Em 2 de Dezembro de
1804 o general Napoleão Bonaparte (1769-1821), que exercia as funções de Primeiro Cônsul Vitalício
da República Francesa, colocou sobre a sua cabeça a coroa de Imperador dos
Franceses, tendo dado início ao regime absolutista que, ao longo dos dez anos
seguintes, mudaria a feição da França republicana emergida das sombras da
Revolução e alteraria substancialmente a configuração geopolítica da Europa, ao
instaurar uma monarquia sobranceira às demais, numa espécie de Bloco
Continental, como o próprio Napoleão gostava de definir o novo sistema
por ele implantado.
Se bem é certo que Pombal antecedeu com a sua aritmética política o sistema napoleônico de poder unipessoal alicerçado na ciência, o Imperador dos Franceses consolidou o modelo de ditadura regeneradora que seria adotado como ideal político por Henri-Claude de Saint-Simon e pelo seu discípulo Augusto Comte, os quais, pela sua vez, deram início ao arquétipo de ditadura científica que polarizou o debate antimonarquista no Brasil do século XIX, tendo passado a inspirar diretamente as nossas Instituições Republicanas.
Se bem é certo que Pombal antecedeu com a sua aritmética política o sistema napoleônico de poder unipessoal alicerçado na ciência, o Imperador dos Franceses consolidou o modelo de ditadura regeneradora que seria adotado como ideal político por Henri-Claude de Saint-Simon e pelo seu discípulo Augusto Comte, os quais, pela sua vez, deram início ao arquétipo de ditadura científica que polarizou o debate antimonarquista no Brasil do século XIX, tendo passado a inspirar diretamente as nossas Instituições Republicanas.
Victor Hugo, em
discurso pronunciado na Academia Francesa em 3 de junho de 1841, caracterizou
da seguinte forma a grandeza e a força de Napoleão 1o: “No início
deste século, a França constituía para as nações um magnífico espetáculo. Um
homem a enchia então e a tornava tão grande que chegava a ocupar a Europa. Esse
homem, saído das sombras, tinha atingido, em poucos anos, a mais alta realeza
que talvez jamais tenha assombrado a história. Uma revolução tinha-o gerado, um
povo tinha-o escolhido, um Papa tinha-o coroado. A cada ano, ele alongava as fronteiras
do seu Império... Tinha apagado os Alpes como Carlos Magno e os Pirineus como
Luís XIV; tinha construído o seu Estado no centro da Europa como uma cidadela
fortificada, dando-lhe como bastiões e fortificações avançadas dez monarquias
que ele tinha feito entrar ao mesmo tempo dentro do seu Império e dentro da sua
família. Tudo nesse homem era sem medida e esplêndido. Ele pairava por cima da
Europa como uma visão extraordinária”.
Napoleão repete, na sua
gesta, o caráter superlativo das realidades e das idéias políticas na Europa
continental, fato que levou a que a sua influência fosse mais decisiva sobre as
nações latino-americanas do que a temperada experiência inglesa de monarquia
constitucional. A propósito dessa força das novidades históricas no mundo
germano-românico, escreveu Guizot: “Nos Estados do Continente, cada sistema,
cada princípio, tendo desfrutado do seu momento e dominado da maneira mais
completa, mais exclusiva, o seu desenvolvimento produziu-se em muita maior
escala, com mais grandeza e brilho. A realeza e a aristocracia feudal, por
exemplo, comportaram-se na cena continental com mais audácia, amplitude e
liberdade. Todos os experimentos políticos, chamemo-los assim, foram mais
exteriores e mais acabados. Daí resultou que as idéias políticas – falo das
idéias gerais e não do bom senso aplicado à direção dos negócios – elevaram-se
a maior altura e desenvolveram-se com maior vigor racional. Cada sistema, pelo
fato de ter-se apresentado, de certa forma, sozinho e de ter permanecido durante
muito tempo em cena, pôde ser considerado no seu conjunto, pôde-se remontar aos
princípios, descer até as últimas conseqüências e estabelecer plenamente a sua
teoria” [Guizot, 1864: 383-384].
A gesta napoleônica foi
superlativa, como foram superlativos também a Revolução de 1789 e o Terror que
a seguiu. Talvez esse caráter extraordinário, presente na história da França e
no seu primeiro Imperador é o fator que mais chamou a atenção de um pensador
como Nietzsche, que escrevendo no final do século XIX, frisava: “O século que
está para chegar seguirá as pegadas de Napoleão, o maior homem e o mais
destacado empreendedor dos tempos modernos. Para os problemas do próximo
século, a publicidade e o parlamentarismo não são as instituições mais
apropriadas. As condições da Europa no próximo século favorecerão as virtudes
varonis, porque viver-se-á em constante perigo (...). Há boas perspectivas:
preparam-se grandes emoções. Coloco na balança o que produziu a Revolução
francesa; sem ela não conceberíamos nem Beethoven nem Napoleão” [Nietzsche,
1967: 571-573].
Duas guerras mundiais e
a formação, no final do século XX, dos grandes Blocos econômicos e
estratégicos, certamente fazem-nos pensar na atualidade de um estadista que
imaginou a política como alargamento revolucionário de fronteiras e que
entendia o seu Império como uma única realidade na Europa por ele unificada.
Não é por acaso que a bibliografia hoje existente sobre Napoleão ultrapasse de
cem mil o número de livros e ensaios escritos ao seu respeito, tornando praticamente
impossível compulsar sequer uma mínima parte do que se escreveu.
É meu propósito, neste
artigo, apresentar a vida e a obra do primeiro Imperador dos Franceses sob três
ângulos, sem a menor pretensão de abarcar de forma exaustiva o que se poderia
estudar sobre ele. Os três aspectos propostos são os seguintes: o Homem, o
General e o Imperador. Destacarei, a seguir, três abordagens críticas do
pensamento político de Napoleão, as ensejadas, nas primeiras décadas do século
XIX, pela obra de Jacques Necker, da sua filha Madame de Staël e de Benjamin
Constant, que constituem, hoje, junto com os escritos de Guizot, “o mais
valioso que houve na política do Continente” nesse século, nas palavras de
Ortega y Gasset [apud Díez, 1984: 19].
I – O HOMEM
Destacarei, de entrada,
quatro itens que me parecem fundamentais para ilustrar a personalidade de
Napoleão: as suas relações familiares, a sua posição em face da religião, a sua
atitude crítica em relação à society parisiense e o seu sentido da
honra. Tratarei em quinto lugar, de forma muito resumida, acerca das etapas da
sua formação intelectual.
1) Relações
familiares
Napoleão devotava
grande dedicação à vida familiar. Nela sobressai, antes de tudo, a paixão por
uma viúva fidalga, Josefina viscondessa de Beauharnais, o seu grande amor, de
quem faria a primeira Imperatriz da França e de quem, por razões de Estado (não
teve filhos com ela), divorciou-se em 1810 para casar com a arquiduquesa Maria
Luísa da Áustria, que seria mãe do filho de Imperador, o chamado Rei de Roma.
Eis o trecho de uma carta endereçada pelo futuro Imperador à sua namorada,
quando ele ainda era um jovem general comandante das forças do Diretório em
Paris: “Acordo-me inundado de ti. Teu retrato e a embriagadora noite de ontem
não deram descanso aos meus sentidos: doce e incomparável Josefina, que
influência estranha exerces sobre meu coração! Se te aborreces, se te vejo
triste e inquieta, minha alma parte-se de dor, e não há sossego para o teu
amigo; e eu, por acaso, poderia tê-lo quando, entregando-me ao sentimento
profundo que me domina, sorvo de teus lábios, de teu coração a chama que me
queima? Ah, foi nesta noite que notei que o teu retrato não é tu mesma. Partes
ao meio-dia, ver-te-ei dentro de três horas. Esperando-te, mio dolce amor,
um milhão de beijos, mas não m’os dês, pois eles queimam meu sangue” [Lévy,
1943: 55].
A sedutora Josefina,
quatro anos mais velha que Bonaparte, com aquele seu preguiçoso e insinuante
sotaque antilhano, tinha-se aproximado dele quando a estrela do jovem oficial
começou a brilhar. O general corso não era, certamente, o tipo de latin
lover que seduziria as damas nos elegantes salões parisienses. Retraído,
magricelo, era chamado de “gato com botas” pelas meninas vizinhas da guarnição
de la Fère (onde iniciou os seus trabalhos como segundo-tenente de artilharia).
O jovem Bonaparte, em contrapartida, não tinha grandes projetos românticos, a
julgar por estas palavras escritas no seu Diálogo sobre o amor:
“Acho o amor nocivo à sociedade, à felicidade individual dos homens. Enfim,
creio que o amor faz mais mal do que bem” [apud Lévy, 1943: 18]. Palavras
proféticas que irão marcar a triste senda de amores conjugais não
correspondidos do futuro Imperador.
Josefina, nascida na
Ilha Martinica, lia as cartas e era, no dizer de um dos seus biógrafos,
“apaixonada devota do sortilégio” [Belloc, 1958: 97-98]. A sedutora morena
previu o sucesso do desajeitado oficial, mas queria dele não propriamente a
exclusividade da paixão, mas um lugar seguro na instável sociedade da época, a
fim de poder continuar a desfrutar o luxo dos salões parisienses. O general
Bonaparte, ao contrário, invejava, já a esta altura da sua vida, a sorte de
quem achava a meia-laranja para formar uma família e caiu perdido de amores por
Josefina, com quem casou em março de 1796. Essa discrepância de expectativas
trouxe-lhe muitos aborrecimentos, na medida em que, comandante dos exércitos
republicanos na Itália, e posteriormente Imperador à testa da Grande Armée
na Europa Central, teve de se ausentar por longo tempo e começou a perceber
primeiro a falta de dedicação da sua esposa e depois as suas infidelidades.
Eis as invectivas de
amante não correspondido que o general, vítima de naturais ciúmes, dirige à sua
amada desde o front italiano: “Eu desejaria que você me desse permissão
completa de ler suas cartas: assim eu não teria mais remorsos, nem receio...
Mandei chamar o mensageiro; declarou-me que passou pela sua casa, e que você
lhe disse nada ter para mandar. Oh, má, ruim, cruel, tirana, bela ferazinha!
Você se ri das minhas ameaças e das minhas tolices! Ah! Se eu pudesse, você bem
o sabe, fechá-la-ia em meu coração e a prenderia dentro dele”. Alguns dias
depois, o desiludido Ulisses corso dá rápida notícia das suas heróicas ações à
amada infiel, para se deter nas queixas doloridas do seu coração ciumento:
“Escrevo-lhe, minha boa amiga, muitas vezes, e você poucas. Você é má e feia,
muito feia, tanto quanto é leviana. É pérfido enganar um pobre marido, um terno
amante. Ele deve perder os seus direitos só porque está longe, sobrecarregado
de trabalhos, de fadigas e de sofrimento? Sem a sua Josefina, sem a certeza do
seu amor, que lhe resta na terra? Que fará ele ainda na terra? Tivemos ontem
uma batalha muito sangrenta, o inimigo perdeu muita gente e foi completamente
derrotado. Conquistamos os subúrbios de Mântua. Adeus adorável Josefina; numa
dessas noites, as portas de seu quarto abrir-se-ão, fragorosamente, e como um
ciumento, atirar-me-ei nos seus braços”. Em 1809, do front alemão, o
General-Imperador escrevia assim, ameaçador, à sua infiel amada: “Irei a Paris
assim que o julgar conveniente. Aconselho-a a precaver-se contra os fantasmas:
um belo dia, às duas da madrugada...” [apud Lévy, 1943: 73; 93].
Durante a campanha da
Áustria, que terminaria com a grande vitória de Wagram, o Imperador escrevia
assim à Imperatriz Josefina (nos anos de 1807 e 1808), misturando notícias de
Estado com estados de espírito, numa espécie de conversa familiar em que o
ciúme e uma ponta de humor estão presentes: “Minha amiga: acabo de conversar
com o imperador Alexandre, e estou satisfeito com ele: é bonitão, bom e jovem,
é um espírito muito acima do vulgar (...). Tudo vai muito bem. (...) O
imperador da Rússia se interessa com grande amabilidade pela saúde da minha
imperatriz. Todos os dias, ele e o rei da Prússia jantam comigo (...). A rainha
da Prússia jantou ontem comigo. Tive que lutar bravamente, pois ela queria
obrigar-me a fazer novas concessões ao marido; portei-me com grande elegância,
mas defendi minha política. Ela é muito amável. Quando você ler esta carta, já
estará assinada a paz com a Prússia e a Rússia”. Em outra missiva do mesmo
período, Napoleão escreve: “Minha amiga, cheguei ontem às cinco horas da tarde
em Dresde, sentindo-me muito bem, embora tivesse viajado cem horas sem sair da
carruagem. Estou aqui, hospedado pelo rei de Saxe, com quem me sinto
imensamente contente. Assim sendo, acho-me metade do caminho mais próximo de
você. Talvez aconteça que numa destas belas noites eu irrompa aí em
Saint-Cloud, como um ciumento; estou prevenindo-a...”. Algum tempo depois, em
outubro de 1808, o Imperador escrevia: “Minha amiga, escrevo-lhe pouco porque
estou muito ocupado. Tenho conferências durante todo o dia, não consigo
melhorar-me do defluxo. Entretanto, tudo vai bem. Estou satisfeito com
Alexandre, e ele o deve estar comigo: se ele fosse mulher creio que o tornaria
meu amante... Dentro em pouco, achar-me-ei aí em sua casa. Continue cuidando da
saúde, de modo que eu a encontre forte e jovem [apud Lévy, 1943: 92-93].
O perfil da vida
familiar de Napoleão, após o tumultuoso começo do seu casamento com Josefina,
entrou, nos últimos anos de sua relação com ela, numa espécie de tranqüilo lago
em que se destacava a dedicação do marido e o carinho para com os enteados
Eugênio e Hortênsia. Contribuiu muito para isto o fato de a Imperatriz perceber
que decaía o seu poder sobre o marido, notadamente após o tórrido affaire
dele com a princesa polonesa Maria Walewska. Ouçamos o testemunho de um dos
biógrafos do Imperador, Artur Lévy: “Napoleão foi um marido cordato, que
buscava antes de mais nada a tranqüilidade na sua vida íntima. Ele próprio o
disse a Roederer: Se eu não tivesse
um pouco de alegrias na minha vida doméstica, seria então muito infeliz!.
- Uma vez extintas as brigas dos
primeiros anos, era em tudo, diz-nos Thibaudeau, um lar muito bom. - O
imperador, escreve a senhorita Avrillon, era com efeito um dos melhores
maridos que jamais conheci; quando a imperatriz se achava adoentada, Bonaparte
passava junto a ela o tempo que lhe era possível furtar às suas obrigações. -
Cheio de atenções, diz (o criado imperial) Constant, de cuidados e de
abnegação para com Josefina, o imperador divertia-se em abraçá-la pelo pescoço,
segurar-lhe o rosto e lhe dar leves palmadas, chamando-a de ´minha fera
terrível´ ” [Lévy, 1943: 96-97]. “Fera terrível” de Napoleão foi, aliás,
também o cãozinho de Josefina, Fortune, que teve a audácia de morder ao
apaixonado general na noite de núpcias. Essa dedicação à família, Napoleão teve
também para com a sua segunda mulher, a imperatriz Maria Luísa, e para com o
seu filho, o Rei de Roma. Maria Luísa, aliás, não teve para com o Imperador a
mesma dedicação. Caído em desgraça, após a abdicação de Fontainebleau, foi
abandonado por ela e não teve mais contato com o filho. A respeito desse
aspecto, frisa o biógrafo Artur Lévy: “Ele teve duas esposas, e a ambas cumulou
de uma igual afeição. Napoleão procurava, por meio de cuidados amáveis, nas
mínimas coisas, torna-las felizes, e, entretanto ambas lhe foram infiéis, com a
diferença que Josefina não demorou muito a traí-lo, enquanto Maria Luísa só o
traiu anos depois do casamento. Nesses dois infortúnios conjugais, seguindo a
regra comum, um espesso velo cobria os seus olhos. (...) Em resumo, nem os
esplendores de uma carreira prodigiosa, nem o orgulho supremo de ser majestade
imperial, influíram no seu caráter de esposo e de pai. Napoleão nunca desprezou
os princípios comuns que lhe tinham sido inculcados na sua primeira educação”
[Lévy, 1943: 138].
A dedicação à família
manifestou-se, também, na preocupação constante de Napoleão para com a sua mãe,
Letícia (regiamente instalada em Paris, nas proximidades da Corte Imperial) e
para com os seus numerosos irmãos: José, Luciano, Carolina, Paulina, Elisa,
Luís e Jerônimo. Nenhum deles foi esquecido pelo todo-poderoso Imperador, que
cuidou de lhes garantir o futuro mediante a concessão de honrarias, na nova
nobreza que instaurou, cuidadosamente entrelaçada com representantes do Ancien
Regime europeu. Assim, José recebeu, sucessivamente, os títulos de Rei de
Nápoles e de Rei da Espanha; Luciano foi nomeado príncipe imperial e membro da
Câmara dos Pares; Carolina foi coroada como Rainha de Nápoles, tendo sido o seu
marido, o traidor Murat, guindado também à dignidade real; Paulina, “a bela
Paulete” (no dizer de Cânova) recebeu o título de princesa de Guastalla e casou
com o príncipe romano Camilo Borghese; Elisa, casada com o fidalgo corso Felix
Bacciochi, recebeu os títulos de princesa de Piombino e de Luca e de duquesa da
Toscana; Luís foi coroado rei da Holanda e Jerônimo, por sua vez, foi coroado
como rei da Westfalia, tendo casado com a princesa Catarina de Wurtemburgo. É
evidente que todos esses casamentos e honrarias inseriam-se na política
napoleônica de construir um sistema unitário de poder monárquico
continental. Mas, por cima das preocupações políticas e estratégicas, havia no
Imperador uma grande preocupação com o bem-estar dos seus.
A retribuição que
recebeu deles foi, no entanto, problemática. Com exceção da mãe (que conservou
os seus costumes ancestrais de uma vida austera e que nunca chegou a falar
corretamente o francês, para desespero da Corte Imperial), os irmãos de
Napoleão constituíram o que chamaríamos literalmente hoje de uma família do
barulho. Orçamentívoros, irresponsáveis, indolentes, ingratos. Nenhum deles
esteve à altura das responsabilidades que o Imperador lhes confiara e no final,
quando foi banido do poder e ficou preso na Ilha de Elba e depois deportado em
Santa Helena após as jornadas dos Cem Dias e de Waterloo, todos o abandonaram.
