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1-
  Patrimonialismo, o mal latino.
 
 
Para
  Meira Penna, o vício do Patrimonialismo não é apenas caraterística
  culturológica que acompanhou a formação do Estado no Brasil. É herança,
  também, dos povos latinos. Franceses, italianos, espanhóis, portugueses e
  latino-americanos em geral, viram consolidar as suas instituições políticas
  de forma patrimonialista.
 
 
Em
  relação à França, o nosso autor alicerça-se diretamente na obra de
  Tocqueville L'Ancien Régime et la Révolution. Os franceses
  acostumaram-se a enxergar os seus chefes como tutores, após séculos de
  centralismo paternalista do Monarca sobre a nação. Meira Penna cita as
  palavras de Tocqueville a respeito: "Quando penso nas pequenas
  paixões dos homens de nossos dias, na frouxidão dos costumes, na
  potencialidade de suas luzes, na pureza de sua religião, na condescendência
  de sua moral, em seus hábitos metódicos, no apego que experimentam em relação
  ao vício, não creio que eles vejam seus chefes como tiranos, mas antes como
  tutores" [cit. por Meira Penna in 1988: 223-224].
 
 
Comentando
  as palavras do pensador francês, Meira Penna escreve: "Tocqueville acentua
  ainda, enfaticamente, como o novo regime democrático, longe de favorecer o
  desenvolvimento da liberdade individual, proporcionou o crescimento do poder
  estatal centralizador. Tocqueville é sem dúvida o primeiro pensador que
  caracterizou concretamente o antagonismo entre o puro democratismo e
  o conceito de liberdade. Escreve ele (..): Por debaixo da superfície
  aparentemente caótica, se desenvolvia um poder vasto e altamente centralizado
  que atraía para si e moldava num todo orgânico todos os elementos de
  autoridade e influência que até então se encontravam dispersos entre uma
  multidão de poderes menores e não coordenados... Nunca desde a queda do
  Império Romano o mundo contemplou um governo tão altamente centralizado. Tocqueville
  salienta, desde logo, que foram o aumento da burocracia estatal, juntamente
  com sua crescente ineficiência e corrupção, muito mais que as guerras, os
  magníficos palácios e o luxo da corte que determinam o colapso financeiro da
  França, motivo imediato da Revolução. Versailles e as aventuras bélicas
  dispendiosas arruinaram, sem dúvida, o final do reino de Luís XIV. Mas a
  segunda metade do século XVIII foi relativamente pacífica e Luís XVI não se
  excedeu em construções extravagantes. A estrutura econômica do país era
  basicamente saudável. O que estava acontecendo é que um número realmente
  excessivo de indivíduos da nobreza e da burguesia mamavam nos úberes fartos
  do Tesouro. O Estado se depauperava. A França estava falida" [1988:
  224].
 
 
A
  figura centralizadora e omnipresente de Colbert é, no contexto francês, o
  exemplo do superbarnabé que faria as delícias do cartorialismo lusitano
  rejuvenescido sob Pombal. A respeito desse arquétipo e dos nefastos efeitos
  da sua ação cartorial sobre a França, escreve Meira Penna: "(...)
  Colbert é uma espécie de primeiro modelo do superburocrata. O Leviatã
  absolutista que Luís XIV impusera sobre a França incluía esse funcionário
  típico que trabalhava dezesseis horas por dia, que era tão frio, inflexível e
  cruel que madame de Sévigné o apelidara Le Nord, e que esfregava
  as mãos de volúpia quando chegava ao escritório, às 5:30 da madrugada, e
  encontrava a mesa apinhada de processos para despachar. De fato, tudo
  despachava. Despachava também para as galeras os comerciantes que ousassem
  importar do exterior, em concorrência às manufaturas estatais, tecidos de
  algodão. E tudo regulamentava, disciplinava, obstruía, ordenava, coibia com
  suas famosas Ordonnances. E multiplicava os decretos criando
  empresas públicas, manufaturas reais, tecelagens reais, forjas reais,
  arsenais reais e milhares de outras companhias reais, sempre
  na crença de que cabia ao Estado incentivar a indústria. A iniciativa privada
  era a priori suspeita. A economia era desenhada
  geometricamente, à la française como os jardins, mas o
  resultado final é que em todos os terrenos a França começa a ficar para trás
  já a partir de 1800. Uma por uma, as repúblicas e monarquias capitalistas de
  religião protestante, com exceção da Bélgica, ultrapassam os índices de
  produtividade e de renda ostentados pela França (...)" [1988: 229].
 
 
Meira
  Penna considera que o centralismo francês em muito se assemelha ao
  centripetismo do Estado patrimonial português, no período colonial. A
  semelhança alicerça-se num ponto específico: manter inalterada a dominação do
  centro, aniquilando qualquer tentativa de atividade organizada e de
  solidariedade espontânea. É o que Weber diz quando afirma que, para o
  patrimonialismo, é intolerável qualquer pretensão de dignidade por parte dos
  dominados [Weber, 1944: IV, 175 seg.].
 
 
Em
  relação a essa semelhança, afirma Meira Penna: "Tocqueville também
  explicou com muito acerto como a política municipal e principalmente a
  política fiscal dos monarcas absolutos dos séculos XVII e XVIII acabaram
  definitivamente com qualquer veleidade de iniciativa e qualquer possibilidade
  de atividade organizada espontânea, particularmente nos escalões inferiores. Nesse
  sistema de impostos, afirma Tocqueville, cada contribuinte
  tinha, efetivamente, um interesse direto em espionar seus vizinhos e
  denunciar aos coletores os progressos de suas fortunas: todos eram instruídos
  para a delação e o ódio. Vemos assim a semelhança com o que ocorreu
  no Brasil colonial em virtude das mesmas causas. A rigidez, a centralização e
  o controle opressivo do sistema francês se sustentam na necessidade de manter
  a ordem numa sociedade por natureza rebelde (...)" [1988: 231].
 
 
Esse
  centripetismo produziu o atraso das colônias francesas, segundo Tocqueville.
  Meira Penna destaca, com as seguintes palavras, a semelhança no atraso
  produzido nas suas respectivas colônias pelas políticas ultramarinas
  patrimonialistas francesa e ibérica, "(...) a experiência canadense
  constituiu uma espécie de caso-limite, alguns de cujos aspectos mais
  lamentáveis deviam reproduzir-se mais tarde, na segunda grande experiência de
  colonização realizada pela sociedade francesa, a experiência argelina. O
  ponto importante é que Tocqueville salienta a rigidez e centralização
  burocrática extrema do sistema colonial francês, em condições que muito
  lembram o ocorrido no Brasil e no resto da América Latina. O fracasso desse
  tipo de colonização e o subdesenvolvimento deixado como herança no Québec,
  testemunham o fato de que as mesmas causas tiveram o mesmo efeito lamentável.
  É nesse sentido que as observações de Tocqueville são relevantes"
  [1988,: 233].
 
