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Capa do livro organizado por Paulo Mercadante sob o título: Constituição de 1988: o avanço do retrocesso (Rio de Janeiro: Rio Fundo Editora, 1990). |
A Constituição de 1988 completa 30 anos. Um período mais do que
suficiente para fazermos uma avaliação do seu papel no caminho da democracia
brasileira. A minha avaliação não é positiva. Foi mais o que não fizemos, à luz
da mencionada Carta, do que aquilo que poderíamos ter feito. Isso em
decorrência de que o seu texto somente ajudou a reforçar o Estado Patrimonial.
É lamentável reconhecermos isso. Mas é necessário.
Lembro-me de que, logo assim que foi promulgada a
Constituição, já se falava na necessidade de reformas substanciais à mesma. O
motivo: a Carta de 88, que foi denominada pelo saudoso Ulisses Guimarães de
“Constituição Cidadã”, somente tinha garantido direitos, não deveres. Esse
contexto de irrealismo tornou a Carta de 88, como diziam alguns estudiosos, a
“Constituição da ingovernabilidade”.
Colaborei num livro que alguns amigos organizaram com o
intuito de levantar os pontos que deveriam ser levados em consideração numa
revisão constitucional, que se mostrava necessária já no pouco tempo de
vigência da Carta de 1988. A obra, coordenada por Paulo Mercadante, tinha o
seguinte título, bastante provocativo, aliás: Constituição de 1988: O avanço do
retrocesso (Rio de Janeiro: Rio Fundo Editora, 1990, 164, p.).
Participaram da obra os seguintes autores: Paulo Mercadante (organizador, que
escreveu: “Uma introdução histórica”); José Guilherme Merquior (“Liberalismo e
Constituição”); Miguel Reale (“A ordem econômica liberal na Constituição de
1988”); Antônio Paim (“Organização e poderes do Legislativo”); Vicente Barreto
(“Dos direitos individuais e coletivos”); Ubiratan Borges de Macedo (“Os
princípios fundamentais da Constituição de 1988”); Wilton Lopes Machado (“O
avanço do retrocesso”); Ives Gandra da Silva Martins (“Partição de rendas
tributárias e finanças públicas”); Ricardo Lobo Torres (“A nova Constituição
financeira”); Oscar Dias Corrêa (“Do poder judiciário”); Roberto Campos
(“Razões da urgente reforma constitucional”); Diogo de Figueiredo Moreira Neto
(“Dois aspectos da Constituição de 1988”); José Carlos Mello (“Política
brasileira de Meio Ambiente”); o meu capítulo intitulava-se: “Estatismo,
marginalismo e Constituição”.
Desenvolverei neste texto os seguintes pontos: I – Duas
tradições perniciosas: marginalismo e estatismo. II - Estado e sociedade.
I – Duas tradições
perniciosas: marginalismo e estatismo.
A Constituição de Outubro de 1988 precisa ser reformada. Para
isso, faz-se necessário, primeiro, compreender os pressupostos culturais sobre
os que se alicerça o convívio político brasileiro. Dois pressupostos são
fundamentais: os representados pelas nocivas tradições do marginalismo e do
estatismo.
O vício do marginalismo foi identificado por Oliveira Viana
como a tentativa de modificar o comportamento do povo por decreto.
Inspirando-se no pensador argentino José Ingenieros, Oliveira Viana define
assim as condições sob as quais vinga um ideal: “O destino de um ideal, o êxito
de um ideal, não dependem nem da sua beleza, nem da sua grandeza; mas sim, da
sua conformidade com a vida (...)” .
Ora, considera o sociólogo fluminense, foi exatamente o contrário o que as
elites brasileiras sempre praticaram: a negação do direito costumeiro pela
legislação formal, conduzindo irremediavelmente à inoperância das Constituições
e das leis.
Particularmente alheia aos costumes políticos brasileiros foi,
no sentir de Oliveira Vianna, a Constituição de 1891, cujo idealismo
manifestar-se-ia na suposição de que conviria ao Brasil a adoção de um regime
federativo (que se baseava mais na admiração pessoal de Rui Barbosa pela
Constituição de Filadélfia, do que na consideração da nossa história). A adoção
do federalismo tout-court supunha que
todos os Estados estavam em pé de igualdade, sem enxergar as profundas
diferenças geográficas, climáticas, etnográficas, culturais, econômicas e
políticas existentes entre eles. Somente iriam progredir aqueles Estados que
contavam com uma aristocracia política organizada e numerosa (São Paulo, Minas
e Rio Grande do Sul).
