Madame de Staël - (Tela de François Gérard - 1810 - Wikipédia) |
O autor mais estudado na França ao longo do ano 2000 foi Madame de Staël. A análise da obra da grande escritora foi objeto das monografias de Bacharelado em Literatura e Humanidades, por determinação do Ministério da Educação. Por que essa escolha? Responderia brevemente: em primeiro lugar, porque o seu livro mais importante, De la Littérature considerée dans ses rapports avec les institutions sociales (Acerca da Literatura considerada nas suas relações com as instituições sociais) completou duzentos anos. Em segundo lugar, porque Madame de Staël é tremendamente atual. Ela representa, efetivamente, um espírito aberto à modernidade, mas, ao mesmo tempo, crítico dela, a partir de uma perspectiva que supera o individualismo exagerado dos que unicamente buscam o proveito imediato, olhando só para os próprios interesses. E, paralelamente, com uma consciência clara da defesa incondicional da liberdade e do reconhecimento de que é possível conciliar os interesses individuais com os da comunidade.
Madame de Staël foi uma pessoa excepcional.
Podia-se odiá-la ou amá-la, mas ninguém ousaria desconhecer o seu valor.
Stendhal considerava que ela era "a mulher mais extraordinária que jamais
viveu". Para Benjamin Constant tratava-se de "um ser à parte, um ser
superior, desses que possivelmente aparecem um a cada século". O próprio
Napoleão, embora a olhasse com extremada desconfiança e a tivesse perseguido
pela vida afora, chegou a confessar em certa ocasião: "É necessário
reconhecer, depois de tudo, que se trata de uma mulher de grande talento; ela
permanecerá". Essa atitude de amor
ou ódio foi herdada pela crítica literária em relação à nossa autora. Somente
nas últimas décadas foi possível reconstruir um ambiente de imparcialidade
intelectual em face da obra de Madame de Staël, isso em grande medida devido ao
trabalho de estudiosos dedicados como Simone Balayé. A propósito das
dificuldades encontradas para se chegar a esse equilíbrio, escreve a mencionada
pesquisadora: "Se cada um de seus livros encontrou um vasto público,
apaixonadamente hostil ou favorável, aos poucos foi sendo construída ao seu
respeito uma lenda que mascarou a obra, assim como a pessoa. As paixões
políticas e religiosas ocuparam aí lugar de destaque. Madame de Staël incomoda
pelo seu espírito de livre exame e pela educação que ela herdou das Luzes. Ela
tem sido atacada por gentes de todos os partidos: os jacobinos, os ultras, mais
tarde a velha guarda clássica, as vezes os românticos, apesar de que se
alimentaram com o seu pensamento (...). É somente nos últimos trinta anos que
estudos imparciais a colocaram no justo lugar" [Balayé, 1985: 7].
A verdade é que a brava escritora não deu
trégua ao absolutismo napoleônico, tendo sido a mais importante crítica e
eficaz opositora do Imperador. Pagaria caro pela sua ousadia liberal: foi cruelmente desterrada. A
reflexão de Madame de Staël deitou, assim, as bases para o trabalho ulterior de
fundamentação do liberalismo doutrinário francês, efetivado por Benjamin
Constant de Rebecque (com quem, aliás, teve laços amorosos), François Guizot e
o próprio Tocqueville. A noção tocquevilliana de interesse bem compreendido não se poderia entender sem referência à
obra de Madame de Staël.
Precursora dos doutrinários. Destaquemos duas
idéias que justificam plenamente esse honroso título. Em primeiro lugar, a profissão
de fé incondicional na liberdade. A propósito, escreve Madame de Staël em Dix
années d'exil: "Não é para me escusar pelo meu entusiasmo em
relação à liberdade, que explicito as circunstâncias pessoais que contribuíram
para tornar mais caro para mim esse ideal. Creio que devo me orgulhar desse
entusiasmo em lugar de me escusar, pois quis dizer desde o início que o grande
reproche do imperador Napoleão contra mim, é o amor e o respeito que sempre
tive pela verdadeira liberdade. Esses sentimentos foram-me transmitidos como
uma herança, a partir do momento em que pude refletir acerca dos altos ideais
dos quais derivam e das belas ações que eles inspiram. As cenas cruéis que
desonraram a Revolução Francesa, não sendo mais do que tirania sob modalidade popular,
não fizeram esmaecer em mim, creio, o culto à liberdade. Poderíamos nos
desencorajar em relação à França. Mas, se este país tivesse a desgraça de não possuir o mais
nobre dos bens, não era necessário por isso proscreve-lo da terra. Quando o sol
desaparece do horizonte dos países do Norte, os habitantes dessas regiões não
amaldiçoam os seus raios, que luzem ainda em outros lugares mais felizardos do
céu" [Staël, 1996a: 46].
Uma segunda idéia que torna Madame de Staël
precursora dos doutrinários: somente um regime alicerçado numa Constituição de
inspiração liberal, garantirá o exercício da liberdade. Achava que uma Carta
inspirada na que tinha vigência na Inglaterra, poderia evitar na França os
males do despotismo. "A Inglaterra, para ela - frisa Jacques Godechot
- é a terra da liberdade. É graças a
essa liberdade que a Inglaterra conseguiu vencer Napoleão". De que
liberdade se trata? Fundamentalmente da liberdade individual, "a liberdade
de ir e vir, a liberdade de cada um, tanto homem quanto mulher, viver como lhe
aprouver" [Godechot, 2000: 28].
Vale a pena, portanto, traçar uma rápido
esboço da vida e da obra da grande ensaista, que prenunciou o movimento da
emancipação feminina, num momento em que às mulheres só se reconhecia o direito
de ficar em casa ou ir para o convento.
Desenvolverei neste capítulo os seguintes itens: I - Perfil bio-bibliográfico de Madame de
Staël; II - Concepção liberal da Política, do Estado e da Economia, segundo
Necker; III - A crítica de Madame de Staël ao absolutismo napoleônico; IV - A
perfectibilidade humana segundo Madame de Staël.
I - Perfil bio-bibliográfico de Madame de Staël
Anne-Louise-Germaine Necker de
Staël-Holstein, popularmente conhecida como Madame de Staël, nasceu em Paris em
1766 e morreu na mesma cidade em 14 de julho de 1817. Era filha de Jacques
Necker (1732-1804), o banqueiro genebrino que foi Ministro de Finanças de Luís
XVI e de Suzanne Curchod, de origem suíça e filha de um pastor protestante. A
propósito das raízes familiares de Jacques, vale a pena lembrar que o seu pai,
Charles-Frédéric Necker, era prussiano, tendo sido advogado e preceptor do
filho de Bernstorff, o primeiro ministro alemão de George I, rei da Inglaterra
e eleitor de Hanôver. George I tinha enviado Charles-Frédéric a Genebra em
1725, a fim de que dirigisse uma pensão para jovens estudantes ingleses. Ali
casou com Jeanne-Marie Gautier, pertencente à oligarquia genebrina e
naturalizou-se suíço. Os avós de Germaine eram, portanto, cosmopolitas. Jacques
Necker, lembra Godechot, "pretendia descender, por parte da mãe, de
Jacques Coeur, o ministro de Carlos VII, e por parte do pai de um Necker que
vivia na Irlanda no tempo de Guilherme o Conquistador, tendo adotado o escudo
de armas dele" [Godechot, 2000: 9].
Jacques Necker foi nomeado ministro
representante da Suíça em Paris em 1768, em decorrência do fato do grande
sucesso econômico obtido pelo seu Banco, o Necker
et Tellusson, ao ensejo da Guerra dos Sete Anos (1756-1763). Jacques ficou
muito rico, sendo a sua fortuna calculada entre 7 e 8 milhões de libras-ouro.