 
O mal
  latino do patrimonialismo afetou também aos italianos. Eles teriam
  herdado da ocupação espanhola dos séculos XVI e XVII os preconceitos contra o
  trabalho produtivo, que constituem o caldo de cultura apropriado para o espírito
  orçamentívoro. Em relação a esse ethos do não trabalho (que
  é típico também da cultura brasileira), o nosso autor comenta com as
  seguintes palavras os estudos de conhecido ensaísta italiano: "(Luigi)
  Barzini começa aceitando em parte a explicação de alguns escritores, seus
  compatriotas, que atribuem ao longo domínio espanhol na Itália meridional
  alguns dos males administrativos aparentemente incuráveis do país. A culpa
  caberia, diz ele, ao desprezo feudal dos espanhóis pelas
  ocupações úteis e produtivas. O galantuomo consideraria
  sinal de distinção o não fazer nada. A ociosidade representaria um status
  symbol. Barzini (...) denomina preconceitos barrocos o
  conjunto de características que Gilberto Freyre e Oliveira Vianna, entre nós,
  estudaram e classificaram como complexo do gentleman. A
  forma principal é o desdém pelo trabalho manual, pelo comércio, o dinheiro e
  a atividade produtiva. Dizia-se, no Brasil colonial, o ócio vale mais
  do que o negócio... Hoje, a vingança do burocrata preguiçoso, que
  não é promovido, e do intelectual ocioso, que está na miséria, é pôr a culpa
  em cima do capitalismo e do imperialismo yankee..." [1988:
  237].
 
 
O mal
  latino também está presente na América espanhola. A mais acabada
  manifestação dele é o patrimonialismo telúrico da ditadura científica
  mexicana, tão bem estudado por Octavio Paz. Segundo Meira Penna, para o
  mencionado Prêmio Nobel "(...) o Estado patrimonial mexicano constitui
  uma sociedade cortesã, pois no regime patrimonial o que conta, em última
  análise, é a vontade do príncipe e de seus clientes e agregados" [1988:
  247]. 
 O nosso autor antecipava, na época da publicação de O
  Dinossauro em 1988, os dissabores que a bem comportada ditadura
  científica do Partido Revolucionário Institucional enfrentaria em Chiapas,
  nos anos 90. Estas são as suas palavras a respeito: "(O governo
  mexicano) sustenta o regime marxista da Nicarágua e as guerrilhas vermelhas
  da América Central e não seria de admirar se um dia o feitiço se virasse
  contra o feiticeiro: afinal, poucos países na América Latina continuam a
  oferecer um espetáculo mais deprimente de tamanhas massas de miseráveis
  desempregados, alimentados com tortilla e propaganda. Um dia
  poderá ocorrer que eles se decidam a passar da ingestão passiva da theoria para
  o exercício mais ativo da praxisrevolucionária..." [1988:
  251].
 
 
 
Traço
  comum aos patrimonialismos ensejados pelo mal latino é o
  clericalismo, que constitui uma manipulação da variável religiosa, com a
  finalidade de preservar a dominação de uma elite que privatizou o poder em
  benefício próprio. Essa é uma caraterística geral dos países que incorporaram
  a mentalidade tridentina. Esse caráter culturológico estende-se no plano
  histórico desde o século XVI até os nossos dias. Espírito contra-reformista e
  Teologia da Libertação seriam dois momentos dessa evolução. 
 A respeito,
  escreve Meira Penna: "O Estatismo absolutista está implícito na
  Contra-Reforma: a Igreja apelara para o Estado no sentido de suprimir a
  heresia. A Igreja conclamara os soberanos temporais para a luta contra o liberalismo
  dito protestante, anglo-saxão e modernizante. Os reis
  absolutistas, Felipe II na Espanha, Luís XIII, com Richelieu, na França e
  Luís XIV se aproveitaram da oportunidade para hostilizar os primeiros anseios
  de liberdade que se faziam sentir. Um liberalismo nascente que implicava a
  liberdade de julgar problemas morais ou liberdade de consciência e que seria
  fruto, segundo argumentava a Igreja, das detestáveis heresias de Lutero e
  Calvino. Em última análise, o liberalismo seria diabólico. O Catolicismo da
  Contra-Reforma é que, por tradição, transmite o autoritarismo o qual se
  transmuda hoje, naturalmente, no social-estatismo dos marxistas e dos
  teólogos da libertação" [1988: 230]. Convém destacar que o nosso autor
  dedicou dois trabalhos à crítica da Teologia da Libertação: O
  Evangelho segundo Marx [1982] e Opção preferencial pela
  riqueza [1991].
 
 
 
2 - Patrimonialismo e familismo clientelista.
 
 
Para
  Meira Penna, as sociedades estruturadas de forma patrimonialista são, antes
  de mais nada, organizações não puramente racionais, mas portadoras de
  uma racionalidade afetiva. O nosso autor alicerça em Weber e Jung
  essa sua apreciação, destacando, de um lado, o distanciamento das
  organizações patrimoniais em relação ao puro modelo racional-legal weberiano,
  mas identificando nelas, ao mesmo tempo, uma modalidade especial de
  legitimação, alicerçada no sentimento [1988: 149-150].
 
 
Meira
  Penna define a sociedade legitimada pela racionalidade afetiva como Coisa
  Nossa ou Patota. Eis a forma em que o nosso autor aplica esses conceitos à
  sociedade patrimonialista brasileira, seguindo, nesse ponto, a análise que
  Oliveiros Ferreira desenvolveu em relação à Máfia siciliana: "A Coisa
  Nossa brasileira não é necessariamente uma organização criminosa porque é
  tradicional. A Máfia siciliana também não é, na Sicília, considerada
  criminosa. Considera-se, ao contrário, uma honrada sociedade. Ela constitui
  tão somente (...) uma coterie. Uma teia de relações sociais, às
  vezes centrada no que se poderia chamar de estruturas de parentesco, o mais
  das vezes tecidas na intimidade, primeiro, das experiências comuns nos bancos
  acadêmicos, depois na compartilha de iguais vicissitudes do início da vida
  profissional, dos mesmos desejos de fugir às responsabilidades do trabalho
  assalariado (...). A Coisa Nossa é uma coterie, ou se se quiser,
  no sentido da gíria brasileira, uma patota, isto é, grupo ou bando que, até
  se poderia dizer, faz patotadas. Os membros do sistema burocrático ou o que
  mais recentemente também se designa como Nova Classe ou Nomenklatura, vivem
  de e para o aparelho de Estado. Não diria que são corruptos ou cínicos quando
  aceitam favores deste ou daquele a quem um dia favorecerão... Eles têm esses
  favores (de) que são cumulados como coisa natural: é parte inerente da função
  receber presentes!" [1988: 148].
 