A única exceção dessa fraternal traição foi Paulina, que o visitou, junto com a
mãe, na Ilha de Elba. A respeito, escreve Artur Lévy: “A infelicidade dos
irmãos e irmãs de Napoleão vem de uma fonte que lhes era comum: todos eles se
acreditavam reis por direito divino, e todas elas se julgavam rainhas de sangue
azul. O estado de espírito de todos é bem sintetizado numa frase do próprio
Napoleão, dita a Burrienne, quando o imperador se queixava das recriminações
dos seus: Quem der ouvidos a eles, acreditará que abocanhei a herança
deixada por nosso pai. E essas recriminações não eram passageiras. Eram
constantes, intoleravelmente persistentes, submetendo assim à prova mais
irritante uma generosidade fraternal que levara um contemporâneo a dizer: Napoleão
tinha mais dificuldade em governar sua família do que o império. Na
verdade, era-lhe extremamente difícil contentar todo mundo: Luciano reclamava
do exílio que nada podia ser; José queixava-se de ser seu rei; Luís fazia-se de
rei-mártir, destronado de direitos dos quais voluntariamente abdicara, e
Jerônimo declarava-se infeliz por dispor de um orçamento muito limitado para
seus gastos alucinados. Se Elisa considerava seu ducado bem mesquinho para sua
natureza orgulhosa, Carolina aspirava a coisa mais alta que seu reino de
Nápoles, e enfim Paulina sofria por não poder dar vazão aos seus caprichos de
toda espécie, enquanto a própria mãe do imperador se lamentava de não poder
fazer tanta economia quanto desejava” [Lévy, 1943:141].
2) Posição de
Napoleão em face da religião
Quais os sentimentos de
Napoleão em face da religião? O Imperador dos Franceses foi, antes demais nada,
um homem saído da Ilustração e da Revolução de 1789, apaixonado pelo ideal da
igualdade burguesa e portador dos seus valores: amor ao trabalho, disciplina,
cientificismo, culto à vida familiar. Mas, ao mesmo tempo, Napoleão encarna a
reação romântica que aspira ao heroísmo, que recrimina aos philosophes o
seu menosprezo em face da religião popular e que busca a superação da dimensão
puramente utilitária num projeto de vida que ultrapassa os interesses
individuais, numa gesta identificada com o espírito do tempo. Em que
pese o fato de o jovem oficial (que fora promovido a primeiro-tenente de
artilharia em 1791), ser um ardente defensor da Revolução de 1789, não abjurou
dos princípios de uma prática religiosa herdada de seus ancestrais, o que o
levou, por exemplo, a cuidar pessoalmente da preparação de seu irmão caçula,
Luís, para a primeira comunhão. É bem verdade que o Imperador de 1804 terá da
religião católica uma visão puramente funcional: ela é a base sobre a qual se
deve enraizar a moralidade pública. Mas trata-se de uma religião galicana,
quer dizer, submetida ao domínio absoluto do Poder Imperial. Essa é a
interpretação que Napoleão tem da Concordata assinada com Roma. “É
necessário que o clero seja, como a magistratura, um instrumento do reino”,
frisava o Imperador [apud Larousse, 2002: 113].
Esse caráter
instrumental refletia-se na carta que Napoleão encaminhou, de Colônia, ao Papa
Pio VII, por intermédio do seu tio materno, o cardeal Joseph Fesch (1763-1839),
recentemente nomeado arcebispo de Lyon. O texto da missiva era do seguinte
teor: “Santíssimo Padre, o feliz efeito que experimentam a moral e o caráter do
meu povo pelo restabelecimento da religião cristã, leva-me a pedir à Vossa
Santidade para que me dê uma prova do interesse que manifesta pelo meu destino
e pelo desta grande nação, numa das circunstâncias mais importantes que
oferecem os anais do mundo. Peço a Vossa Santidade para que queira dar, no mais
eminente grau, o caráter da religião à cerimônia da sagração e da coroação do
primeiro imperador dos Franceses. Essa cerimônia revestir-se-á de maior lustre
se for feita por Vossa Santidade mesma. Ela atrairá, sobre a minha raça e sobre
o meu povo, as bênçãos de Deus, cujos decretos moldam, segundo a sua vontade, a
sorte dos impérios e das famílias. Vossa Santidade conhece os sentimentos
afetuosos que lhe dedico desde há muito tempo e, em virtude disso, saberá
julgar acerca do prazer que me oferecerá esta circunstância de lhe oferecer
novas provas”. As provas que foram oferecidas ao Papa foram, realmente, as da
posição sobranceira do Imperador sobre a Igreja. O caráter instrumental das
suas palavras ficou claro quando, contrariando o Cerimonial no ato da coroação,
Napoleão tirou a coroa das mãos do Papa e a colocou sobre a sua cabeça,
procedendo de forma semelhante na coroação da Imperatriz Josefina.
Passados os anos,
quando se aproximava já o fim dos seus dias em Santa Helena, Napoleão
apresentará uma concepção mais aberta do fenômeno religioso (numa espécie de
meio-caminho entre o otimismo leibniziano, o imanentismo espinosano e o
pietismo kantiano), como testemunha Thiers na sua obra Histoire du Consulat
et de l’Empire: “Na medida em que o tédio e a inação destruíam a sua
saúde, ele via a morte se aproximar e se ocupava mais freqüentemente de
filosofia e de religião. Deus, dizia, é visível em todas as partes do Universo
e são bem cegos ou bem fracos os olhos que não percebem isso. Do meu ponto de
vista, eu o descubro na natureza inteira, sinto-me sob a sua mão todo-poderosa
e não busco duvidar da sua existência, pois eu não tenho medo d’Ele. Creio que
Ele é tão indulgente quanto grande e estou convencido de que, tendo regressado
ao seu vasto seio, encontraremos aí confirmados todos os pressentimentos da
consciência humana e que aí será bom ou ruim o que os espíritos verdadeiramente
esclarecidos tiverem considerado bom ou ruim na terra. Deixo de lado os erros
dos povos, que se caracterizam pelo fato de que o erro de um não é o erro de
outro; mas aquilo que os grandes espíritos de todas as nações tiverem declarado
bom ou mau, ficará como tal no seio de Deus. Não duvido disso e, apesar dos
meus erros, aproximo-me tranqüilamente da soberana justiça. Passo a ficar menos
seguro quando entro no domínio das religiões positivas. Aí eu encontro, a cada
passo, a mão do homem e amiúdo ela me ofusca e me choca... Mas é preciso não
ceder a este sentimento, no qual entra muito de orgulho humano. Se deixarmos de
lado as tradições nacionais com as quais todos os povos têm complicado a
religião, encontramos neles a noção de Deus, a noção de bem e de mal firmemente
professados, e isso é o essencial. Quanto a mim, tenho estado nas mesquitas,
tenho visto ali homens ajoelhados diante do poder eterno e apesar de que meus
hábitos nacionais fossem às vezes melindrados, no entanto jamais experimentei o
sentimento do ridículo. A calúnia, deformando os meus atos, tem dito que no Cairo
eu professei o islamismo enquanto que em Paris, diante do Papa, eu me
apresentava como católico. Há, no entanto, parte de verdade nessa afirmação,
pois mesmo nas mesquitas eu encontrava algo respeitável e, sem me emocionar
como nas igrejas católicas onde se desenvolveu a minha infância, eu via ali o
homem ajoelhado, humilhando a sua fraqueza diante da majestade de Deus. Toda
religião que não seja bárbara tem o direito ao nosso respeito e nós, cristãos,
temos a vantagem de ver nela uma que está voltada para as fontes da moral mais
pura. Se devemos respeita-las todas, temos mais razão ainda para respeitar a
nossa e cada um, por princípio, deve viver e morrer naquela em que a sua mãe
lhe ensinou a adorar a Deus. A religião é uma parte do destino. Ela
forma com o solo, as leis, os costumes, esse todo sagrado que chamamos pátria e
do qual jamais podemos desertar. No que tange a mim, quando, na época da
concordata, alguns velhos revolucionários me falavam para tornar a França
protestante, eu ficava revoltado, como se me tivessem proposto abdicar da minha
qualidade de Francês para me tornar inglês ou alemão” [apud Larousse, 2002:
111-113].
3) Atitude crítica em relação à society
parisiense
Napoleão, proveniente
de famílias corsas de pequenos gentis-homens falidos, teve uma infância e uma
juventude vividas na mais estrita limitação econômica. Daí o seu pendor pelo
trabalho disciplinado e pela moderação nos gastos. Irritava-o sobremaneira a
falta de ordem nas despesas domésticas. Já Imperador, vemo-lo vociferando no palácio
das Tuilheries contra os gastos desregrados da Imperatriz Josefina. Essa
morigeração foi transferida para a administração da coisa pública. A
racionalidade econômica era a virtude que mais destacava um contemporâneo seu,
que o acompanhou como sub-oficial de Dragões do Exército na campanha da Itália,
o desconhecido escritor Marie-Henri Bayle (que depois assinaria as suas obras
com o pseudônimo de Stendhal) [cf. Stendhal, 1996]. O jovem oficial Bonaparte
era avesso à vida dos salões, em decorrência da sua mediocridade econômica e do
interesse pelo estudo. A respeito, escreve um dos seus biógrafos: “Os cuidados
que consagra à instrução do irmão deixam-lhe muito pouca folga, e convém
acrescentar que, sendo dois a viver de um mesmo soldo, não sobrava grande coisa
para fazer figura nos salões. Alguns sous disponíveis eram empregados na
assinatura de livros (...). E os raros momentos de distração são destinados a
escrever a tese destinada ao concurso da Academia de Lyon, e cujo tema era: Determinar
as verdades e os sentimentos que mais importa incutir nos homens para faze-los
felizes” [Lévy, 1943: 19].
Quando o nosso herói
conquista o posto de general-comandante das tropas do Diretório em Paris,
vemo-lo de novo à margem da vida dos salões, embora o seu cargo o obrigue a
freqüentá-los. Se dependesse dele, não compareceria às animadas reuniões e
festas que neles se celebravam. Napoleão pensava, mesmo no meio do luxo
citadino, no seu ofício de guerreiro. Eis o que o jovem general escreveu ao seu
irmão José em 1795, relatando a vida numa capital que tentava se reerguer das
desgraças do Terror jacobino: “O luxo, o prazer e as artes ressurgem aqui de
maneira espantosa; ontem apresentaram a Fedra, na ópera, em benefício de
uma velha atriz; a assistência era imensa desde duas horas da tarde, embora os
preços fossem triplicados. As carruagens, os elegantes reaparecem, e mais do
que depressa se esquecem de tudo, como de um longo sonho, em que nunca deixaram
de brilhar. As mulheres aparecem em toda parte: nos espetáculos, nos passeios,
nas bibliotecas. Nos gabinetes dos sábios, vêm-se belas criaturas. Entre todos
os lugares da terra é somente aqui que elas merecem ter o governo; também os
homens daqui são uns loucos, não pensam senão nelas e não vivem senão para e
por elas. (...) Tudo está tranqüilo... Este grande povo entrega-se ao prazer:
as danças, os espetáculos e as mulheres que aqui são as mais belas do mundo
tornam-se a grande preocupação. A abastança, o luxo, o bom tom, tudo voltou;
não se recorda mais o terror senão como um sonho. Apresentaram hoje uma peça
nova chamada Fabins, que mandarei a você assim que for publicada.
Vive-se aqui muito bem, com muita preocupação de alegria; dir-se-ia que cada um
procura descontar o tempo de sofrimento e que a incerteza do futuro leva a nada
poupar dos prazeres do presente. (...) Quanto a mim, estou satisfeito; não me
falta senão poder entrar nalgum combate; é preciso que o guerreiro conquiste os
louros ou morra no campo da glória. Esta cidade é sempre a mesma: tudo para o
prazer, para as mulheres, os espetáculos, os bailes, os passeios, os ateliês
dos artistas” [Lévy, 1943: 35].
Nesse contexto de
futilidade social, Napoleão conheceu Madame de Staël, que estava na mira do
Diretório pelas suas relações com membros da antiga nobreza e em decorrência,
também, das suas idéias liberais. A brilhante escritora quis se aproximar do
nosso herói, tentando seduzi-lo com a sua inteligência. Eis o diálogo que se
passou entre a jovem senhora e o general, segundo o testemunho de um dos
presentes, Arnault: “É difícil abordar-se o seu general, me disse ela,
preciso que o senhor me apresente a ele. – Ela cumulou Napoleão de
galanteios; mas Bonaparte, deliberadamente, deixava a palestra esfriar. Madame
de Staël, desapontada, procurava todos os assuntos possíveis: - General,
qual é a mulher que o senhor mais amaria? - A minha. – Isto é natural, mas qual
é a que o senhor mais quereria? – A que melhor soube cuidar do lar. – Ainda
estou de acordo com o senhor. – Mas, finalmente, qual é, na sua opinião, a primeira
entre as mulheres? – A que produz mais filhos. Dito isto, Bonaparte deu-lhe
as costas, deixando-a estarrecida” [Lévy, 1943: 262]. Anotemos um detalhe que
põe de relevo, de um lado a agressiva personalidade dirigente do Imperador e,
de outro, o seu especial sentido de honra que aprofundaremos no próximo item:
depois de ter considerado a grande escritora “um verdadeiro corvo (...) que se
multiplicou em conspiratas e loucuras” [apud Lévy, 1943: 263], depois de tê-la
banido durante dez anos da França, obrigando-a a peregrinar pela Europa afora
como ela própria testemunha em Dix années d’exil, depois de ter
mandado destruir a edição do clássico livro dela intitulado De
l’Allemagne, o outrora feroz guerreiro não deixou de reconhecer os
méritos da sua pior inimiga, no retiro de Santa Helena, ao afirmar: “Madame de
Staël é uma mulher de grande talento, especialmente singular, possuidora de
muita força interior: ela permanecerá” [apud Las Cases, 1968: 521]. O Imperador
sabia valorizar os que rivalizavam com ele!
4) Sentido da honra
Napoleão cultivou, desde a sua juventude, um
particular sentido da honra, que o levava não a brigar afoitamente com aquele
que o ofendesse, mas a lhe dar uma resposta à altura, no decorrer do
tempo.Vejamos alguns exemplos desta peculiar forma de reagir, que denota mais a
atitude de quem, cônscio do seu valor e da sua força, calcula meios e fins,
daquele que não quer comprometer os planos longamente traçados por causa de uma
vingança afoita em face de provocações. Às meninas que o apelidaram de “gato de
botas” quando jovem segundo-tenente em La Fère, Bonaparte deu uma resposta no
mínimo original. Escutemos o testemunho de um de seus biógrafos: “Obedecendo à
ordem de partir, alegre como o pode ser um segundo-tenente de 16 anos, Napoleão
enverga o uniforme, despido de elegância, pois suas posses lhe impõem a mais
severa economia. Suas botas eram tão singularmente grandes que as pernas,
muito finas, desapareciam inteiramente. Orgulhoso do novo uniforme,
Napoleão vai à casa dos seus amigos Permon. Ao vê-lo, as duas filhinhas do
casal, Cecília e Laura (esta última tornou-se mais tarde duquesa de Abrantes),
não podem conter o riso, e o apelidam em sua presença de Gato de Botas.
O jovem tenente não se aborreceu, ao que parece, pois, segundo nos diz uma
delas, levou-lhe alguns dias depois o conto de Perrault e um carrinho com um
gato de botas” [Lévy, 1943: 10-11]. Lembremos que o título de duquesa de
Abrantes foi concedido pelo Imperador a Laura, com o que se revela uma segunda
faceta de uma “vingança com luva de pelica”, praticada vinte anos depois.
Um outro exemplo da peculiar forma de Napoleão viver
o seu sentido da honra. Em 1794 Robespierre, o Jovem, seu protetor, incumbiu-o
de uma missão secreta na Suíça. Alguns meses depois, o mandante foi destituído
e guilhotinado. O comissário Salicetti ordenou então a prisão do jovem
Bonaparte, que foi encarcerado no forte Carré, perto de Antibes. O prisioneiro
rejeitou a ajuda dos seus companheiros de armas para tira-lo da prisão pela
força, preferindo se submeter aos aborrecimentos e riscos do processo jurídico
normal. Na sua defesa, alegou apenas razões processuais e lembrou os serviços
prestados à República. Eis as palavras da intervenção do oficial, cheias,
aliás, de dignidade militar: “Servi em Toulon com algum mérito, e obtive no
exército da Itália uma parte dos louros com que ele se cobriu durante a tomada
de Saorgio, d´Oneille e de Tanaro. Por que declarar-me suspeito sem me ouvir?
Declaram-me suspeito e embargam os meus documentos. Deveriam fazer o inverso:
embargar os meus documentos, ouvir-me, pedir esclarecimentos, e em seguida
declarar-me suspeito, se houver motivos para isso”. O comissário Dennié
examinou os papéis apreendidos e, não encontrando mérito para a acusação,
colocou o jovem Bonaparte em liberdade. Em 1795, um ano depois desses
acontecimentos, o flamante general achava-se à frente do exército republicano
da Itália e encontrou, escondido na casa dos seus amigos Permon, o famigerado
Salicetti, que tinha caído em desgraça perante a Convenção. Em lugar de
prende-lo, Bonaparte deixou-o fugir bem disfarçado. E como resposta à sua
passada vilania enviou-lhe a seguinte nota: “Salicetti, você bem vê que eu
poderia ter pago o mal que me fez e, se eu tivesse agido dessa forma, estaria
apenas me vingando, ao passo que você me prejudicou sem que eu o tivesse
ofendido. Vá, procure em paz um asilo em que você possa voltar a ter melhores
sentimentos para com a sua pátria” [Lévy, 1943: 28].
Um outro exemplo. Em 1796, tendo sido feitas as
proclamas do casamento, Napoleão, completamente feliz pela conquista, fazia
visitas com a noiva Josefina. Esta, hesitante, quis visitar o tabelião
Raguideau para receber um último conselho, e solicitou a Bonaparte que ficasse
na sala de espera. Eis o teor do conselho do tabelião, segundo testemunho de
Bourrienne: “Por que casar com um general que não tem senão a capa e a espada,
e que só possui uma casinhola? Um generalzinho sem nome, sem futuro, abaixo de
todos os grandes generais da República! Era melhor casar com um fornecedor do
Exército!” [Lévy, 1943: 57]. Napoleão, que escutou a conversa por uma porta
semi-aberta, não falou nada. Oito anos mais tarde, no entanto, na véspera da
coroação, fez chamar às Tulherias o burguês Radigueau e lhe deu um lugar na
primeira fila da Catedral de Notre Dame, para assistir à cerimônia, a fim de
que o reles tabelião pudesse ver com os próprios olhos o lugar onde o
generalzinho sem futuro tinha colocado a sua antiga consulente.
Ressalta, no comportamento de Napoleão, a gratidão
para com os seus mestres e antigos servidores. O padre Dupuis, que foi
professor do nosso herói quando da sua primeira formação em Brienne (de abril
de 1779 a setembro de 1784), veio a ser conselheiro de Napoleão, tornando-se
depois bibliotecário em Mailmason, a residência do Primeiro Cônsul. Sabedor da
morte de seu velho mestre, em 1807, o Imperador escreveu de Osterode à
Imperatriz: “fale-me da morte desse pobre Dupuis; mande dizer ao irmão dele que
o protegerei”. O padre Carlos, capelão, e que lhe havia administrado a primeira
comunhão, quando menino, jamais foi esquecido. Em 1790, Napoleão, tenente de
artilharia em Auxonne, não deixa, cada vez que vai a Dôle, de visitá-lo. O
velho Dupré foi professor de história sagrada de Napoleão em Brienne e apareceu
um dia em Saint-Cloud para lembrar ao ilustre ex-aluno esse fato; recebeu do
Imperador, imediatamente, uma pensão de 1.200 francos. O padre Patrault, seu
professor de matemática, viveu em companhia de Napoleão em 1795 e foi um dos
seus secretários no exército da Itália. Os próprios porteiros do colégio de
Brienne, Hauté e sua mulher, tornaram-se mais tarde porteiros da residência do
Primeiro Cônsul. A velha professora Madame de Montesson, que lhe colocou na
cabeça a primeira coroa de prêmio escolar, é chamada pelo Imperador às
Tulherias e recebe de volta todos os bens que lhe tinham sido confiscados pelos
jacobinos. Seria longa a lista dos antigos mestres e servidores beneficiados
pelo ilustre ex-aluno. Terminemos este relato lembrando talvez o mais
importante de todos eles, o grande físico Pierre-Simon de Laplace (1749-1827),
que foi professor e examinador de matemáticas do jovem Bonaparte na Escola
Militar em Paris, em 1785. Laplace foi nomeado ministro do interior por
Napoleão, depois senador e, finalmente, conde do Império. Bem é verdade que o
sábio ficou poucos dias no gabinete (6 semanas), tendo o Imperador alegado o
seguinte motivo para afastar o seu antigo mestre do ministério: “Geômetra de
primeira linha, Laplace não tardou em se revelar um administrador mais do que medíocre. Desde o
início percebemos que tínhamos nos enganado. Laplace não tomava decisões senão
com o seguinte critério: ele procurava subtilezas em tudo, não tinha mais do
que idéias problemáticas e introduzia, enfim, o espírito dos infinitamente pequenos
na administração” [Unicaen, 2004: 9].
