se a Berlim, onde teve uma calorosa acolhida na
corte da Prússia. Em 1805 fez uma curta viagem à Itália, de onde teve de
regressar rapidamente a Coppet, com motivo da morte do seu pai. Fixou então
residência no castelo e organizou ali essa espécie de corte da cultura que a
celebrizou durante o Império.
A
nossa autora tinha aproveitado as suas viagens à Alemanha e à Itália para
esboçar duas grandes obras: De l'Allemagne e Corinne.
Este último romance foi publicado em 1807 e o seu sucesso perante a crítica foi
ainda maior que o obtido com a publicação de Delphine. Corinne representava
a glorificação da Itália e, ao mesmo tempo, a personificação ideal da mulher
moderna. Contava-se que Napoleão Bonaparte ficou profundamente irritado com o
cúmulo de elogios de que fora objeto Madame de Staël. Tratava-se, sem dúvida,
da obra da sua maior inimiga, daquela que teve a audácia de desafiá-lo ao longo
dos últimos anos. Villemain dizia que o Imperador da França tinha ficado tão
abalado com os elogios levantados à obra de Madame de Staël, que decidiu, ele
mesmo, escrever uma crítica no Moniteur.
Uma
breve anotação relacionada às personagens desse romance: a nossa autora,
personificada em Corinne, aparecia no relato em Roma com o nome de Telisilla
Argoica e ciceroneada pelo jovem Oswald, ao longo de uma caminhada noturna
visitando os seculares monumentos, que eram o marmóreo pedestal da paixão que
ela passou a sentir pelo seu jovem guia. Ora, na vida real, Oswald era o nobre
português dom Pedro de Souza Holstein (futuro conde de Palmela), nascido em
Turim em 1781 (quinze anos mais jovem do que nossa autora). Dom Pedro, então
com 24 anos, era um belo jovem, "com os seus olhos azuis e os seus cabelos
pretos"; era "um cavalheiro elegante" dono de "uma forte e
bela voz com que encantava as damas e um ar grave tingido de saudade: a
melancolia pré-romântica adicionava-se aos seus atrativos" [Andlau, 1979:
16].
Apaixonada
pelo jovem português, Madame de Staël esperava encontrar nele um porto seguro e
fiel para ser correspondida no seu amor. Grandes frustrações interiores ela
tinha sofrido recentemente de Benjamin Constant e de outros amantes ilustres
como Narbonne, Ribbing, François de Pange, Monti. Uma das biógrafas da nossa escritora
escreve a respeito: "O lugar onde eles se encontram contribui para a
exaltação dos sentimentos: eles caminham ao luar em Roma e os cursos
arqueológicos para o romance projetado feitos em companhia de Humboldt, de
Alborghetti e de outros, são alegres passeios. A vida eterna converter-se-á no pano de fundo ideal para um romance de
amor. O herói apareceu: Eu vos amei e tudo se iluminou para mim",
frisa Beatrix d'Andlau [1979: 18], citando a apaixonada carta que Madame de
Staël escreveu em maio de 1805 ao seu jovem amante.
Paixão
não correspondida, pelo menos na intensidade com que a grande escritora amou o
jovem dom Pedro, de quem se poderia dizer as palavras que Mathieu de
Montmorency, fiel amigo da nossa autora, escreveu de Ribbing: "Eis um
homem que deve ser colocado na categoria dos que não sabem amar" [cit. por
Andlau, 1979: 18]. O certo é que dessa intensa relação ficou um belo
testemunho: a correspondência entre Madame de Staël e dom Pedro de Souza
[Staël-Souza, 1979].
Após
o sucesso obtido com a publicação de Corinne e as
reações adversas do governo francês, Madame de Staël não se sentiu plenamente
segura na sua residência de Coppet. Em 1808 viajou para Alemanha, a fim de
terminar o livro que tinha esboçado acerca da cultura germânica. Em Viena a
nossa autora teve oportunidade de conhecer o general holandês Dirk van
Hogendorp, ajudante-de-ordens de Napoleão, que se referiu a ela de forma
depreciativa nas suas Memórias, escrevendo o seguinte:
"Madame de Staël, querendo ser sempre sábia e profunda, alambicava suas
expressões e enrolava suas frases até que parecia ter esquecido o que queria
dizer. Era a celebridade o que queria, e a qualquer preço, por todos os meios.
E Paris, o mais belo teatro do mundo para os talentos, o centro da glória, esse
era o lugar onde ela queria brilhar" [apud Mélon 1996: 83]. Valha apenas
uma anotação marginal em relação a Hogendorp: após a derrota definitiva de
Napoleão, o general holandês radicou-se no Brasil, onde passou a viver como
eremita na Floresta da Tijuca, no Rio de Janeiro, onde morreu em outubro de
1822 [cf. Mélon, 1996: 191].
De
Viena Madame de Staël escreveu ao antigo amigo Talleyrand, tratando de que ele
intercedesse junto ao Imperador, para que lhe fosse paga a vultuosa soma que
tinha Necker emprestado ao Rei da França, Luís XVI. A carta estava cheia de
elegante ironia em relação ao ingrato amigo a quem a nossa autora tinha
favorecido na sua carreira política e que olimpicamente passou a ignorá-la
depois de desencadeada a perseguição de Bonaparte.
