(O Prof. Doutor João Carlos Espada é diretor do Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica Portuguesa em Lisboa)
A revolução soviética, cujo
centenário alguns celebram amanhã, foi simplesmente a maior fraude intelectual
e moral do século XX.
Em
primeiro lugar, não se tratou de uma revolução popular, mas de um mero golpe
armado promovido por uma minoria fundamentalista que nunca convocou e respeitou
eleições livres.
Em segundo
lugar, não se tratou sequer de um golpe contra um regime despótico. O regime
czarista tinha sido deposto em Fevereiro desse mesmo ano de 1917. Um regime
constitucional parlamentar dava os seus primeiros passos na Rússia e preparava
eleições livres.
Por outras
palavras, a tão badalada ‘esperança emancipadora’ da revolução soviética
resumiu-se a uma sublevação armada para impedir a tentativa de consolidação de
uma democracia parlamentar na Rússia. Traduziu-se depois na criação de um
regime sanguinário que procurou exportar para a Europa o mesmo desrespeito
fundamentalista pelas regras imparciais do constitucionalismo democrático.
Esta
tentativa de exportação do fundamentalismo comunista acabou por gerar outros
fundamentalismos de sinal contrário: o nacional-socialismo e o fascismo. Todos
eles são expressão da mesma revolta primitiva contra a sociedade aberta e
pluralista — da qual todos eles inicialmente fizeram o seu principal inimigo. E
em comum desencadearam a II Guerra, em Setembro de 1939, através da invasão
combinada da Polónia pela Alemanha nazi e pela Rússia comunista.
Por que
motivo produziu o bárbaro regime soviético tanta admiração entre a
intelectualidade ocidental? É um mistério a que Raymond Aron, em 1955, chamou
de ‘ópio dos intelectuais’. Funda-se num conjunto de mitos que
muitos intelectuais ainda hoje recusam confrontar com os factos. A mais
devastadora crítica desses mitos comunistas e marxistas foi produzida por Karl
Popper em 1945, na sua obra A Sociedade Aberta e os Seus Inimigos.
O primeiro
desses mitos consiste na crença positivista em leis deterministas da história.
O comunismo seria o sucessor inevitável do capitalismo, assim como este
sucedera inevitavelmente ao feudalismo, e o feudalismo sucedera inevitavelmente
ao regime esclavagista e este ao chamado ‘comunismo primitivo’. Esta sucessão
inevitável resultaria do desenvolvimento dos meios e técnicas de produção e não
dependia das escolhas morais e políticas dos indivíduos — que apenas poderiam
atrasar ou acelerar o rumo predeterminado da história.
Esta foi a
‘teoria científica da história’, anunciada por Marx e Engels no seu ‘Manifesto
Comunista’ de 1848. Mas, perguntou Popper, se se trata de uma teoria
científica, como pode ser testada pelos factos? Em que condições futuras
poderia o não advento do comunismo refutar a teoria?
Nenhumas,
mostrou Popper, porque sempre que o comunismo falhar os crentes positivistas
poderão argumentar que se tratou de um recuo temporário — e que, no futuro, o
comunismo inevitavelmente triunfará. (Isto é precisamente o que dizem hoje os
comunistas quando confrontados com a queda do Muro de Berlim, em 1989, e a
implosão do comunismo soviético).
É como o
letreiro que anuncia ‘Amanhã a cerveja será gratuita’. Os clientes voltarão
todos os dias e todos os dias terão de pagar a cerveja. Mas o letreiro continua
certo porque cada dia será ‘hoje’ — e pode ser que ‘amanhã’ a cerveja seja
gratuita. Por outras palavras, disse Popper, a ‘visão científica’ da história
não passa de uma versão positivista de ‘profetismo oracular’.
Além
disso, mostrou Popper, todas as poucas previsões empiricamente testáveis
produzidas pelo marxismo foram refutadas pelos factos. Não se verificou a queda
tendencial da taxa de lucro nem a estagnação da inovação promovida pelas
empresas privadas, livres e descentralizadas. Não houve bipolarização entre
ricos e pobres, mas impressionante expansão das classes médias. Não foi impossível
reformar o sistema capitalista através do Parlamento — pelo contrário, foi
possível criar pacificamente fortes redes de segurança para todos e melhorar as
condições de trabalho de todos.
O mito das
‘leis da história’ foi refutado pelos factos. Dele sobrou o relativismo
niilista do ‘socialismo científico’. Esse niilismo foi a doença infecciosa do
século XX, que produziu milhões de vítimas de governos totalitários sem
escrúpulos — e sem vergonha.
Esse vírus
estava contido no chamado ‘socialismo científico’ de Marx e Engels. Ao
condenarem o que chamaram de ‘moralismo burgês’ do socialismo democrático e da
social-democracia, Marx e Engels deram alegada justificação ‘científica’ à
ausência de moral em política. A revolução comunista, disseram eles, não deve
ser apoiada por razões morais, mas por razões científicas — porque o comunismo
é o futuro inexorável.
Mas está
bem de ver que, mesmo que o comunismo fosse o futuro inexorável, isso não
constituiria razão moral para o apoiar. A menos que tivesse sido adoptada uma
premissa ‘moral’ que não está expressa nesse raciocínio: a premissa ‘moral’ de
que ‘só devemos apoiar causas vencedoras’. Esta foi na verdade a premissa não
dita que o chamado ‘socialismo científico’ adoptou — a premissa do culto do
poder sem restrições morais (que Nietzsche também espalhou, entre outras
clientelas).
Foi este
culto do poder sem restrições morais que deu lugar à política violenta dos
‘camaradas’ — uns de punho fechado, outros de braço estendido, todos aos gritos
estridentes contra o capitalismo democrático. Mas esse culto fundamentalista
foi derrotado pela tranquila resistência da civilização ocidental — fundada na
liberdade ordeira sob a lei e no Governo representativo que prestas contas ao
Parlamento.
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