Da sina apontada não escapa a Constituição de 1988, que
passou a exprimir, em muitos pontos, os confusos ideais dos seus formuladores,
mais do que as tendências reais da sociedade brasileira. A respeito, escreveu
com propriedade Paulo Mercadante: “A emoção e o açodamento, unidos numa
intersecção de nacionalismo e populismo, produziram uma Constituição que prima
pela idealidade. Um diploma ilusório por razões fortuitas, nascido sem o selo
do necessário. O descompasso entre os dois requisitos para um saldo positivo –
o acaso e a necessidade – gerou, paradoxalmente, o fenômeno do pretensioso
parto dos montes, segundo o verso de Horácio (...). Tomados pela euforia,
decidiram os constituintes redigir um texto minucioso e bombástico, sujeito,
por inadequação, à morte prematura. Esqueciam-se os ‘progressistas’ que uma
Carta não pode contrapor-se ao projeto histórico de uma nação”.
Decorrente do idealismo que a afeta, frisava Miguel Reale, a
nova Constituição pautou-se pelo irracional movimento pendular que sofrem os
institutos legais, quando desvinculados do contexto histórico, chegando a pôr
em risco a execução de um projeto que responda aos anseios nacionais. “Uma nova
Constituição – escrevia o pensador paulista – pode não redundar, de per si, em
possibilidades de cultura e riqueza, que só o trabalho perseverante e metódico
proporciona. Mas pode embaraçar e até mesmo travar o progresso de uma nação.
Infelizmente, a Carta que vai reger o nosso destino pertence a esta segunda
categoria, por termos sido, mais uma vez, vítimas das oscilações pendulares que
têm marcado nossa vida política ao longo do tempo”.
Em que sentido se efetivou o movimento pendular da
Constituição de 1988? Reale respondia: “Como sinal de nossa imaturidade,
carecemos do devido senso histórico (...). Assim é que, se em 1945, reagimos à
ditadura do Estado Novo reduzindo em demasia as atribuições do Poder Executivo,
forçando uma política de barganha ou de confronto com o Legislativo, foi este
que foi duramente atingido com o advento dos Atos Institucionais e as Cartas de
1967 e 1969. Agora, legislando novamente sob o signo do revide, voltamos a
fortalecer o Congresso Nacional além do necessário. Eram esquecidas, sem
dúvida, medidas de contenção contra os excessos do nosso presidencialismo
caudilhesco, mas não até o ponto de subordiná-lo às deliberações precárias de
um Poder Legislativo apoiado em clientelas personalistas e não em partidos
distintos, não digo por seus programas, que seria exigir muito em nossas
circunstâncias, mas pelo menos por seus planos de governo”.
Esse marginalismo pendular que empolgou a nova Constituição,
produziria, sem dúvida, efeitos nocivos na sociedade brasileira. O efeito da
excessiva e desarticulada descentralização federativa, em matéria
político-financeira, fortaleceu, paradoxalmente, o fantasma que se pretendia
esconjurar: o estatismo orçamentívoro. A respeito, escrevia Reale: “Pelos
mesmos motivos de suspicácia e prevenção, passamos da máxima centralização
político-financeira das União para uma extremada descentralização federativa,
fortalecendo os Estados e Municípios em detrimento do governo federal, sem que
tivesse havido correspondente redistribuição de competências. Como Estados e
Municípios, por sua vocação perdulária, continuarão a recorrer a Brasília, são
previsíveis novos tributos e empréstimos compulsórios federais, estancando-se
as fontes produtivas da iniciativa privada. Quem não prevê as sombras gélidas
do estatismo federalista, geradas pela partilha tributária aprovada pela nova
Constituição? Quem não sente que nos afastamos ainda mais da democracia liberal
que deveria realizar os fins sociais em harmonia com o que cabe aos valores
intocáveis dos indivíduos, única base real do desenvolvimento e da cultura? ”
O vício do marginalismo que afeta a Constituição de 1988,
conduz, como sugere Reale, a um outro extremo: o do estatismo, que constitui a
segunda tradição nociva da nossa cultura política. O Brasil consolidou-se, ao
longo da sua história, como um Estado mais forte do que a sociedade. A formação
política brasileira - como a dos
restantes países latino-americanos e a da Espanha e Portugal – aproximou-se
mais do modelo patrimonial do que do
modelo contratualista (segundo as
tipologias definidas por Max Weber).