Em decorrência da política de reformas deslanchada por Luís XVI com a
finalidade de frear a crescente impopularidade da monarquia francesa, Necker
foi convidado em 1777 para substituir Turgot (contra cuja política fisiocrata
ele tinha se pronunciado), no ministério das Finanças,. Não foi fácil vencer as
resistências para que um banqueiro estrangeiro e, ainda por cima, protestante,
assumisse o importante cargo, embora houvesse a tradição, na França, de
ministros estrangeiros como Concini e Mazarin. A situação foi contornada
sendo-lhe atribuída a função de "diretor adjunto das Finanças". Mas,
de fato, Necker foi um autêntico primeiro-ministro, que pôs em execução uma
moderada política de contenção de gastos e de extinção dos privilégios que em
muito oneravam os cofres públicos. (Além da pesada burocracia, integrada pela
nobreza, o orçamento definhava em decorrência dos gastos exigidos pela
participação da França na guerra das colônias britânicas da América contra a
Inglaterra).
O caminho reformista empreendido por Necker
granjeou-lhe o ódio de Maria Antonieta e de amplos setores da nobreza aliada a
ela, fato que conduziu à sua demissão em 1781. O estopim foi o opúsculo
intitulado Compte rendu au Roi publicado nesse mesmo ano, em que o Directeur des Finances e
primeiro-ministro apresentava o quadro das receitas e das despesas do Estado,
ressaltando o peso que tinham os gastos com a nobreza improdutiva denominada de
frelons (zangões). Os preconceitos deste estamento
aumentaram em decorrência da sugestão de Necker para uma reforma política que
estabelecesse uma espécie de representação provincial, com a finalidade de
diminuir a importância dos intendentes do Rei.
No capítulo IV da obra Considérations sur la Révolution
Française, Madame de Staël fez uma detalhada descrição das reformas
pretendidas pelo seu pai. Em relação à
proposta da representação provincial, a filha de Necker escrevia: "(Ele)
sentia mais vivamente que ninguém de que forma o bom desempenho de um ministro
é pouca coisa no meio de um reino tão vasto e tão arbitrariamente administrado
como a França, e esse foi o motivo para estabelecer assembléias provinciais, ou
seja, conselhos integrados pelos principais proprietários de cada província,
nos quais se discutiria a fixação dos impostos e os interesses locais da
administração. Turgot tinha concebido a idéia. Mas nenhum ministro do rei,
antes de Necker, tinha tido a coragem de se expor à oposição que deveria
encontrar uma instituição deste gênero. Ele previa que os parlamentos e os
cortesãos, raramente solidários entre si, a combateriam com a mesma
força" [Staël, 2000: 95].
Já fora do governo, Necker publicou, em 1784
o seu Traité de l'administration des finances de France, que em muito
desagradou a nobreza, fato que o levou a sofrer o desterro a vinte léguas de
Paris. No entanto, após a desastrada gestão das finanças públicas efetivada por
Brienne e Lamoignon, Luís XVI chamou de novo Necker para assumir a direção
nacional das finanças, integrando-o ao ministério. O pai de Germaine deu
continuidade à política reformista de sua gestão anterior, restabelecendo as
assembléias representativas provinciais, intervindo na livre circulação de
cereais a fim de fazer frente à fome e anunciando a convocação dos Estados
gerais. Tratava-se de uma política econômica liberal que terminou saindo cara
ao próprio Necker, pois teve de emprestar ao tesouro real a vultuosa soma de 2
milhões de libras, que somente seriam pagas quarenta anos depois, na
Restauração.
Diante de reiteradas pressões da nobreza, o
Rei demitiu novamente Necker em 11 de julho de 1789, poucos dias antes de
eclodir a Revolução, que foi acelerada pela notícia da demissão do popular
primeiro-ministro, fato que motivou o pânico financeiro. Poucos dias depois da
toma da Bastilha, no entanto, o soberano chamou novamente Necker. Ao se opor à
radicalização protagonizada no seio da Assembléia Nacional pelos Jacobinos e sofrer a pesada oposição de
Mirabeau e de outros líderes, Necker abandonou definitivamente o governo, em
setembro de 1789.
De qualquer forma, Jacques Necker foi muito
valorizado pela sociedade francesa e pelas cortes européias. Após a sua
demissão do ministério das Finanças, recebeu convites de José II da Áustria, de
Catarina II da Rússia, dos reis da Polônia e de Nápoles, para ocupar o mesmo
cargo. O pai de Germaine preferiu, no entanto, se retirar ao castelo de Coppet,
na Suíça, onde terminaria os seus dias em 1804 [cf. Godechot, 2000: 10-11].
Antes da sua morte, porém, Necker escreveu várias obras, entre as quais podemos
mencionar as seguintes: De
l'Administration de Monsieur Necker par lui-même (1791), Du
pouvoir exécutif dans les grands États (1792), Réflexions offertes à la nation
française (esta obra, que pretendia defender o soberano, motivou a
reação dos jacobinos e de outros
elementos exaltados, fazendo com que os bens de Necker na França fossem
confiscados e que ele próprio fosse inscrito na lista dos emigrados). O pai de
Germaine escreveu também o Cours de morale religieuse (1800) e Dernières
vues de politique et de finances (1802), obra que o indispôs com
Bonaparte, em decorrência das críticas efetuadas por Necker contra o modelo de
República autoritária proposto pelo Primeiro Cônsul na Constituição de
1800 e à qual farei referência no
próximo item.
Mas voltemos à formação recebida por Madame
de Staël. No salão dos Necker, em Paris, reuniam-se todas as celebridades da
época. Germaine recebeu de seus pais uma sofisticada educação, em que
prevaleceram a influência da cultura britânica e o protestantismo. A respeito,
Axel de Blaeschke escreve: "A anglofilia de Madame de Staël era antiga e
não de natureza puramente livresca. Ela se alicerça na sua experiência pessoal,
iniciada no seio de uma família totalmente direcionada para o país de
além-Mancha. De seu pai, ela herdou a predileção pela bicameralismo inglês como
forma de organização política; de sua mãe, a admiração pela poesia inglesa; e
dos dois, a atração por Shakespeare. Depois da sua segunda viagem à Inglaterra,
ela teve oportunidade para aprofundar e alargar essa aquisição cultural. Não é
de admirar que o quadro da literatura inglesa seja, em De la Littérature, de
longe o mais completo e o mais seguro. Como síntese, supera os estudos feitos
por Voltaire e outros predecessores. A literatura inglesa é aquela que mais
respira o espírito de um país livre
(...)" [Blaeschke, 1998: LXVIII-LXIX].
Segundo testemunho de Madame Necker de
Saussure, no livro intitulado Notice sur le caractère et les écrits de
Madame de Staël (Paris,
1820), Germaine tinha uma brilhante inteligência, que se manifestou
precocemente. Ainda menina divertia-se com as eruditas conversas dos amigos do
seu pai, entre os que se contavam Raynal, Buffon, Marmontel, Grimm, Gibbon. A
jovem Germaine escreveu, entre 1781 e 1785, três romances intitulados Mirza,
Adelaïde
et Théodore e Pauline, que foram publicados dez
anos mais tarde [cf. Staël, 1997]. De 1786 data um drama em verso intitulado Sophie.
Nesse mesmo ano, Germaine casou com o barão Éric-Magnus de Staël-Holstein,
adido da embaixada da Suécia em Paris, tendo recusado casar-se com William
Pitt, que seria depois Primeiro Ministro inglês [cf. Larousse, 1865: 1046;
Blaeschke, 1998: IX; Godechot, 2000: 11].