Na
missiva, datada em abril de 1808, Madame de Staël frisava: "Tenho pedido
ao meu filho para ir ao vosso encontro e vos solicitar franca e simplesmente
que vos interesseis na liquidação dos 2 milhões (de libras) que constituem mais
da metade da nossa fortuna e da herança dos meus filhos. É uma dor cruel para
mim pensar que eu não cuido da minha família, que eles não receberão o
pagamento se amanhã eu não mais existir; pois esta dívida tem um caráter tão
sagrado que as prevenções do Imperador contra mim são as únicas que podem
impedir que ela seja paga (...). A vós que tudo adivinhais, tenho-vos dito o
suficiente sobre este assunto. Vós tinhais-me escrito há treze anos, da América: Se
eu permanecer mais um ano aqui, morro. Eu poderia dizer outro tanto em
relação à minha permanência no estrangeiro: eu sucumbo. Adeus (...). Não sei
terminar senão desse jeito ao falar com vós. Necker de Staël" [apud
Larousse, 1865: 1047].
Talleyrand
(assaz ingrato, como foi frisado, para com a sua antiga protetora que o tinha
guindado ao Ministério) fez ouvidos moucos ao pedido da nossa autora [cf.
Cooper, 1945: 65-69]. Madame de Staël somente obteria o pagamento da dívida no
período da Restauração. Pôde, contudo, regressar sem temor à antiga residência
de Necker.
A
respeito das atividades que se desenvolviam ali sob a inspiração e o comando da
nossa autora, escreveu Saint-Beuve o seguinte testemunho: "A vida de
Coppet era uma vida de castelo. Reuniam-se ali, com frequência, até trinta
pessoas, entre estrangeiros convidados e amigos. Os mais habituais eram
Benjamin Constant, (...) Auguste Wilhelm de Schlegel, Monsieur de Saubran, (...)
Sismondi, (...) Bonstetten, os barões de Voigt, de Balk, etc. Cada ano
reuniam-se ali, uma ou mais vezes, (...) Matthieu de Montmorency, (...) Prosper
de Barante, o príncipe Augusto da Prússia, a beleza célebre chamada por Madame
de Genlis com o nome de Athenais (Madame Récamier), um número significativo de
intelectuais da Alemanha ou de Genebra. As conversas filosóficas e literárias,
sempre picantes ou elevadas, começavam por volta das onze horas, ao ensejo do
almoço, e eram retomadas no período entre o jantar e a ceia, que tinha lugar às
onze da noite, ou estendiam-se até mais tarde, por volta da meia-noite. Nessas
sessões Benjamin Constant (....) apresentava-se a nós, jovens, (conforme Madame
de Staël o proclamava sem prevenções) como o primeiro espírito do mundo. Ele era
certamente o primeiro dos homens distintos. Pelo menos o espírito dele e o de
Madame de Staël acoplavam-se sempre e estavam conscientes disso. Nada, segundo
as testemunhas, era tão fervilhante e superior quanto a conversação que se
desenvolvia nesse círculo seleto. Os dois tinham nas mãos, por assim dizer, a
raqueta mágica do discurso e se passavam durante horas, sem jamais falhar, a
bola de mil pensamentos entrecruzados" [cit. por Larousse, 1865: 1047].
Além
das conversas intelectuais, em Coppet tinham lugar divertimentos cultos. Eram
representadas tragédias de Voltaire, muito apreciadas por Madame de Staël, ou
peças especialmente compostas por ela ou pelos seus amigos. Esses escritos eram
impressos em Paris, a fim de que todos pudessem seguir mais fielmente o
assunto. Havia grande cuidado com o texto, chegando ao extremo de serem
impressas novas cópias, entre uma sessão e outra, caso houvesse lugar a
correções. A poesia também encontrou em Coppet uma atenta acolhida. Zacharias
Werner recitou ali vários dos seus dramas. O poeta dinamarquês Oehlenschäger
teve também a oportunidade de declamar ali os seus poemas.
Em
1810 Madame de Staël arriscou-se a ir incógnita a Paris, a fim de tratar da
publicação do seu livro De L'Allemagne [cf. Staël
1968], ao qual tinha dedicado os seus esforços intelectuais desde 1803. A nossa
autora tinha sido sensibilizada em face da cultura alemã por um velho amigo
suíço, Jacques-Henri Meister, que frequentou a casa de seus pais em Paris [cf.
Grubenmann, 1954: 59-68].
O
que significou esta incursão na cultura alemã para a nossa autora? Simone
Balayé responde: "Ao se iniciar na literatura alemã ela descobre ali, como
entre os Ingleses, o nexo com a natureza e o povo, as tradições nacionais, o
poder do sentimento. Tudo quanto ela amava em Rousseau, encontrará de novo na
Alemanha. Assim, ela permanecia fiel ao espírito e à tradição do século XVIII,
ameaçado na França de todos os lados, bem como por outra parte à visão moral e
religiosa que ela tinha herdado de seu pai e ao ideal da liberdade ao qual
muitos renunciavam. Fazendo isso, ela permanecia a salvo das posições
extremadas da filosofia materialista francesa, aspecto do século XVIII que ela
renegava, e ficava a salvo também da reação católica. Mas a sua fidelidade às
Luzes também a preservaria das posições mais avançadas dos românticos
alemães" [Balayé, 1968: 22-23], notadamente no que tange aos aspectos de
irracionalismo que a nossa autora criticará neles, em Schlegel de maneira
particular.
De
L'Allemagne representou, no contexto do
pensamento francês, um ajuste de contas do espiritualismo moderado em face do
sensualismo de Condillac e dos Ideólogos. Em que pese o fato da influência
recebida inicialmente deles por Madame de Staël, no entanto a nossa autora, na
altura da elaboração da sua obra sobre a cultura alemã, já tinha amadurecido
intelectualmente o suficiente como para fazer uma crítica fundamentada ao
excessivo materialismo da ética utilitarista que animava os Ideólogos. A moral,
no sentir destes, reduzir-se-ia simplesmente a um cálculo de interesses.