5) Etapas da formação intelectual de Napoleão
Três grandes etapas podemos distinguir na formação
intelectual do nosso herói: A -
Primeira formação (entre 1779 e 1785), obtida nas Escolas Militares de
Brienne e do Campo de Marte, em Paris, onde deita as bases da sua formação
humanística (estuda latim e lê Plutarco), e familiariza-se com os fundamentos
da matemática sob a orientação de vários mestres, sendo o mais importante deles
o grande sábio Laplace. B – Formação como oficial artilheiro (entre 1785
e 1789), nos regimentos de La Fère, Valence, Lyon, Douai e Auxonne, onde estuda
os princípios básicos da tática militar, da história militar e da artilharia,
sob a orientação do barão du Teil e onde completa a sua formação humanística e
política com a leitura das obras de autores representativos da cultura antiga
(Platão, Cícero, Cornélio Nepote, Tito Lívio, Tácito), bem como de escritores
modernos (Rousseau, Montesquieu, Montaigne, Corneille, Maquiavel, Guibert, Mably,
Voltaire, Mirabeau, Raynal, Jacques Necker, etc.). Interessa-se, neste período,
outrossim, pela história de outras culturas como a dos povos Árabes, da
Inglaterra, da Prússia, da Suíça, da República de Veneza, etc. Interessa-se
também pelo estudo do Direito Romano. Completa a sua formação com o
aprofundamento dos conhecimentos científicos nos terrenos da matemática, da
física, da química e da astronomia. C – Complementação da sua formação
militar como oficial revolucionário (entre 1790 e 1795), inicialmente
partidário dos jacobinos (influenciado por Robespierre, o jovem), mas logo
contrário a eles (sob a influência de Barras). Bonaparte teve oportunidade,
nesta etapa da sua formação, de confrontar os seus conhecimentos teóricos com a
ação guerreira na Córsega, onde lutou, com a patente de Coronel, na defesa dos
princípios da Revolução e com o cerco e a tomada de Toulon à armada inglesa, em
dezembro de 1793, tendo sido o plano militar obra do recém-formado artilheiro.
Esta etapa de formação termina com a brava defesa que o jovem general faz da
Convenção em Paris, em 1795, contra um levante monarquista.
As obras escritas por Napoleão são mais numerosas do
que se imagina. Escreveu muito, antes de assumir o poder, escreveu muito também
estando nele, e ditou muito quando saiu da atividade política. Os seus escritos
cobrem uma variadíssima gama de assuntos, indo desde a história, passando pelas
ciências naturais, a política, a crítica teatral, a teoria do Estado e do
direito público, a crônica, a agricultura, as relações internacionais, a
historiografia militar, a educação, as matemáticas, a religião, o romance e o
conto, e chegando até os estudos estratégicos e de táctica guerreira que são,
evidentemente, os que mais se destacam. O estilo do Imperador era claro,
simples, mas pouco elaborado em decorrência, provavelmente, das circunstâncias
agitadas por ele vividas, sendo o lugar de trabalho não propriamente o elegante
despacho imperial em Paris, mas a improvisada tenda no front.
Dentre os vários ensaios e obras literárias que
integram a produção intelectual do Imperador, podemos salientar os seguintes,
em ordem cronológica de publicação [cf. Larousse, 2002: 223-228]:
Memorando de um curso de mineralogia (sem data), Plano de reforma
das Escolas Militares (1785), Memória acerca da educação dos
jovens Maniotes (1785), Máscara vidente (conto oriental,
1786-1787), Romance Corso (obra literária, 1786-1787), O
Conde de Essex (romance, 1786-1787), Pesquisas sobre a ciclóide
(Auxonne, 1788), Memória sobre o cultivo da amoreira (Auxonne,
1788), Memória acerca da maneira de distribuir as peças de canhão para o
lançamento das bombas (Auxonne, 1788), Dissertação sobre a
autoridade real (Auxonne, 1788), Memória sobre a Córsega (1788),
História da Córsega (1788), Carta acerca do juramento
constitucional dos sacerdotes (1790), Manifesto do corpo
municipal de Ajaccio (1790), Cartas sobre a Córsega dirigidas ao
Abade Raynal (1790), Dissertação sobre o amor (Valence,
1791), Discurso sobre esta questão proposta em 1791 pela Academia de
Lyon: “Determinar as verdades e os sentimentos que é necessário inculcar mais
nos homens para a sua felicidade” (Lyon, 1791), Plano de
organização das Milícias corsas (1792), Informe acerca da
necessidade de conquistar as ilhas da Madalena (1792), Projeto
para a defesa do golfo de Ajaccio, para a defesa de Mortella, etc.
(1792-1793), Memória ao ministro da guerra acerca do plano de ataque de
Toulon (Ollioules, 1793), Souper de Beaucaire (Avignon,
1793), Petição à Convenção Nacional (1793), Planos para a
segunda operação preparatória para o início da campanha do Piemonte (Nice,
1794), Compilação de matérias históricas e militares do exército da
Itália, ou Memória das operações deste exército (Colmar, 1794), Compilação
sobre a história (1794-1796), Memória e itens diversos relativos
à colocação em estado de defesa das costas do Mediterrâneo (Marselha,
1794), Disposições da força armada para o seu serviço em Paris (1795),
Memória sobre o aperfeiçoamento da artilharia turca (1795),
Nota sobre os meios de aumentar o poder da Turquia contra a invasão das
monarquias européias (1795), Projeto para fechar com uma muralha
dentada os fortes que dominam Marselha (1795), Entrevista de
Bonaparte com muitos muftis e imãs no interior da grande pirâmide chamada de
Queóps (1798), Comunicado da municipalidade de Ajaccio a Paoli (1799),
Boletins da campanha de Marengo (1800), Allocuzione fatta
dal primo console, dirigida aos sacerdotes de Milão (1800), Coleção
geral e completa das cartas, proclamas, etc., de Napoleão o Grande, publicadas
no Moniteur (Leipzig, 1808-1813, 2 volumes), Ordens-do-dia do
exército da Alemanha (1809), Compilação de manifestos, proclamas,
etc., extraídos do Moniteur (Londres,
1810), Boletins da Grande Armée aparecidos no Moniteur (Paris, 1812-1814), Cartas escritas em
Longwood, ou Cartas do Cabo da Boa Esperança (1817),
Confissões do imperador Napoleão (Londres, 1818), Correspondência
inédita, oficial e confidencial de Napoleão Bonaparte com as cortes
estrangeiras (organizada pelo general Beauvais, Paris, 1819-1821 7
volumes), Correspondência de Bernardotte com Napoleão, de 1810 até 1814 (Paris,
1819), Correspondência inédita de Carnot com Napoleão durante os Cem Dias
(Paris, 1819), Conselhos do Imperador ao seu filho (1821), Compêndio
de peças autênticas acerca do cativo de Santa Helena, de memórias e documentos
escritos ou ditados pelo imperador Napoleão (Paris, 1821-1825, 12
volumes), Testamento de Napoleão (1822), Napoleão no exílio
ou O Eco de Santa Helena (traduzido do inglês por Mme.
Collet, Paris, 1822), Memórias para servir à história da França sob
Napoleão, escritas em Santa Helena pelos generais que compartilharam do seu
cativeiro e publicadas de acordo aos manuscritos corrigidos pela mão de
Napoleão (Paris, 1823, 8 volumes), Os Bourbons em 1815; Manuscrito
da Ilha de Elba ditado por Napoleão e publicado pelo general-conde Bertrand (Bruxelas,
1825), Discursos de Napoleão Bonaparte, oficial de artilharia, escritos
em 1791 (Paris, 1826), Acerca da importância das praças fortes
(1826), Máximas de guerra de Napoleão (Paris, 1830), Opiniões
de Napoleão sobre diversos assuntos de política e de administração (obra
organizada por Pelet de la Lozère, Paris, 1833), Napoleão, compilação em
ordem cronológica de suas cartas, proclamas, etc. (organizada por Kermoysan,
Paris, 1833-1853, 3 volumes), Compêndio das guerras de César (Estrasburgo, 1836), Correspondência
e relatórios de J. Fiévée com Bonaparte (Paris, 1836, 3 volumes),
Napoleão, as suas opiniões e julgamentos sobre os homens e sobre as coisas,
organizados em ordem alfabética (obra preparada por Damas-Hinard, 1838,
2 volumes), Informe sobre a jornada de 13 vendimiário ano IV
(1840), Cópia de um manuscrito da mão de Napoleão Bonaparte, com a
ortografia que existe no mesmo manuscrito (Paris, 1841), Fragmentos
religiosos inéditos; Sentimentos de Napoleão sobre a divindade, pensamentos
recopilados em Santa Helena por Montholon e publicados pelo cavalheiro de
Beauterne (Paris, 1841), Sentimentos de Napoleão sobre o
cristianismo, conversações religiosas recopiladas em Santa Helena por Montholon
(Paris,1843), Guerra de Oriente, campanhas de Egito e da Síria (Paris,
1847, 2 volumes), Guerras de Oriente; Campanhas do Egito e da Síria;
Memórias para servir à história de Napoleão, ditadas por ele mesmo em Santa
Helena e publicadas pelo general Bertrand (Paris, 1847, 2 volumes), Notas
do Imperador Napoleão sobre a história da Inglaterra (Paris, 1850), Pensamentos
e máximas do imperador Napoleão, recopilados das suas memórias e da sua
correspondência (obra organizada por E. Alex Husson, Paris, 1852), Giulio,
conto sentimental improvisado por Napoleão (Paris, 1852), Os
poloneses em Somo-Sierra em 1808, seguido das opiniões de Napoleão 1o.
sobre a Polônia (Paris, 1855), Máximas, pensamentos e reflexões
de Napoleão 1o. (obra organizada por A. D. Mariotti, Bastia,
1857), Correspondência de Napoleão 1o. (Paris,
1858-1869, 32 volumes), Alésia (Paris, 1859), Testamento
religioso de Napoleão 1o., a sua profissão de fé sobre Deus, sobre
Jesus Cristo e sobre os principais dogmas do cristianismo (Paris,
1861), Regulamento interno do regimento de La Fère, composto em 1788 por
Napoleão Bonaparte (1862).
As Obras Completas de Napoleão
conheceram uma primeira edição entre 1822 e 1823, em Sttutgart, em 5 volumes
organizados por Linder e Lebret, tendo sido editadas também em Paris, em 5
volumes, em 1822. Tratava-se, evidentemente, de edições incompletas, devido ao
fato de muitos escritos do Imperador terem visto a publicidade anos mais tarde.
II – O GENERAL
Bonaparte foi, antes de tudo, um convicto defensor
da Revolução Francesa. Considerava que a grande gesta tinha marcado o início
para a libertação definitiva da sua pequena pátria, a Córsega, do jugo dos
Bourbons. A sua fé nos princípios inspiradores da Revolução era inamovível.
Essa atitude o acompanhou já desde a sua formação na Escola Militar de Paris.
Como frisa um de seus biógrafos, “Era grande o ardor de Napoleão pela
Revolução. Bonaparte também secretariava o clube da Sociedade dos Amigos da
Constituição, cujos membros conservavam durante muito tempo a recordação de
seus calorosos e vibrantes discursos. Suas opiniões avançadas o tornavam mal
visto pelos chefes e camaradas que continuavam fiéis ao antigo estado de
coisas” [Lévy, 1943: 19]. Desenvolverei três itens: Horror ao desgoverno e
ao populismo, Lineamentos gerais da estratégia de Bonaparte e As
fontes da estratégia napoleônica.
1) Horror ao desgoverno e ao populismo
Mas se o general Bonaparte era defensor da
Revolução, tinha ficado impressionado com os desmandos cometidos, em nome dela,
pelo Terror. Diríamos que Napoleão, filho da Revolução, queria garantir as
conquistas que ela trouxe à sociedade francesa: o fim da servidão do Ancien
Regime, a igualdade de todos os cidadãos perante a Lei, o término da
Monarquia alicerçada em razões religiosas. Discípulo de Rousseau, Bonaparte
quis regenerar a sociedade francesa (e a Europa, a partir dela), inserindo um
componente de ordem, que teremos oportunidade de ampliar na III Parte desta
exposição. De momento, destaquemos com Artur Lévy o horror que o jovem general
sentia em face da demagogia e das agitações populares: “Durante sua permanência
em Paris, Napoleão presenciou os grandes acontecimentos que marcaram o ano de
1792. Passeando com Bourrienne, viu a multidão dirigir-se dos subúrbios para as
Tulherias, no dia 20 de junho. Acompanhemos essa gentalha, disse
Napoleão. Foi ao ver essa multidão de cinco a seis mil homens, esfarrapados,
irrisoriamente armados, berrando os mais grosseiros insultos à realeza, que
Bonaparte sentiu, em todo o seu ser, aversão pela demagogia. Quando o rei,
cercado pelos cabeças da desordem, e com um gorro vermelho na cabeça, se
mostrou àquela turba de vagabundos, Napoleão não pôde conter-se e exclamou: Che
coglione, como deixaram que essa gentalha entrasse? Devia-se metralhar a canhão
quatrocentos ou quinhentos deles, que o resto correria” [Lévy, 1943: 21].
Foi mais ou menos o que o até então desconhecido
general fez na noite de 13 para 14 vindimiário (5 a 6 de outubro de 1795):
chamado pelo acuado Barras para defender a Convenção contra mais um levante
popular patrocinado pelos monarquistas, na qualidade de vice-comandante do
exército, Napoleão responde: “Aceito, mas previno-o que, desembainhada a minha
espada, eu só a guardarei depois de restabelecer a ordem”. O jovem oficial de
artilharia desestruturou o movimento revolucionário, posicionando
estrategicamente os canhões nas principais vias de acesso à sede do governo.
Após a primeira descarga, os revoltosos fugiram em disparada, sabendo que havia
um comandante decidido. No dia seguinte, o jovem de 26 anos, agraciado com a
patente de general de divisão, assim contava ao seu irmão José a ação da noite
anterior: “Enfim, tudo terminou; o meu primeiro gesto é pensar em lhe dar
minhas notícias. A convenção ordenou o desarmamento da seção Lepeletier, e esta
repeliu as tropas (...). A Convenção nomeou Barrras para comandar a força
armada; os Comitês me nomearam para o sub-comando. Nossas tropas tomaram
posição, e os inimigos vieram atacar-nos nas Tulherias (...). Desarmamos as
seções e tudo está calmo. Como de costume, não recebi nenhum ferimento” [apud
Lévy, 1943: 48].
2) Lineamentos gerais da estratégia de Bonaparte
A partir desse momento, a estrela do jovem general
não pararia de ascender no cenário francês, na campanha da Itália, no Consulado
e, por fim, no Império por ele criado. Em dez anos, o nosso herói galgaria de
maneira fulgurante todos os degraus do poder e da glória militar. Destaquemos
rapidamente as linhas gerais da estratégia bonapartista na arte da guerra. O seu
maior mérito consistiu em ter organizado e disciplinado um exército mal dotado,
imprimindo-lhe coesão e rapidez suficientes para ter sempre a iniciativa da
ação e para saber com segurança como deveria agir no campo de batalha. Ao
chamá-lo de gênio da guerra, os seus biógrafos certamente não
exageraram, levando em consideração que o nosso herói venceu os seus inimigos
em quatorze batalhas consecutivas. As suas vitórias em Lodi, Arcola e Rivoli
são paradigmas da estratégia moderna, em decorrência da inteligente concepção
do desenvolvimento das tropas e da audácia na execução dos movimentos. Napoleão
revolucionou a arte da guerra e modernizou a organização do exército.
Ao longo do Ancien Régime tinha sido
desenvolvida uma estrutura de exército articulado, que devia se deslocar em
fileira e que não conseguia, portanto, abarcar grandes extensões de terreno,
nem obrigar o inimigo a enfrentar a batalha ou a executar manobras defensivas.
Graças à Revolução Francesa e à instituição da conscrição obrigatória e das
requisições compulsórias de bens, aumentaram os efetivos e os meios materiais
do exército e teve início a denominada guerra de massas. Passou a ser
necessário fragmentar os contingentes em divisões, a fim de torna-los mais
administráveis. Sob a férula do Diretório foi criada uma unidade denominada de corpo
de exército, formada por uma massa que oscilava entre os 14 mil e os 40 mil
homens, integrada por várias divisões. Na campanha de Marengo, Bonaparte
organizou um corpo de exército integrado por duas ou três divisões, com
uma cavalaria ágil e pouco numerosa (constituída geralmente por corpos
independentes) e uma reserva de artilharia móvel que ficava sob o comando do
chefe máximo da operação. O gênio militar de Napoleão revelou-se na forma em
que ele passou a manobrar essa nova modalidade de exército. O general expandia
os seus soldados de forma tal que impedia os movimentos rápidos do inimigo,
conservando, ao mesmo tempo, a possibilidade de aglutinar prontamente as tropas
no momento da batalha. Bonaparte dirigia vários corpos de tropa em direção a um
ponto situado por trás do front inimigo, de forma tal que, ao avançarem os
soldados, a totalidade das forças terminavam envolvendo o exército contrário. A
estratégia napoleônica não era, porém, rígida demais, deixando espaço para o
improviso e a ágil adaptação às condições novas do terreno. A surpresa no
ataque era uma das cartas que Bonaparte guardava na manga. No desenvolvimento
do confronto, o general gostava de ir desgastando os seus adversários mediante
rápidos ataques aos flancos ou à retaguarda, evitando perdas de homens. A
artilharia era fundamental para ir quebrando o moral do inimigo. (Lembremos que
a artilharia francesa era, na época, a mais avançada da Europa). Quando
considerava que o adversário se encontrava suficientemente desgastado,
Bonaparte dava o bote final, concentrado o grosso das suas forças no ponto
central do exército inimigo, de forma a acabar com ele. Essa era a essência da
estratégia napoleônica [cf. Colin, 1901: 353-367; Belloc, 1958: 103-181].