O Estado moderno, segundo o modelo contratualista,
surgiu da luta entre as classes pela conquista do poder, que ensejou, não o seu
aniquilamento, mas a efetivação de um pacto ou contrato social; esse modelo
consolidou-se naqueles países em que houve uma experiência completa de
feudalismo de vassalagem, altamente contratualista, como nas Ilhas Britânicas e
nos restantes países da Europa Ocidental. Já o modelo patrimonial surgiu ali onde o Estado emergiu da hipertrofia de um
poder patriarcal, que estendeu a sua dominação doméstica sobre territórios,
pessoas e coisas extrapatrimoniais, tratando-os como instâncias familiares
(patrimoniais).
No caso brasileiro, como acertadamente assinalaram Raimundo
Faoro,
Simon Schwartzman,
Antônio Paim,
Fernando Uricoechea,
José Osvaldo de Meira Penna,
Ricardo Vélez Rodríguez
e outros, consolidou-se um Estado mais forte do que a sociedade, pautado pelo
modelo patrimonial. Em que pese o
caráter modernizador de que se revestiu o Estado patrimonial brasileiro (nos
momentos pombalino, imperial, getuliano e tecnocrático dos anos 60), segundo
mostraram Schwartzman, Paim e Wanderley-Guilherme dos Santos,
conservou-se inalterada a ideia do Estado-empresário, que se consolidou já a
partir das reformas pombalinas, na segunda metade do século XVIII. Assim, o
intervencionismo que pautou o processo modernizador ao longo do século XX, não
seria propriamente o keynesiano, mas o positivista-pombalino, na linha
defendida por Aarão Reis e efetivada pela segunda geração castilhista, ao longo
dos anos 30.
Oliveira Viana interpretou o patrimonialismo centrípeto que
acompanhou o processo modernizador do Estado brasileiro, como decorrência do
“complexo de clã” ou falta de sentido da coisa pública, que caracterizaram
sempre a nossa cultura política, como decorrência dos hábitos parentais
incorporados na longa experiência privatizante do latifúndio, berço da
nacionalidade. Gilberto Freyre, por sua vez, analisou o contexto vivencial em
que emergiram e se consolidaram esses hábitos, ao ensejo da influência
doméstica da Casa Grande.
Oliveira Viana, de outro lado, estudou o complexo de antivalores de consumo
suntuário, horror ao trabalho produtivo, burocratismo orçamentívoro, etc.,
herdados pelas elites brasileiras da nobreza decadente portuguesa.
Paulo Mercadante, por sua vez, analisou os aspectos conservadores que
inspiraram, nesse complexo familístico, a moral social brasileira,
aproximando-a dos parâmetros tradicionalistas das classes médias portuguesas
(notadamente no que diz relação à perpetuação do código de honra).
Todas essas contribuições teóricas delinearam claramente o perfil da tradição
estatizante brasileira, que age como redemoinho implacável, capaz de sugar
todas as propostas modernizadoras, aí inserido o esforço em prol da construção
da democracia.
A inexorável tendência estatizante da nossa cultura política
levou Antônio Paim a escrever: “O Brasil vive uma circunstância onde o Estado,
sem sombra de dúvida, é mais forte do que a sociedade. Imaginava-se que essa
situação fosse típica do período autoritário. Mas pelo menos nesse aspecto a
chamada Nova República não apresentou nenhuma novidade. De modo que as relações
entre o Estado e a Sociedade constituem questão chave na Constituição de 1988”.
A questão estatizante age como segunda natureza da cultura
política brasileira e abarca as ideologias, tanto de esquerda quanto de
direita. Já no fim dos anos 60, o economista Mário Henrique Simonsen analisava,
com preocupação, o alto índice de estatização da economia brasileira, bem como
o desproporcionado crescimento do gasto público: “Desde o término da Segunda
Guerra Mundial até a presente data, o setor público brasileiro cresceu a taxas
verdadeiramente espantosas. Entre 1947 e 1965, em percentagem do PIB, a despesa
do governo aumentou de 10,7% para 14,2%. A formação bruta de capital fixo pelas
entidades públicas (inclusive autarquias e sociedades de economia mista), de
3,2% para 8,0%. A carga tributária bruta, de 14,7% para 25,1%. E o dispêndio
total do governo (inclusive subsídios e transferências), de 18,0% para 31,0%.