Ora,
pensava Madame de Staël, a questão moral não poderia ser reduzida apenas a esse
frio e materialista cálculo. Era necessário lhe dar alicerces mais fortes e
acordes com a herança cristã. Encontrou no pensamento de Kant a fonte de que
poderia se nutrir na sua crítica ao utilitarismo. A nossa autora ficou
verdadeiramente impressionada com a leitura da obra do autor da Crítica
da Razão Pura. Eis a apresentação que dele fazia: "Kant viveu até
uma idade muito avançada, não tendo jamais saído de Königsberg. Foi lá, no meio
do gelo do Norte onde passou a sua vida inteira a meditar sobre as leis da
inteligência humana. Uma paixão infatigável pelo estudo fazia-o adquirir
conhecimentos sem número. As ciências, as línguas, a literatura, tudo lhe era
familiar. E sem procurar a glória, da qual gozou muito tardiamente, não
conhecendo senão na sua velhice o burburinho do renome, contentou-se com o
prazer silencioso da reflexão. Solitário, contemplava a sua alma com
recolhimento. O exame do pensamento dava-lhe novas forças para defender a
virtude, e embora jamais se misturasse com as paixões ardentes dos homens,
soube forjar armas para aqueles que seriam chamados a combatê-las" [Staël,
1968: II, 127].
A
partir da meditação kantiana, considerava Madame de Staël, seria possível
fundamentar uma moral na interioridade do sujeito, a fim de substituir os
princípios utilitaristas alicerçados na exterioridade dos interesses. Eis a
forma em que Kant veio em seu socorro para essa empreitada, segundo nossa autora:
"A filosofia materialista entregava o entendimento humano ao império dos
objetos exteriores, a moral ao interesse pessoal e reduzia o belo ao agradável.
Kant quis restabelecer as verdades primitivas e a atividade espontânea na alma,
a consciência na moral e o ideal nas artes" [Staël, 1968: II, 128].
Ora,
considerava Germaine, o pensador alemão fez essas três coisas, respectivamente,
na Crítica da Razão Pura, na Crítica da Razão
Prática (e "nos diferentes escritos que ele compôs sobre a
moral") e na Crítica do Juízo. Se detendo no que tange
à moral kantiana, Madame de Staël frisava que "é o sentimento que nos dá a
certeza da nossa liberdade e essa liberdade é o fundamento da doutrina do
dever. Pois, se o homem é livre, ele deve se dar a si mesmo os motivos todo-poderosos
que combatem a ação dos objetos exteriores e libertam a vontade do egoísmo. O
dever é a prova e a garantia da independência mística do homem" [Staël,
1968: II, 135].
Mas
voltemos às aventuras da publicação de De l'Allemagne. A
polícia do Imperador ficou sabendo e a edição de dez mil exemplares foi
apreendida e destruída. A nossa autora somente conseguiria ver o seu livro
editado três anos depois, em Londres. Esta obra constituiu, depois de De
la Littérature, a mais importante criação literária de Madame de Staël,
pelo fato de ter oferecido aos leitores franceses um quadro completo da
filosofia e da literatura de além Reno, que até então eram absolutamente
desconhecidas do grande público.
A
propósito, escreveu o crítico Demongeot: "Na época em que apareceu, a
literatura alemã era ainda para nós um mundo desconhecido, mais ainda, um
universo objeto de desprezo e de piadas. Voltaire atribuía aos alemães mais
consonantes do que pensamentos. Madame de Staël tomou uma gloriosa iniciativa.
Ela foi a primeira que ousou penetrar nessa floresta tenebrosa e não somente
entrou antes do que os outros, mais ainda assinalou o caminho a seguir, com
muita mais fidelidade à verdade do que o fizeram os que vieram depois. (...).
Em De L'Allemagne, contudo, eleva-se por cima dela mesma,
superando os preconceitos franceses e renunciando ao ponto de vista sensualista
da filosofia do século XVIII. Esse pode ser o maior serviço que este espírito
generoso prestou à França e à filosofia. A esfera em que viviam Goethe,
Schiller, Kant e Hegel abriu-se aos nossos olhos. Se a autora não compreendeu
sempre esses grandes homens, espalhou pelo menos o desejo de conhecê-los. Os
seus erros são menos numerosos do que se pode dizer. O instinto do verdadeiro e
do belo suprem, nela, a imperfeição necessária dos conhecimentos" [apud
Larousse, 1865: 1047].
Após
a destruição do seu livro, Madame de Staël foi confinada em Coppet por ordem de
Napoleão, tendo os seus amigos sido proibidos de ir visitá-la. Aqueles que
ousaram desobedecer essa proibição, como foi o caso de Madame Recamier e de
Matthieu de Montmorency, foram exilados. Em 1812, contudo, a nossa autora
conseguiu driblar a polícia imperial e percorreu vários países, indo até a
Polônia e a Rússia, reacendendo em todas partes a animosidade contra Napoleão.
De Londres regressou à França, após a abdicação de Napoleão em 6 de abril de
1814 [cf. Blaeschke, 1998: IX-XIX].
Madame
de Staël tinha conhecido na Inglaterra Luís XVIII e ela enxergava nele o homem
capaz de dotar a França da monarquia constitucional à inglesa, que tinha sido o
seu sonho no início da Revolução de 1789. Mas ela conhecia, também, esses
emigrados que voltavam com ele, cheios de arrogância e autossuficiência.
"Eles corromperão os Bourbons, frisava ela". O que, de fato, não
tardou em acontecer. Durante os Cem Dias, Madame de Staël retirou-se à Suíça.
Napoleão fez-lhe saber que poderia voltar a Paris e lhe acenou com o pagamento
da dívida que o Estado Francês tinha contraído com o seu pai. Ela respondeu:
"Napoleão passou por cima da Constituição e de mim ao longo de 12 anos e
não será agora que ele vai nos amar, a mim e a ela, com maior intensidade".