A primeira obra de fôlego de Madame de Staël,
publicada em 1788, intitulava-se Lettres sur le caractère et les écrits de
Jean-Jacques Rousseau e testemunha a grande influência que o filósofo
genebrino exerceu na sua formação. Saint-Beuve, talvez o mais importante
estudioso da obra de Madame de Staël no século XIX, escreveu em relação ao
ensaio mencionado: "As Lettres sur Jean-Jacques são uma
homenagem de reconhecimento ao autor admirado e preferido, a quem Madame de
Staël se liga mais estreitamente. Todas as obras seguintes (...) em diversos
gêneros, romance, moral, política encontram-se pressagiadas com antecipação
neste rápido e harmonioso canto de louvor aos escritos de Rousseau, como uma
grande sinfonia se antecipa, já inteira depois de ser concebida, na sua
abertura. O sucesso destas Lettres, que respondia ao espírito
do tempo, foi universal" [apud Larousse, 1865: 1046]. Outras influências
recebidas por Madame de Staël na sua formação, foram as de Montesquieu, Turgot
e Condorcet. Ela conseguiu, a partir de todas essas fontes, elaborar uma
síntese pessoal aberta à liberdade e contrária ao determinismo, em boa medida
pela sábia incorporação de princípios filosóficos novos, provenientes da
Inglaterra e da Alemanha.
Eclodida a Revolução Francesa, Madame de
Staël aspirou a desempenhar, nela, um papel ativo. Rejeitada pelos
republicanos, renegada pelos partidários do Rei, ela era identificada como
partidária da monarquia constitucional. Fazia votos pelo triunfo do sistema
bicameral inglês. A sua posição política granjeou-lhe inúmeras perseguições.
Surgiram contra ela panfletos desrespeitosos e violentos. Mas conseguiu se
manter por cima dessas baixas intrigas. Deixou a sua apreciação acerca dos
acontecimentos revolucionários na obra intitulada Considérations sur la Révolution
Française, que seria publicada postumamente. Após uma estadia na
Suécia, Madame de Staël veio se estabelecer na região de Vaud, no castelo de
Coppet, na Suíça, onde Necker tinha se recolhido desde 1790.
A escritora ficou muito impressionada com a
violência do processo revolucionário e a duras penas conseguiu escrever um
único livro neste período: a sua Mémoire pour la défense de Marie-Antoinette,
que foi publicado em agosto de 1793, na
Inglaterra e na Suíça, com o título de Réflexions sur le procès de la reine par une
femme [Staël, 1996b]. A obra em apreço foi escrita logo depois do
panfleto de Necker intitulado Réflexions présentées à la nation française
sur le procès intenté à Louis XVI, publicado no outono de 1792
[cf.Thomas, 1996: 7].
A defesa esboçada por Madame de Staël na sua Mémoire
de 1793 não pretendia ser uma peça jurídica, como ela própria reconhecia no
prólogo. A novel escritora apelava para a sua condição de mulher, simplesmente.
Eis as palavras da nossa autora a respeito: "O meu nome, não sendo útil,
deve permanecer desconhecido; mas, para destacar a imparcialidade deste
escrito, devo dizer que, entre as mulheres chamadas para ver a rainha, sou uma
daquelas que menos tiveram com essa princesa relações pessoais. Estas reflexões
merecem, porisso, o crédito de todos os corações sensíveis, pois não foram
inspiradas pelos motivos (utilitaristas) que animam a todos" [Staël, 1996:
17]. Julia Kristeva enxerga neste escrito traços de modernidade, ao se
posicionar Madame de Staël de forma crítica, ao mesmo tempo contra a selvajaria
revolucionária, o terror imposto em nome da maioria e o massacre dos débeis,
especialmente as mulheres. A respeito, Kristeva frisa: "Quando Madame de
Staël implora clemência para Maria Antonieta, tenho certeza de que em seu
pleito se misturam o orgulho ferido da humanista que abomina o massacre, a
cólera da aristocrata diante da selvajaria da opinião comum e a revolta de uma feminista bem antecipada, insurgida
contra a opressão às mulheres. Tudo isso é largamente suficiente para
sustentar, se não para provocar, uma certa inclinação para a infelicidade. Germaine
de Staël advoga a inocência da Rainha, sua feminilidade, sua estranheza, sua
maternidade. Sustenta que, a partir de um grau elevado, a queda é mais
dolorosa. Definitivamente, considera injuriadas por esse sacrifício todas as
mulheres, em sua fraqueza social e em sua fragilidade de mães. (...) Mesmo
diante do suplício, o pensamento da glória não abandona Madame de Staël. Mas
são a fraqueza e a dor femininas, ferozmente varridas pela tirania
revolucionária, que lhe parecem superiores" [Kristeva, 2002: 178-179].
Em 1795, Madame de Staël escreveu as suas Réflexions
sur la paix adressées à Pitt e aux Français, em que advogava por uma
aproximação entre a França e a Inglaterra e que obteve, em pleno Parlamento, os
elogios de Fox. A propósito desse escrito, frisou Sainte Beuve: "Uma
mescla de comiseração profunda e de justiça calma, o chamamento a todas as
opiniões não fanáticas ao esquecimento, à conciliação, o temor pelas reações
iminentes e extremistas que renascem umas das outras, esses sentimentos, tão generosos
quanto oportunos, marcam, ao mesmo tempo, a elevação da alma e das
perspectivas. Há algo de inspiração antiga nessa jovem mulher que se arrisca a
falar ao povo, de pé sobre os escombros fumegantes" [apud Larousse, 1865:
1046]. No final desse mesmo ano Madame de Staël publicou o seu Essai
sur les factions e, no início de 1796, a obra intitulada De
l'influence des passions sur le bonheur des individus et des nations.
A instalação no castelo de Coppet marca uma
nova etapa na vida intelectual de Madame de Staël. Insatisfeita com o seu
casamento, ela decide superar com a vida intelectual as frustrações afetivas.
Em 1800 escreve a sua mais importante obra, que já foi mencionada: De
la Littérature. A idéia central da obra consiste na sua fé inabalável
no progresso do espírito humano. A propósito desse leitmotiv, escreve a autora: "Ao percorrer as revoluções do
mundo e a sucessão dos séculos, salta à vista uma primeira idéia que sempre
chamou a minha atenção; é a perfectibilidade
da espécie humana. Não penso que essa grande obra da natureza moral tenha sido
jamais abandonada; nos períodos luminosos como nos séculos de trevas, a marcha
gradual do espírito humano não tem sido interrompida" [Staël, 1998:
40-41].
A
perfectibilidade humana era entendida pela nossa autora num ousado sentido
liberal: como aperfeiçoamento dos seres humanos, não exclusivo de uma classe,
mas alargado a todas as camadas sociais; esse aperfeiçoamento deveria, para ser
autêntico, implicar o exercício da liberdade individual e a sua consolidação
num regime que a respeitasse e que ela denominava de república. A concepção de Madame de Staël lembra a esboçada por
Immanuel Kant na sua Paz perpétua (publicada em 1795). A escritora francesa
considerava que somente se conseguiria implantar uma república que respeitasse
a liberdade, se as luzes fossem espalhadas pela sociedade e não ficassem
restritas a um pequeno número de philosophes.