Tendo em vista que neste período o produto real cresceu 3,64 vezes, conclui-se
que, em termos reais, as despesas de consumo do governo se multiplicaram por
3,5; os investimentos, por 6,6; o dispêndio total e os impostos, por 4,5.
Estima-se que os índices de estatização ainda se tenham acentuado em 1966 e
1967. Essa evolução acelerada do setor público é das mais rápidas de que se tem
notícia no mundo não socialista (...). Os índices de pressão do setor público
sobre a economia situam-se, entre nós, nas faixas mais altas registradas para o
mundo ocidental (...)”.
É interessante destacar como um cientista social europeu, o
professor Alain Touraine, da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais de
Paris, captou a realidade brasileira no contexto latino-americano. “(...) Na
América Latina – frisava Touraine – há um pais que sabe o que é um Estado:
outros sabem um pouco e outros não têm nenhuma noção. O país do Continente que
sabe o que é um Estado é o Brasil e isso porque é, antes de mais nada, um
Estado (...)”.
Ao que tudo indica, a tradição estatizante ainda tem muito
fôlego na vida política brasileira. Após a derrubada do Muro de Berlim, a
esquerda brasileira apresenta, ainda, como fórmula salvadora, o modelo mais
fechado de estatização marxista-leninista, o praticado em Cuba. Ainda tem
vigência, nos planos do PT e congêneres, a “república popular” de corte
sindical, em que pese o fracasso retumbante dos dois governos lulopetistas, ao
longo dos últimos 14 anos. A esquerda brasileira não aprende com os próprios
erros.
A Constituição de 1988, longe de se contrapor às perniciosas
tendências do marginalismo e do estatismo, aderiu a elas. Já foi ilustrado como
a citada Carta sofre com os vícios do marginalismo. Analisarei, a seguir, a
forma em que a atual Constituição faz o jogo da tendência estatizante.
II – Estado e Sociedade
na Constituição de 1988.
Quatro aspectos serão analisados neste item: 1 – o
terceiro-mundismo; 2 – o estatismo; 3 – o papel das Forças Armadas e 4 – a
representação.
1 – O terceiro-mundismo. Convém identificar primeiro esta
noção. A ideia de “terceiro-mundismo” deita raízes na obra do marxista inglês
John Atkinson Hobson intitulada: O Imperialismo (1902), na qual
Lenine se inspirou para escrever o seu conhecido panfleto intitulado: O
imperialismo, etapa suprema do capitalismo (1916). A ideia fundamental
de Hobson e Lenine consistiu em adaptar a teoria da luta de classes ao plano
internacional, identificando o mundo como dividido em dois blocos: países
exploradores e países explorados.
O escritor venezuelano Carlos Rangel, na sua obra O
terceiro-mundismo, define assim essa tendência: “O terceiro-mundismo,
hoje tão na moda, consiste essencialmente (sejam quais forem os seus disfarces),
na proposição de que, tanto o atraso dos países subdesenvolvidos quanto o
progresso dos países desenvolvidos (não socialistas), devem-se à exploração
imperialista e ao efeito enervante da dependência. Consiste também no uso dessa
proposição como argumento aberto ou implícito em favor do socialismo. Assim se
explica o fato de o terceiro-mundismo ter se convertido, literalmente, na
paixão de todos aqueles que acolham ideias e sentimentos anticapitalistas, não
só nos países classificados como do Terceiro Mundo, mas igualmente ou mais nos
países desenvolvidos”.