A
nossa autora tinha casado, em 1810, em segundas núpcias, com John Rocca, jovem
oficial suíço a serviço da França. Em 1816 ele caiu doente em Pisa e ela viu-se
obrigada a partir para essa cidade a fim de cuidar do marido. De regresso a
Paris, Madame de Staël veio falecer nesta cidade, em 14 de julho de 1817.
Saint-Beuve dá o seguinte testemunho acerca dos últimos anos de Madame de
Staël: "A amargura que lhe causou a destruição inesperada do seu livro (De
L'Allemagne) foi grande. Seis anos de estudos e de ilusões aniquilados,
o recrudescimento da perseguição no momento em que ela tinha necessidade de uma
trégua, além de outras circunstâncias contraditórias e duras deram ensejo,
nessa época, a uma crise violenta, uma prova decisiva que a lançou sem volta no
que tenho denominado de anos sombrios. Até então, mesmo as tempestades tinham
deixado lugar para ela desfrutar de instantes luminosos, de pequenas alegrias
e, segundo a sua expressão tão graciosa, respirar um ar escocês na sua vida.
Mas, a partir de então, tudo virou mais áspero. A juventude, em primeiro lugar,
essa grande e fácil consoladora, foi-se embora. Madame de Staël tinha pavor
diante do avanço da idade e da idéia de chegar à velhice. Um dia em que ela não
dissimulava esse sentimento perante Madame Suard, esta lhe respondeu: Vamos, então vós sabereis ocupar vosso
lugar, sereis uma velha muito simpática. Mas ela tremia diante desse
pensamento. A palavra juventude tinha um verdadeiro encantamento musical aos
seus ouvidos. (...). Estas simples palavras: nós éramos jovens então, enchiam os seus olhos de lágrimas. (...).
O ar escocês, o ar brilhante do começo rapidamente converteu-se em hino grave,
santificante, austero " [apud Larousse, 1865: 1048].
Foram
publicados postumamente os seguintes livros da nossa autora: Considérations
sur la Révolution Française (1818) [cf. Staël, 2000], Essais
dramatiques (1821), Dix années d'exil (1821)
[cf. Staël, 1996a] e Oeuvres inédites (1836).
Chateaubriand, em Mémoires d'Outre-Tombe, registrou com
traços magistrais os últimos dias de Madame de Staël, salientando a grandeza da
sua personalidade: "Foi numa dolorosa época para a ilustração da França
quando encontrei de novo Madame Récamier, no tempo em que ocorreu a morte de
Madame de Staël. Tendo regressado a Paris depois dos Cem Dias, a autora
de Delphine ficou doente; eu a tinha visto de novo na
sua casa e na residência da duquesa de Duras. Tendo piorado aos poucos o seu
estado de saúde, foi obrigada a ficar de cama. Numa manhã eu tinha ido à sua
casa na rue Royale; os postigos das janelas estavam semifechados; o leito,
próximo da parede do fundo do quarto, não deixava senão uma estreita passagem à
esquerda. As cortinas, recolhidas nos trilhos, formavam duas colunas aos lados
do travesseiro. Madame de Staël, sentada, estava apoiada em almofadas.
Aproximei-me e quando o meu olho se foi aos poucos acostumando à obscuridade,
distingui a doente. Uma febre ardente acendia as suas faces. O seu belo olhar
encontrou-me nas trevas e ela me disse: Bonjour, my dear Francis. Eu
sofro, mas isso não me impede de amar você. Ela estendeu a sua mão, que
segurei e beijei. Levantando a cabeça, percebi no borde oposto da cama, na
passagem, alguma coisa que se levantava branca e magra: era Monsieur de Rocca,
o rosto pálido, as faces encovadas, os olhos turvos, a tez indefinível. Ele
morria. Nunca o tinha visto e jamais tornei a vê-lo. Ele não abriu a boca.
Inclinou-se ao passar na minha frente; não se escutava o ruído dos seus passos.
Ele se afastou à maneira de uma sombra. Parado um momento na porta, (...)
voltou-se em direção ao leito fazendo menção de não se afastar de Madame de
Staël. Esses dois espectros que se entreolhavam em silêncio, um em pé e pálido,
outro sentado e colorido com um sangue prestes a descer de novo e a se congelar
no coração, faziam arrepiar. Poucos dias depois, Madame de Staël mudou de
residência. Ela convidou-me a jantar na sua casa, na rue Neuve-des-Mathurins.
Eu compareci. Ela não estava no salão e não pôde, efetivamente, comparecer ao
jantar. Mas ela ignorava que a hora fatal estava tão próxima. (...). Madame de
Staël morreu. O último bilhete que endereçou a Madame de Duras estava escrito
com grandes letras irregulares como as de uma criança. Uma palavra afetuosa
encontrava-se ali para Francis. O talento que expira leva consigo mais do que o
indivíduo que morre. É uma desolação geral que golpeia a sociedade. Cada um, ao
mesmo tempo, sofre a mesma perda. Com Madame de Staël acabou uma parte
considerável do tempo que tenho vivido. Tamanhas são as fendas que produz num
século uma inteligência superior que desaba. Elas não mais se fecham. A sua
morte produziu em mim uma impressão particular, à qual se misturou uma espécie
de estonteamento misterioso (...)" [Chateaubriand, 1951: II, 601-602].