Esse processo de democratização corresponderia aos escritores, que deveriam
estar comprometidos com o conhecimento das raízes culturais do próprio país, a
fim de que as propostas liberalizantes ancorassem num chão cultural firme. Todo
esse processo seria denominado por Madame de Staël de civilização. A Revolução Francesa foi uma tentativa de encontrar o
caminho para a perfectibilidade. Mas
viu-se frustrada a partir do momento em que os revolucionários inseriram-se num
contexto cientificista, determinista e sensualista, que os exonerava de
preocupações morais. Corresponderia aos escritores, transformados em agentes de
renovação social, retomar o rumo das reformas frustradas. Ora, encontramos aqui
os germes doutrinários fundamentais, que inspirarão o liberalismo de Constant
de Rebecke, de Guizot e de Tocqueville. Sintetizando, o que a autora pretendia
era, em primeiro lugar, defender a liberdade ameaçada pelo bonapartismo e, em
segundo plano, renovar o espírito da crítica a partir do seguinte princípio:
"A Literatura é a expressão da sociedade" [cf. Lotterie, 2000: 9-22;
Mélonio - Noiray, 2000: 3-7].
A mencionada obra de Madame de Staël foi
injustamente criticada por algumas revistas como Décade Philosophique, Mercure
e Débats.
Somente Chateaubriand fez do livro uma avaliação relativamente equilibrada, nos
seguintes termos que destacavam o seu valor filosófico, bem como a inspiração
tradicionalista do autor de Le Génie du Christianisme: "Madame de Staël confere à filosofia o
papel que eu atribuo à religião. (...) A minha loucura consiste em tentar
enxergar Jesus Cristo em todas partes, enquanto Madame de Staël quer ver em tudo
a perfectibilidade. (...) Desagrada-me que Madame de Staël não tenha
desenvolvido o sistema das paixões do ângulo religioso. A perfectibilidade não
é, a meu ver, o instrumento adequado para medir as fraquezas humanas (...).
Algumas vezes Madame de Staël parece ser cristã; logo depois, a filosofia
prevalece. Em alguns momentos, inspirada pela sensibilidade natural, ela põe a
nu a sua alma. Mas, logo a seguir, a argumentação se levanta e vem contrariar
os impulsos do coração (...). Este livro é, pois, uma mistura singular de
verdades e erros. (...) Eis o que ousaria lhe dizer, se tivesse a honra de
conhecê-la: Vós sois, sem dúvida, uma
mulher superior. (...) A vossa expressão possui, em geral, força, elevação
(...). Mas, em que pese todas essas qualidades, a vossa obra está bem longe de
ser o que poderia ter sido. O estilo é monótono, sem movimento e muito
misturado com expressões metafísicas. O sofisma das idéias perdura, a erudição
não satisfaz e o coração é muito sacrificado ao pensamento. O vosso talento
somente se desenvolveu pela metade, pois a filosofia o sufoca (...)" [cit.
por Larousse, 1865: 1046]. A partir da crítica da Chateaubriand à obra de
Madame de Staël, nasceu uma duradoura amizade entre os dois grandes escritores
que passaram a representar a renovação da literatura francesa no início do
século XIX.
O romance Delphine foi publicado
por Madame de Staël em 1802. A obra teve um grande sucesso devido, em parte, às
discussões religiosas que acabavam de ser levantadas por Chateaubriand em Le
Génie du Christianisme. Mas a repercussão favorável deveu-se também ao
fato de que no romance eram claramente identificáveis importantes figuras do
momento como Benjamin Constant de Rebecke, Talleyrand e a própria Madame de
Staël. Nem por isso deixou de suscitar críticas injustas. Um artigo de autor
anônimo, publicado no Mercure de France, afirmava o
seguinte: "Delphine fala do amor como uma bacante, de Deus como um quaker, da morte como um granadeiro e da
moral como um sofista".
A partir de 1797 Madame de Staël regressou a
Paris para morar no seu Hôtel na rue
de Grenelle, perto da rue du Bac. O seu marido a acompanhou, tendo retomado as
funções de embaixador da Suécia perante a República Francesa. O barão de
Staël-Holstein morreu cinco anos depois, em 1802. A nossa autora passou então a
residir em Saint-Brice, nos arredores de Paris, onde organizou, em companhia de
Madame Récamier, o seu salão e passou a exercer sensível influência nos
círculos políticos, tendo conseguido, por exemplo, que fosse entregue a Talleyrand
a pasta dos negócios estrangeiros. O seu salão converteu-se, então, no ponto de
encontro de todos os descontentes com o autoritarismo do primeiro Cônsul. Esse
fato, aliado às freqüentes viagens que ela fazia ao castelo de Coppet para
encontrar o seu pai, bem como a publicação, por ele, da obra Dernières
vues de politique et de finances de Monsieur Necker [Necker, 1802: 2
vol.] (em que a nossa autora indubitavelmente tinha colaborado), terminaram
desagradando profundamente Bonaparte. Além do mais, como frisa Larousse,
"na cena política do novo regime não havia lugar para as mulheres". O
conflito com Bonaparte sobreveio rapidamente e afastou Madame de Staël do palco
político nos quinze anos seguintes. O exílio a que foi condenada a escritora
foi a conclusão lógica desses eventos [cf. Jaume, 2000].
Desterrada, a nossa autora deixou a sua
residência de Saint-Brice no início de 1803 e partiu para a Alemanha,
permanecendo dois anos em Weimar. Entrou em contato com Goethe e Schiller.
Reveladoras da forma em que Madame de Staël personificava com brilhantismo o Zeitgeist francês são as seguintes
palavras de Schiller, em carta dirigida a Goethe: "Ela representa o
espírito francês sob uma luz verdadeira e muito interessante. Em tudo que
chamamos de filosofia e, consequentemente, em todas as questões elevadas e
decisivas, encontramo-nos em desacordo com ela e todas as conversas não podem
mudar nada. Mas a sua natureza e o seu sentimento valem mais do que a sua
metafísica. A sua bela inteligência toca o poder do gênio. Ela não nos aceita
nada de obscuro, de inatingível e tudo quanto não consegue esclarecer à sua
luz, simplesmente não existe para ela. Destarte, ela tem grande medo da
filosofia idealista que, a seu ver, conduz ao misticismo e à superstição, e
esta é a atmosfera que a aniquila. Não há para ela o sentido do que chamamos de
poesia. De uma obra deste gênero só
assimila a paixão, a eloquência e o sentido geral. Mas se o bom às vezes lhe
escapa, jamais admitirá o mal" [apud Larousse, 1865: 1047].
De Weimar Madame de Staël dirigiu-se a
Berlim, onde teve uma calorosa acolhida na corte da Prússia. Em 1805 fez uma
curta viagem à Itália, de onde teve de regressar rapidamente a Coppet, com
motivo da morte do seu pai. Fixou então residência no castelo e organizou ali essa
espécie de corte da cultura que a celebrizou durante o Império. A nossa autora
tinha aproveitado as suas viagens à Alemanha e à Itália para esboçar duas
grandes obras: De l'Allemagne e Corinne. Este último romance foi
publicado em 1807 e o seu sucesso perante a crítica foi ainda maior que o
obtido com a publicação de Delphine. Corinne representava a
glorificação da Itália e, ao mesmo tempo, a personificação ideal da mulher
moderna. Contava-se que Napoleão Bonaparte ficou profundamente irritado com o
cúmulo de elogios de que fora objeto Madame de Staël. Tratava-se, sem dúvida,
da obra da sua maior inimiga, daquela que teve a audácia de desafiá-lo ao longo
dos últimos anos. Villemain dizia que o Imperador da França tinha ficado tão
abalado com os elogios levantados à obra de Madame de Staël, que decidiu, ele
mesmo, escrever uma crítica no Moniteur.