Não há dúvida quanto à presença, na Constituição de 1988, de
dispositivos exageradamente nacionalistas, inspirados pela ideologia
terceiro-mundista, como o artigo 37.I, que restringe aos brasileiros o acesso a
cargos, empregos e funções públicos, ou o art. 176, parágrafo 1º, que restringe
igualmente aos brasileiros e às empresas brasileiras de capital nacional, a
pesquisa e a lavra de recursos minerais, bem como o aproveitamento dos
potenciais de energia hidráulica. Em relação a esse espírito nacionalisteiro,
escreveu Miguel Reale: “O Brasil é um país que vive à procura de sua identidade
nacional. Daí as nossas perplexidades e desequilíbrios. Uma das nossas manias é
a de pertencermos ao Terceiro Mundo, com um pouco do que há de culturalmente
consolidado nas nações desenvolvidas. Nesse sentido, a nova Constituição é o
espelho fiel de um povo desconfiado de si mesmo”.
Esse sentimento terceiro-mundista, considerava Reale, é
pernicioso porque nos isola da comunidade internacional e instala uma opção
“nacional-estatizante”. A respeito, escreveu o notável jurista: “O pior, porém, são os artigos xenófobos que
nos isolam da comunidade internacional, impondo-nos o sonho de uma autarquia
tão irrealizável quanto perniciosa, assumindo-se, irresponsavelmente, a máscara
de uma republiqueta do Caribe, com o olvido de já sermos, apesar dos pesares, a
oitava economia do mundo. Como classificar a solução adotada por nossos
constituintes no plano econômico-social? Das qualificações até agora lembradas,
a mais apropriada é a de ‘nacional-estatismo’, conúbio de duas falsas imagens,
uma do Estado, visto como fonte autônoma de sabedoria e benesses, e outra da
nação, considerada como terra de promissão exposta às explorações do capitalismo
internacional. Una-se a isso a demagogia populista, fruto de nossa
inexperiência democrática, e teremos o quadro fundamental de um texto
constitucional que resulta dos mais conflitantes interesses, desde os
ideológicos até os do mais deslavado fisiologismo”.
Paulo Mercadante, por sua vez, identificou no nacionalismo
exacerbado da Constituição de 1988, características de patrimonialismo
reacionário e de oposição de barreiras ao desenvolvimento científico e
tecnológico: “Porém o lado reacionário, que traduz a inconstitucionalidade
gritante, é a ideologia de cunho chauvinista e patrimonialista. Há nos artigos
a determinação de conter o progresso, tendo posto os legisladores barreiras ao
desenvolvimento científico e tecnológico. Como um exemplo: o dispositivo que
obstaculiza a automação, criando-lhe óbices definitivos e cartoriais. Também as
regras de ordem econômica endossam as premissas do nacionalismo exacerbado, ao
arrepio do bom senso e do espírito do tempo. Preceitos arcaicos sobressaem,
enquanto a sociedade brasileira aspira ao desenvolvimento, parte de seu
projeto”.
2 – O estatismo. A hipertrofia do Estado é, como
vimos, tendência fortemente enraizada na nossa cultura política. Na medida em
que a onda anti-estatizante se alastra pelo mundo afora, na Europa, na Ásia, na
América do Norte, o velho centripetismo cartorial brasileiro torna-se opção
pelo passado e pelo atraso. A respeito, frisava Miguel Reale: “Não menos
negativa foi e continua sendo a experiência estatizante, realizada sob a blandiciosa
fórmula de ‘socialização dos meios de produção’. A realidade mais flagrante
veio demonstrar que a estatização, longe de produzir o bem-estar do maior
número, gera mais pobreza geral e a burocracia avassaladora, a nomenclatura, contra a qual Mikhail Gorbatchev
vem lutando com denodo”.
Se o socialismo está em quebra, a livre iniciativa e o espírito do capitalismo
democrático, ao contrário, estão em alta. “(...) A participação consciente do
povo no processo empresarial – escrevia Reale -, e já há quem fale em
‘capitalismo popular’, é o mais impressionante fenômeno do nosso tempo,
revelando o anacronismo do ideal estatizante que ainda encanta os nossos
socialistas retrógrados”.
Em que pese o fato de o estatismo estar batendo em retirada,
no plano internacional e na América Latina em particular, a Constituição de
1988 caiu no anacronismo de apregoar, ainda, um dirigismo estatizante, na
trilha da figura jurídica identificada por
Manoel Gonçalves Ferreira Filho como “constituição-dirigente” (inspirada
por juristas alemães, frequentemente do antigo Leste) contrária ao modelo de
“constituição-garantia”, de inspiração liberal.