Concluo
este breve esboço biobibliográfico citando a síntese feita por Florence
Lotterie acerca da obra da grande escritora: "Herdeira das Luzes, Madame
de Staël é também filha da Revolução (...). A literatura é o instrumento da
criação de um espírito nacional e desempenha a função de elo de união entre os
imperativos de difusão das luzes e da realização de uma sociedade livre, ou
seja, republicana. O reconhecimento da utilidade patriótica dos escritores
assinala os progressos da civilização, mas na regulação necessária dos modos de
transmissão do saber e do apetite democrático. Não se trata mais, efetivamente,
de progressos feitos não importa por quem ou como. Não se poderia concluir sem
lembrar que o magistério literário é o de uma elite e a república staëliana
consiste numa aristocracia do mérito. Os ideais ilustrados do século XVIII
acham-se, pois, ao mesmo tempo alargados numa perspectiva progressista, que
recusa por sua vez o espectro da decadência e as abstrações normativas da
história conjectural, em benefício do fato civilizador. Acham-se também
superados esses ideais pelo caráter programático de uma perfectibilidade
convertida em princípio fundador da vontade de agir, em prol da regeneração
política. Acham-se temperados pela dúvida melancólica e confirmados na sua
prudência elitista" [Lotterie, 2000: 22].
Napoleão Bonaparte (1769-1821), Imperador. Detalhe da tela de Jean-Auguste Dominique Ingres (1780-1867) |
II
- A crítica de Madame de Staël ao absolutismo napoleônico.
A
variável política, para Madame de Staël, era suscetível de duas abordagens:
intuitiva e racional. O ponto de partida seria o primeiro. A nossa autora
acreditava numa espécie de "lógica emocional" que lhe possibilitaria
pressentir o rumo dos acontecimentos. Seria uma espécie de inteligência sentiente, à maneira zubiriana. A nossa
autora vinculava essa modalidade de conhecimento ao senso comum da filosofia
escocesa. Eis o que afirmava em Dix années d'exil (obra escrita por
Madame de Staël entre 1803 e 1813), quando se aproximava a guinada napoleônica
rumo ao absolutismo imperial: "Eu estava na casa do meu pai em Coppet,
quando soube que o general Bonaparte tinha passado em Lyon regressando do
Egito, e que tinha sido acolhido com entusiasmo. Experimentei nessa notícia uma
impressão de dor que me faria crer nesse instinto do futuro, nessa segunda via
de que falam os Escoceses, e que não pode ser mais do que a luz do sentimento,
independente daquela do raciocínio" [Staël, 1996a: 67].
Esse
sentimento, que crescia com o passar do tempo, era o de uma tirania à espreita,
que se aproximava passo a passo, galgando progressivamente o poder e ameaçando
a liberdade e a dignidade moral. A respeito, escrevia a nossa autora:
"Como jamais consegui pensar em nenhum interesse político desvinculado do
amor à liberdade, cada dia eu estava mais aflita com a revolução de 18
Brumário, cada dia eu apreendia mais um traço de arrogância ou de astúcia
naquele que se apossava gradualmente do poder. Pensava comigo mesma para tentar
combater, na medida do possível, o sentimento que me dominava, mas ele renascia
sempre, apesar de mim. Eu via se aproximar a tirania ora a passos de lobo, ora
com a cabeça erguida, mas parecia-me que de uma hora para outra estaríamos mais
oprimidos e que bem cedo toda a vida moral estaria encadeada" [Staël,
1996a: 75].
Incomodava
particularmente a Madame de Staël a retórica bonapartista, composta por um
discurso populista alicerçado na ameaça das armas. A Revolução de 1789 tinha
nivelado a Nação francesa, quebrando os elos entre as antigas ordens, e era
mais fácil agora ao futuro amo da Europa tomar posse daquela. Em relação a esse
ponto, a nossa autora escrevia: "A Revolução tinha feito tabula rasa em
face de Bonaparte e ele só tinha raciocínios para combater, espécie de arma com
a qual ele se sentia muito à vontade e à qual ele opunha, quando lhe convinha,
uma espécie de imbróglio veemente, que parecia muito lúcido com o auxílio das
baionetas, nas quais ele poderia se apoiar" [Staël, 1996a: 76].
Não
deixava de destacar Madame de Staël a responsabilidade dos teóricos liberais
tradicionais, como o abade Sieyès, autor do famoso panfleto que fez deslanchar
o movimento revolucionário de 1789, intitulado: Qu'est-ce que le Tiers État?
(O que é o Terceiro Estado?) [Cf. Sieyès, 1973]. Ora, eles seriam os diretos
responsáveis pela ascensão napoleônica, tendo lhe servido pronto o arrazoado de
que o general e futuro Primeiro Cônsul necessitava para se firmar no poder
absoluto. Em relação a este ponto, escrevia a nossa autora: "O general
Bonaparte tomou bem rápido do sistema de Sieyès aquilo de que ele precisava, ou
seja, a anulação da eleição de deputados pela nação. Sieyès tinha imaginado
listas de elegíveis, nas quais o Senado poderia escolher os representantes do
povo, sob o nome de tribunos e legisladores. Sem dúvida, Sieyès não tinha
pensado nessas instituições para estabelecer a tirania na França. Ele tinha
oposto contrapesos que poderiam talvez fazê-la balançar, mas Bonaparte, sem se
incomodar com os contrapesos, apoderou-se da palavra decisiva: nada de eleição.
A metafísica de Sieyès servia de véu, ou melhor de cortina de fumaça para
ocultar a força positiva que Bonaparte queria adquirir. Sieyès tinha dito: nada
de eleição. Não era, pois, o militar, mas o filósofo mesmo que condenava esse
direito, o único com ajuda do qual podemos fazer entrar a opinião pública no
governo. São as águas novas que vivificam este, enquanto que os corpos permanentes
se assemelham aos estanques cujas águas estagnadas podem mais facilmente serem
corrompidas. É preciso numa monarquia e talvez numa república também, que haja
magistrados hereditários, sábios vitalícios, toda uma aristocracia
conservadora, mas uma parte do governo, aquela que aprova os impostos, deve
emanar diretamente da nação" [Staël, 1996a: 76-77].