Uma breve anotação relacionada às personagens
desse romance: a nossa autora, personificada em Corinne, aparecia no relato em
Roma com o nome de Telisilla Argoica
e ciceroneada pelo jovem Oswald, ao
longo de uma caminhada noturna visitando os seculares monumentos, que eram o
marmóreo pedestal da paixão que ela passou a sentir pelo seu jovem guia. Ora,
na vida real, Oswald era o nobre português dom Pedro de Souza Holstein
(futuro conde de Palmella), nascido em Turim em 1781 (quinze anos mais jovem do
que nossa autora). Dom Pedro, então com 24 anos, era um belo jovem, "com
os seus olhos azuis e os seus cabelos pretos"; era "um cavalheiro
elegante" dono de "uma forte e bela voz com que encantava as damas e
um ar grave tingido de saudade: a melancolia pre-romântica adicionava-se aos
seus atrativos" [Andlau, 1979: 16]. Apaixonada pelo jovem português, Madame
de Staël esperava encontrar nele um porto seguro e fiel para ser correspondida
no seu amor. Grandes desgarramentos interiores ela tinha sofrido recentemente
de Benjamin Constant e de outros amantes ilustres como Narbonne, Ribbing,
François de Pange, Monti. "O lugar onde eles se encontram contribui para a
exaltação dos sentimentos: eles caminham ao luar em Roma e os cursos arqueológicos para o romance
projetado feitos em companhia de Humboldt, de Alborghetti e de outros, são
alegres passeios. A vida eterna converter-se-á no pano de fundo ideal para um
romance de amor. O herói apareceu: Eu vos
amei e tudo se iluminou para mim", frisa Beatrix d'Andlau [1979: 18],
citando a apaixonada carta que Madame de Staël escreveu em maio de 1805 ao seu
jovem amante. Paixão não correspondida, pelo menos na intensidade com que a
grande escritora amou o jovem dom Pedro, de quem se poderia dizer as palavras
que Mathieu de Montmorency, fiel amigo da nossa autora, escreveu de Ribbing:
"Eis um homem que deve ser colocado na categoria dos que não sabem
amar" [cit. por Andlau, 1979: 18]. O certo é que dessa intensa relação
ficou um belo testemunho: a correspondência entre Madame de Staël e dom Pedro
de Souza [Staël-Souza, 1979].
Após o sucesso obtido com a publicação de Corinne
e as reações adversas do governo francês, Madame de Staël não se sentiu
plenamente segura na sua residência de Coppet. Em 1808 viajou para Alemanha, a
fim de terminar o livro que tinha esboçado acerca da cultura germânica. Em
Viena a nossa autora teve oportunidade de conhecer o general holandês Dirk van
Hogendorp, ajudante-de-ordens de Napoleão, que se referiu a ela de forma
depreciativa nas suas Memórias, escrevendo o seguinte:
"Madame de Staël, querendo ser sempre sábia e profunda, alambicava suas
expressões e enrolava suas frases até que parecia ter esquecido o que queria
dizer. Era a celebridade o que queria, e a qualquer preço, por todos os meios.
E Paris, o mais belo teatro do mundo para os talentos, o centro da glória, esse
era o lugar onde ela queria brilhar" [apud Mélon 1996: 83]. Valha apenas
uma anotação marginal em relação a Hogendorp: após a derrota definitiva de
Napoleão, o general holandês radicou-se no Brasil, onde passou a viver
como eremita na Floresta da Tijuca, no
Rio de Janeiro, onde morreu em outubro de 1822 [cf. Mélon, 1996: 191].
De Viena Madame de Staël escreveu ao antigo
amigo Talleyrand, tratando de que ele intercedesse junto ao Imperador, para que
lhe fosse paga a vultuosa soma que tinha Necker emprestado ao Rei da França,
Luís XVI. A carta estava cheia de elegante ironia em relação ao ingrato amigo a
quem a nossa autora tinha favorecido na sua carreira política e que
olimpicamente passou a ignorá-la depois de desencadeada a perseguição de
Bonaparte. Na missiva, datada em abril de 1808, Madame de Staël frisava:
"Tenho pedido ao meu filho para ir ao vosso encontro e vos solicitar
franca e simplesmente que vos interesseis na liquidação dos 2 milhões (de
libras) que constituem mais da metade da nossa fortuna e da herança dos meus
filhos. É uma dor cruel para mim pensar que eu não cuido da minha família, que
eles não receberão o pagamento se amanhã eu não mais existir; pois esta dívida
tem um caráter tão sagrado que as prevenções do Imperador contra mim são as
únicas que podem impedir que ela seja paga (...). A vós que tudo adivinhais,
tenho-vos dito o suficiente sobre este assunto. Vós tinhais-me escrito há treze
anos, da América: Se eu permanecer mais
um ano aqui, morro. Eu poderia dizer outro tanto em relação à minha
permanência no estrangeiro: eu sucumbo.
Adeus (...). Não sei terminar senão desse jeito ao falar com vós. Necker de
Staël" [apud Larousse, 1865: 1047].
Talleyrand (assaz ingrato, como foi frisado,
para com a sua antiga protetora que o tinha guindado ao Ministério) fez ouvidos
moucos ao pedido da nossa autora [cf. Cooper, 1945: 65-69]. Madame de Staël
somente obteria o pagamento da dívida no período da Restauração. Pôde, contudo,
regressar sem temor à antiga residência de Necker. A respeito das atividades
que se desenvolviam ali sob a inspiração e o comando da nossa autora, escreveu
Saint-Beuve o seguinte testemunho: "A vida de Coppet era uma vida de
castelo. Reuniam-se ali, com freqüência, até trinta pessoas, entre estrangeiros
convidados e amigos. Os mais habituais eram Benjamin Constant, Monsieur Auguste
Wilhelm de Schlegel, Monsieur de Saubran, Monsieur de Sismondi, Monsieur de
Bonstetten, os barões de Voigt, de Balk, etc. Cada ano reuniam-se ali, uma ou
mais vezes, Monsieur Matthieu de Montmorency, Monsieur Prosper de Barante, o
príncipe Augusto da Prússia, a beleza célebre chamada por Madame de Genlis com
o nome de Athenais (Madame Récamier),
um número significativo de intelectuais da Alemanha ou de Genebra. As conversas
filosóficas e literárias, sempre picantes ou elevadas, começavam por volta das
onze horas, ao ensejo do almoço e eram retomadas no período entre o jantar e a
ceia, que tinha lugar às onze da noite, ou estendiam-se até mais tarde, por
volta da meia-noite. Nessas sessões Benjamin Constant (....) apresentava-se a
nós, jovens, (conforme Madame de Staël o proclamava sem prevenções) como o
primeiro espírito do mundo. Ele era certamente o primeiro dos homens distintos.
Pelo menos o espírito dele e o de Madame de Staël acoplavam-se sempre e estavam
conscientes disso. Nada, segundo as testemunhas, era tão fervilhante e superior
quanto a conversação que se desenvolvia nesse círculo seleto. Os dois tinham
nas mãos, por assim dizer, a raqueta mágica do discurso e se passavam durante
horas, sem jamais falhar, a bola de mil pensamentos entrecruzados" [cit.
por Larousse, 1865: 1047].
Além das conversas intelectuais, em Coppet
tinham lugar divertimentos cultos. Eram representadas tragédias de Voltaire,
muito apreciadas por Madame de Staël, ou peças especialmente compostas por ela
ou pelos seus amigos. Esses escritos eram impressos em Paris, a fim de que
todos pudessem seguir mais fielmente o assunto. Havia grande cuidado com o
texto, chegando ao extremo de serem impressas novas cópias, entre uma sessão e outra, caso houvesse lugar
a correções. A poesia também encontrou em Coppet uma atenta acolhida. Zacharias
Werner recitou ali vários dos seus dramas. O poeta dinamarquês Oehlenschäger
teve também a oportunidade de declamar ali os seus poemas.