 
O
  patotismo, no entender de Meira Penna, constitui a privatização do poder por
  uma minoria que se assenhoreia do Estado em benefício próprio. Na nossa
  tradição sociológica esse fenômeno recebeu também os nomes de clientelismo,
  coronelismo, compadrio. Tratando de caracterizá-lo mais detalhadamente, o
  nosso autor frisa: "O coronelismo, o clientelismo, o compadrio, o
  empreguismo, esse emaranhado extremamente confuso de relacionamentos e
  obrigações personalistas, ao nível municipal, que se associam à estrutura
  patrimonial do país, consistem, essencialmente, no aproveitamento
  privado da coisa pública. O coronelismo representa
  a forma local de domínio personalista. O patrimônio privado é ao mesmo tempo
  o patrimônio público. A privatização concreta se traduz pela incapacidade de
  conceber o governo como oriundo de um pacto social abstrato em que, segundo
  Hobbes, Locke e Rousseau, o Estado utiliza as leis como instrumento de sua
  autoridade (...)" [1988: 144].
 
 
Seguindo
  as análises feitas sobre a nossa realidade patrimonialista por Riordan Roett,
  o nosso autor destaca o caráter minoritário da nomenklatura que
  empolgou o poder no Brasil. A respeito, afirma: "Seria uma minoria mas
  assim mesmo uma minoria ponderável pois, com sete ou oito milhões de
  funcionários públicos e suas respectivas famílias, os parasitas do Estado não
  constituem parcela pequena da nossa sociedade" [1988: 146]. Esses
  parasitas são, no entender de Meira Penna, os identificados por Raymundo
  Faoro como donos do poder [1988: 147].
 
 
O vício
  do familismo clientelista é tão antigo quanto o Brasil. Estende-se por
  gerações e gerações, desde os tempos de Pero Vaz de Caminha (que pedia ao
  Monarca, na sua carta, sinecuras para familiares), até o dia de hoje. Meira
  Penna ilustra essa tendência com muitos exemplos tirados da sua longa
  experiência no serviço público. Citemos apenas três casos dos muitos
  apresentados pelo autor.
 
 
O
  primeiro foi vivido pessoalmente por ele, quando do início da sua vida
  diplomática. Ele era concursado, (como foi também Roberto Campos) com todas as exigências legais para
  ingressar no serviço diplomático. Mas teve alguns felizardos, amigos do
  Homem, que entraram pela janela. Eis as suas palavras a respeito: "O
  testemunho de minha experiência pessoal, como burocrata do Serviço Exterior
  brasileiro, pode contribuir para reforçar esses conceitos (...) sobre o patrimonialismo do
  sistema administrativo brasileiro. Em 1938, com vinte anos de idade,
  ingressei por concurso na carreira diplomática. Nem meu pai, nem qualquer
  outro membro da minha família, mantinham qualquer relação de amizade ou
  clientelismo com os donos do poder da época. A própria
  instituição do concurso, com todos os cuidados que a protegem da intervenção
  de fatores afetivos relacionados com o personalismo, constitui uma expressão
  do sistema burocrático funcional, democraticamente aberto e concebido como
  instrumento da autoridade racional-legal. A instituição do Mandarinato na
  China confuciana já o admitira há quase dois mil anos! Pois bem, na véspera
  do dia em que eu e mais cinco colegas, aprovados no concurso, fomos nomeados
  para a carrière a que faziamos jus automaticamente por
  aquele instrumento legal, dez outros simpáticos personagens locupletaram-se
  igualmente do decreto presidencial: eram todos filhos ou parentes de
  autoridades, ou amigos gaúchos do ditador. Nenhum deles preenchia as
  condições mínimas exigidas para a candidatura por concurso ao cargo inicial
  do Itamaraty. Chamava-se então àquilo de entrar pela janela... Queiram
  imaginar o estímulo que, para nós, concursados, representou aquele ato
  estupendo de privilégio patrimonialista!" [1988: 152].
 
 
Os
  outros dois exemplos que mencionaremos a seguir, ilustram como o vício do
  clientelismo familístico é próprio da nossa estrutura patrimonialista, tanto
  em tempos de autoritarismo (como no caso anteriormente mencionado), quanto em
  épocas mais brandas de abertura democrática. A respeito, Meira Penna escreve:
  "Quando (...) o Presidente do Supremo Tribunal Federal, o mais altamente
  colocado magistrado do país e aquele de quem mais se poderia exigir o
  cumprimento rigoroso das Leis, quando esse juiz, dizia eu, exerceu
  interinamente a presidência da República, em 1945, após a primeira derrubada
  de Getúlio Vargas por um golpe militar, sua primeira preocupação, senão
  única, consistiu em nomear todos os parentes para cargos públicos, inclusive
  o próprio filho para a carreira diplomática. Em outras palavras, considerou
  imediatamente que a presidência da República era seu patrimônio particular.
  Por que não dela se locupletar enquanto houvesse tempo? Estou seguro de que
  nenhuma compunção moral o deteve. Criticado, o aludido magistrado achou suas
  iniciativas perfeitamente legítimas, não podendo mesmo compreender o sentido
  da crítica... Quarenta anos depois, terminou o regime militar e a
  chamada Nova República se inaugurou com uma verdadeira maré
  de nomeações e promoções da enorme clientela respectiva, em praticamente
  todos os Estados da Federação e em Brasília. O governador de São Paulo, em
  que pese sua sofisticação, discretamente colocou em posições no Palácio dos
  Bandeirantes toda a sua família. O resultado do sistema é que a classe
  privilegiada que se apropriou das alavancas do governo graças a mecanismos
  representativos imperfeitos e, em muitos casos espúrios, mantém
  indefinidamente seu poder, quaisquer que sejam as peripécias da vida política
  da nação. As revoluções ocorrem. Mudam os regimes. Os governos se
  sucedem. Mas os mesmos políticos ou seus clientes conservam o poder de
  controle absoluto sobre a Cosa Nostra..." [1988: 150-151].
 
 
O
  mecanismo para ingressar na estrutura do Estado Patrimonial brasileiro,
  acabamos de ver, não é certamente o concurso, embora estes aconteçam como
  exceções que confirmam a regra. O mecanismo normal de ingresso e promoção, no
  seio do patrimonialismo, é o conhecido pistolão, que é definido
  pelo nosso autor como "(...) a relação de um empregado (nomeado ou
  promovido) com alguém na organização hierárquica, por força de laços de
  sangue, casamento ou amizade" [1988: 213].
 