Chateaubriand
sintetizou as críticas que um intelectual independente poderia endereçar ao
regime de Napoleão: ele governava para a sua glória, não para o seu povo. A sua
administração só se preocupava com números, não com pessoas. Bonaparte teria
sido, talvez, a primeira encarnação do tecnocrata frio, misturado ao guerreiro
implacável. A propósito, frisava Chateaubriand: "A administração de Bonaparte
tem sido elogiada: se a administração consiste em números, se para bem governar
é suficiente saber quanto trigo, quanto vinho, quanto azeite produz uma
província, qual é o último cêntimo que pode ser roubado, o último homem que
pode ser preso, certamente Bonaparte era um excelente administrador. É
impossível organizar melhor o mal, colocar mais ordem na desordem. Mas se a
melhor administração é a que deixa o povo em paz, que alimenta nele sentimentos
de justiça e de compaixão, que é zelosa em preservar o sangue dos homens, que
respeita os direitos dos cidadãos, as propriedades e as famílias, certamente o
governo de Bonaparte era o pior de todos os governos" [Chateaubriand,
1966: 76].
De
forma semelhante a Chateaubriand, Madame de Staël reconhecia um único ponto
positivo na administração napoleônica: aumentou as riquezas da França. Mas a
finalidade é que era ruim: para melhor se apossar do que era de todos! A
respeito, escrevia a nossa autora: "O que havia de evidente era, de longe,
a melhora das finanças e a ordem restabelecida em muitas áreas da
administração. Napoleão era obrigado a passar pelo bem da nação para chegar à
desgraça dela. Era preciso que ele juntasse as forças da nação a fim de melhor
se servir delas para a sua ambição pessoal" [Staël, 1996a: 101]. De
positivo o déspota só tinha a aparência. Se buscava acrescer a riqueza da
França era para melhor roubar os cidadãos mediante o confisco e os impostos
esmagadores. A sua norma de comportamento era a negação da moral e se pautava
unicamente pela vontade de poder esmagando a dignidade das pessoas. "O seu
grande talento consiste – frisava Germaine - em amedrontar os fracos e tirar
proveito dos homens imorais. Quando ele encontra a honestidade em algum lugar,
poder-se-ia dizer que os seus artifícios sofrem um grande desconcerto, como
quando o diabo é derrotado nas suas maquinações mediante o signo da cruz"
[Staël, 1996a: 99].
A
estratégia bonapartista para a conquista total do poder seguiu esse imperativo
de utilizar a fraqueza ou a falta de caráter dos outros. Isso se manifestou na
forma em que Bonaparte dominou, durante o Consulado, os dois colegas que junto
com ele exerciam o poder, os Cônsules Cambacérès e Lebrun. A propósito da forma
em que cooptou o primeiro, escrevia Madame de Staël, salientando, outrossim, a
engenhosidade do déspota, que conseguia pôr a seu serviço a inteligência
alheia: "Ele escolheu com sagacidade notável os dois cônsules que lhe
tinham sido dados de presente para mascarar a sua unidade despótica. Um,
Cambacérès, tinha aprendido a se submeter durante a Convenção. Jurisconsulto de
notável erudição, tinha redigido os decretos arbitrários dos facciosos de forma
tão metódica, como se ele tivesse a pretensão de consolidar a código mais justo
e amadurecido. Ele me disse um dia, conversando comigo: Quando foi proposto na
Convenção e estabelecimento do Tribunal revolucionário, vi em seguida os males
que daí decorreriam e, no entanto, o decreto foi aprovado por unanimidade. Ele
era então membro da Convenção e contribuiu com o seu sufrágio para essa mesma
unanimidade (...). Bonaparte o identificou em seguida como o seu colega de
trapaças e como o seu instrumento apropriado. Tudo quanto ele buscava e não
cessou de buscar nos homens, era o talento e a ausência de caráter"
[Staël, 1996a: 77-78].
Uma
vez submetidos os mais diretos colaboradores na cúpula do poder, só restava ao
déspota escravizar o resto da Nação. Como? De forma semelhante a como Max Weber
considerava que se reforça o poder do governante nos Estados patrimoniais:
destruindo sistematicamente todo sentimento de dignidade presente na sociedade.
A respeito, escrevia Madame de Staël: "O exército político de Bonaparte
compunha-se de trânsfugas dos dois partidos. Uns lhe sacrificavam as suas
obrigações para com a família dos Bourbons e os outros o seu amor à liberdade.
Em todos os casos, não deveria estar presente em seu reinado uma forma
independente de pensar, pois ele podia ser o rei dos interesses, mas jamais o
das opiniões e, pela sua situação assim como pelo seu caráter, ele sufocava ao
mesmo tempo tudo que houvesse de nobre na realeza e na república, pois aviltava
ao mesmo tempo nobres e cidadãos. Quando todo o seu estabelecimento
constitucional foi completado, um grande homem pronunciou acerca dessa ordem de
coisas uma dessas palavras que ecoam pelos séculos afora: É uma monarquia - frisou M. Pitt - à qual só faltam a legitimidade e os limites. Ele poderia adicionar
que não havia monarquia verdadeiramente legítima senão aquela que tem
limites" [Staël, 1996a: 78-79].