Em 1810 Madame de Staël arriscou-se a ir
incógnita a Paris, a fim de tratar da publicação do seu livro De
L'Allemagne [cf. Staël 1968], ao qual tinha dedicado os seus esforços
intelectuais desde 1803. A nossa autora tinha sido sensibilizada em face da
cultura alemã por um velho amigo suíço, Jacques-Henri Meister, que freqüentou a
casa de seus pais em Paris [cf. Grubenmann, 1954: 59-68]. O que significou esta incursão na cultura
alemã para a nossa autora? Simone Balayé responde: "Ao se iniciar na
literatura alemã ela descobre ali, como entre os Ingleses, o nexo com a
natureza e o povo, as tradições nacionais, o poder do sentimento. Tudo quanto
ela amava em Rousseau, encontrará de
novo na Alemanha. Assim, ela permanecia fiel ao espírito e à tradição do século
XVIII, ameaçado na França de todos os lados, bem como por outra parte à visão
moral e religiosa que ela tinha herdado de seu pai e ao ideal da liberdade ao
qual muitos renunciavam. Fazendo isso, ela permanecia a salvo das posições
extremadas da filosofia materialista francesa, aspecto do século XVIII que ela
renegava, e ficava a salvo também da reação católica. Mas a sua fidelidade às
Luzes também a preservaria das posições mais avançadas dos românticos
alemães" [Balayé, 1968: 22-23], notadamente no que tange aos aspectos de
irracionalismo que a nossa autora criticará neles, em Schlegel de maneira particular.
De L'Allemagne representou, no contexto do pensamento
francês, um ajuste de contas do espiritualismo moderado em face do sensualismo
de Condillac e dos Ideólogos. Em que pese o fato da influência recebida
inicialmente deles por Madame de Staël, no entanto a nossa autora, na altura da
elaboração da sua obra sobre a cultura alemã, já tinha amadurecido
intelectualmente o suficiente como para fazer uma crítica fundamentada ao
excessivo materialismo da ética utilitarista que animava aos Ideólogos. A moral,
no sentir destes, reduzir-se-ia simplesmente a um cálculo de interesses. Ora,
pensava Madame de Staël, ela não poderia ser reduzida apenas a esse frio e
materialista cálculo. Era necessário lhe dar alicerces mais fortes e acordes
com a herança cristã. Encontrou no pensamento de Kant a fonte de que poderia se
nutrir na sua crítica ao utilitarismo. A nossa autora ficou verdadeiramente
impressionada com a leitura da obra do autor da Crítica da Razão Pura. Eis a apresentação que dele fazia: "Kant
viveu até uma idade muito avançada, não tendo jamais saído de Königsberg. Foi
lá, no meio do gelo do Norte onde passou a sua vida inteira a meditar sobre as
leis da inteligência humana. Uma paixão infatigável pelo estudo fazia-o
adquirir conhecimentos sem número. As ciências, as línguas, a literatura, tudo
lhe era familiar. E sem procurar a glória, da qual gozou muito tardiamente, não
conhecendo senão na sua velhice o burburinho do renome, contentou-se com o
prazer silencioso da reflexão. Solitário, contemplava a sua alma com
recolhimento. O exame do pensamento dava-lhe novas forças para defender a
virtude, e embora jamais se misturasse com as paixões ardentes dos homens,
soube forjar armas para aqueles que seriam chamados a combaté-las" [Staël,
1968: II, 127].
A partir da meditação kantiana, considerava
Madame de Staël, seria possível fundamentar uma moral na interioridade do sujeito, a fim de substituir os princípios
utilitaristas alicerçados na exterioridade dos interesses. Eis a forma em que
Kant veio em seu socorro para essa empreitada: "A filosofia materialista
entregava o entendimento humano ao império dos objetos exteriores, a moral ao
interesse pessoal e reduzia o belo ao agradável. Kant quis restabelecer as
verdades primitivas e a atividade espontânea na alma, a consciência na moral e
o ideal nas artes" [Staël, 1968: II, 128]. Ora, considerava a nossa
autora, o pensador alemão fez essas três coisas, respectivamente, na Crítica
da Razão Pura, na Crítica da Razão Prática (e
"nos diferentes escritos que ele compôs sobre a moral") e na Crítica do Juízo. Se detendo no que
tange à moral kantiana, Madame de Staël frisava que "é o sentimento que
nos dá a certeza da nossa liberdade e essa liberdade é o fundamento da doutrina
do dever. Pois, se o homem é livre, ele deve se dar a si mesmo os motivos
todo-poderosos que combatem a ação dos objetos exteriores e libertam a vontade
do egoísmo. O dever é a prova e a garantia da independência mística do
homem" [Staël, 1968: II, 135].
Mas voltemos às aventuras da publicação de De
l'Allemagne. A polícia do Imperador ficou sabendo e a edição de dez mil
exemplares foi apreendida e destruída. A nossa autora somente conseguiria ver o
seu livro editado e circulando três anos depois, em Londres. Esta obra
constituiu, depois de De la Littérature, a mais importante
criação literária de Madame de Staël, pelo fato de ter oferecido aos leitores
franceses um quadro completo da filosofia e da literatura de além o Reno, que
até então eram absolutamente desconhecidas do grande público.
A propósito, escreveu o crítico Demongeot:
"Na época em que apareceu, a literatura alemã era ainda para nós um mundo
desconhecido, mais ainda, um universo objeto de desprezo e de piadas. Voltaire
atribuía aos alemães mais consonantes do que pensamentos. Madame de Staël tomou
uma gloriosa iniciativa. Ela foi a primeira que ousou penetrar nessa floresta
tenebrosa e não somente entrou antes do que os outros, mais ainda assinalou o
caminho a seguir, com muita mais fidelidade à verdade do que o fizeram os que
vieram depois.(...) Em De L'Allemagne, contudo, eleva-se
por cima dela mesma, superando os preconceitos franceses e renunciando ao ponto
de vista sensualista da filosofia do século XVIII. Esse pode ser o maior
serviço que este espírito generoso prestou à França e à filosofia. A esfera em
que viviam Goethe, Schiller, Kant e Hegel abriu-se aos nossos olhos. Se a
autora não compreendeu sempre esses grandes homens, espalhou pelo menos o
desejo de conhecê-los. Os seus erros são menos numerosos do que se pode dizer.
O instinto do verdadeiro e do belo suprem, nela, a imperfeição necessária dos
conhecimentos" [apud Larousse, 1865: 1047].
Após a destruição do seu livro, Madame de
Staël foi confinada em Coppet por ordem de Napoleão, tendo os seus amigos sido
proibidos de ir visitá-la. Aqueles que ousaram desobedecer essa proibição, como
foi o caso de Madame Recamier e de Matthieu de Montmorency, foram exilados. Em
1812, contudo, a nossa autora conseguiu driblar a polícia imperial e percorreu
vários países, indo até a Polônia e a Rússia, reacendendo em todas partes a
animosidade contra Napoleão. De Londres regressou à França, após a abdicação de
Napoleão em 6 de abril de 1814 [cf.
Blaeschke, 1998: IX-XIX].
Madame de Staël tinha conhecido na Inglaterra
Luís XVIII e ela enxergava nele o homem capaz de dotar a França da monarquia
constitucional à inglesa, que tinha
sido o seu sonho no início da Revolução de 1789. Mas ela conhecia, também,
esses emigrados que voltavam com ele, cheios de arrogância e auto-suficiência.
"Eles corromperão os Bourbons, frisava ela". O que, de fato, não
tardou em acontecer. Durante os Cem Dias, Madame de Staël retirou-se à Suíça.
Napoleão fez-lhe saber que poderia voltar a Paris e lhe acenou com o pagamento
da dívida que o Estado Francês tinha contraído com o seu pai. Ela respondeu:
"Napoleão passou por cima da Constituição e de mim ao longo de 12 anos e
não será agora que ele vai nos amar, a mim e a ela, com maior
intensidade".