A adoção dessa variante pela Carta de 1988 obedeceu, a meu
ver, à retomada de tradição estatizante que vingou amplamente nas Faculdades de
Direito e que se consolidou, especialmente a partir de 1870, ao ensejo da
influência dos fundadores do Partido Socialista Português, Oliveira Martins e
Antero de Quental. Para o primeiro, em Portugal não se poderia efetivar uma
revolução socialista, nos moldes ortodoxos da luta de classes apregoada por
Marx, simplesmente porque não havia indústrias nem operariado organizado. A
revolução far-se-ia mediante a tomada do poder pela vanguarda intelectual
socialista e a implantação ditatorial, pelo Estado, das mudanças
revolucionárias que conduziriam ao socialismo.
Os socialistas portugueses conceberam, assim, na década de
1870, um “leninismo avant la lettre”,
que encontrou ampla acolhida por parte dos positivistas-marxistas brasileiros
(como Leônidas de Rezende, por exemplo),
ou dos Castilhistas (cuja concepção foi bem traduzida, em 1929, no momento em
que se articulava a “Aliança Liberal”, pelo aforismo do presidente de Minas
Gerais, Antônio Carlos Ribeiro de Andrada: “Façamos a revolução antes que o
povo a faça”).
Nesse contexto revolucionário-estatizante insere-se, a meu
ver, a adoção, por parte dos constituintes brasileiros, do modelo da
“constituição-dirigente” que, no sentir de Manoel Gonçalves Ferreira Filho
“(...) encontrou sua primeira grande consagração com a Constituição portuguesa
de 1976. Essa concepção – frisa o citado autor - se divulgou entre nós por influência de um
jurista português, de formação marxista (é deputado do Partido Comunista
Português), Joaquim Gomes Canotilho. Trata ele do assunto num livro intitulado Constituição-dirigente
e vinculação do Legislador”.
Qual é a essência do modelo de “Constituição-dirigente”?
Manoel Gonçalves Ferreira Filho a explica nos seguintes termos: “Nessa linha, a
Constituição deve ser mais do que a organização limitativa do poder: deve ser
um grande programa de transformações políticas, mas sobretudo econômicas e
sociais. Tal plano, para Canotilho e seus seguidores, se destina a operar a
transformação para o socialismo, como etapa para a instauração, um dia, do
comunismo. Inscrito na Constituição, ele obrigaria os governos sucessivos a
trabalhar no sentido dessa transformação. E, para força-los a tanto, deveria
até ser prevista uma ação de ‘inconstitucionalidade por omissão’, por via da
qual o juiz compeliria o governo a efetivar o programa constitucional, a
requerimento da parte interessada”.
Como o próprio Ferreira Filho anota, trata-se aqui de versão
heterodoxa do marxismo-leninismo, uma espécie, penso eu, de “ditadura
científica da pequena burguesia, arvorada em vanguarda do povo”. Em que pese o
fato de o famigerado modelo não ter sido aprovado in totum nas deliberações dos constituintes, Ferreira Filho
sintetiza assim a nociva influência estatizante: “Na Constituinte brasileira de
1987-1988 havia quem habilmente houvesse articulado uma Constituição-dirigente,
no sentido que Canotilho dá ao termo: Constituição para a transição para o
socialismo. É verdade que esse propósito, muito claro no famigerado Anteprojeto
da Comissão de Sistematização, não vingou. Emenda aqui, reemenda ali, obscurecida
acolá por expressões ambíguas e vagas, a Constituição de 1988 não é uma
Constituição de transição para o socialismo. É, indubitavelmente, uma
Constituição estatizante, mas o fascismo também era e é estatizante. Se a
Constituição de 1988 não tem assim o caráter de ponte para o socialismo, graças
à luta de um punhado de constituintes avessos ao comunismo, ela guardou de seus
passos iniciais o caráter técnico de Constituição-dirigente ou
Constituição-plano, para usar uma expressão que corresponde à ideia de uma
Constituição diretora da atuação governamental, sem, todavia, a conotação
marxizante”.