 
Entre
  os muitos exemplos de pistolão apresentados pelo nosso autor,
  citemos este, tirado da carreira diplomática: "O critério do pistolão adquiriu
  outrora uma complexidade prodigiosa. Houve um Presidente da República que se
  queixava de serem as promoções do Itamaraty (...) um dos atos mais difíceis
  de sua administração. Os candidatos à promoção de embaixador ou a ministro ou
  ao posto de conselheiro da Embaixada em Paris se apresentavam armados, como
  num jogo de pôquer, de um par de senadores e um par de arcebispos; ou de uma
  trinca de generais; ou de uma seqüência parlamentar (a bancada do Estado); ou
  de um pôquer de ministros, acrescido da diretora do Museu de Arte Moderna. Em
  outros ramos do serviço público o sistema não atingia tal sofisticação, mas o
  mecanismo é o mesmo" [1988: 214].
 
 
Aspecto
  deveras paradoxal do familismo é o chamado por Meira Penna de nacionalismo
  uterino, que constitui "uma combinação indecente de burocracia
  e ideologia nacionalista", que "se rebela contra uma política
  necessária, urgente e nacional de controle da natalidade" e que, ao
  mesmo tempo, "age no sentido de dificultar o processo de adoção".
  Trata-se, para o nosso autor, de um caso de cruel ignorância das elites
  política e eclesiástica acerca desse gravíssimo problema, cuja essência é
  assim identificada: "O espetáculo nacional apresenta curiosidades e
  incoerências que, às vezes, nos enchem de grande perplexidade. Vejam, por
  exemplo, o seguinte caso: nascem aqui cerca de quatro e meio milhões de
  crianças por ano. O índice de natalidade talvez ainda ultrapasse os 4%,
  elevadíssimo e próprio de país subdesenvolvido (...).Dos quatro e meio
  milhões de bebês nascidos vivos, mais de 300.000 morrerão antes de alcançar
  cinco anos. Milhões serão abandonados. Milhares se transformarão em
  trombadinhas e, eventualmente, em marginais, assaltantes e assassinos
  (...)" [1988: 176-177].
 
 
3 - Patrimonialismo e formalismo cartorial.
 
 
Alheia
  à racionalidade weberiana, a burocracia tupiniquim terminou se fossilizando
  num vácuo formalismo cartorial, que tudo paralisa e que inferniza a vida do
  cidadão comum. Se o monstro patrimonial é bonzinho com os seus, com o resto é
  autêntico ogre. O Estado Patrimonial, como aliás destacou acertadamente
  Octavio Paz, é um ogre filantrópico [Paz, 1983], ou como se
  diz nestes tempos de máfias previdenciárias, um ogre pilantrópico.
 
 
A caracterização
  que desse irracional formalismo faz Meira Penna é deveras rica e ampla,
  porquanto abarca aspectos os mais diversos da vida social brasileira. Eis as
  suas palavras a respeito: "O Brasil é o país das certidões, dos
  documentos carimbados com firma reconhecida, dos processos tão
  pesados e lentamente elaborados quanto o Antigo Testamento, das filas
  intermináveis no suplício medieval dos guichets. 
 É o país
  onde o processo de aposentadoria de um velho e cansado funcionário, que tudo
  deu pelo Estado, sofre a via dolorosa de, pelo menos, 193 encaminhamentos (se
  devemos dar crédito a um ministro do Planejamento), antes de ser despachado
  em favor do beneficiário. Outro ministro certa vez apresentou, na televisão,
  dezenas de metros de formulários, colados uns ao lado dos outros, para
  ilustrar qual a documentação necessária a um processo de exportação:
  verdadeira jibóia destinada a estrangular o afoito que pretendeu vender ao
  estrangeiro soutiens de senhoras. (...) Demora-se no Brasil
  quinze dias para obter um atestado de bons antecedentes porque todo cidadão,
  até prova em contrário, é considerado mentiroso e salafrário... Neste nosso
  país um doente, à morte, que dá entrada no hospital (...) tem previamente de
  apresentar contra-cheque, fotografia e certidão de casamento. Um candango que
  precisa obter uma carteira de identidade do INI de Brasília, tem de tirar
  fotografia com paletó e gravata: só assim se identifica... Um cadáver de
  brasileiro, embarcado no exterior para ser enterrado no abençoado torrão natal,
  deve ser legalizado, pagar emolumentos consulares e ser despachado com a
  classificação espécimen de história natural, sem o que não
  vencerá a barreira do Aquerontes alfandegário. Nessa barreira, uma escultura
  metálica de Mary Vieira foi certa vez embargada porque classificada como
  sobressalente de automóvel com similar nacional, sem licença de importação.
  Dois elefantes doados pela Índia para o jardim zoológico do Rio não
  atravessaram o Styx. Pudera! Enorme esforço é empreendido pelo Estado para o
  desenvolvimento das nossas inesgotáveis potencialidades turísticas, e no
  entanto este mesmo Estado ergue, em suas repartições, uma barreira de
  desconforto, impolidez e terror destinada a afugentar o mais entusiástico
  admirador de Copacabana e das Cataratas do Iguaçu. Barreiras fiscais
  internas, denominadas Barreiras do Inferno, compartimentam ainda
  o país, semelhantes às que dividiam a Europa antes da Idade da Razão
  (...)" [1988: 164-165].
 
 
 
Mas
  este mal, como o familismo, não é recente. Confunde-se com as nossas origens.
  Humboldt e Darwin já sofreram, no passado remoto, com essas mesmas barreiras
  da nomenklatura. A respeito, escreve Meira Penna:
  "Mal de muitos consolo é: visitando o Brasil em 1832 (uma experiência
  inolvidável para ele e para a ciência, pois aqui se inspirou antes de
  escrever A Origem das Espécies), Charles Darwin teve que obter um
  passe, a fim de penetrar no interior. Sua experiência foi semelhante à de
  outro famoso colega, um tal barão de Humboldt, que também, no
  alto rio Branco, se deparou com a desconfiança do burocrata brasileiro. Eis o
  que escreve Darwin em seu Diário: Passou-se o dia procurando obter
  passaporte para minha expedição pelo interior. Não é nada
  agradável a gente submeter-se à insolência de funcionários públicos; mas se
  submeter aos brasileiros, que são tão desprezíveis no espírito como
  miseráveis no corpo, chega a ser intolerável. A perspectiva, porém, de ver
  uma floresta que é habitada por belas aves, macacos, preguiças e lagos onde
  moram jacarés, fará qualquer naturalista lamber o pó que acaba de ser pisado
  até mesmo pelo pé de um brasileiro.... Como explicar esse caráter
  agressivo da burocracia patrimonialista, num país que se orgulha de ser
  tolerante e ambiciona desenvolver-se racional e legalmente, segundo o modelo
  democrático?" [1988: 165-166].
 