As inovações pensadas e postas em prática por
Napoleão no campo de batalha tornaram-no, certamente, um dos grandes
formuladores da estratégia moderna, ao lado de Vauban, Frederico o Grande,
Guibert, Bülow, Jomini e Clausewitz. Os teóricos da guerra são unânimes neste
ponto. Um dos estudiosos contemporâneos mais acurados, Peter Paret, frisa a
respeito o seguinte: “Napoleão reconheceu todo o potencial da revolução na
guerra, descobriu como seus componentes poderiam ser levados a trabalhar em
conjunto – nas palavras de Clausewitz, ele corrigiu os defeitos técnicos das
inovações, que até então tinham limitado sua eficácia – e, colocando os
recursos da França a serviço do novo sistema, por algum tempo deu a ela a
superioridade absoluta. (...) A repartição do exército em comandos com bastante
auto-suficiência, o que, nas guerras da Revolução freqüentemente significou
dispersão de esforços, foi mantida por Napoleão, que, no entanto, impôs
controle centralizado muito mais firme aos comandos dispersados e neles incutiu
sua fé no movimento rápido e na ofensiva. O resultado foi nova mobilidade, que
tornou possível a concentração de força superior no ponto decisivo” [Paret,
2002: I, 180-181].
3) As fontes da estratégia napoleônica
A Guerra dos Sete Anos (1756-1763) fez com que se
modernizasse de maneira visível a estratégia e a organização do Exército
Francês. A principal mudança técnica ocorreu por força da melhora significativa
da capacidade de fogo da artilharia. Outras reformas viriam na trilha desse
avanço técnico, como a referente à quebra da uniformidade de ordem dos
batalhões no campo de batalha. Se os infantes podiam contar com uma mais eficaz
e ágil proteção da artilharia, não era necessário manter a ordem unida e em
certa medida estática apregoada pelas doutrinas antigas. Era possível imprimir
aos corpos de tropa mais agilidade de movimentos, mais agressividade e maior
ousadia. Nas campanhas que se efetivaram ao ensejo da Revolução Francesa e,
ulteriormente com o advento do Império, esses avanços foram aperfeiçoados e
neles Napoleão teve um papel importante.
Os autores que inspiraram a estratégia de Napoleão
foram o barão du Teil (sob cujo comando o jovem oficial estagiou em Auxonne),
Guibert e Bourcet. Deles o General tirou o conceito fundamental de concentração
de esforços da sua estratégia, como frisa com propriedade o mais importante
historiador da formação militar de Bonaparte, o capitão Jean Colin: “No meio de
todas as suas meditações, ele é dominado pelas idéias que inspiraram a du Teil
e em parte a Guibert, por essas idéias simples que ele assimilou ao longo dos
seus primeiros anos como artilheiro. São elas ainda que dominam a sua doutrina
e as suas obras: concentração de esforços, mobilidade, atividade, eis o fundo
da doutrina napoleônica, e que não é outra coisa do que o princípio tirado de
todos os trabalhos do século XVIII. Se lermos a obra do cavalheiro du Teil e os
capítulos que Guibert consagrou à artilharia, o princípio da concentração de
esforços aparece em primeiro plano. Quer leiamos em Guibert ou em Bourcet os
capítulos relativos à grande tática, à disposição das diferentes partes de um
exército, o que ressaltará de entrada é a necessidade de combinar os movimentos
e garantir a ligação entre as divisões. É, pois, natural admitir que o princípio
da concentração de esforços e o da ligação entre as partes de um exército foram
inspirados a Napoleão, seja pela leitura de du Teil, Guibert e Bourcet, seja
pelas lições de oficiais imbuídos das idéias desses três autores. Sendo esses
dois princípios o fundamento de todo o sistema de guerra de Napoleão, é natural
concluir que ele se formou na escola de du Teil, de Guibert e de Bourcet”
[Colin, 1901: 141-142].
III – O IMPERADOR
Napoleão, como Júlio de Castilhos ou Getúlio Vargas,
não foi um teórico da política. Foi mais um político pragmático. Como frisa
Touchard [1972: 366], “o Império é uma época de ação, não de doutrina. Napoleão
detesta os ideólogos, e atribui à ideologia a responsabilidade por todas
as desgraças sofridas pela França”. O Imperador considerava a ideologia “como
essa tenebrosa metafísica que, ao procurar com sutileza as causas primeiras,
quer fundar sobre essas bases a legislação dos povos, em lugar de adequar as
leis ao conhecimento do coração humano e às lições da História” [apud Touchard,
1972: 366-367]. Daí por que, diante da necessidade de caracterizar a política
napoleônica, devemos prestar atenção aos mecanismos mediante os quais ele
pretendeu consolidar, de forma prática, a sua obra. Se bem é certo que o
Imperador dos Franceses rejeitava a teoria abstrata, dava grande valor, no
entanto, ao sustentáculo cultural que, do ângulo da imaginação popular, dava
alicerce à política real.
Nesse pragmatismo, duas variáveis passavam a jogar
um aspecto importante: a religião e o teatro. A primeira seria, para ele, o
sustentáculo da ordem social. “Não vejo na religião – frisava– o mistério da
Encarnação, mas o mistério da ordem social”. Ela satisfaz o nosso “amor pelo
maravilhoso (...). Os sacerdotes valem mais do que os Cagliostro, os Kant e
todos os sonhadores da Alemanha”. O teatro, por sua vez, garantiria o reinado
da imaginação que é, para os povos, o alimento do espírito. O Imperador
considerava que “o vício das nossas instituições consiste em não ter nada que
fale à imaginação. Somente com o seu concurso pode-se governar o homem. Sem a
imaginação, ele é um bruto” [apud Touchard, 1972: 367]. Daí a grande
importância que o Imperador conferiu ao teatro, como teremos oportunidade de
mostrar um pouco mais adiante. Napoleão insere-se, assim, no contexto da reação
ao Iluminismo, embora também receba a influência desta corrente. Irmana-se,
destarte, com a tendência da época e com autores que, no contexto do
Romantismo, irão fazer uma crítica radical aos excessos dos philosophes
do século XVIII como Madame de Staël, Royer-Collard, Constant de Rebecque,
Guizot, etc.
O cerne pragmático da estrutura do poder
institucionalizado, segundo Napoleão, seria o Conselho de Estado que, ligado
diretamente ao Imperador, teria como finalidade essencial auxilia-lo na
confecção das Leis de que a Nação carecia para sua organização política e
administrativa. Napoleão entendia o Estado como um Sistema de
engrenagens matematicamente sincronizadas entre si. Tratarei de mostrar este
aspecto no presente item da minha exposição. Desenvolverei, para isso, cinco
pontos: o Conselho de Estado; a Representação Política; o Clero, a Literatura e
o Teatro; a Universidade e, por último, o Exército e o alargamento do Império
ao resto da Europa.
1) O Conselho de Estado
Entre 1800 e 1814, foi justamente o Conselho de
Estado o órgão que se responsabilizou pela legislação e que deu ensejo,
portanto, à institucionalização do Estado Francês. O Papel da Magistratura
seria o de preservar o conjunto de leis ensejado pelo Império e fazer com que a
máquina governamental e administrativa funcionasse a contento. Em primeiro
lugar, valha salientar um aspecto essencial do Império napoleônico: o valor que
o Soberano conferia à formulação da Lei e à sua aplicação. “A minha glória,
disse Napoleão em 1818, não consiste em ter vencido quarenta batalhas. O que
ninguém apagará, o que viverá eternamente, é o meu Código Civil e os processos
verbais do Conselho de Estado”. Sobre essa base legal nova, a ação da
Magistratura seria racional e justa, no sentir do Imperador.
O cerne do Império napoleônico, o coração do que o
Imperador chamava de Sistema, era constituído pelo Trono e pelo Conselho
de Estado. Esse Sistema foi progressivamente preparado por Bonaparte já
no período do Consulado. O Império só veio a desvendar o que já era uma
realidade: tudo girava ao redor do Primeiro Cônsul Vitalício. Napoleão agia
inspirado pelo rousseauismo, em sentido diferente da Convenção e dos Jacobinos:
ao passo que tal inspiração, neles, traduziu-se no assembleísmo e na impossibilidade
de governar, o Imperador fez uma interpretação rigorosamente centralizadora e
unipessoal da busca dos melhores: o representante da Nação era somente o
Soberano.
Valha a pena salientar, aqui, que Napoleão tinha
lido os escritos de Jacques Necker (1732-1804), que foi o último ministro de
Finanças de Luís XVI. O jovem oficial tinha se dirigido ao ministro para que
levasse em consideração as peculiares condições da Córsega, na formulação da
política econômica do Reino, poucos anos antes de eclodirem os acontecimentos
de 1789. Necker, aliás, tinha apresentado ao Soberano, na véspera da Revolução,
um plano de salvação da França, alicerçado na iniciativa que o Monarca deveria
decididamente assumir para garantir o abastecimento de gêneros de primeira necessidade
ao povo (impedindo a especulação que grassou no final do Ancien Regime,
fazendo explodir as tensões sociais) e instaurar a Monarquia Representativa,
sem contudo ceder às chantagens dos mais exaltados. O projeto de Monarquia
Moderada de Necker talvez tenha servido de ponto de meditação para Bonaparte. O
jovem general terminou concluindo que somente uma Monarquia salvaria a França.
O rousseauismo de Bonaparte levou-o a pensar, contudo, como vimos, numa
Monarquia absoluta. De qualquer forma, os escritos do ex-ministro de Luís XVI
eram conhecidos pelo jovem general. Seis obras sintetizavam o pensamento de
Necker: Traité de l’Administration des Finances de France (1784),
De l’Administration de Monsieur Necker par lui-même (1791), Du
pouvoir exécutif dans les grands États (1792), Réflexions
offertes à la Nation française (1789), Cours de moral religieuse
(1800) e Dernières vues de politique et de finances (1802).
Voltemos à análise do que constituía o cerne do modelo
napoleônico. Cabia somente ao Imperador elaborar as leis e organizar o Estado,
fazendo girar ao seu redor todas as instituições públicas e até a própria
sociedade. Era isso o que Napoleão entendia como seu Sistema. Inspirado
no mestre Laplace, o Imperador considerava, de outro lado, que a Nação toda
devia ser arregimentada e racionalizada pelo centro único de Poder, que agiria,
no universo político, como os astros giravam ao redor do Sol no Sistema
de Newton. E assim como Laplace conseguiu elaborar uma equação que
possibilitasse situar com precisão matemática os movimentos dos diversos
elementos do Sistema cosmológico, com igual precisão seria possível
prever e regular o comportamento dos diversos agentes sociais ao redor do
centro único, no Sistema político.
É curioso notar que Napoleão entendia o seu Sistema
num contexto teodiceico que funcionava mais ou menos assim: de forma semelhante
a como Deus está presente no cosmo newtoniano através do espaço absoluto,
que era definido pelo físico inglês como sensorium Dei, da mesma forma,
no universo político, tudo gira ao redor do Imperador. Napoleão ficou muito
chateado com o seu mestre Laplace, porque este não reconhecia a validade da
hipótese da presença de Deus no Universo físico, traduzido matematicamente
pelas suas famosas equações [cf. Vianna, 1971: 1-2]. A propósito, relata Victor
Hugo: “Arago tinha uma anedota favorita. Quando Laplace publicou sua Mecânica
celeste, contava, o Imperador o fez comparecer à sua presença. O
Imperador estava furioso e o interpelou da seguinte forma: – Como é possível que
o senhor imagine todo o sistema do mundo, formule as leis de toda a criação e
no seu livro não fale uma única vez da existência de Deus? – Sire,
respondeu-lhe Laplace, eu não tinha necessidade dessa hipótese” [apud Unicaen,
2004: 9]. Hipótese que, por sinal, certamente era básica para o Sistema de
Napoleão.
O rousseauismo de Bonaparte propendeu para a
centralização do poder na sua mão de forma exclusiva, ao passo que essa
filosofia, nos momentos anteriores (da Revolução e do Terror) tentou encontrar,
ora nas massas amotinadas, ora no Diretório, ora na Convenção, ora no Comitê de
Salvação Pública, a estranha encarnação dos denominados puros, habilitados
moralmente para formatar as virtudes republicanas no resto. Houve em Napoleão,
portanto, uma leitura à la Maquiavel e à la Hobbes dos princípios
do democratismo de Rousseau, justamente como depois do Imperador passaram a
fazer essa leitura outros líderes inspirados no seu exemplo, como é o caso de
Simón Bolívar, na Nueva Granada, e de Castilhos ou Getúlio Vargas, no Brasil. A
própria filosofia política passou a elaborar os seus arquétipos à maneira
napoleônica: a ditadura científica de Saint-Simon e de Comte, não é
outra coisa do que uma elucubração ao redor do que já existia na França entre
1800 e 1814.
Mas voltemos à ação do Conselho de Estado no
seio do Sistema napoleônico [cf. França – 1o. Império –
Conselho de Estado]. O Conselho, criado em 1799, foi o responsável pela
efetivação das grandes reformas e era muito freqüentemente presidido pelo
próprio Napoleão, na qualidade de Primeiro Cônsul (desde a sua criação até
1804) e na de Imperador (a partir de então até 1814). O mencionado Corpo estava
integrado por 40 membros escolhidos pelo Imperador. Na escolha, Napoleão
olhava, sobretudo, para a formação jurídica dos seus conselheiros, embora
levasse em consideração, também, o conhecimento que eles tivessem das
realidades do país, nas suas várias especialidades. O Imperador justificava
assim o seu critério de escolha: “Governar por um partido é se colocar, cedo ou
tarde, na sua dependência. Partido nenhum vai me controlar; eu sou nacional.
Sirvo-me de todos aqueles que têm a capacidade e a vontade de marchar junto
comigo. Eis por que tenho integrado o meu Conselho de Estado com Constituintes
que eram chamados de moderados ou flexíveis como Defermon, Roederer, Regnier,
Regnaud, Realistas como Devaisne e Dufresne; enfim, Jacobinos como Brune, Réal
e Berlier. Gosto das pessoas honestas de todas as cores”. Napoleão gostava de
ver no seu Conselho homens provenientes dos países anexados à França pelas suas
conquistas. Entre 1802 e 1811 incorporou ao dito Colegiado seis Italianos, um
Renano, quatro Holandeses e um Alemão. Lembremos que um outro importante
conselheiro, Benjamin Constant, era suíço.
Os Conselheiros, de outro lado, figuravam entre os
burocratas melhor remunerados do Império. Cada conselheiro recebia um soldo
anual que oscilava entre os 25 mil e os 30 francos, além é claro das
gratificações suplementares, que eram bastante generosas. As decisões do
Conselho abarcavam todas as áreas da administração do Estado e se estendiam das
finanças à religião, passando pelos aspectos jurídicos propriamente ditos, e
pelas questões culturais, educacionais e administrativas. O Conselho de
Estado cumpria três missões principais: legislativa (mediante a preparação
das leis e dos códigos, prévia deliberação do Conselho); jurisdicional (em
matéria de assuntos contenciosos) e administrativa (com assuntos diversos) [Cf.
França – 1o. Império - Conselho de Estado].
O papel legislativo do Conselho era assim
descrito pelo auditor Luís Comenin, em 1810: “imensa fábrica de pareceres, de
interpretações, de decretos e de leis disfarçadas sob a forma de decretos e de
regulamentos da administração pública”. Comenin refere-se à prática corriqueira
no Império de regulamentar por decreto as matérias que, pela sua natureza,
deveriam ter sido objeto de legislação. A atividade legislativa do Conselho
abarcava não só a preparação dos cinco Códigos e das grandes leis sobre a
organização administrativa, financeira e judiciária, mas também lhe concernia a
elaboração de alguns senatus consultus, de numerosas leis de interesse
local, de regulamentos, de decretos, etc. A única matéria do Conselho de Estado
que não estava sob sua jurisdição era a elaboração de tratados com outras
Nações. Alguns membros do Conselho eram encarregados de apresentar os projetos
de lei aos Corpos Legislativos e ao Tribunado que, sem deliberar, deveriam
votar a favor ou contra. Convenhamos que pela forma vertical em que se dava a provisão
de vagas nos Corpos Legislativos e no Tribunado, praticamente em poder do
Imperador, o Soberano terminava vendo aprovados os projetos que lhe
interessassem. A essência da crítica de Necker ao modelo napoleônico será, como
veremos, essa.
O papel legislativo mais visível do Conselho
consistiu na preparação, em tempo recorde, dos cinco grandes Códigos
napoleônicos: o Código Civil (1804), o Código de Processo
Civil (1806), o Código de Comércio (1807), o Código
de Instrução Criminal (1808) e o Código Penal (1810). O
movimento de codificação tinha como finalidade integrar, num todo coerente, o
cipoal de leis e regulamentos antigos, muitos deles de origem medieval, a fim
de que as novas leis exprimissem as necessidades e os interesses da nova
sociedade emergente da Revolução. Tal empresa jurídica de grande envergadura
foi possível graças à conjunção de dois fatores históricos: de um lado, o
rompimento da velha ordem decorrente da Revolução de 1789 e, de outro, a férrea
vontade do Imperador, ligada à sua forma ampla de entender o panorama político
da época, tentando preservar o que, do seu ponto de vista, seria essencial à
sociedade francesa.
2) A representação política
Napoleão entendia de forma bastante original o
processo da representação política. Como o Imperador era o único representante
da Nação, ele podia delegar parcelas dessa representação nas instâncias
estamentais do Estado. Os tradicionais Corpos Legislativos e o Tribunado,
previstos na complicada Constituição Francesa de 1800, poderiam refletir o Centro
do Poder de uma forma bastante importante para a Nação: espalhando, pela
sociedade afora, os raios da magnificência da Monarquia. Essa seria,
notadamente, a função do Senado, no qual tomavam assento figuras de prol
da antiga nobreza feudal. Assinalava Napoleão, assim, à tradicional
representação (e à antiga nobreza) uma função litúrgica, despida de qualquer
poder legislativo. O Corpo Legislativo e o Tribunado tomavam
conhecimento dos projetos de lei elaborados pelo Conselho de Estado, mas
não tinham muita margem de ação, afora a aprovação desses projetos sem
deliberação. A legislação ficava, por tanto, concentrada no Soberano e no seu Conselho
de Estado, para o qual seriam chamados os melhores, não importando
coloração ideológica nem origem de proveniência: poderiam ser plebeus ou
nobres. O importante é que fossem úteis à Nação, representativos de alguma área
do conhecimento e das ciências, que fossem os melhores na sua especialidade e,
acima de tudo, incondicionalmente fiéis ao Imperador. Foi assim como Napoleão
cooptou intelectuais de renome, sendo o caso mais conhecido o do grande
pensador liberal e precursor dos doutrinários, Benjamin Constant de Rebecque.
Pretender pensar à margem do poder estabelecido seria um suicídio político,
como foi o caso de Madame de Staël, que amargou duradouro e cruel exílio ao
longo do ciclo napoleônico (entre 1804 e 1814).
Pretender competir com o poder soberano seria, simplesmente, suicídio
físico, como aconteceu com o duque de Enghien, em cujo fuzilamento sumário o
Imperador eliminou qualquer tentativa da nobreza de voltar atrás, instaurando a
Monarquia tradicional ou um projeto de Monarquia Constitucional, à la
inglesa [cf. Madelin, 1945].