Madame
de Staël considerava que Napoleão desenvolveu uma estratégia verdadeiramente
moderna - forma mais agressiva de maquiavelismo - tendo dado ensejo a um
processo que contava com cinco variáveis: 1- cênica ou estetizante (em que o
despotismo montava o seu próprio palco, que realçava as figuras que aceitassem
aparecer como atores a serviço do tirano), 2 - cultural (que tinha como
finalidade o controle sobre a opinião pública, mediante o amordaçamento da
imprensa e a censura sobre as publicações), 3 - política (mediante o terror
policial que esmagava qualquer resistência civil), 4 - religiosa (mediante a
submissão da estrutura da Igreja aos seus anseios absolutistas) e 5 - imperial
(através da submissão imposta às nações estrangeiras, mediante as guerras de
conquista).
Essas
cinco variáveis foram estudadas por Madame de Staël na sua obra Dix
années d'exil. A nossa autora ergue-se assim, como precursora da obra
de Alexis de Tocqueville, na parte que corresponde à análise crítica do
absolutismo (que o autor de De la démocratie en Amérique
desenvolveu na sua última obra: L'Ancien Régime et la Révolution).
Destaquemos apenas alguns exemplos de cada uma das variáveis apontadas.
1)
Variável cênica ou estetizante. - A nossa autora considerava que o
despotismo napoleônico se inseriu no complexo cultural estetizante que já
existia no imaginário francês, tornando os atores políticos comediantes que
desempenhavam uma função no palco. O segredo da teatralidade bonapartista
consistiu em democratizar as expectativas de ter intimidade com o poder, no
sentido de que cada cidadão poder-se-ia considerar apto a ser confidente do
déspota. A respeito dessa manobra culturológica, escrevia Madame de Staël:
“Eram distribuídos folhetos nos quais se dizia que Bonaparte não queria ser nem
Monk, nem Cromwell, nem sequer César, porque esses eram, afirmava-se, papéis já
representados, como se os acontecimentos deste mundo pudessem ser considerados
assuntos de tragédia que não é preciso imitar dos antepassados. Mas o que
interessava não era persuadir realmente, mas sugerir àqueles que queriam ser
enganados uma frase que pudessem repetir a qualquer um. A doutrina de Maquiavel
fez tais progressos na França depois de um certo tempo, que toda a vaidade
francesa se transporta ao terreno da habilidade política. Pode-se colocar a
nação toda inteira, por assim dizer, no segredo da comédia: ela sentir-se-á
orgulhosa de se sentir confidente. Um cabeleireiro dizia, quando Bonaparte
tratava com o Papa: Eu não acredito em nada, mas é necessária a religião para o
povo. Cada indivíduo goza ao se considerar parte do embuste que é feito a
todos” [Staël, 1996a: 80].
2)
Variável cultural. - Bonaparte pôs em execução uma
sistemática política de censura à imprensa e às obras literárias. O peso da
repressão desabava, impiedoso, sobre todo aquele que ousasse transgredir, ou
seja, esboçar uma crítica ao déspota e aos seus representantes. Madame de Staël
sofreu em carne própria essa repressão, ao publicar o seu livro De
L’Allemagne. O ditador sabia que a obra da nossa autora não se limitava
ao estudo especulativo do pensamento alemão. O significado desta era muito mais
profundo. Se a alma das nações é a sua cultura, uma obra acerca da cultura
alemã significava que o déspota, ao invadir os principados ao norte do Reno,
não tinha conseguido submeter o espírito altivo desse povo. Daí a sanha com que
a polícia do Imperador destruiu, em 1810, a mencionada obra de Madame de Staël.
Em
relação à censura imposta à imprensa, escrevia a nossa autora: “O grande número
de jornais que existia na França foi reduzido, de um momento a outro, a
quatorze por uma simples portaria do Conselho de Estado e, a partir de então,
estabeleceu-se esse poder terrível das folhas periódicas que repetiam todas a
mesma coisa cada dia e que não sofriam a mais mínima sombra de crítica de
nenhum gênero. A descoberta da imprensa passava como a salvaguarda da
liberdade, posto que até então jamais tinha sido vista a serviço da autoridade
de um déspota. Mas, assim como as tropas regulares têm sido bem menos
favoráveis que as milícias à independência europeia, seria necessário lamentar
a descoberta da imprensa, se daí se seguissem a subserviência dos jornais e a
vigência do princípio de que os jornalistas deveriam ser empregados e pagos
pelo governo” [Staël, 1996a: 82].
O
Imperador antecipou-se, aliás, aos grandes comunicadores do século XX, ao
encarar a nação como massa que poderia ser formatada de acordo com as
informações (certas ou erradas, pouco importava), que lhe fossem repetidas dia
e noite. Certamente Bonaparte ficaria ao lado de Goebbels nessa empresa, como o
precursor deste. A respeito deste ponto escreveu a nossa autora: “O sistema de
Bonaparte era avançar mês a mês, passo a passo, na carreira do poder. Ele fazia
espalhar com estardalhaço decisões que gostaria de tomar, a fim de sondar e ir
preparando desse modo a opinião. De ordinário, preferia que se carregasse as
tintas nas decisões que pretendia tomar, a fim de que, quando estas se
tornassem concretas, aparecessem como mais brandas ao público do que se temia”
[Staël, 1996a: 100].
3)
Variável política. - O terror policial foi a grande arma
de que Bonaparte fez uso para quebrar os laços de solidariedade na França e
assim governar absolutamente, sem nenhuma oposição. A nobreza recebeu um recado
quando o Imperador mandou fuzilar, sem prévio aviso, o duque de Enghien, um dos
mais tradicionais representantes da aristocracia. O longo exílio a que foi
submetida nossa autora foi, de outro lado, uma advertência aos intelectuais
provenientes da burguesia. Se a filha de um ministro que foi adorado pelo povo
podia ser banida, ninguém no meio intelectual estaria seguro!