 
O
  formalismo cartorial brasileiro é estetizante, no sentir de Meira Penna, pois
  constitui uma espécie de liturgia dos donos do poder, destinada a manter os
  seus privilégios e a sua preeminência sobre a sociedade. A respeito frisa o
  nosso autor: "Na burocracia brasileira o que vale é o status. O
  mandarim tem que se dar ares de importância. A Persona é importantíssima! O
  conceito de manter a face. Carro oficial com chapa branca,
  casa na península ou apartamento funcional na Asa Sul, esposa bem vestida
  pela moda francesa, casamento com a presença do senhor Presidente da
  República. Reina, sobretudo em assuntos de interesse financeiro, uma
  atmosfera de solenidade, de mistério: os menores problemas se transformam em
  enigmas insondáveis. Cria-se uma barreira intransponível, se não existe um
  mínimo de intimidade pessoal entre os interessados (...)" [1988: 189].
 
 
Outra
  nota do nosso cartorialismo é a ineficiência. Alicerçado na ética macunaímica
  do menor esforço, o burocrata, além de se dar ares de importância, age com
  mentalidade de elevador: empurra todos os processos para cima. Em relação a
  esse ponto, frisa Meira Penna: "A combinação do desejo de se dar ares de
  importância com a relutância em tomar decisões, em seu próprio nível, tem
  como conseqüência a pressão tremenda exercida no sentido de empurrar todos os
  expedientes para cima, para os ministros de Estado e para o Presidente da
  República (...)" [1988: 190].
 
 
Mais
  uma nota do cartorialismo brasileiro: as leis não possuem entrelaçamento racional.
  Consequentemente, o povo não acredita nelas. O único cimento que as cola é a
  interpretação voluntariosa delas, feita pelos próprios funcionários, de
  acordo com os seus interesses. A respeito, o nosso autor cita o testemunho do
  diplomata húngaro Peter Kellemen, para quem o brasileiro "é um povo onde
  as leis são reinterpretadas; onde regulamentos e instruções do governo já são
  decretados com um cálculo prévio da percentagem em que são cumpridos; onde o
  povo é um grande filtro das leis e os funcionários, pequenos ou poderosos,
  criam sua própria jurisprudência. Ainda que esta jurisprudência não coincida
  com as leis originais, conta com a aprovação geral, se é ditada pelo bom
  senso" [cit. por Meira Penna in 1988: 191].
 
 
4 - Patrimonialismo e estatismo burocrático.
 
 
A
  ausência de racionalidade fez com que a estrutura burocrática do Estado
  patrimonial brasileiro crescesse adiposamente, sem nenhuma preocupação de
  eficiência. O nosso autor ilustra de forma plástica esse mostrengo, que
  cresceu com o correr dos séculos como uma espécie de pirâmide inamovível, em
  cujo vêrtice repousam, inatingíveis, os nobres da nomenklatura,
  "duques e marqueses poderosos" servidos por um exército de intermediários,
  uma classe média visceral identificada com a "Maria
  Candelária", que vive sentada e fofoca durante o expediente e uma base
  ampla de ineficientes funcionários de baixo escalão, os contínuos.
 
 
Eis a
  fotografia de corpo inteiro do Leviatã brasileiro: "Monstro
  antediluviano, foi a burocracia brasileira erguida como instituição patrimonial
  com seus castelos, cercados de bastiões, fossos e pontes-levadiças. Neles
  habitam os grandes barões do Estado cartorial, a aristocracia soberba
  dos altos funcionários, duques e marqueses com sua enorme
  clientela de gordas escriturárias e magricelas serventes famintos, que
  suplementam o salário-mínimo com gorjetas e comissões. Sobrevivem o foro, a
  enfiteuse e o laudêmio. Sólidos como o Pão de Açúcar, resistem ao sopro de
  renovação os direitos adquiridos, que são muitos: o direito ao cargo para o qual
  foi nomeado sem concurso, por ser filho de fulano ou primo de dona Carmen; o
  direito à promoção por ser amigo de beltrano; o direito à reclassificação,
  por ser amante de sicrano" [1988: 188].
 
 
No
  corpo médio da pirâmide burocrática do Estado patrimonial brasileiro
  encontramos os intermediários, que possuem duas caraterísticas
  visceralmente unidas: servir de dique aos chatos que pretendem perturbar o
  repouso remunerado da cúpula, se beneficiando, nessa sua função
  patrimonialista, da privatização das vantagens que lhes garante a indústria
  de oferecer dificuldades para vender facilidades. 
 Em relação
  a este estamento, escreve Meira Penna: "Para defender o status dos
  altos funcionários, a burocracia criou uma série de intermediários, o
  principal dos quais é o chefe de gabinete. A função desse é
  essencialmente a do Cão Cérbero: barrar a entrada. Sobretudo aos chatos. Ai
  daquele que não possa colocar com suficiente ênfase e força de convicção,
  para penetrar no augusto recinto, a clássica pergunta: O senhor sabe com
  quem está falando?... Uma outra classe de intermediários é o
  despachante. Trata-se de um prodígio biológico: o parasita dos parasitas.
  Quando não se pode recorrer a esse espécime burocrático, há que utilizar uma
  das técnicas especiais de penetração na burocracia. O funcionalismo criou o
  que já foi chamado a indústria de dificuldades para vender
  facilidades. Contra essa indústria, o recurso é o jeito. O
  trêfego e vivo Macunaíma, manhoso e cheio de velhacarias, aparece com seu
  saco de surpresas que sugerem a saída com uma brilhante sugestão salvadora.
  Toda a técnica pegajosa e açucarada do Eros é então utilizada para impô-la à
  situação, sobrepujando o obstáculo. A relação pessoal que se estabelece entre
  o funcionário e a parte sobrepõe-se ao dispositivo legal ou à inércia
  burocrática. Eros vence Anankê, a necessidade. É o
  jeitinho..." [1988: 190-191].
 
 
 
A base
  da pirâmide cartorial é formada pela arraia miúda da burocracia
  patrimonialista, as Marias Candelárias e os Contínuos,
  que constituem, respectivamente, a classe média visceral do
  sistema e a sua classe baixa. Eis a descrição desses
  personagens: "A massa passiva do funcionalismo, que se poderia chamar o
  tecido adiposo formado de glicerina e ácido grasso do nosso Dinossauro, é a
  Maria Candelária. Constitui a classe média visceral da burocracia. Sentada o
  dia inteiro, notável pela sua esteatopigia, conversa ela com as colegas sobre
  as peripécias da última novela de rádio e as fofocas da repartição, enquanto
  se estende a fila do público desesperado pelos corredores da repartição e até
  o portão do Ministério. Abaixo de todos, na escala hierárquica, temos a
  figura melancólica do contínuo. Sua missão é difícil de definir em qualquer
  sociedade que acredite em desenvolvimento e eficiência. Ele simplesmente
  existe. É expressão do subemprego generalizado com que o social-estatismo
  caritativo procura liqüidar com esse horroroso crime do capitalismo que é a
  concorrência e o desemprego. O contínuo aparece num corredor ou numa
  portaria, ao lado de um gabinete, geralmente sentado com um olhar vago de
  indiferença. Às vezes fica de pé, respeitosamente, quando passa um alto
  funcionário. Abre-lhe a porta. Carrega papéis e mensagens de um lado para
  outro. Tem o importante encargo de fazer café, levar a aposta da loteria
  esportiva, comprar cigarros e, ocasionalmente, o de receber propinas para
  desencravar processos perdidos em alguma gaveta ou obter assinaturas do
  chefe. Em troca, pede emprego para o filho..." [1988: 191].
 