3) O Clero, a Literatura e o Teatro
No terreno do imaginário popular, Napoleão dava
grande importância a duas instâncias legitimadoras, no âmbito cultural, do
poder estabelecido: o culto católico e o teatro. A figura do Soberano estava
estreitamente ligada à defesa do Cristianismo. O Imperador pretendia instaurar
uma quarta dinastia, a Napoleônica, após as dinastias dos Merovíngios, dos
Carolíngios e dos Capetos. Tão convicto estava de ser a continuidade da
Tradição Monárquica Francesa que, entre 2 e 11 de Setembro de 1804, alguns
meses antes da sua coroação e já tendo sido eleito Imperador pelo Senado, Napoleão recolheu-se em Aix-la-Chapelle
(antiga Aquisgrã), no túmulo de Carlos Magno, a fim de refletir sobre a
tradicional dignidade que passaria a encarnar. As referências carolíngias vão
se multiplicar ao longo das semanas que antecedem à sua sagração na Catedral de
Notre Dame, em 2 de Dezembro de 1804. Para o Clero católico só haveria,
portanto, uma função: assim como a Magistratura, os bispos e padres deveriam
ser instrumentos do Império. Napoleão considerava, sem nenhuma modéstia, que a
sua dinastia seria a definitiva manifestação da grandeza da França e do
espírito humano, porquanto se trataria não já de uma Coroa a serviço da
tradição religiosa, mas justamente porque se alicerçaria na ciência e
satisfaria plenamente a imaginação popular, reconciliando a inteligência com o
sentimento. Não se tratava, como posteriormente pensou Comte, de banir o mito,
como definitivamente superado pela ratio cientifica. Tratava-se, sim,
de fazer entrar a França e o Gênero Humano no estágio mais desenvolvido da
cultura humana, aquele que, à luz das ciências, abarcaria todas as outras
manifestações do espírito, sem banir a emoção e o sentimento. Quem garantiria
toda essa realização seria o Imperador e ninguém mais do que ele [cf. Hicks,
2004: 1-5].
Em decorrência dessa visão unipessoal de Napoleão
como Messias da França e da Humanidade, as Letras, em geral, sofreram bastantes
restrições durante o seu longo reinado. No Império, efetivamente, a Literatura
foi objeto de uma ciosa vigilância por parte da Censura e da Polícia, que
limitaram bastante o número de jornais e de teatros. Sem dúvida que a
Restauração favoreceu de novo a circulação das idéias, com a retomada da vida
dos Salões (como os de Madame Duras e Madame Récamier). Lembremos, em
contrapartida, as agruras sofridas por Madame de Staël e pelo Grupo de Coppet,
na tentativa de estimular a criação literária independente, no ciclo
napoleônico. A crítica literária e de idéias foi dominada, assim, ao longo
deste período, pela oposição liberal e pelos denominados ultras. Os
ideólogos, herdeiros de Condorcet e leitores de Condillac (como Destutt de
Tracy, Volney, Bichat, Cabanis), pretendiam fundar uma ciência das idéias e do
homem, uma ciência humana. Freqüentadores do Salão de Madame Helvétius e
depois do de Destutt de Tracy, eles prolongaram o Enciclopedismo das Luzes e
influenciram em liberais declarados como Benjamin Constant e Madame de Staël.
Os doutrinários vão continuar nessa trilha de maneira crítica com
Royer-Collard, e depois com Victor Cousin, Jouffroy, François Guizot e
Villemain. Por sua vez, a Contra-Revolução espiritualista rejeita a Revolução,
através da obra de Joseph de Maistre e de Luís de Bonald e reforça a idéia do
fundamento divino da sociedade e do poder monárquico. O catolicismo, aliás,
encontrará também doutrinas mais moderadas como as propostas por Ballache,
Lamennais e Maine de Biran. A presença centrípeta do Imperador Napoleão I foi, portanto, uma
pausa nesse contexto de diversidade que eclodiria logo após a sua saída do
poder.
Napoleão gostava do teatro. Durante o Consulado e o
Império, assistiu a nada menos do que 374 peças, sendo que repetia algumas
dessas apresentações, de forma que, segundo calculam os estudiosos, foi ao
teatro ao redor de 682 vezes, uma vez por semana, ao longo dos quinze anos que
permaneceu no poder. O Imperador dispunha de um teatro em cada um dos seus
lugares de residência. Tinha verdadeira admiração por Corneille (a quem faria
príncipe da França, dizia ele, se tivesse tido a sorte de ser seu contemporâneo).
O Imperador gostava mais do gênero trágico e desenvolveu grande amizade com o
mais importante ator da época, François-Joseph Talma (1763-1826) que era,
aliás, muito parecido fisicamente com ele. O teatro serviria, no sentir do
Imperador, para fazer surgir na sociedade sentimentos de admiração em face do
poder imperial e da gesta desenvolvida pelo Império. A arte deveria reforçar o Sistema.
Embora o teatro francês tivesse experimentado um grande crescimento ao
ensejo da Revolução, Napoleão limitou o número de teatros credenciados, a fim
de melhor exercer o controle oficial sobre as peças apresentadas. A propósito,
frisa Peter Hicks: “Em tanto que instrumento político, o teatro deveria estar
em boas mãos. Depois da expansão acontecida entre o final da Revolução e o
início do Consulado, Napoleão Io. tomou a decisão de limitar o
número de teatros em Paris. Em 8 de junho de 1806, um decreto limitou o seu
número a 12. (...) Depois, novamente, em 1807, o número foi reduzido para 8: 4
teatros principais (o Teatro Francês, a Ópera, a Ópera Cômica e a Ópera Bufa),
e quatro teatros secundários (Vaudeville, fundado em 1792, Variedades, fundado
em 1777, o Ambigu-Comique, fundado em 1769 e la Gaîté, fundado em 1760). Teatro
nenhum podia apresentar uma peça diferente das aprovadas no seu repertório e
ninguém podia erigir palcos sem a sua autorização. A Censura seguia muito de
perto o repertório dos teatros” [Hicks, 2004: 4].
No contexto de rigorosa centralização que Napoleão
impôs no mundo da cultura, vale a pena salientar a importância representada
pela Bibliographie de la France ou Journal General de
l’Imprimerie et de la Librairie, que passou a ser
publicada no final do Primeiro Império e que constituiu base informativa
fundamental para tudo quanto se publicava na França relacionado com a cultura
do país. A Bibliothèque National de France organizou, aliás, ao longo da última
década, uma magnífica biblioteca virtual em que é possível consultar, on
line, os números preservados dessa publicação, que foram salvos do incêndio
de 1871.
4) A Universidade
Em 10 de maio de 1806, Napoleão instaurou a lei que
criava a Universidade Imperial. O primeiro artigo da mencionada lei rezava
assim: “O ensino público, em todo o Império é confiado exclusivamente à
Universidade”. O Imperador reuniu todo o pessoal docente do país numa única
corporação que tinha o monopólio do ensino: a Universidade Imperial. A direção
da mesma foi entregue a um Grande Mestre nomeado pelo próprio Imperador. O
cargo foi desempenhado pelo poeta Louis-Marcelin de Fontanes (1757-1821), que
teve também a incumbência de reorganizar a Academia Francesa nos moldes da
legislação imperial.
A nova lei que criou a Universidade Imperial
implantava uma administração centralizada de todo o ensino na França, de forma
que a iniciativa particular praticamente era banida. Foi estabelecido um
Conselho Superior com atribuições administrativas, disciplinares e pedagógicas.
Foi prevista, também, a criação de 28 Academias, pelo país afora, que seriam as
entidades representativas da Universidade Imperial nas várias regiões, e que
teriam à sua frente um reitor assistido por um conselho e dois inspetores
acadêmicos. À Universidade Imperial cabia fixar os graus necessários ao ensino,
bem como prover os correspondentes títulos. O sistema de ensino era abarcado,
na sua totalidade, pela Universidade napoleônica, nas suas variantes de ensino
primário, secundário e superior. As antigas Faculdades foram restabelecidas
(teologia, direito e medicina), mas inseridas no todo criado pela lei imperial,
e foram criadas novas faculdades de ciências e letras, a fim de garantir a
formação de mestres e pesquisadores. Nada, no universo educacional, escapava,
portanto, aos controles do Império.
Como destaca Guy Neave, “O modelo napoleônico é um
dos exemplos mais antigos de utilização, por parte do Estado, da Universidade
como instrumento de modernização da sociedade, através de um estreito controle
financeiro da instituição e, também, mediante as nomeações e uma legislação que
garantia a distribuição eqüitativa de recursos nacionais no conjunto do
território. Sob a sua forma clássica, a Universidade napoleônica é o
instrumento de afirmação de uma identidade nacional própria, fundada nos
princípios do mérito e de uma igualdade formal, princípios mantidos por uma poderosa
administração nacional” [Neave, 1998: 1]. Esse modelo, casado com o herdado das
reformas pombalinas, passou a inspirar o funcionamento do ensino no Brasil, bem
como em outros países como Espanha, Itália, Argentina e os pertencentes à
África francôfona.
5) O Exército e o alargamento do Império ao resto
da Europa
Ao longo da consolidação do Império Napoleônico, o
Exército passou a ter missões mais ambiciosas do que a simples defesa das
instituições republicanas emergidas da Revolução de 1789. Certamente o General
Bonaparte iniciou a sua carreira de armas defendendo a Revolução no interior
das fronteiras da França. Mas, na medida em que as suas conquistas e o seu
gênio militar se tornaram algo indiscutível, o homem de armas terminou
polarizando o homem das leis e a cabeça visível do Império. A expansão do mesmo
tornou-se uma necessidade. O Exército virou a Grande Armée que
garantiria, já não apenas a estabilidade das fronteiras da França, mas a sua
supremacia no cenário europeu, chegando a constituir o que o próprio Napoleão
identificou como Bloco Continental. Este não seria outra coisa mais do
que a reencarnação do Império dos Césares e de Carlos Magno. A proposta
napoleônica já não era apenas a conquista do poder na França. Uma vez coroado
Imperador dos Franceses, Napoleão quis se tornar o Soberano da Europa. Era isso
que ele pretendia com o Bloco Continental e com o tratado de Tilsit. Foi isso
que levou a que se mudassem as fronteiras de toda Europa, na fase mais
agressiva do imperialismo napoleônico, entre 1808 e 1814. Foi isso que
condicionou a união dos monarcas europeus ao redor da empresa de derrubar o
novo Imperador.
A Grande Armée virou o instrumento dessa
ampliação das fronteiras. Constituía uma força espetacular, de aproximadamente
600 mil homens, distribuídos em sete grandes exércitos, que passaram a agir
aplicando a mesma estratégia que Napoleão tinha posto em prática na Itália. As
dificuldades começaram a se apresentar quando foram invadidas primeiro a
Espanha e depois a Rússia. O Imperador não contava com a heróica resistência
dessas nações, profundamente enraizadas no sentimento religioso e num
cristianismo de cruzada, que fez com que a rejeição à presença das forças do
Império fosse tão brava e sanguinolenta. De outro lado, a estratégia napoleônica
de que a “ocupação alimenta a guerra”, ou seja, de tirar dos países ocupados as
riquezas necessárias para a manutenção das tropas, tornou-se difícil num
cenário de grandes extensões vazias e submetidas aos rigores do clima: o
decorrente da prolongação dos desertos africanos na Espanha, de um lado, e o
ensejado pela vizinhança das estepes siberianas, no caso russo.
IV – TRÊS ABORDAGENS CRÍTICAS DO PENSAMENTO DE NAPOLEÃO: JACQUES
NECKER, BENJAMIN CONSTANT E MADAME DE STAËL
Sintetizarei,
aqui, a crítica dos liberais franceses ao projeto napoleônico. Essa crítica foi
efetivada por três figuras precursoras do Liberalismo Doutrinário e que
terminaram sendo perseguidas por Napoleão: Jacques Necker, Benjamin Constant de
Rebecque e Madame de Staël.
1) A crítica de Jacques
Necker (1732-1804) ao absolutismo napoleônico
Jacques Necker, pai de
Germaine Necker de Staël-Holstein, a conhecida Madame de Staël, analisou
detalhadamente a Constituição de 22 Frimário,
ano VIII (1800), que sagrou um modelo de República autoritária, presidida pelos
três Cônsules, sendo Bonaparte o que de fato exercia o poder [cf. Chevallier,
1977: 105-108] e que preparou o terreno para o advento do Império. O pai de
Germaine considerava que, não tendo sido estabelecida nessa Constituição uma
verdadeira representação dos interesses populares no Parlamento, a eleição não
tinha nenhum sentido e as instituições republicanas careciam de autenticidade.
A propósito, escrevia Necker: "A primeira circunstância que chama a
atenção ao examinar esta Constituição é que, num Governo denominado de
Republicano, nenhuma porção dos poderes políticos, nenhuma, realmente, foi
confiada à Nação. No entanto, não apenas nas Repúblicas mistas ou puramente
democráticas, mas também nas Monarquias moderadas, o povo concorre à nomeação
do Corpo Legislativo, à nomeação das autoridades que determinam os seus
sacrifícios. Vemos na Inglaterra os Membros da Câmara dos Comuns eleitos pela
Nação. Vemos na Suécia uma ordem de Burgueses, uma ordem dos Camponeses
comporem o Poder Legislativo; e sob a Monarquia Francesa o Terceiro Estado
nomeava Deputados às Assembléias Nacionais. Uma tal prerrogativa, a mais
importante de todas, foi substituída por uma ficção no novo código político da
França. Concede-se ao Povo um direito de indicação que não significa nada para
ele e que aborrecerá ao Governo se esse direito for respeitado" [Necker,
1802: I, 1-2].
Ora, nenhuma
estabilidade institucional poderia advir de um tal regime. Tratava-se de uma
República de faz-de-conta, modelo da que, no final do século XIX, os
Castilhistas instaurariam no Rio Grande do Sul. Tudo girava ao redor do único
poder verdadeiramente forte: o general Bonaparte. A feição dessa pseudo
República foi resumida perfeitamente por Jean-Jacques Chevallier, com as seguintes
palavras: "Uma fachada de
sufrágio universal (simples direito de apresentação). Uma fachada de assembléias: o Senado,
o Tribunado, o Corpo Legislativo. No governo uma fachada de três cônsules, sendo que o
poder repousava realmente no Primeiro Cônsul. Na tarde em que o texto
constitucional foi solenemente promulgado nas ruas de Paris, as pessoas
perguntavam: O que há na Constituição?
E a resposta era a seguinte: Há Bonaparte.
O referendum sobre um texto
constitucional tinha fatalmente virado um plebiscito
sobre um homem" [Chevallier, 1977: 107]. A propósito dessa enorme
encenação, escreveu Necker: "Mostraremos agora que toda essa organização é
ao mesmo tempo motivo de irritação para a massa geral dos Cidadãos, bem como um
atentado aos seus direitos, um estorvo para o Governo e um constrangimento
prejudicial para o bem do Estado" [Necker, 1802: I, 4-5].
O modelo de
representação previsto pela Constituição bonapartista do ano VIII constituía
uma caricatura da prática do verdadeiro parlamentarismo. Os cidadãos habilitados
para votar segundo as normas oficiais (cinco milhões, calculava Necker, sobre
uma população de mais de vinte milhões de Franceses), nos seus respectivos cantões indicariam as pessoas
que, segundo o seu critério, pudessem desempenhar cargos públicos. Daí sairia
uma massa de cinco mil homens aptos para receberem do Senado Conservador, formado à revelia da Nação, a responsabilidade
de administrar a máquina do Estado. Seria uma representação às avessas, que
personificaria os interesses de Bonaparte e da sua burocracia, deixando de lado
os reais interesses dos cidadãos. "Essas listas de elegibilidade - frisava
Necker [1802: I, 10-11] - teriam pouca credibilidade, ao reduzir cinco milhões
de homens a cinco mil, sem nenhuma das precauções que garantem ao menos um
sentimento de interesse, um grau formal de atenção a essa grande ação
política".
O resultado de tudo
isso não poderia ser outro: o crescente descontentamento popular, a
instabilidade da República e a porta aberta para novas revoluções. A própria
mãe de Bonaparte, Letícia, tinha dito a respeito das novas instituições
emergentes da Constituição do Ano VIII (1800) que colocou o seu filho na cúpula
do poder, fazendo dele um ditador: "Isso não durará! Isso não pode
durar" [apud Chevallier, 1977: 109]. Necker previa a mesma catástrofe:
"Nós veremos ainda o resultado, no momento em que o espírito republicano
se reanimar. A exclusão de tão grande número de Cidadãos das listas de
elegibilidade, essa exclusão duradoura e eficaz será recebida como uma grande
ofensa, como um justo motivo de irritação. As pessoas sentir-se-ão postas de
lado por um pequeno número de felizardos, tornados os únicos elegíveis por
escrutínios praticados com indiferença. E ninguém estará disposto a aturar
pacientemente uma barreira colocada diante de si, logo nos primeiros passos da
carreira política".
O próprio Estado
tornar-se-ia ingovernável, pois o centralismo desvairado, aliado à exclusão dos
Cidadãos, impediria que os governantes conseguissem nomear os mais aptos para
os cargos públicos. Assim enxergava Necker mais essa contradição da Carta do
Ano VIII: "Consideremos agora, de um novo ângulo, a disposição
constitucional relativa aos elegíveis.
Resultará daí, para o Governo, para a República inteira, um entrave bizarro
cuja experiência servirá de lição. É a
partir de um número de cinco mil Cidadãos ativos que será necessário, de agora
em diante, escolher os principais Funcionários públicos, os Cônsules, os
Tribunos, os Legisladores, os Ministros e os Conselheiros de Estado, os Juizes
de cassação, os Comissários de contas. Ora, como todos esses cargos exigem
qualidades diferentes, não é seguro que os grandes Eleitores, o Governo e o
Senado, encontrem uma quantidade suficiente de homens para escolher, com
segurança, a partir de um número de cinco mil Cidadãos, indicados uns por
amizade, outros por intriga e os melhores por uma reputação genérica de
honestidade" [Necker, 1802: I, 26-27]. Destacando a impossibilidade de pôr
em prática as disposições de tão maluca Constituição, o pai de Germaine
concluía com uma ponta de ironia: "Enfim e por cima de todas as outras
dificuldades, são os Cônsules também os que será necessário escolher entre os
elegíveis. Convenhamos que é muita modéstia de Bonaparte ter considerado que o
seu equivalente poderia ser encontrado entre cinco mil pessoas" [Necker,
1800: I, 28].
A instituição do Senado Conservador constituía mais do
que uma instância de representação da Nação, uma roda solta do sistema,
absolutamente ignorante das necessidades da administração e que ainda por cima
tinha a alta responsabilidade de nomear o Chefe do Estado. A respeito, escrevia
Necker: "Um corpo político, absolutamente separado do movimento da
Administração e que não participa da confecção das leis, uma espécie de
solitário na ordem social, não poderia conservar o direito de nomear o Chefe do
Estado, mesmo se ele se equivocasse uma única vez. Seria necessário que vivendo
nas sombras e no silêncio, como os oráculos, tivesse a ciência e a
infalibilidade destes" [Necker, 1800: I, 32].