A nossa autora tinha casado, em 1810, em
segundas núpcias, com John Rocca, jovem oficial suíço a serviço da França. Em
1816 ele caiu doente em Pisa e ela viu-se obrigada a partir para essa cidade a
fim de cuidar do marido. De regresso a Paris, Madame de Staël veio falecer
nesta cidade, em 14 de Julho de 1817. Saint-Beuve dá o seguinte testemunho
acerca dos últimos anos de Madame de Staël: "A amargura que lhe causou a
destruição inesperada do seu livro (De L'Allemagne) foi grande. Seis
anos de estudos e de ilusões aniquilados, o recrudescimento da perseguição no
momento em que ela tinha necessidade de uma trégua, além de outras
circunstâncias contraditórias e duras deram ensejo, nessa época, a uma crise
violenta, uma prova decisiva que a lançou sem volta no que tenho denominado de anos sombrios. Até então, mesmo as
tempestades tinham deixado lugar para ela desfrutar de instantes luminosos, de
pequenas alegrias e, segundo a sua expressão tão graciosa, respirar um ar escocês na sua vida. Mas, a partir de
então, tudo virou mais áspero. A juventude, em primeiro lugar, essa grande e
fácil consoladora, foi-se embora. Madame de Staël tinha pavor diante do avanço
da idade e da idéia de chegar à velhice. Um dia em que ela não dissimulava esse
sentimento perante Madame Suard, esta lhe respondeu: Vamos, então vós sabereis ocupar vosso lugar, sereis uma velha muito
simpática. Mas ela tremia diante desse pensamento. A palavra juventude
tinha um verdadeiro encantamento musical aos seus ouvidos (...). Estas simples
palavras: nós éramos jovens então,
enchiam os seus olhos de lágrimas. (...). O ar
escocês, o ar brilhante do começo rapidamente converteu-se em hino grave,
santificante, austero " [apud Larousse, 1865: 1048]. Foram publicados
postumamente os seguintes livros da nossa autora: Considérations sur la Révolution
Française (1818) [cf. Staël, 2000], Essais dramatiques (1821), Dix
années d'exil (1821) [cf. Staël, 1996a] e Oeuvres inédites (1836).
Chateaubriand, em Mémoires d'Outre-Tombe, registrou com
traços magistrais os últimos dias de Madame de Staël, salientando a grandeza da
sua personalidade: "Foi numa dolorosa época para a ilustração da França
quando encontrei de novo Madame Récamier, no tempo em que ocorreu a morte de
Madame de Staël. Tendo regressado a Paris depois dos Cem Dias, a autora de Delphine ficou doente; eu a tinha
visto de novo na sua casa e na residência da duquesa de Duras. Tendo piorado
aos poucos o seu estado de saúde, foi obrigada a ficar de cama. Numa manhã eu
tinha ido à sua casa na rue Royale; os postigos das janelas estavam
semi-fechados; o leito, próximo da parede do fundo do quarto, não deixava senão
uma estreita passagem à esquerda. As cortinas, recolhidas nos trilhos, formavam
duas colunas aos lados do travesseiro. Madame de Staël, sentada, estava apoiada
em almofadas. Aproximei-me e quando o meu olho foi-se aos poucos acostumando à
obscuridade, distingui a doente. Uma febre ardente acendia as suas faces. O seu
belho olhar encontrou-me nas trevas e ela me disse: Bonjour, my dear Francis. Eu
sofro, mas isso não me impede de amar você. Ela estendeu a sua mão, que
segurei e beijei. Levantando a cabeça, percebi no borde oposto da cama, na
passagem, alguma coisa que se levantava branca e magra: era Monsieur de Rocca,
o rosto pálido, as faces encovadas, os olhos turvos, a tez indefinível. Ele
morria. Nunca o tinha visto e jamais tornei a vê-lo. Ele não abriu a boca.
Inclinou-se ao passar na minha frente; não se escutava o ruído dos seus passos.
Ele se afastou à maneira de uma sombra. Parado um momento na porta, (...)
voltou-se em direção ao leito fazendo menção de não se afastar de Madame de
Staël. Esses dois espectros que se entreolhavam em silêncio, um em pé e pálido,
outro sentado e colorido com um sangue prestes a descer de novo e a se congelar
no coração, faziam arrepiar. Poucos dias depois, Madame de Staël mudou de
residência. Ela convidou-me a jantar na sua casa, na rue Neuve-des-Mathurins.
Eu compareci. Ela não estava no salão e não pôde, efetivamente, comparecer ao
jantar. Mas ela ignorava que a hora fatal estava tão próxima.(...). Madame de
Staël morreu. O último bilhete que endereçou a Madame de Duras estava escrito com grandes letras irregulares como
as de uma criança. Uma palavra afetuosa encontrava-se ali para Francis. O talento que expira leva
consigo mais do que o indivíduo que morre. É uma desolação geral que golpeia a
sociedade. Cada um, ao mesmo tempo, sofre a mesma perda. Com Madame de Staël
acabou uma parte considerável do tempo que tenho vivido. Tamanhas são as fendas
que produz num século uma inteligência superior que desaba. Elas não mais se fecham. A sua morte produziu em mim
uma impressão particular, à qual se misturou uma espécie de estonteamento
misterioso (...)" [Chateaubriand, 1951: II, 601-602].
Concluo este breve esboço bio-bibliográfico
citando a síntese feita por Florence Lotterie acerca da obra da grande
escritora: "Herdeira das Luzes, Madame de Staël é também filha da
Revolução (...). A literatura é o instrumento da criação de um espírito nacional e desempenha a função de elo de
união entre os imperativos de difusão das luzes e da realização de uma sociedade
livre, ou seja, republicana. O reconhecimento da utilidade patriótica dos
escritores assinala os progressos da civilização, mas na regulação necessária dos modos de transmissão do saber e do apetite
democrático. Não se trata mais, efetivamente, de progressos feitos não importa
por quem ou como. Não se poderia concluir sem lembrar que o magistério
literário é o de uma elite e a república staëliana consiste numa aristocracia
do mérito. Os ideais ilustrados do século XVIII acham-se, pois, ao mesmo tempo alargados numa perspectiva progressista, que recusa por
sua vez o espectro da decadência e as abstrações normativas da história
conjectural, em benefício do fato civilizador. Acham-se também superados esses ideais pelo caráter
programático de uma perfectibilidade convertida em princípio fundador da
vontade de agir, em prol da regeneração política. Acham-se temperados pela dúvida melancólica e confirmados na sua prudência elitista" [Lotterie, 2000: 22].
II - Concepção liberal da Política, do Estado e da Economia,
segundo Necker
Madame de Staël recebeu, sem dúvida, uma
definitiva influência liberal de seu pai. Essa influência revestiu-se, antes de
mais nada, de um exemplo de patriotismo. Para Jacques Necker, o princípio
fundamental que pautava a sua ação política consistia em merecer a confiança da
Nação. Diante desse imperativo, tudo deveria ser posto em segundo plano:
riqueza, honras, ambições. A propósito deste ponto, escrevia Madame de Staël em
Considérations
sur la Révolution Française: "Depois dos seus deveres religiosos,
a opinião pública era o que mais o preocupava.. Ele sacrificava a fortuna, as
honras, tudo o que os ambiciosos buscam, à estima da nação. E esta voz do povo
(...) tinha para ele alguma coisa de divino. A menor mancha sobre a sua reputação
constituía para ele o maior sofrimento que poderia ter na vida. A finalidade
mundana de suas ações, o vento de terra que o fazia navegar, era o amor à
reputação. Um ministro do rei da França não tinha, aliás, como os ministros
ingleses, uma força independente da corte. Ele não podia manifestar em público,
na câmara dos comuns, nem o seu caráter, nem a sua conduta. E inexistindo
liberdade de imprensa, os panfletos clandestinos tornavam-se mais perigosos
ainda" [Staël, 2000: 104].