 
5 - Mercantilismo e patrimonialismo.
 
 
Como se
  financia o Dinossauro Patrimonialista? Certamente não mediante o
  empreendimento capitalista teorizado por Adam Smith na sua clássica obra A
  Riqueza das Nações. O Patrimonialismo afina-se com uma concepção
  mercantilista das relações econômicas, que parte do pressuposto de que a
  riqueza já está feita e que o problema reside em como se apropriar dela, ou
  como realizar, segundo dizia Marx, a "acumulação primitiva". A
  concepção macro-econômica de Adam Smith, segundo a qual a riqueza não precisa
  ser roubada de ninguém, porquanto pode ser produzida mediante o trabalho,
  arrepia o lombo do rebanho burocrático, que sente calafrios em face da palavra tarefa ou produtividade. O
  mercantilismo, para Meira Penna, "(...) foi uma forma econômica que
  dominou a Europa, na fase preparatória da Revolução Industrial desencadeada
  pelo Capitalismo. Ele precede, portanto, o sistema de autoridade que Max
  Weber qualifica de racional-legal, correspondendo antes à fase
  final do modelo de autoridade dito tradicional patrimonialista"
  [1988: 140].
 
 
É
  longa, na nossa história, a tradição mercantilista aliada ao Patrimonialismo.
  Os prolegômenos desse modelo deram-se em Portugal. A propósito, frisa o nosso
  autor: "O mercantilismo que inspirou a conquista da Índia transformou o
  Estado português em gigantesca empresa de tráfico. Esse crescimento prematuro
  do poder do Estado, consolidado subseqüentemente e modernizado com o
  despotismo de Pombal, teria conseqüências ominosas. Ele impediu o
  desenvolvimento do capitalismo industrial que é, essencialmente, fruto da
  iniciativa privada. A península ibérica e suas colônias não conheceram as
  relações capitalistas na sua expressão industrial íntegra. O atraso ocorreu
  em virtude dessa ausência de raízes feudais profundas e da permanência
  teimosa de estruturas patrimonialistas centralizadas. O poder perene do
  príncipe português sobre o comércio e a economia está na origem do
  social-estatismo burocrático e paternalista (ou seria maternalista?) que hoje
  descobrimos no Estado brasileiro. A herança é o Dinossauro (...)" [1988:
  156-157].
 
 
Essa
  tradição se fortaleceu, portanto, no período pombalino, quando o Estado
  começou a ser definido como fonte da riqueza da Nação, e passou a
  alicerçar os hábitos econômicos da sociedade, de forma que até os atores
  econômicos passam a esperar do Estado tutor o lucro subsidiado. É uma espécie
  de colbertismo caboclo, que tira da empresa econômica o caráter de risco,
  para transformá-lo em sujeição ao poder político. A respeito, afirma o nosso
  autor: "Tão fortemente entrincheirado na tradição e nos hábitos
  empresariais é o fato de que o próprio setor privado não se julga, muitas
  vezes, inclinado a enfrentar os árduos riscos do empreendimento, recorrendo
  ao Estado quando as coisas andam mal (...). Existe uma velha definição da
  empresa privada como uma empresa controlada pelo governo, sendo a
  empresa pública aquela que não é controlada por ninguém, mesmo
  se, na aparência, é administrada por coronéis reformados, tecnocratas
  profissionais, amigos do presidente da República ou políticos fisiológicos"
  [1988: 145].
 
 
O
  Brasil, atrelado ainda ao modelo mercantil-patrimonialista herdado do ciclo
  pombalino, está defasado historicamente em relação ao mundo desenvolvido.
  Vivemos, efetivamente, um modelo muito mais próximo das monarquias
  absolutistas dos séculos XVII e XVIII. A respeito, escreve Meira Penna:
  "Ora, a filosofia econômica desse sistema político foi articulada pelo
  que os entendidos (...) tendem a descrever como expressão econômica da
  monarquia absoluta e da autoridade patrimonialista: o Mercantilismo. No
  fundo, como aponta Antônio Paim, é ainda o espírito do marquês de Pombal que
  aqui impera" [1988: 158].
 
 
Esse
  modelo econômico de mercantilismo patrimonialista em que o Estado, através
  das empresas do setor público, garante a riqueza da nação, empolgou no Brasil
  sobretudo o pensamento da esquerda, que terminou formulando uma proposta
  de social-estatismo ou de nacional-socialismo,
  em que se insere, inclusive, a chamada opção preferencial pelos
  pobres dos chamados setores progressistas da Igreja. O nosso autor
  destaca o caráter retrógrado de tal política, que deixa as coisas como sempre
  estiveram, em mãos do Estado patrimonial e da sua burocracia. A respeito,
  escreve: "Não estou seguro de que uma revolução marxista no Brasil
  modificaria fundamentalmente a situação: a apropriação pessoal das rédeas de
  comando continuaria como dantes, com uma simples mudança de quadros numa
  estrutura burocrática já toda montada. O vício fatal do
  socialismo é, com efeito, a concentração do poder político e
  do poder econômico nas mesmas mãos. Sem o controle de um poder por
  outro poder, sem a liberdade de crítica, não pode haver justiça, nem é
  possível evitar a corrupção" [1988: 151].
 
 
O
  efeito mais claro do mercantilismo patrimonialista é a pobreza da Nação,
  assim como o efeito direto do Capitalismo seria a sua riqueza. Efetivamente,
  o modelo mercantilista é eminentemente improdutivo e espoliativo da riqueza
  existente. Esse modelo ultrapassado já causou à humanidade, ao longo dos
  séculos XVII e XVIII, inúmeras guerras, pois como frisa Irving Kristol,
  citado por Meira Penna, "o Mercantilismo não pretendia o aumento da
  riqueza permanente do povo (aquilo que é o propósito da economia
  capitalista), mas antes aumentar a riqueza temporária do Estado, a riqueza
  que podia ser traduzida em poder internacional" [1988: 159].
 
 
6 - Patrimonialismo e corrupção.
 