Quanto ao Poder
Legislativo instaurado pela Carta do Ano VIII, Necker considerava que se
tratava de uma instância vazia, pois a iniciativa de propor as leis
corresponderia exclusivamente ao Governo, sendo que as duas Assembléias Políticas (Tribunado e
Corpo Legislativo), somente poderiam votar os projetos de lei sem discussão
alguma. A propósito, escrevia: "Este Poder é atribuído, pela Constituição,
a duas assembléias políticas, uma designada com o nome de Tribunado e a outra
com o de Corpo Legislativo. A primeira é integrada por cem pessoas, com idade
mínima de vinte e cinco anos; a segunda por 300 pessoas com idade mínima de
trinta anos. O Governo deve propor todas as leis, o Tribunado as examina, as
aceita ou as rejeita. O Corpo Legislativo se pronuncia unicamente por
escrutínios, sem nenhuma discussão pública, nem secreta, sem jamais pedir um
esclarecimento, sem pronunciar palavra. Uma interdição tão especial e da qual
não há um modelo existente, manterá o desejo contínuo de se ver atado por um
vergonhoso laço. E a Nação, que ama
ouvir falar dos seus negócios e que tem direito a isso numa República, apoiaria
o voto dos Legisladores desde que as circunstâncias o permitissem. O seu
silêncio, o seu absoluto silêncio, mesmo que ordenado pela Constituição, prenuncia,
mais do que qualquer outro indício, a presença de um dono do poder"
[Necker, 1802: I, 50-51].
Essa absoluta
passividade do Corpo Legislativo considerava Necker, era sobremaneira nociva
especialmente no que tange à tributação. A Carta do Ano VIII estabelecia, nessa
matéria, uma verdadeira orgia orçamentívora, uma vez que ninguém poderia
objetar a generosidade do gasto público. Em matéria tributária, frisava, "depois de um certo tempo, geralmente,
temos amiúde uma opinião diferente, bem por causa das lições da experiência,
bem por causa das mudanças que ocorrem nas necessidades do Estado"
[Necker, 1802: I, 56].
Inoperante a
representação política, a Nação ficou sem instrumentos para exigir dos membros
do Governo a mínima responsabilidade. Os Cônsules e os seus Ministros viraram
espécies de semideuses, irresponsáveis perante a sociedade e inatingíveis. A
França caminhava na contramão da história dos países onde houve um
amadurecimento da representação, como a Inglaterra. A respeito, Necker
escrevia: "A responsabilidade dos Ministros na Inglaterra é algo real e
bem concreto. Mas tudo é diferente na França. Hoje, tudo caminha em sentido
contrário. Nada de Câmara dos Pares, que se imponha pelo seu caráter
hereditário. Nada de assembléia política representativa da Nação. Nada de
Parlamento, enfim, enraizado no espírito e no coração do povo. E além do mais,
nenhuma liberdade para escrever, para opinar sem pautas e sem tutores. Como,
com uma tal distribuição política, com uma desproporção tão marcante entre a autoridade
Executiva e todas as outras autoridades, ousaria alguém acusar um Ministro!
Essa seria uma empresa tão vã quanto perigosa" [Necker, 1802: I, 84].
No meio dessa falta de
controles sobre o poder, a burocracia miúda tornou-se todo-poderosa, à sombra
do Primeiro Cônsul e dos seus Ministros. A respeito frisava Necker [1802: I,
92]: "A autoridade no seu imenso círculo de influência pode ter agentes
ordinários e agentes extraordinários. A carta de um Ministro, de um Prefeito de
um Subtenente da Polícia é suficiente para transformar alguém em agente. E se
no exercício de suas funções estão todos fora do alcance da Justiça, a menos
que haja uma especial permissão do Príncipe, o Governo terá na sua mão homens
que tal privilégio tornará suficientemente audaciosos como para não temer a
desonra, graças à sua proteção pela autoridade suprema. Que instrumentos para
optar pela tirania!".
O efeito de tudo isso
será a morte da liberdade e o fortalecimento do absolutismo. Todos terão medo,
menos o tirano. Todos ficarão reféns do seu poder sem freio. Eis o sombrio
quadro traçado por Necker: "Que acontecerá com a liberdade no meio de
todos esses dispositivos políticos? O que o Cônsul quiser. O Tribunado poderá
lhe dirigir a palavra. Mas está previsto que não é obrigado nem a escutá-lo,
nem a responder-lhe. O Senado Conservador está investido do direito de anular
os atos inconstitucionais. Mas ousará tal coisa? (...) E todo mundo, em
determinado momento, terá medo, exceto o Cônsul" [Necker, 1802: I, 85].
Da crítica de Necker ao
regime instaurado pela Carta do Ano VIII depreende-se uma conclusão: a França
estava longe de constituir uma verdadeira República. Esta, à sombra da
experiência americana, é fundamentalmente o reino da liberdade da Nação, da
representação de seus interesses, da salvaguarda dos seus direitos fundamentais
à vida, à liberdade, às posses. O pai de Germaine preocupava-se por dar à
palavra povo um sentido diferente do
que terminou sendo usado pelo democratismo revolucionário e pelo bonapartismo.
Povo deveria ser entendido como conjunto de Cidadãos que se distinguem da
minoria que exerce o poder.
Eis a forma em que o
nosso autor entendia essas noções, bem como o espírito de uma Constituição
autenticamente republicana: "Apuremos de entrada o sentido da palavra povo, com a qual se faz o que se quer na
língua francesa. Esse termo converte-se em algo terrível quando o utilizamos
para designar as últimas classes da sociedade, os homens despidos de educação e
entregues, sem limitações, à impetuosidade do seu caráter. A palavra retoma a
sua dignidade quando, sinônimo do termo Nação, serve para lembrar a
universalidade dos Cidadãos, e algumas vezes para distingui-los do pequeno
número de homens que compõem o Governo. O espírito de uma Constituição
republicana é indubitavelmente o de atribuir ao povo, assim definido, todos os
direitos políticos que pode exercer ordeiramente. E se for verdade que este não
existe dessa forma, se for verdade que na França a extensão do país ou o
caráter dos habitantes se opusessem a isso, a boa fé exigiria que se chegasse a
um acordo sobre o particular, exigiria que deixássemos de dar o nome de
República a uma forma de governo na qual o povo não seria nada, nada mais do
que uma ficção. Esse povo pode ser feliz sob o abrigo exclusivo das leis civis.
Pode sê-lo sem direito político. Pode sê-lo, ainda, segundo os seus mestres,
sob um Monarca absoluto, sob um Ditador, sob uma aristocracia hereditária, sob
uma aristocracia burguesa mais ou menos dissimulada. Mas as honras do nome
republicano não mais lhe pertenceriam" [Necker, 1802: I, 8-9].
Está enunciado, aqui,
um Leitmotiv que encontraremos em
Constant de Rebecque, nos doutrinários, em Tocqueville e em Aron: o povo
francês, preso ao seu bem-estar e trancafiado na sua vida privada, poderá em muitos
momentos abrir mão da liberdade e da luta na defesa da sua dignidade como
Nação. Mas, nesses instantes, estará se afastando do ideal republicano. O
alerta vale, segundo Tocqueville, inclusive para o povo americano, tão sensível
à conquista do bem-estar material. Uma tentação que se desenhará sempre no
horizonte da democracia americana é a de abrir mão da luta pela liberdade, em
prol da manutenção do conforto.
A República, como
lembraria mais tarde Tocqueville, é o reino tranqüilo do povo sobre si mesmo, o
estreito laço que existe entre a Nação e as instituições. Já Necker tinha se
antecipado a essa concepção, quando frisava que a vantagem da representação na
vida republicana é o estreitamento de laços entre os cidadãos ativos e os seus
Governantes. A propósito, o pai de Germaine escrevia: "Temo-lo já dito, a
intervenção do povo na escolha dos homens públicos não é essencialmente
necessária à bondade dessa escolha, nem é uma garantia disso. E pode ser
possível que se chegasse ao mesmo objetivo de forma igualmente segura, sem
colocar em movimento cinco milhões de Cidadãos ativos. A primeira utilidade da
participação do povo na nomeação dos seus Magistrados, dos seus Legisladores,
consiste em estabelecer uma ligação contínua, um vínculo mais ou menos estreito
entre os Chefes do Estado e a massa inteira dos Cidadãos. Destruamos essa
ligação, seqüestremos ao povo o único direito político que pode exercer,
troquemos esse direito por algo semelhante, adotando uma simples ficção, e não
haverá mais República, ou ela só existirá no papel" [Necker, 1802: I,
16-17].
Necker considerava que
a Constituição do Ano VIII pretendeu imitar a praxe inglesa de liberar de toda
responsabilidade o Chefe do Estado. Essa providência, que faria sentido numa
Monarquia Constitucional, seria de todas maneiras inconveniente numa República,
onde o Chefe do Estado foi eleito, como no caso da França. Ora, o Poder Supremo
sendo eleito e gozando de imunidade, os seus Ministros passarão a se sentir
imunes também. Constant de Rebecque aprendeu esta lição de Necker, pois
encontraremos arrazoado semelhante nos Principes de Politique.
A propósito do
equilíbrio de poderes existente na Inglaterra, eis o que afirmava Necker,
destacando - como Constant fará também - o papel importantíssimo da imprensa como
divulgadora do quarto poder, o da opinião:
"Há, na Inglaterra, um tal equilíbrio entre os três poderes, o
Legislativo, o Executivo e o Judiciário, que eles se respeitam mutuamente. E um
quarto poder, não menos imponente, vigia sobre a sua união, sobre os seus
mútuos direitos. Quero falar do poder da opinião pública, poder enraizado,
estimulado, tornado quase imperativo pela liberdade de imprensa" [Necker,
1802: I, 82]. Este é, como veremos, outro ponto em que Constant recebeu
influência definitiva de Necker.
2) A crítica de Benjamin Constant
(1767-1830) ao absolutismo napoleônico e ao espírito de conquista
Constant, junto com
Madame de Staël, foi o precursor dos liberais
doutrinários na França. A sua meditação trilhou o caminho de moderação e de
construção das instituições do governo representativo, que caracterizaria aos
demais liberais franceses ao longo do século XIX. Mas o ponto central da
reflexão e da pregação política do nosso autor foi a sua decisiva defesa da
liberdade, num meio, como o da França pós-revolucionária, que custava a fazer
uma opção por esse ideal. Acerca da marca deixada por ele no seio da cultura
política francesa, eis o que, em 1872, escrevia Édouard Laboulaye no prólogo à
segunda edição do Cours de Politique Constitutionnelle de Constant [Laboulaye,
1872: vol I, I-II]:
"Em 1872, como em
1861, sob a República provisória como sob o Império, a França busca as
condições da verdadeira liberdade. Ela quer fundar um governo que garanta a paz
pública, dando uma sólida garantia a todos os interesses, a todos os direitos.
Acerca de todos esses pontos encontrar-se-ão em Benjamin Constant soluções
decisivas e confirmadas por uma experiência de cinqüenta anos. Inimigo do
arbítrio e da violência sob todos os regimes, Benjamin Constant converteu-se no
mestre da ciência política para os amigos da liberdade. O seu Curso
de Política Constitucional é o manual mais completo, o guia mais seguro
para o estudante, o publicista, o legislador. Na escola de Benjamin Constant
sempre se aprende. Ninguém pode se afastar impunemente dela. O tempo consagrou
o equilíbrio das suas idéias. Ele cresceu e crescerá ainda mais na estima dos
homens, porque sempre defendeu a justiça, a moderação, a verdade. Nestes tempos
sentimos grande necessidade das suas lições e ouso dizer que jamais a
publicação dos seus escritos chegou em melhor momento. Tomara que possamos
aproveitar os seus conselhos e atingir enfim essa terra prometida que sempre
nos escapa!".
Constant, como Madame
de Staël, encarnou um outro aspecto que seria caraterístico dos doutrinários: ser testemunha da razão
contra a opressão. O nosso autor apregoava a utilização, na defesa da liberdade
e das luzes, de todos os meios de que a civilização poderia fazer uso para
multiplicar o alcance da sua voz. No caso concreto dos intelectuais do século
XIX, tratava-se de utilizar sobretudo a imprensa. Eis o que Constant escrevia
acerca da missão esclarecedora que tinham os intelectuais (chamados por ele de missionários), na defesa da liberdade
contra a opressão, na obra De l'esprit de conquête et de l'usurpation (escrita contra o
militarismo bonapartista): "Por mais ativa que seja a inquisição,
quaisquer que sejam as suas precauções, os homens esclarecidos conservam sempre
mil meios para se fazerem entender. O despotismo somente vinga quando a razão
se estiola na sua infância; então ele pode frear o progresso da espécie humana
e mantê-la refém de uma duradoura imbecilidade. Mas, quando a razão é posta em
marcha, ela se torna invencível. Somente há um momento para proscreve-la com
sucesso; passado esse momento, todos os esforços são vãos. Uma vez iniciada a
luta intelectual, a opinião se separa do poder e a verdade clareia em todos os
espíritos. Missionários dessa verdade eterna, se o caminho for interceptado,
renovai os esforços, redobrai o zelo. Que a luz apareça em todas partes!
Apagada, que ela brilhe de novo! Afastada, que ela volte! Que ela se reproduza,
se multiplique, se transforme! Que ela seja tão infatigável quanto a
perseguição! Que uns marchem com
coragem! Que outros se introduzam com habilidade! Que a verdade se expanda, tanto apregoada em
alto e bom som, quanto repetida em voz baixa! Que todas as razões se coadunem,
que todas as esperanças se reanimem, que todos trabalhem, que todos sirvam, que
todos vigiem. Não há prescrição para as idéias úteis, diz um homem ilustre
(Necker); não há, pois, prescrição para a liberdade" [Constant,
1986: 230-231].
Mas essa missão de
ilustrar que os intelectuais têm, deveria estar vinculada, segundo Constant, à
inserção corajosa e real deles na vida pública. O doutrinário não poderia ser jamais um homem de gabinete, um philosophe trancafiado na sua torre de
marfim. O intelectual que iria
transformar as instituições deveria se inserir na corrente do poder para, a
partir dela, civilizá-la. Emerge aqui um aspecto importante, que será retomado
pela tradição doutrinária e que chegará até os nossos dias na meditação de
Aron: o ideal de intelectual engajado.
Eis a forma em que Todorov ilustra esse importante aspecto da meditação
constantiniana: "Constant, e aí reside uma das suas grandes
originalidades, não quer renunciar a nenhuma dessas duas vias (a teórica,
inspirada em Rousseau e a histórica, tributária de Montesquieu). A sua reflexão
não é deduzida a partir de postulados abstratos; melhor, tendo ele mesmo
participado da vida política, busca teorizar o real vivido. Não haverá pois
lugar nele para essas ficções que Rousseau considerava úteis, o estado de
natureza ou o contrato social. A história é aqui objeto de pensamento, não
repertório de exemplos. Mas não se trata, no entanto, de renunciar aqui aos princípios: só num certo nível de
abstração, pensa Constant, o debate será fecundo; e o seu livro (Principes
de Politique) não é um programa de ação política, mas uma meditação que
permite compreender e julgar o mundo. Não a teoria de um lado e a prática de
outro; mas uma prática teorizada, uma teoria submetida constantemente ao teste
do real. Constant não é daqueles que se deixam inebriar pelas palavras. A
história e os princípios intemporais devem pois permanecer presentes, ambos, o
que nem sempre é fácil. Mas algumas das idéias mais fecundas de Constant, como
aquela do seu célebre confronto entre a
liberdade dos Antigos e a dos Modernos, levam consigo esse confronto"
[Todorov, 1997b: 6].
Um libertário de tempo
integral. A atualidade de Constant justamente decorre dessa sua defesa
incondicional da liberdade contra o estatismo. A propósito deste aspecto,
escreve Todorov [1997a: 16-17]: "A teoria constantiniana da limitação do
poder representa a última etapa antes do anarquismo. O salário estatal se
converte no mínimo possível antes da sua extinção. Os únicos domínios que o
autor reconhece à autoridade pública são a segurança (exército), a ordem
(polícia) e os recursos necessários para pagar essas duas funções vitais
(impostos). O exército e a polícia devem, por sua vez, serem reduzidos, para
evitar que se possam converter no instrumento do abuso estatizante. Constant
enxerga no Estado uma espécie de hidra cujas cabeças, tão logo são cortadas, ressurgem
com mais força ainda; o poder segue por uma pendente natural em direção ao seu
alargamento infinito e prejudicial. A metáfora da torrente é recorrente, contra
a qual os diques e os tapumes nunca serão resistentes o bastante, segundo o
autor. Que barreiras suficientemente sólidas podem ser previstas contra o
agigantamento da onda estatizante? Constant responde: a opinião e as garantias
constitucionais. Quanto mais limitada for a parte do poder, mais fácil é o seu
controle, mais eficaz também o peso da opinião. Isso pode parecer ridículo, mas
Constant tem, por assim dizê-lo, fé na força das idéias e, conseqüentemente, do
escritor como eminência parda do
poder".
O jovem Constant de
Rebecque trabalhou durante vários anos como funcionário da corte do duque de
Brunswick. Casou com uma jovem pertencente a essa nobre família, Minna von
Cramm, tendo-se divorciado dela em 1793. Trasladou-se a seguir a Lausanne onde
conheceu, em 1794, Madame de Staël, com quem teve, nos anos seguintes, uma
intensa relação amorosa que em muito influenciou o seu pensamento político e da
qual nasceu uma filha, Albertine, em 1797. O nosso autor acompanhou Madame de
Staël a Paris, onde publicou o ensaio intitulado De la force du gouvernement
actuel de la France et de la nécessité de s'y rallier. Tratava-se de
uma declaração de apoio ao Diretório, motivo pelo qual o mencionado escrito foi
inserido na publicação oficial do governo francês, o Moniteur. Constant
estabeleceu contatos com políticos importantes como Riouffe, Chénier, Daunou e
Louvet, não tendo seguido, no entanto, a orientação deles. Pertencia ao círculo
de Madame de Staël, o denominado "Clube do Hotel de Salm", do qual
formavam parte também figuras como Talleyrand, o abade Sieyès e outros
políticos que professavam ideais moderados, favoráveis ao estabelecimento na
França da monarquia constitucional, inspirada no modelo inglês. Dessa época
datam alguns escritos combativos: Des réactions politiques e Des
effets de la Terreur. Estes opúsculos foram reunidos, posteriormente,
em 1829, numa única publicação que levou o título de Mélanges littéraires et
politiques.
Secretário do
"Clube de Salm", o nosso autor converteu-se logo num dos mais
importantes expoentes dessa associação. Constant de Rebecque e os seus amigos
aprovaram o golpe de estado do 18 Fructidor, que deitou por terra a instituição
monárquica. Naturalizou-se francês em virtude da lei de 15 de dezembro de 1790,
que reconhecia os direitos civis aos protestantes expulsos da França por
motivos religiosos. Após algumas tentativas mal sucedidas, o nosso autor
elegeu-se para o Corpo Legislativo, tendo ingressado nele depois do golpe de
estado de 18 Brumário, que guindou Bonaparte ao poder como primeiro Cônsul.
Indisposto com este em decorrência da oposição que Constant lhe fazia dentro do
governo, foi demitido em 1802 do cargo de tribuno (ao qual tinha ascendido
recentemente, em virtude da influência de Madame de Staël sobre o novo regime).
O "Clube de Salm" converteu-se, a partir desse momento, no refúgio
para os opositores ao militarismo bonapartista em ascensão. Ali encontraram
acolhida atores políticos de diversas tendências contrárias ao establishment, como os antigos
monarquistas constitucionais, Narbonne, de Broglie, Barante e Jaucourt.