O aspecto importante do estatismo presente na Constituição de
1988 é a manutenção do que Antônio Paim chama de “estrutura sindical de índole
totalitária”,
que o ex-ministro Arnaldo Sussekind, por sua vez, identificou como modelo
“fascista-leninista”
(porquanto Mussolini teria copiado de Lenine a ideia do sindicato único
atrelado ao Estado). A preservação, pela nova Constituição, dos institutos do
sindicato único e da contribuição sindical compulsória
fez perdurar o élan peleguista e estatizante estabelecido pelo Estado Novo na
Consolidação das Leis do Trabalho.
Consequências negativas, de cunho autoritário, foram
identificadas por Antônio Paim nestes termos: “O sistema em vigor no país permite
que minorias inexpressivas tomem de assalto os sindicatos e passem a falar em
nome da massa trabalhadora. A Constituição manteve a obrigatoriedade da
contribuição sindical, mediante imposto aplicado universalmente, com o que têm
essas entidades assegurada a sua sobrevivência, independentemente do fato de se
atendem ou não aos interesses e reclamos da categoria respectiva. A par disto,
só pode haver um sindicato em cada grupo de trabalhadores, desde que sua
existência depende não da força (representativa) real de que disponha, mas do
seu reconhecimento pelo Estado”.
Na trilha da crítica ao estatismo que anima à Carta de 88,
Paulo Mercadante enxergava, entre o preâmbulo e o título relativo à organização
do Estado, o ardil que impunha, de forma centralizadora e, portanto, contrária
ao espírito federativo, uma concepção centrípeta do Estado, que constitui
camisa de força imposta aos Estados membros da Federação. “A agressão à ética –
frisava Mercadante - é a característica primeira da Carta vigente. Os deputados
declararam em preâmbulo que se constituía uma República Federativa. Ardil
inicial, que mancha os fins de um documento sério. Foi o traço marcante da
inconstitucionalidade da Carta. Do título relativo à organização do Estado
depreende-se que se impôs aos membros da suposta federação uma camisa de força,
pois aos Estados nada resta se não cumprirem as ordens impostas. Couberam-lhes,
sim, pequenas atribuições”.
3 – O papel das Forças
Armadas. No relativo
ao papel constitucional das Forças Armadas, o artigo 142 da Constituição de
1988 assim o delimita: “As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo
Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e
regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade
suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à
garantia dos Poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da
lei e da ordem”.
Comentando o citado artigo, Oliveiros S. Ferreira considerava
que o texto constitucional retomava a tradição autoritária republicana, ao
conceber as Forças Armadas como Poder de
Estado diferente dos Três Poderes. “Ao pretender subordinar as Forças
Armadas ao Poder Civil – frisava o mencionado autor - os constituintes de 1988,
na verdade, contribuíram para que elas aumentassem seu grau de autonomia do
Estado, além de haver consagrado, movidos pela malquerença, situação que sempre
apontei como anômala, qual fosse a de as Forças Armadas existirem legalmente em função do Estado, mas na
verdade não guardarem relação política alguma com ele, pois ao Estado sempre se
sobrepuseram desde a República. Com isso quero dizer (...) que a Constituição
de 1988 reconheceu as Forças Armadas como Poder
do Estado, distinto do Executivo, do Legislativo e do Judiciário, e
consagrou a tradição republicana, segundo a qual a elas incumbe a missão,
autônoma, de manter a lei e a ordem, e não ao Executivo por ação própria, ou
decorrente de ato de vontade do Judiciário”.
Situar-se-ia, destarte, a Constituição de 1988 no contexto da
tradição autoritária “salvacionista” do ciclo republicano, que tantas
intervenções caudilhescas ensejou ao longo da história brasileira. Não fugiria,
portanto, o atual modelo constitucional ao caracterizado por Alfred Stepan como
“papel moderador”, nestes termos: “(...) O resultado é que os militares têm
desempenhado um papel decisivo na política brasileira, considerando que todos
os grupos tentam cooptá-los em épocas de conflito político, e os golpes
concretos contra o Executivo representam os esforços combinados de civis e
militares”.
Oliveiros S. Ferreira mostrou, aliás que a cooptação apontada
não é risco longínquo, à luz da atual Constituição: “Se (...) permanecer a
atual redação, qualquer juiz de direito poderá ter a iniciativa de solicitar ao
comandante de uma unidade militar qualquer que intervenha para garantir a lei e
a ordem. O comandante militar pedirá autorização ao seu superior, que não
poderá negá-la, pois a solicitação partiu de membro de outro Poder, como manda
a Constituição. Com isso, queira-se ou não, as Forças Armadas estarão faltando
à sua grande missão, que foi a que Góis Monteiro lhes quis traçar, que era
escapar às vicissitudes da política regional ou setorial (economicamente
falando, ou em termos de classes sociais) deste País imenso. Não foi assim,
parece, que aconteceu em Volta Redonda? ”
Uma redação diferente do art. 142 afastaria esse risco.