 
A soma
  do mercantilismo e do familismo produz
  um resultado concreto: a corrupção. Esta não é outra coisa do que a
  apropriação, pelos particulares, dos bens públicos, como se se tratasse de
  bens privados. Ora, essa é a essência do Patrimonialismo que constitui,
  portanto, uma fonte inesgotável de corrupção. O grande objetivo da burocracia
  é a privatização do orçamento em benefício próprio. É o fenômeno que Oliveira
  Vianna chamou de burocratismo orçamentívoro. Os números
  apresentados por Meira Penna acerca do acelerado crescimento da burocracia
  estatal brasileira e da sua cupidez, ao longo das últimas décadas, não
  mentem, e são sobejamente conhecidos por todos. Já frisava o professor Mário
  Henrique Simonsen, na sua obra Brasil, 2001, que o nosso país
  bateu todos os recordes de crescimento do setor burocrático estatal no
  Hemisfério Ocidental, ao longo do século que ora finda.
 
 
Apenas
  para ilustrar o mal do burocratismo orçamentívoro, citemos
  um texto do nosso autor: "O mal, infelizmente, não é apenas federal. É
  também estadual e, sobretudo, municipal. Ele está profundamente enraizado nos
  hábitos do governo e do povo, penetrando por todos os poros da administração
  ao nível mais regional e local. No Estado de São Paulo, unidade da Federação
  que é a mais avançada e progressista do país, haveria cerca de 800.000
  funcionários em fins de 1985, segundo revelou a Secretaria da Fazenda do
  Estado. Isso representaria 120.000 a mais do que em dezembro de 1982, quando
  eram pouco mais de 640.000. Foi um crescimento de 18% em 3 anos, ou 6% ao
  ano, crescimento muito mais rápido que o aumento demográfico e o do produto
  interno bruto do Estado. A maior parte das nomeações dos 120.000 teria
  ocorrido na administração Montoro, mas também grande quantidade no final do
  governo anterior, explicando-se o exagero por motivações indiscutivelmente
  eleitoreiras. Os abusos do empreguismo, dos privilégios e da ociosidade
  parecem ser tanto maiores quanto mais pobre ou atrasado é o Estado ou o
  Município. Vejam o caso de Alagoas, que adquiriu uma triste notoriedade. A
  Assembléia Legislativa alagoana encerrou suas atividades, em 1985, criando
  240 cargos de assessores para cada um dos 24 deputados. O diretor da
  Assembléia, Edvaldo Meira Barbosa, recebe um salário mensal equivalente a dez
  mil dólares, salário do mais bem remunerado executive americano,
  com a diferença que o diretor brasileiro não paga imposto de renda. (...)
  Dessa multidão de assessores (580), pelo menos 400 não trabalham, por falta
  de espaço físico. Alguém se espanta com a pobreza de Alagoas? Serão as
  multinacionais, o capitalismo industrial, a dívida externa ou os bancos
  estrangeiros responsáveis pela situação? Não parece claro qual o motivo local
  do subdesenvolvimento? (...)" [1988: 211].
 
 
7 - Alternativas ao Patrimonialismo.
 
 
Meira
  Penna encontra, na difusão das luzes da Razão no seio da sociedade
  brasileira, a solução para as contradições e irracionalidades ensejadas pela
  nossa tradição patrimonialista. O de que precisamos é, com dois séculos de
  atraso, da entrada definitiva do Brasil na Idade da Razão. É o que o nosso
  autor denomina de Revolução do Lógos. A respeito, escreve:
  "O de que precisamos, sem prejuízo da contribuição que sempre nos darão
  os que sentem, é uma revolução do Lógos (do bom senso, do equilíbrio, da
  inteligência), coisas que são necessárias, embora difíceis de obter, pois sem
  elas o monstro burocrático obsoleto estará sempre crescendo desmesuradamente.
  É nesse ponto que se coloca uma das mais cruéis opções com que nos deparamos
  em nosso esforço de renovação e modernização, pois se não eliminarmos a
  mamãezada e substituirmos o paquiderme terciário por um organismo mais
  evoluído, serão vãs as nossas esperanças de desenvolvimento. A opção é essa.
  Só essa" [1988: 259].
 
 
A
  proposta de Meira Penna aponta para um processo educacional que modifique a
  mentalidade. Somente assim garantir-se-á uma solução de fundo ao problema do
  Estado Patrimonial, que repousa em hábitos administrativos sedimentados ao
  longo dos séculos. Trata-se de uma proposta de pedagogia social e política. É
  o ponto que o nosso pensador destaca no seguinte trecho: "A pergunta
  natural para quem, de frente, fita o Dinossauro anteriormente descrito é a
  seguinte: Que fazer? Como caçar o monstro? Como eliminá-lo? Como diminuir o
  empreguismo, banir o clientelismo, combater o nepotismo, selecionar os
  melhores, aumentar a dedicação dos servidores, apressar e simplificar os
  processos, suprimir as tolices, racionalizar os serviços, reduzir o
  poder do Estado?Não se trata tanto, a meu ver, de tomar esta ou aquela
  medida legal corretiva quanto de mudar a mentalidade. Algo
  que virá lentamente com a educação, com o esforço consciente do governo e com
  o próprio desenvolvimento. Uma sociedade liberal moralmente estruturada
  poderá superar o estágio da mamãezada patrimonialista. Mas não é o caso de
  debater os remédios. Todo mundo sabe quais são, sobretudo se pertence à
  própria classe(...)" [1988: 259].
 
 
Duas
  instituições o nosso autor enxerga para, a partir delas, deflagrar o amplo
  processo educativo de que o Brasil carece: uma Escola Nacional de
  Administração, destinada à formação da elite técnica civil de que o Estado
  carece e um Instituto Superior de Ciência Política, destinado à formação da
  nova classe política. Ambas as instituições foram inspiradas, ao nosso ver,
  na experiência que Meira Penna teve no Itamaraty como diplomático de
  carreira. O Instituto Rio Branco representa, na burocracia brasileira, o mais
  bem sucedido intento de escola de altos estudos para formação de pessoal
  técnico a serviço do Estado. Diríamos que é uma das instâncias
  profissionalizantes que mais se aproximam, na nossa sociedade, do ideal
  burocrático-racional weberiano.
 