O "Clube de
Salm" terminou sendo fechado por ordem de Napoleão e Constant foi banido
junto com Madame de Staël. O nosso autor tinha publicado recentemente o ensaio
intitulado Suites de la contre-révolution de 1660 en Anglaterre. Constant
de Rebecque partiu com a sua amiga para a Alemanha e fixou residência na corte
de Weimar, onde teve tempo e tranqüilidade suficientes para se ocupar da
tradução do Wallenstein de Schiller, bem como da escrita da obra que o
nosso pensador acalentava há anos, De la réligion considérée dans sa source,
ses formes et ses développements. A relação amorosa de Constant com
Madame de Staël terminou quando ela decidiu voltar ao castelo de Coppet, na
Suíça. Em 1808 o nosso autor casou com uma parente do príncipe de Hardenberg,
Charlotte, com a qual viveu tranqüilamente em Gottingen. Do período do seu
exílio, que se estende até 1814 (quando regressou à França em companhia de
Bernardotte, de quem tinha se tornado amigo), datam as seguintes obras: o seu
romance Adolphe, duas autobiografias intituladas Journal Intime e Ma
Vie (denominada esta última de Le Cahier rouge), a
sátira que levou o título de Florestan ou le sage des soissons e
o ensaio intitulado De l'esprit de conquête et de l'usurpation dans leurs rapports avec la
civilisation européenne, de 1813, que constitui sem dúvida a sua mais
importante obra do período e que conheceu sucesso imediato ao mostrar, de forma
clara, o perigo de aplicar o regime militar para solucionar questões civis, bem
como a impossibilidade de dar alicerces sólidos a um governo fundado na conquista.
Tratava-se, sem dúvida, de uma crítica radical ao bonapartismo, que tinha
semeado a insegurança pela Europa afora, tendo mudado as fronteiras políticas
de praticamente todos os países por onde passaram as tropas napoleônicas.
Constant de Rebecque
tornou-se figura central da política em Paris, após a saída de Bonaparte do
poder. Em maio de 1814, o nosso autor defendeu a indicação do amigo Bernardotte
como regente e publicou as suas Réflexions sur les Constitutions.
Contrariamente às expectativas de Constant e seus amigos, Luís XVIII assumiu a
coroa na denominada Restauração e outorgou a Carta Constitucional de 4 de junho
de 1814, na qual foram inseridas as reivindicações liberais mínimas veiculadas
pela burguesia. O prestigioso Journal des Débats abriu as suas
páginas ao nosso autor que, em rápida cambalhota política, passou a defender a
causa dos Bourbons, em artigos memoráveis. Na véspera do retorno de Napoleão à
capital francesa (em 19 de março de 1815), Constant publicou nesse jornal
violenta filípica contra o "usurpador", que era caracterizado como
"esse homem tingido de sangue, mais odioso do que Átila" e prometia
jamais se juntar a ele. No dia seguinte, o "usurpador" entrou nas
Tuilleries e rapidamente o nosso autor, que já tinha providenciado um passaporte
para América, mudou de idéia e aceitou o convite de Bonaparte para se tornar
conselheiro de Estado. O imperador buscava um ponto de apoio no Partido
Liberal, ao qual pertencia Constant. Fazendo gala de paradoxal pragmatismo
escreveu, a pedido de Bonaparte, o famoso Acte aditionnel aux Constitutions de
l'Empire, que constituiu a base da obra conhecida com o título de Principes
de Politique, publicada em 1º de junho de 1815. A respeito das idas e
vindas do nosso autor no conturbado cenário da
política francesa de então, escreveu Larousse [1865: 1017] com uma ponta
de ironia: "Essa foi uma das mil cenas da grande comédia que encenaram
perante o mundo a maior parte dos homens públicos e os dignitários da
época".
Em que pese as agitadas
circunstâncias em que foi escrito, o livro Principes de Politique foi
considerado pela crítica posterior, junto com De l'esprit de conquête et de
l'usurpation, como uma das obras principais de Constant. Eis o que
escrevia, em 1872, Édouard Laboulaye: "Os Princípios de Política,
publicados em 1815, (...) têm um duplo mérito: de um lado, é a exposição mais
completa das idéias do autor; de outro, é a prova mais clara da continuidade
dessas idéias. O conselheiro de Estado imperial fala da liberdade como o
escritor independente de 1814 e de 1820. Uma coleção dos panfletos de Benjamin
Constant em que faltem esses dois ensaios, não possui verdadeiramente nenhum
valor" [Laboulaye, 1872: vol. I, V].
Pouco antes da sua
morte, o nosso autor pronunciou o que talvez tenha sido o seu último discurso
na Câmara, em 13 de setembro desse ano. O tema, a liberdade de imprensa,
resumia os seus ideais liberais, acalentados ao longo da vida. Eis as suas
palavras: "Senhores, seria inútil destacar, perante homens tão
esclarecidos quanto vós, a influência salutar da imprensa. Ela tem sido, ao
longo dos últimos dezesseis anos, a nossa única garantia contra um governo
opressor (quando podia sê-lo), ou hipócrita (quando não ousava ser opressor).
Quando numa Câmara, triste produto de eleições fraudulentas, uma minoria
insignificante defendia os direitos da nação, a imprensa, deixada livre por não
sei que fatuidade inconseqüente de um ministro presunçoso, foi a nossa única
salvaguarda. Ela transmitiu as sãs doutrinas até o momento em que a França
soube aproveitar uma imprudência inexplicável para quebrar os grilhões por meio
de eleições novas. Enfim, depois do ultraje de 8 de agosto, a imprensa foi a
única que livrou o combate à morte contra um poder armado de fraude e
maquinador do assassinato. E quando os dias de perigo passaram, foi ainda a
imprensa que nos precedeu no campo de batalha, atraindo sobre ela, antes que
sobre nós, a proscrição e a morte. Ao seu apelo, o povo tem-se armado. Seguindo
o povo nós viemos, e a imprensa, o povo e nós temos, em virtude de um triunfo
miraculoso, derrotado a tirania. Se nos dermos conta do que é a imprensa,
encontraremos este simples caminho: ela é a palavra alargada, é o meio de
comunicação no seio do grande número, assim como a palavra é o meio de
comunicação entre alguns. Ora, a palavra é o veículo da inteligência e a
inteligência é a soberana do mundo material. Tais vantagens colocam-na por cima
de quaisquer desvantagens. É necessário, sem dúvida, diminuir os possíveis
inconvenientes por meio de boas leis. Mas não se deve jamais sacrificar a
imprensa, sem a qual uma nação não é mais do que um agregado de escravos. Com a
imprensa, há desordem às vezes. Sem a imprensa, sempre há escravidão. E nessa
servidão também há desordem, pois o poder ilimitado vira louco" [apud
Larousse, 1865: 1017].
Constant de Rebecque
considerava que a única forma de dar estabilidade política à França
pós-revolucionária consistiria em organizar a representação em duas Câmaras que
espelhassem os interesses da sociedade, uma Câmara alta, a dos Pares,
representativa da nobreza e que serviria de ponte com o trono, e uma Câmara
baixa, a dos interesses populares. De outro lado, o nosso autor cuidava de
imaginar, em detalhes, a forma em que deveria se proceder a organizar
territorialmente os distritos eleitorais, a fim de atrelar a representação a
circunscrições em que os cidadãos se sentissem representados. Boa parte da obra
Princípios
de Política é dedicada a esse debate. Constant defendia o voto direto,
porquanto somente a partir dele poderiam surgir autoridades com peso moral,
profundamente "enraizadas na opinião" [Constant, 1970: 42].
A grande vantagem do
sistema representativo, considerava Constant,
consistia em que possibilitava a aproximação entre as diferentes classes
sociais, impedindo o surgimento de odiosas oligarquias. A respeito, o nosso
autor frisava que uma das grandes vantagens do governo representativo consistia
em que estabelecia "relações
freqüentes entre as diversas classes da sociedade". Ora, essa vantagem
somente poderia ser conseguida mediante as eleições diretas. "Esse tipo de
eleição, frisava Constant, exige que as
classes poderosas se interessem constantemente pelas classes inferiores. Obriga
à riqueza a dissimular a sua arrogância e ao poder a moderar a sua ação,
fazendo do sufrágio do grupo menos opulento dos proprietários uma recompensa
para a justiça e para a bondade, um castigo para a opressão. Não se deve
renunciar gratuitamente a esse instrumento cotidiano de felicidade e de
harmonia, nem menosprezar tal causa de beneficência, que não sendo, no início,
mais do que um cálculo, logo se converte numa virtude habitual" [Constant,
1970: 48].
Em relação à França
pós-revolucionária, Constant registrava, com as seguintes palavras, a precária
situação em que ficou o país após o ciclo das conquistas napoleônicas:
"Numerosos exércitos levantam-se contra nós. Tanto os povos quanto os seus
chefes parecem cegos pelas suas lembranças. Os restos do espírito nacionalista
que os animava há dois anos, tinge ainda com certo aspecto nacional o esforço
que deles se exige" [Constant, 1970: 4]. Ora, arrazoava o nosso autor, a
França só queria, nesse momento, se organizar pacificamente ao redor do monarca
por ela escolhido e com o governo que ela queria se dar, como tinham feito as
modernas nações européias. "Hoje, -
afirmava - já não é a sua própria pátria
que esses povos defendem; atacam uma nação fechada nas suas fronteiras e que
não quer ultrapassá-las, uma nação que só reclama a sua independência interior
e o direito a se dar o seu próprio governo, como a Alemanha o tem feito ao
eleger Rodolfo de Habsburgo, Inglaterra ao chamar a casa de Brunswick, Portugal
ao dar a coroa ao duque de Bragança, Suécia ao eleger Gustavo Vasa; numa
palavra, da mesma forma que todas as nações européias têm exercido (esse
direito) numa determinada época, geralmente a mais gloriosa da sua
história" [Constant, 1970: 4].
Parte da animosidade
das nações européias contra a França, no sentir de Constant, decorria da
profunda alteração que a Revolução de 1789 ensejou nos hábitos políticos,
fazendo afundar o Ancien Régime,
cujas sombras ainda pairavam nos céus de algumas delas. A respeito desse
aspecto, escrevia: "Na verdade, os nossos inimigos têm pouca memória. A
linguagem que de novo utilizam derrubou os seus tronos há vinte e três anos.
Então como agora, atacavam-nos porque queríamos ter um governo nosso, porque
tínhamos libertado do dízimo o camponês, da intolerância o protestante, da
censura o pensamento, da prisão e do exílio arbitrários o cidadão, dos ultrajes
dos privilegiados o plebeu" [Constant, 1970: 5]. O nosso pensador deixava clara a sua
inspiração liberal, mas ao mesmo tempo destacava-se como um patriota, defensor
dos interesses de seu país no contexto internacional. Patriotismo e
liberalismo, duas notas que aparecem no ideário deste precursor dos
doutrinários, e que serão também leitmotivs
de doutrinários como Guizot e dos liberais que prolongaram essa tradição de
reflexão-ação na cultura política francesa, como Tocqueville e Aron.
O nosso pensador
considerava que só havia dois poderes: a força (ilegítimo) e a vontade geral
(legítimo). Era fundamental conceber de forma correta a natureza desta última,
a fim de determinar de forma clara a abrangência da mesma. Se isso não fosse
feito, a tentativa de defesa da liberdade poderia simplesmente suprimi-la. A propósito, escrevia Constant: "O
reconhecimento abstrato da soberania do povo não aumenta em nada a soma de
liberdade dos indivíduos, e se lhe for atribuída uma abrangência indevida,
pode-se perder a liberdade apesar e contra esse mesmo princípio"
[Constant, 1970: 8].
A delimitação da
soberania, pensava Constant, não podia ficar nas mãos dos que exercem o poder,
pois a tendência de todo governo constituído é a sua auto-preservação. A
soberania, portanto, deve ser limitada desde fora do poder pela própria
sociedade. Ora, a soberania jamais pode ser entendida como ilimitada. Esse era,
para o nosso pensador, o grande defeito dos que a criticavam no Ancien Régime, identificando-a com o
absolutismo monárquico. Foram atacados os reis, mas não a fonte do despotismo,
que radicava na concepção inadequada de soberania, como algo sem limites.
Assim, o absolutismo de um ou de poucos foi substituído pelo de muitos, sem que
mudasse a forma de se entender a soberania. O nosso autor deixou clara a forma
limitada em que entendia a soberania, com as seguintes palavras: "Numa
sociedade fundada na soberania do povo, é evidente que nenhum indivíduo, classe
nenhuma, tem o direito a submeter o resto à sua vontade particular; mas é falso
que a sociedade, no seu conjunto, possua sobre os membros uma soberania sem
limites" [Constant, 1970: 9].
A soberania deve ser
limitada em si mesma. Ela abarca parcialmente o ser dos cidadãos, ficando do
lado de fora da mesma o que diga relação à independência e à existência do
indivíduo. Ultrapassar esse limite torna a soberania ilegítima. Nem interessa
se esse abuso é cometido por uma pessoa, um grupo, ou a maioria dos homens na
sociedade. Será sempre algo ilegítimo. A respeito, frisava Constant: "O
assentimento da maioria não basta em todos os casos para legitimar os seus
atos; há atos que é impossível sancionar. Quando uma autoridade pratica atos
semelhantes, não importa a fonte da que pretenda provir, não importa que se
chame indivíduo ou nação. Faltar-lhe-ia legitimidade, mesmo se tratando de toda
a nação e havendo um único cidadão oprimido" [Constant, 1970: 10].
O grosseiro erro de
Rousseau consistiu, frisava Constant, em ter imaginado uma Vontade Geral como poder ilimitado, que terminava sacrificando, em
nome da democracia, a liberdade que pretendera defender. O filósofo de Genebra,
considerava o nosso pensador, ignorou esta simples verdade: "o
assentimento da maioria não basta (...) para legitimar os seus atos". Vale
a pena citar completa a crítica efetivada por Constant ao democratismo
rousseauniano, pois ela servirá de base para as que serão levantadas no seio do
liberalismo francês, no decorrer do século XIX (com Guizot, Tocqueville e outros) e ainda no século XX (com
Aron, Peyreffitte, Revel, etc.).
Poderíamos terminar a
exposição deste item destacando um aspecto dialético no pensamento de Constant
sobre a soberania: esta deve contemplar, ao mesmo tempo, os indivíduos e a
coletividade, tentando estabelecer um liame entre a defesa dos interesses individuais
e o interesse público. Difícil conciliação. Mas essa constitui a essência, para
Constant, da vida democrática. Em relação a este aspecto, escreve Todorov:
"Constant, da sua parte, endereça ao poder uma dupla exigência: ele deve
ser legitimado tanto pela sua instituição como pelo seu exercício. O povo
permanecerá soberano; qualquer outra alternativa levaria a se submeter
simplesmente à força; mas o seu poder será limitado: deve se deter nas
fronteiras do indivíduo que será, no seu foro íntimo, o único soberano. Uma
parte da sua existência submeter-se-á ao poder público; uma outra permanecerá
livre. Não se pode pois regulamentar a vida em sociedade em nome de um
princípio único; o bem-estar da coletividade não coincide forçosamente com o do
indivíduo. O melhor regime não se satisfaz somente nem com a democracia, nem
com o princípio liberal que exige a proteção do indivíduo. Ele deve reunir
essas duas condições: essa é pois a democracia liberal. O equilíbrio é difícil,
e é por isso que o pensamento de Constant permanece sempre atual: o Estado
moderno mesmo é constantemente tentado a usurpar a liberdade dos
indivíduos" [Todorov, 1997b: 7].
Para Constant, era
necessário que houvesse, na estruturação do Estado, um poder neutro. A razão para postular esse poder radicava na
imperfeição humana. A propósito, frisava: "Dado que os homens não obedecem
sempre ao seu interesse bem compreendido, é necessário ter a precaução de que o
chefe do Estado não possa substituir na sua ação os outros poderes. Nisso
radica a diferença entre a monarquia absoluta e a constitucional"
[Constant, 1970: 20].
Ora, seguindo a lição
do seu mestre Necker, Constant considerava que essa função de caráter moderador
deveria corresponder ao monarca. "A monarquia constitucional tem esse
poder neutral na pessoa do chefe do Estado. O verdadeiro interesse de tal
chefia não consiste, de maneira nenhuma, em que um dos poderes destrua o outro,
mas em que todos se apóiem, se entendam e ajam de acordo" [Constant, 1970:
20]. Levando em consideração a prática da monarquia constitucional na
Inglaterra, Constant achava que a função real era, nesse contexto,
eminentemente moderadora. A respeito, escrevia: "Na Inglaterra, não pode
se fazer lei nenhuma sem o concurso da câmara hereditária e da câmara eletiva.
Não pode ser executado ato nenhum sem a assinatura de um ministro, nem ser
proferida sentença nenhuma sem o concurso exclusivo de tribunais independentes.
Mas uma vez que se tomou a precaução de que falo, vejamos de que forma a
Constituição inglesa faz uso do poder real para pôr fim a toda luta perigosa e
restabelecer a harmonia entre os demais poderes. Se a ação do poder executivo
resultar perigosa, o rei destitui os ministros. Se a da câmara hereditária
resultar funesta, o rei imprime-lhe uma nova tendência mediante a instituição
de novos pares. Se a da câmara eletiva se apresentar ameaçadora, o rei faz uso
de seu veto, ou dissolve essa câmara.
Enfim, se a própria atividade do poder judiciário se mostrar acintosa, pelo
fato de aplicar a atos individuais penas gerais demasiadamente duras, o rei a
modera mediante o exercício de seu direito de graça" [Constant, 1970: 20].
3) A crítica de Madame de
Staël (1766-1817) ao absolutismo napoleônico
A variável política,
para Madame de Staël, era suscetível de duas abordagens: intuitiva e racional.
O ponto de partida seria o primeiro. A nossa autora acreditava numa espécie de
"lógica emocional" que lhe possibilitaria pressentir o rumo dos
acontecimentos. Seria uma espécie de inteligência
sentiente, à maneira zubiriana. A nossa autora vinculava essa modalidade de
conhecimento ao senso comum da
filosofia escocesa. Eis o que afirmava em Dix années d'exil (obra escrita por
Madame de Staël entre 1803 e 1813), quando se aproximava a guinada napoleônica
rumo ao absolutismo imperial: "Eu estava na casa do meu pai em Coppet,
quando soube que o general Bonaparte tinha passado em Lyon regressando do
Egito, e que tinha sido acolhido com entusiasmo. Experimentei nessa notícia uma
impressão de dor que me faria crer nesse instinto do futuro, nessa segunda via
de que falam os Escoceses, e que não pode ser mais do que a luz do sentimento,
independente daquela do raciocínio" [Staël, 1996: 67].
Esse sentimento, que
crescia com o passar do tempo, era o de uma tirania à espreita, que se aproximava
passo a passo, galgando progressivamente o poder e ameaçando a liberdade e a
dignidade moral. A respeito, escrevia a nossa autora: "Como jamais
consegui pensar em nenhum interesse político desvinculado do amor à liberdade,
cada dia eu estava mais aflita com a revolução de 18 Brumário, cada dia eu
apreendia mais um traço de arrogância ou de astúcia naquele que se apossava
gradualmente do poder. Pensava comigo mesma para tentar combater, na medida do
possível, o sentimento que me dominava, mas ele renascia sempre, apesar de mim.