Oliveiros S. Ferreira propunha a seguinte: “As Forças Armadas, constituídas
pela Marinha de Guerra, pelo Exército e pela Aeronáutica Militar, são
organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do
chefe do Poder Executivo. O Poder Executivo poderá emprega-las quando e onde
julgar conveniente para a defesa do Estado, ou onde e como a ele solicitado
pelo Chefe do Poder Legislativo ou pelo presidente do Supremo Tribunal
Federal”.
4 – Representação. Os processos eleitorais ocorridos em
1988 e 1989 já tinham demonstrado um fato que seria confirmado nas décadas
posteriores: o desgaste dos partidos e o descrédito da classe política. A falta
de credibilidade decorre, fundamentalmente, do achincalhamento da
representação. A questão é particularmente grave, se levarmos em consideração
que o único caminho institucional possível para controlar o excessivo
crescimento do Estado, é o do fortalecimento da representação política. Ora,
esse ponto era descuidado pela Carta de 1988 que, ao manter o dispositivo do
voto proporcional (com exclusão do voto distrital) (art. 45) e ao ter limitado
a representação parlamentar dos Estados mais modernizados e mais populosos (art. 45, parágrafo 1º) fechou
o caminho para o aprimoramento da representação.
Particularmente, a rejeição ao voto distrital foi lamentável.
“Perdeu-se a oportunidade – frisava Antônio Paim – de introduzir o voto
distrital. O sistema proporcional tem-se revelado, em toda parte, incapaz de organizar
a vontade do eleitorado e obrigar ao funcionamento dos partidos políticos.
Essas agremiações são de muito difícil manutenção, em face das disputas de
liderança, individualismo e outras características humanas que têm a virtude de
exacerbar. De modo que requer contrapesos e obrigações que somente a existência
de distritos eleitorais tem assegurado nos maiores países democráticos.
Trata-se de uma questão essencial porquanto, sem partidos políticos, não pode
haver prática democrática”.
Infelizmente, no Congresso Constituinte perdeu-se a
oportunidade de ouro para instaurar definitivamente o voto distrital. O senador
José Richa (PMDB-PR) tinha assumido o compromisso formal de defender essa
instituição e tudo parecia encaminhado para a aprovação da proposta do nobre
constituinte paranaense. Mas, na hora de votar o dispositivo na Comissão
correspondente, já na fase final dos trabalhos constituintes, a proposta de
Richa em prol da adoção do voto distrital viu-se derrotada pela truculência de
um colega de partido, o senador Mário Covas, que levou até as portas da sala
onde se reunia a Comissão, uma turma do sindicato de estivadores do porto de
Santos, com a finalidade de intimidar quem defendesse a adoção do voto
distrital.
Conclusão. As ciladas do marginalismo e do estatismo
inseridas, como ficou demonstrado, na Constituição de 1988, ameaçaram
definitivamente e emperraram a modernização e a democratização do Brasil na
virada do milênio e nas últimas décadas. Para começarmos a ter perspectivas de
sucesso, seria necessário agir sem dilações. A primeira providência
consistiria, evidentemente, em remover o entulho corporativista, estatizante e
autoritário, que a Comissão de Sistematização conseguiu manter no texto
constitucional. A exemplo do que ocorreu em Portugal, se a sociedade reagir,
será possível derrotar o afã marxistizante e totalitário dos defensores de um
modelo constitucional “dirigente”, que só encontra refúgio nas mais
reacionárias ditaduras socialistas como a cubana.
O controle definitivo da sociedade sobre o estatismo estará,
sem dúvida, na linha da modernidade. Num momento em que é questionado, por
ineficaz, esse modelo em que os muros dos sistemas de poder total racham, será
crime perante a História pretender fechar o Brasil numa ilha, em que continua a
tripudiar sobre os cidadãos um Estado mais forte do que a sociedade.