A
respeito do despotismo sem limites que se abateu sobre os franceses no período
napoleônico, escreveu Madame de Staël: “Os mais pobres como os mais ricos, os
mais desconhecidos como os mais célebres, as mulheres, as crianças, os velhos,
os sacerdotes, os conscritos tinham alguma coisa a pedir ao novo governo e essa
alguma coisa era a vida, pois não se tratava de dizer: Eu renunciarei em favor
de um déspota. Mas era necessário se resolver a jamais rever a pátria, a não
achar a menor parte das suas posses, se alguém caísse na desgraça do governo,
que tinha se reservado o direito de traçar a sorte de cada um, ou de quase
todos os habitantes da França. Essa situação escusa muito a nação, parece-me,
mas ela coloca a nu o torpe comportamento desses magistrados que, para
conservar o seu cargo, entregaram o destino de todos os seus concidadãos ao
Primeiro Cônsul” [Staël, 1996a: 81].
4)
Variável religiosa. - Neste terreno, como aliás no
concernente à vida política, a estratégia napoleônica consistiu em ir
lentamente colocando a religião na órbita do poder temporal. Ao ensejo da
negociação da Concordata que se seguiu à Constituição de 1800, o Primeiro
Cônsul simplesmente iniciou um processo de cooptação da religião católica, que
passou a girar ao redor dele como mais um sustentáculo do seu poder absoluto.
Se dizendo católico, fez, no entanto, com que a religião passasse a lhe servir.
Já no ato de coroação do Primeiro Cônsul como Imperador dos Franceses em 1804
ficou clara essa dimensão de cooptação do elemento religioso, quando na
basílica, na cerimônia religiosa que o sagraria, tirou a coroa das mãos do Papa
e a colocou na própria testa.
A
propósito dessa cooptação, escreveu a nossa autora: “A religião tinha ficado na
França numa grande anarquia depois da Revolução. O partido revolucionário a
considerava como destruída. O partido aristocrático a adotava como bandeira e,
o que era mais importante, um grande número de pessoas esclarecidas e golpeadas
pelas desgraças da Revolução buscavam reacender os raios da fé nos seus
corações. O Primeiro Cônsul, que jamais deixou de considerar nenhuma coisa
deste mundo senão em relação a ele, examinou a religião do ponto de vista da
autoridade que ela poderia lhe dar e sobretudo do obstáculo que ela poderia
oferecer, se ele não se impusesse para sufocar qualquer entusiasmo que ela
pudesse fazer nascer. Ele começou, pois, a negociação dessa Concordata que
deveria socavar lentamente toda religião sincera entre os homens. Ele percorria
neste terreno o mesmo caminho que seguiu em relação aos reinos que ele quis
arruinar. Não os destruiu como poderia fazê-lo, mas deixou cravado o machado na
árvore, a fim de fazê-los morrer com o passar do tempo. Exatamente isso
aconteceu com a religião da forma como ela foi restabelecida pela Concordata.
Era lembrada a ordem nas práticas religiosas como se se tratasse de um negócio
mal administrado. Mas o princípio da religião, ou seja, a sua independência em
face do poder temporal, era atacado radicalmente” [Staël, 1996a: 334-335].
5)
Variável imperial. - O projeto napoleônico foi o de
unificar toda a Europa ao seu redor, exercendo sobre os vários países
submetidos uma autoridade de ferro que impedia a expressão das liberdades ou a
manifestação das culturas nacionais. Daí a agressividade do Primeiro Cônsul e
logo do Imperador, em relação a uma mulher escritora que ousava desafiá-lo no
seu poder tirânico, escarafunchando nas fontes da cultura elementos que
poderiam fazer pensar na vitalidade das várias tradições europeias, a partir
das quais poder-se-ia acender o fogo do Volkgeist,
do espírito dos povos. O imperador mudou realmente a geografia da Europa, ao
ponto de que, como confessava Madame de Staël, para escapar da sua polícia, era
necessário ir até os confins do Continente, nos limites da Ásia.
Eis
o testemunho que dava a nossa autora, em relação à viagem que se viu obrigada a
empreender para fugir da perseguição napoleônica, indo até os confins da
Rússia: “A geografia da Europa napoleônica só se aprende de forma adequada na
desgraça. As voltas que era necessário dar para evitar o seu poder eram já de
quase duas mil léguas e agora, passando pela mesma Viena, era necessário ganhar
o território asiático para escapar por ali” [Staël, 1996a: 242-243].
Em
relação aos países dominados, frisava a nossa escritora: “Napoleão possui a
arte de tornar a situação dos países que se consideram a si próprios em paz de
tal forma infeliz, que toda mudança lhes é agradável e que, uma vez forçados a
dar homens e dinheiro à França, não sentem quase o inconveniente de serem
reunidos ao redor dela. Eles se dão mal, no entanto, pois nada há pior do que
perder o nome de nação e, como os males da Europa são causados por um só homem,
é necessário conservar com cuidado aquilo que pode renascer quando ele já não
mais exista” [Staël, 1996: 236].
A
nossa autora era consciente do preço que os seus concidadãos tiveram de pagar
para erguer o monumento ao despotismo napoleônico. A propósito, contava a
seguinte anedota: “Alguém me falou certa vez: Eis tudo restabelecido como antes
da Revolução. – Sim, respondi-lhe, tudo exceto dois milhões de homens que
morreram pela liberdade. Essas palavras impressionaram um general que as
repetiu como se fossem dele. O Primeiro Cônsul me reconheceu nessa expressão e
em algumas outras que foram repetidas pelo mesmo general, que conversava frequentemente
comigo. Deixando escapar expressões as mais violentas, ele disse com a sua
delicadeza ordinária para com as mulheres, que ele me faria cortar os cabelos e
me trancaria num convento” [Staël, 1996a: 335-336].
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