Eu via se aproximar a tirania ora a passos de lobo, ora com a cabeça erguida,
mas parecia-me que de uma hora para outra estaríamos mais oprimidos e que bem
cedo toda a vida moral estaria encadeada"
[Staël, 1996: 75].
Incomodava particularmente
a Madame de Staël a retórica bonapartista, composta por um discurso populista
alicerçado na ameaça das armas. A Revolução de 1789 tinha nivelado a Nação
francesa, quebrando os elos entre as antigas ordens, e era mais fácil agora ao
futuro amo da Europa tomar posse daquela. Em relação a esse ponto, a nossa
autora escrevia: "A Revolução tinha feito tabula rasa em face de Bonaparte e ele só tinha raciocínios para
combater, espécie de arma com a qual ele se sentia muito à vontade e à qual ele
opunha, quando lhe convinha, uma espécie de imbróglio veemente, que parecia
muito lúcido com o auxílio das baionetas, nas quais ele poderia se apoiar"
[Staël, 1996: 76].
Não deixava de destacar
Madame de Staël a responsabilidade dos teóricos liberais tradicionais, como o
abade Sieyès, autor do famoso panfleto que fez deslanchar o movimento
revolucionário de 1789, intitulado: Qu'est-ce que le Tiers État? (O que
é o Terceiro Estado?) [cf. Sieyès, 1973]. Ora, eles seriam os diretos
responsáveis pela ascensão napoleônica, tendo lhe servido pronto o arrazoado de
que o general e futuro Primeiro Cônsul necessitava para se firmar no poder
absoluto. Em relação a este ponto, escrevia a nossa autora: "O general
Bonaparte tomou bem rápido do sistema de Sieyès aquilo de que ele precisava, ou
seja, a anulação da eleição de deputados pela nação. Sieyès tinha imaginado
listas de elegíveis, nas quais o Senado poderia escolher os representantes do
povo, sob o nome de tribunos e legisladores. Sem dúvida, Sieyès não tinha
pensado nessas instituições para estabelecer a tirania na França. Ele tinha
oposto contrapesos que poderiam talvez fazê-la balançar, mas Bonaparte, sem se
incomodar com os contrapesos, apoderou-se da palavra decisiva: nada de eleição.
A metafísica de Sieyès servia de véu, ou melhor de cortina de fumaça para
ocultar a força positiva que Bonaparte queria adquirir. Sieyès tinha dito: nada
de eleição. Não era pois o militar, mas o filósofo mesmo que condenava esse
direito, o único com ajuda do qual podemos fazer entrar a opinião pública no
governo. São as águas novas que vivificam este, enquanto que os corpos
permanentes se assemelham aos estanques cujas águas estagnadas podem mais
facilmente serem corrompidas. É preciso numa monarquia e talvez numa república
também, que haja magistrados hereditários, sábios vitalícios, toda uma
aristocracia conservadora, mas uma parte do governo, aquela que aprova os
impostos, deve emanar diretamente da nação" [Staël, 1996: 76-77].
Chateaubriand
sintetizou as críticas que um intelectual independente poderia endereçar ao
regime de Napoleão: ele governava para a sua glória, não para o seu povo. A sua
administração só se preocupava com números, não com pessoas. Bonaparte teria
sido, talvez, a primeira encarnação do tecnocrata frio, misturado ao guerreiro
implacável. A propósito, frisava Chateaubriand: "A administração de
Bonaparte tem sido elogiada: se a administração consiste em números, se para
bem governar é suficiente saber quanto trigo, quanto vinho, quanto azeite
produz uma província, qual é o último cêntimo que pode ser roubado, o último
homem que pode ser preso, certamente Bonaparte era um excelente administrador.
É impossível organizar melhor o mal, colocar mais ordem na desordem. Mas se a
melhor administração é a que deixa o povo em paz, que alimenta nele sentimentos
de justiça e de compaixão, que é zelosa em preservar o sangue dos homens, que
respeita os direitos dos cidadãos, as propriedades e as famílias, certamente o
governo de Bonaparte era o pior de todos os governos" [Chateaubriand,
1966: 76].
De forma semelhante a
Chateaubriand, Madame de Staël reconhecia um único ponto positivo na
administração napoleônica: aumentou as riquezas da França. Mas a finalidade é
que era ruim: para melhor se apossar do que era de todos! A respeito, escrevia
a nossa autora: "O que havia de evidente era, de longe, a melhora das
finanças e a ordem restabelecida em muitas áreas da administração. Napoleão era
obrigado a passar pelo bem da nação para chegar à desgraça dela. Era preciso que ele
juntasse as forças da nação a fim de melhor se servir delas para a sua ambição
pessoal" [Staël, 1996: 101]. De
positivo o déspota só tinha a aparência. Se buscava acrescer a riqueza da
França era para melhor roubar os cidadãos mediante o confisco e os impostos
esmagadores. A sua norma de comportamento era a negação da moral e se pautava
unicamente pela vontade de poder esmagando a dignidade das pessoas. "O seu
grande talento consiste em amedrontar os fracos e tirar proveito dos homens
imorais. Quando ele encontra a honestidade em algum lugar, poder-se-ia dizer
que os seus artifícios sofrem um grande desconcerto, como quando o diabo é
derrotado nas suas maquinações mediante o signo da cruz" [Staël, 1996:
99].
A estratégia
bonapartista para a conquista total do poder seguiu esse imperativo de utilizar
a fraqueza ou a falta de caráter dos outros. Isso se manifestou na forma em que
Bonaparte dominou, durante o Consulado, os dois colegas que junto com ele
exerciam o poder, os Cônsules Cambacérès e Lebrun. A propósito da forma como
cooptou o primeiro, escrevia Madame de Staël, salientando, outrossim, a
engenhosidade do déspota, que conseguia pôr a seu serviço a inteligência
alheia: "Ele escolheu com sagacidade notável os dois cônsules que lhe
tinham sido dados de presente para mascarar a sua unidade despótica. Um,
Cambacérès, tinha aprendido a se submeter durante a Convenção. Jurisconsulto de
notável erudição, tinha redigido os decretos arbitrários dos facciosos de forma
tão metódica, como se tivesse a pretensão de consolidar a código mais justo e
amadurecido. Disse-me um dia: Quando foi
proposto na Convenção o estabelecimento do Tribunal revolucionário, vi em
seguida os males que daí decorreriam e no entanto o decreto foi aprovado por
unanimidade. Ele era então membro da Convenção e contribuiu com o seu
sufrágio para essa mesma unanimidade (...). Bonaparte o identificou em seguida
como o seu colega de trapaças e como o seu instrumento apropriado. Tudo quanto
ele buscava e não cessou de buscar nos homens, é o talento e a ausência de
caráter" [Staël, 1996: 77-78].
Uma vez submetidos os
mais diretos colaboradores na cúpula do poder, só restava ao déspota escravizar
o resto da Nação. Como? De forma semelhante a como Max Weber considerava que se
reforça o poder do governante nos Estados patrimoniais: destruindo
sistematicamente todo sentimento de dignidade presente na sociedade. A
respeito, escrevia Madame de Staël: "O exército político de Bonaparte
compunha-se de trânsfugas dos dois partidos. Uns lhe sacrificavam as suas
obrigações para com a família dos Bourbons e os outros o seu amor à liberdade.
Em todos os casos, não deveria estar presente em seu reinado uma forma
independente de pensar, pois ele podia ser o rei dos interesses, mas jamais o
das opiniões e, pela sua situação assim como pelo seu caráter, ele sufocava ao
mesmo tempo tudo que houvesse de nobre na realeza e na república, pois aviltava
ao mesmo tempo nobres e cidadãos. Quando todo o seu estabelecimento
constitucional foi completado, um grande homem pronunciou acerca dessa ordem de
coisas uma dessas palavras que ecoam pelos séculos afora: É uma monarquia - frisou
Pitt - à qual só faltam a
legitimidade e os limites. Ele poderia adicionar que não havia monarquia
verdadeiramente legítima senão aquela que tem limites" [Staël, 1996:
78-79].
Madame de Staël
considerava que Napoleão desenvolvera uma estratégia verdadeiramente moderna -
forma mais agressiva de maquiavelismo - tendo dado ensejo a um processo que
contava com cinco variáveis: A - cênica ou estetizante (em que o despotismo
montava o seu próprio palco, que realçava as figuras que aceitassem aparecer
como atores a serviço do tirano), B - cultural (que tinha como finalidade o
controle sobre a opinião pública, mediante o amordaçamento da imprensa e a
censura sobre as publicações), C - política (mediante o terror policial que
esmagava qualquer resistência civil), D - religiosa (mediante a submissão da
estrutura da Igreja aos seus anseios absolutistas), E - imperial (através da
submissão imposta às nações estrangeiras, mediante as guerras de conquista).
Essas cinco variáveis foram estudadas por Madame de Staël na sua obra Dix
années d'exil. A nossa autora ergue-se assim, como precursora da obra
de Aléxis de Tocqueville, na parte que corresponde à análise crítica do
absolutismo (que o autor de De la démocratie en Amérique desenvolveu
na sua última obra L'Ancien Régime et la Révolution). Destaquemos apenas alguns
exemplos de cada uma das variáveis apontadas.
A - Variável cênica ou estetizante.- A nossa autora considerava que
o despotismo napoleônico inseriu-se no complexo cultural estetizante que já
existia no imaginário francês, tornando os atores políticos comediantes que
desempenhavam uma função no palco. O segredo da teatralidade bonapartista
consistiu em democratizar as expectativas
de ter intimidade com o poder, no sentido de que cada cidadão poder-se-ia
considerar apto a ser confidente do déspota. A respeito dessa manobra
culturológica, escrevia Madame de Staël: “Eram distribuídos folhetos nos quais
se dizia que Bonaparte não queria ser nem Monk, nem Cromwell, nem sequer César,
porque esses eram, afirmava-se, papéis já representados, como se os
acontecimentos deste mundo pudessem ser considerados assuntos de tragédia que
não é preciso imitar dos antepassados. Mas o que interessava não era persuadir
realmente, mas sugerir àqueles que queriam ser enganados uma frase que pudessem
repetir a qualquer um. A doutrina de Maquiavel fez tais progressos na França
depois de um certo tempo, que toda a vaidade francesa se transporta ao terreno
da habilidade política. Pode-se colocar a nação toda inteira, por assim dizer,
no segredo da comédia: ela sentir-se-á orgulhosa de se sentir confidente. Um
cabeleireiro dizia, quando Bonaparte tratava com o Papa: Eu não acredito em nada, mas é necessária a religião para o povo.
Cada indivíduo goza ao se considerar parte do embuste que é feito a todos”
[Staël, 1996: 80].
B - Variável cultural.- Bonaparte pôs em execução uma sistemática
política de censura à imprensa e às obras literárias. O peso da repressão
desabava, impiedoso, sobre todo aquele que ousasse transgredir, ou seja,
esboçar uma crítica ao déspota e aos seus representantes. Madame de Staël
sofreu em carne própria essa repressão, ao publicar o seu livro De
L’Allemagne. O ditador sabia que a obra da nossa autora não se limitava
ao estudo especulativo do pensamento alemão. O significado desta era muito mais
profundo. Se a alma das nações é a sua cultura, uma obra acerca da cultura
alemã significava que o déspota, ao invadir os principados ao norte do Reno,
não tinha conseguido submeter o espírito altivo desse povo. Daí a sanha com que
a polícia do Imperador destruiu, em 1810, a mencionada obra de Madame de Staël.
Em relação à censura imposta à imprensa, escrevia a nossa autora: “O grande
número de jornais que existia na França foi reduzido, de um momento a outro, a
quatorze por uma simples portaria do Conselho de Estado e, a partir de então,
estabeleceu-se esse poder terrível das folhas periódicas que repetiam todas a
mesma coisa cada dia e que não sofriam a mais mínima sombra de crítica de
nenhum gênero. A descoberta da imprensa passava como a salvaguarda da
liberdade, posto que até então jamais tinha sido vista a serviço da autoridade
de um déspota. Mas, assim como as tropas regulares têm sido bem menos
favoráveis que as milícias à independência européia, seria necessário lamentar
a descoberta da imprensa, se daí se seguissem a subserviência dos jornais e a
vigência do princípio de que os jornalistas deveriam ser empregados e pagos
pelo governo” [Staël, 1996: 82]. O Imperador antecipou-se, aliás, aos grandes
comunicadores do século XX, ao encarar a nação como massa que poderia ser
formatada de acordo com as informações (certas ou erradas, pouco importava),
que lhe fossem repetidas dia e noite. Certamente Bonaparte ficaria ao lado de
Goebbels nessa empresa, como o precursor deste. A respeito deste ponto escreveu
a nossa autora: “O sistema de Bonaparte era avançar mês a mês, passo a passo,
na carreira do poder. Ele fazia espalhar com estardalhaço decisões que gostaria
de tomar, a fim de sondar e ir preparando desse modo a opinião. De ordinário,
preferia que se carregasse as tintas nas decisões que pretendia tomar, a fim de
que, quando estas se tornassem concretas, aparecessem como mais brandas ao
público do que se temia” [Staël, 1996: 100].
C - Variável política.- O terror policial foi a grande arma de que
Bonaparte fez uso para quebrar os laços de solidariedade na França e assim
governar absolutamente, sem nenhuma oposição. A nobreza recebeu um recado quando
o Imperador mandou fuzilar, sem prévio aviso, o duque de Enghien, um dos mais
tradicionais representantes da aristocracia. O longo exílio a que foi submetida
nossa autora foi, de outro lado, uma advertência aos intelectuais provenientes
da burguesia. Se a filha de um ministro que foi adorado pelo povo podia ser
banida, ninguém no meio intelectual estaria seguro! A respeito do despotismo
sem limites que se abateu sobre os franceses no período napoleônico, escreveu
Madame de Staël: “Os mais pobres como os mais ricos, os mais desconhecidos como
os mais célebres, as mulheres, as crianças, os velhos, os sacerdotes, os
conscritos tinham alguma coisa a pedir ao novo governo e essa alguma coisa era
a vida, pois não se tratava de dizer: Eu
renunciarei em favor de um déspota. Mas era necessário se resolver a jamais
rever a pátria, a não achar a menor parte das suas posses, se alguém caísse na
desgraça do governo, que tinha se reservado o direito de traçar a sorte de cada
um, ou de quase todos os habitantes da França. Essa situação escusa muito a
nação, parece-me, mas ela coloca a nu o torpe comportamento desses magistrados
que, para conservar o seu cargo, entregaram o destino de todos os seus
concidadãos ao Primeiro Cônsul” [Staël, 1996: 81].
D - Variável religiosa.- Neste terreno, como, aliás, no concernente
à vida política, a estratégia napoleônica consistiu em ir lentamente colocando
a religião na órbita do poder temporal. Ao ensejo da negociação da Concordata
que se seguiu à Constituição de 1800, o Primeiro Cônsul simplesmente iniciou um
processo de cooptação da religião católica, que passou a girar ao redor dele
como mais um sustentáculo do seu poder absoluto. Se dizendo católico, fez, no
entanto com que a religião passasse a lhe servir. Já no ato de coroação do
Primeiro Cônsul como Imperador dos Franceses em 1804 ficou clara essa dimensão
de cooptação do elemento religioso, quando na basílica, na cerimônia religiosa
que o sagraria, tirou a coroa das mãos do Papa e a colocou na própria testa. A
propósito dessa cooptação, escreveu a nossa autora: “A religião tinha ficado na
França numa grande anarquia depois da Revolução. O partido revolucionário a
considerava como destruída. O partido aristocrático a adotava como bandeira e,
o que era mais importante, um grande número de pessoas esclarecidas e golpeadas
pelas desgraças da Revolução buscavam reacender os raios da fé nos seus
corações.. O Primeiro Cônsul, que jamais deixou de considerar nenhuma coisa
deste mundo senão em relação a ele, examinou a religião do ponto de vista da
autoridade que ela poderia lhe dar e sobretudo do obstáculo que ela poderia
oferecer, se ele não se impusesse para sufocar qualquer entusiasmo que ela
pudesse fazer nascer. Ele começou pois a negociação dessa Concordata que
deveria socavar lentamente toda religião sincera entre os homens. Ele percorria
neste terreno o mesmo caminho que seguiu em relação aos reinos que ele quis
arruinar. Não os destruiu como poderia fazê-lo, mas deixou cravado o machado na
árvore, a fim de fazê-los morrer com o passar do tempo. Exatamente isso
aconteceu com a religião da forma como ela foi restabelecida pela Concordata.
Era lembrada a ordem nas práticas religiosas como se se tratasse de um negócio
mal administrado. Mas o princípio da religião, ou seja, a sua independência em
face do poder temporal, era atacado radicalmente” [Staël, 1996: 334-335].
E - Variável imperial.- O projeto napoleônico foi o de unificar
toda a Europa ao seu redor, exercendo sobre os vários países submetidos uma
autoridade de ferro que impedia a expressão das liberdades ou a manifestação
das culturas nacionais. Daí a agressividade do Primeiro Cônsul e logo do
Imperador, em relação a uma mulher escritora que ousava desafiá-lo no seu poder
tirânico, escarafunchando nas fontes da cultura elementos que poderiam fazer
pensar na vitalidade das várias tradições européias, a partir das quais
poder-se-ia acender o fogo do Volkgeist,
do espírito dos povos. O imperador mudou realmente a geografia da Europa, a
ponto de que, como confessava Madame de Staël, para escapar da sua polícia, era
necessário ir até os confins do Continente, nos limites da Ásia. Eis o
testemunho que dava a nossa autora, em relação à viagem que se viu obrigada a
empreender para fugir da perseguição napoleônica, indo até os confins da Rússia:
“A geografia da Europa napoleônica só se aprende de forma adequada na desgraça.
As voltas que era necessário dar para evitar o seu poder eram já de quase duas
mil léguas e agora, passando pela mesma Viena, era necessário ganhar o
território asiático para escapar por ali” [Staël, 1996: 242-243]. Em relação
aos países dominados, frisava a nossa escritora: “Napoleão possui a arte de
tornar a situação dos países que se consideram a si próprios em paz de tal
forma infeliz, que toda mudança lhes é agradável e que, uma vez forçados a dar
homens e dinheiro à França, não sentem quase o inconveniente de serem reunidos
ao redor dela. Eles se dão mal, no entanto, pois nada há pior do que perder o
nome de nação e, como os males da Europa são causados por um só homem, é
necessário conservar com cuidado aquilo que pode renascer quando ele já não
mais exista” [Staël, 1996: 236]. A nossa autora era consciente do preço que os
seus concidadãos tiveram de pagar para erguer o monumento ao despotismo
napoleônico. A propósito, contava a seguinte anedota: “Alguém me falou certa
vez: Eis tudo restabelecido como antes da
Revolução. – Sim, respondi-lhe, tudo
exceto dois milhões de homens que morreram pela liberdade. Essas palavras
impressionaram um general que as repetiu como se fossem dele. O Primeiro Cônsul
me reconheceu nessa expressão e em algumas outras que foram repetidas pelo
mesmo general, que conversava freqüentemente comigo. Deixando escapar
expressões as mais violentas, ele disse com a sua delicadeza ordinária para com
as mulheres, que ele me faria cortar os cabelos e me trancaria num convento”
[Staël, 1996: 335-336].
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Este cronista com Les Invalides ao fundo, onde está guardado o túmulo de Napoleão. (Janeiro de 2011) |
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