 
A
  primeira das instituições apontadas, a Escola Nacional de Administração
  proposta por Meira Penna, encontra uma outra fonte de inspiração: a École
  National d'Administration francesa, bem como a nossa Fundação
  Getúlio Vargas e a própria Escola Superior de Guerra. Essa instituição
  "assumiria uma função precisa e nitidamente delimitada: assegurar o
  recrutamento e a formação da fração superior do funcionalismo civil. A Escola
  apontada, como a ENA francesa, adotaria rigorosos critérios
  de seleção alicerçados exclusivamente na capacidade dos candidatos,
  desmontando portanto qualquer mecanismo familístico ou clientelista. Nela,
  frisa o nosso autor, "(...) são os próprios alunos que, por ordem de
  classificação final segundo o mérito, escolhem a carreira desejada nesse ou
  naquele Ministério, Tribunal ou Conselho mais procurado. O sistema cria um
  extraordinário estímulo, pois a escolha vai determinar o destino do rapaz nos
  30 ou 40 anos seguintes. O serviço público deixa assim de constituir uma
  sinecura, alcançada a golpes de pistolão, para se tornar uma honraria dada ao
  mérito, e acompanhada de forte incentivo material. O serviço público adquire,
  em suma, o sentido mais alto de carreira, que encontramos nas
  armas e na diplomacia" [1988: 260].
 
 
A
  segunda das instituições propostas, o Instituto Superior de Ciência Política,
  encontrou inspiração imediata na Escola Superior de Guerra e na Escola de
  Governo de Harvard. O nosso pensador parte do seguinte princípio filosófico,
  herdado de Sócrates e Platão: "a boa política pode ser ensinada"
  [1988: 264]. Meira Penna formula nos seguintes termos o seu projeto de
  Instituto: "(...) o que apresento como proposta idônea é a organização
  de uma Escola de Altos Estudos Políticos, funcionando no quadro da
  Universidade de Brasília e sediada na capital. Seu propósito central seria
  constituir um fulcro de pesquisa e uma ponte entre a universidade, como mais
  alta instituição educacional, a meio caminho entre a esfera privada e a
  esfera pública, e o mundo da política" [1988: 266].
 
 
O
  Instituto apontado buscaria profissionalizar a atividade político-administrativa
  pelo estudo e pela pesquisa. Na trilha do princípio de Bacon de que conhecimento
  é poder, a ciência política permite, hoje, desenvolver um
  treinamento sério para o serviço público. A respeito, escreve Meira Penna:
  "(...) O de que se necessita, em conclusão, é de educação superior
  adequada de uma nova elite política. Uma profissão que incluiria as pessoas
  eleitas para o legislativo, nomeadas pelo executivo ou promovidas em suas
  carreiras estatutárias, independentemente das vicissitudes da vida partidária.
  Pessoas todas selecionadas na base de sua capacidade analítica, de seus
  conhecimentos teóricos, de sua sensibilidade aos imperativos da justiça, sua
  responsabilidade moral, sua competência administrativa prática e o seu
  sentido de fidelidade institucional" [1988: 267].
 
 
Conclusão
 
 
Algumas
  breves considerações para terminar. Meira Penna, graças ao seu conhecimento
  aprofundado do serviço público e da máquina administrativa do Estado,
  desenvolve uma das mais completas análises críticas do Patrimonialismo brasileiro.
  A sua contribuição coloca-o junto dos que se destacaram, ao longo dos últimos
  sessenta anos, no estudo da nossa tradição política: Oliveira Vianna,
  Gilberto Freyre, Raimundo Faoro, Simon Schwartzman, Guerreiro Ramos, Vianna
  Moog, Caio Prado Júnior, Miguel Reale, João Camillo de Oliveira Torres,
  Antônio Paim, Fernando Uricoechea, Wanderley-Guilherme dos Santos, Celso
  Lafer, Bolívar Lamounier e outros.
 
 
A
  análise efetivada por Meira Penna não faz concessões ao bom-mocismo ou ao
  politicamente correto. Corajosa atitude de quem, na casa dois oitenta anos,
  ainda não perdeu a capacidade de indignação diante das irracionalidades do
  nosso Leviatã e dos hábitos tortos por ele estimulados no seio da sociedade
  brasileira.
 
 
As
  propostas apresentadas pelo nosso autor, como vimos, situam-se no contexto do
  que o saudoso Roque Spencer Maciel de Barros denominava de "a ilustração
  brasileira", e que Meira Penna denomina de "a idade da Razão".
  Na trilha da lição aprendida do mestre embaixador, com quem criei, em 1986, a
  Sociedade Tocqueville e de quem sempre recebi estímulo para os meus estudos
  sobre o liberalismo, vou me permitir uma observação crítica. Não bastam, no
  combate ao Estado Patrimonial, a meu ver, medidas no terreno de uma nova
  paideia que aponte para a formação de uma elite civil e política. O ponto que
  me parece fundamental é que essas medidas venham acompanhadas de um
  aperfeiçoamento da representação e da vida político-partidária, sem as quais
  não se renova a capacidade da nossa sociedade para domar o dinossauro
  patrimonialista.
 
 
Falta-nos,
  no Brasil atual, como dizia Tocqueville em relação à França da sua
  época, construir o homem político, empreendimento que tanto ele
  como os seus mestres doutrinários entendiam em duas etapas, intimamente
  correlacionadas: ilustrada e institucional. Não há dúvida que é importante a
  instância ilustrada, concretizada, no nosso caso, nas propostas apresentadas
  por Meira Penna na sua obra. Mas falta-nos muito caminho para percorrer no
  que tange à questão do aperfeiçoamento das instituições que no Brasil
  garantam o exercício da liberdade e da democracia. Sem aperfeiçoarmos o
  sistema representativo e a vida político-partidária, terminarão vingando
  soluções aventureiras de rousseaunianismo caboclo, como a que anda apregoando
  o presidente Chávez na Venezuela. Neste campo não podemos deixar para depois,
  como filigrana jurídica, a discussão dos mecanismos institucionais e das
  reformas que precisam ser feitas. Este aspecto é tão fundamental quanto
  a Revolução do Lógos proposta pelo nosso autor. 
 
BIBLIOGRAFIA CITADA 
MEIRA PENNA, José Osvaldo
       de. O Evangelho segundo Marx. São Paulo: Convivio,
       1982.MEIRA PENNA, José Osvaldo
       de. O Dinossauro. Uma pesquisa sobre o Estado, o Patrimonialismo
       selvagem e a nova classe de intelectuais e burocratas. São
       Paulo; T. A. Queiroz, 1988.MEIRA PENNA, José Osvaldo
       de. Opção preferencial pela riqueza. Rio de Janeiro:
       Instituto Liberal, 1991.TOCQUEVILLE, Alexis de. A
       Democracia na América. (Tradução de Neil Ribeiro da Silva). 2a.
       edição. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1977.TOCQUEVILLE, Alexis
       de. O Antigo Regime e a Revolução. (Tradução de Y.
       Jean; apresentação de Z. Barbu; introdução de J. P. Mayer). 3a. edição.
       Brasília: Universidade de Brasília, 1989.WEBER, Max. Economía
       y Sociedad. (Tradução ao espanhol a cargo de José Medina
       Echavarría et alii). 1a. edição em espanhol. México: Fondo de Cultura
       Económica, 4 volumes, 1944. |