Mas essa influência liberal de Necker sobre
Madame de Staël deitava raízes numa admiração exaltada, numa verdadeira paixão
da filha pelo pai, com as evidentes contradições que isso acarreta. Testemunho
direto dessa situação deixou-nos Madame de Staël, em palavras (dignas de uma sessão
psicanalítica) escritas por ela em 1785, no seu
Journal de Jeunesse: "(...) Algumas vezes lhe encontro
defeitos de caráter que amarguram a doçura interior da vida. É que ele gostaria
que eu o amasse como um amante e ele me fala, no entanto, como um pai. Eu
gostaria que ele me amasse como um amante e que eu agisse no entanto como uma
filha. O que me torna infeliz é essa luta interior entre a minha paixão por ele
e as tendências da minha idade, que ele gostaria de ver sacrificadas
totalmente. É esse mesmo combate cuja duração o torna um espectador impaciente.
Nós não nos amamos sempre até o excesso e no entanto a intensidade do nosso
amor é tão próxima disso, que não posso suportar tudo aquilo que nos lembra que
ainda não chegamos a esse limite. De todos os homens da terra é ele que eu
teria desejado como amante. É necessário que ele seja um notável para que, sem
amor, eu o encontre digno de amor" [apud Balayé, 1979: 18].
Após a morte de Necker, a figura
contraditória do amante/pai converteu-se em mito sobre o qual ela passou a
alicerçar todas as suas convicções, buscando nesse rochedo a permanência que
contrastava com a futilidade dos amores e a precariedade das circunstâncias
políticas. Eis um texto de 1816, já no final de sua vida, que resume muito bem
essa luta pelo amor imorredouro: "Tudo quanto me falou Monsieur Necker é
firme em mim como a rocha. Tudo quanto conquistei por mim mesma pode
desaparecer. A identidade do meu ser ancora na fidelidade que guardo à sua
memória. Amei ele como nunca jamais amei ninguém. Apreciei ele como nunca mais
apreciei ninguém. A vaga da vida tudo levou consigo, exceto essa grande sombra
que está lá, no cume da montanha e que me indica a vida que virá" [apud
Balayé, 1979: 18].
Não estranha, assim, a profunda influência que
as idéias liberais do pai exerceram sobre o pensamento de Germaine. A figura
dele simplesmente fez desaparecer a da mãe, com quem a nossa autora nunca teve
uma relação tranqüila. Simone Balayé (1925-2002), a mais importante estudiosa
da obra de Madame de Staël, sintetizou muito bem o simbolismo que exerceu a
figura de Necker na imaginação da filha, destacando nessa representação a
personalidade do estadista: "O entusiasmo de Germaine Necker não pode ser
satisfeito por uma mãe enferma, triste e ciumenta, mas por esse pai cuja
popularidade crescente alarga até as dimensões da França a admiração que a sua
filha lhe dedica. Ele simboliza tudo quanto ela conhece de verdadeiramente
grande. (...) Ela vive sob a sombra gloriosa desse pai uma espécie de amor perfeito,
pleno, sem esforço. Ela cresce sob a admiração de todos, mas ela somente admira
um só que será para sempre aos seus olhos o homem de Estado capaz de meditar em
silêncio sobre as opiniões religiosas, como sobre as finanças da França, mas
também acerca do ideal do homem comum. Ela sentirá sempre necessidade dessa
exaltação: Eu tinha nascido sob os raios
da glória do meu pai e descobri que fazia frio na sombra" [Balayé,
1979: 19].
É
fundamental, porisso, para entender as idéias de Madame de Staël, compreender o
pensamento político e econômico de Jacques Necker. Em primeiro lugar, no que
tange ao que poderíamos definir como a sua teoria do conhecimento, parece que
ele tivesse presente o pensamento de Aristóteles de que, em matéria de
política, não valem os juízos apodícticos, mas apenas os dialéticos, que
expressam uma opinião alicerçada na experiência. O pai de Germaine acreditava
no princípio, que será caraterístico dos doutrinários,
de que em política não vale o pensamento especulativo sozinho, sem referi-lo ao
processo histórico apreendido vivencialmente. Esse processo, mais as tradições
que dele emergem, precisam ser levados em consideração por quem quiser
compreender as realidades ligadas ao exercício do poder, ou por quem pretender
modificar as instituições políticas de um país. Discutindo a conveniência de na
França se estabelecer a representação política, Necker escrevia, por exemplo,
na obra intitulada Dernières vues de politique et de finance: "Essas não são reflexões vãs, embora um
pouco subtis pela sua natureza; pois o interesse ou a indiferença pelas
assembléias políticas é determinado por
circunstâncias que escapam à demonstração. É necessário julgá-las, como todas
as coisas morais, por meio de simples apreensões. E se os homens atribuem um
grande valor à experiência, é ela que dá consistência às idéias complexas ou
fugidias, é ela que ensina as verdades que o raciocínio não poderia apreender
anteriormente com suficiente força"
[Necker, 1802: 14-15].
A política exige uma reflexão projetada sobre
o processo histórico. De nada adiantaria discutir, em teoria, se para a França
seria melhor a República ou a Monarquia. Necker considerava que, no início do
século XIX, seria necessário aos estudiosos levar em consideração as
circunstâncias concretas do país e o homem com que os franceses contavam à
frente do governo: Bonaparte. Somente partindo desse ponto seria possível achar
um caminho para encontrar o rumo da liberdade e da democracia. O resto seria
elucubração vazia. A respeito, escrevia: "Creio que, para comparar de boa
fé a Monarquia com a República, é necessário estudar previamente o grau de
perfeição que se poderia dar, na França, a esses dos gêneros de governo. E essa
obrigação é tanto mais essencial, tanto mais rigorosa, quanto que não basta hoje
um julgamento especulativo. É necessário examinar o que pode ter sucesso em
meio a tantas opiniões encontradas, tantos hábitos já tornados fortes e tantas
paixões ainda prestes a renascerem. É necessário estudar o que se pode fazer
com o homem necessário e nós damos
esse nome a Bonaparte" [Necker, 1802: VIII-IX]. Não se trataria,
evidentemente, de sagrar os anseios imperiais do Primeiro Cônsul. Mas de
conhecer as suas pretensões, bem como os hábitos decantados na mente das
pessoas, como ponto de partida para a meditação sobre os ideais políticos a
serem implementados.
Do ângulo puramente teórico, Necker não
escondia a sua preferência pela monarquia
moderada. Tal sistema de governo
traria, em tese, maior estabilidade a um país de amplas dimensões. A propósito,
escrevia: "É a minha opinião que, num vasto país, no seio de uma Nação
viva e ardente, no interior de uma Nação mutável nos seus princípios, volúvel
nas suas opiniões, uma Monarquia temperada deve ser preferida a uma República
unitária e indivisível" [Necker, 1802: II, 304]. Mas, se a consideração
especulativa aconselhava a adoção da monarquia
temperada e embora as caraterísticas destacadas por Necker no texto
anterior se aplicassem à França, eclodida a Revolução de 1789, derrubada a
monarquia absoluta do jeito que aconteceu com Luís XVI, já era tarde demais, em
1802, para pretender instaurar na França essa modalidade de governo inspirada
na monarquia britânica. O nosso autor tinha um ponto de vista de realismo
político. No texto a seguir aparece essa nota de realismo, que não pretende
brigar com os fatos. Frisava Necker: "Sem dúvida que, após ter mostrado as
vantagens da Monarquia temperada, estaríamos de acordo com a sua essência, e
estaríamos também em feliz harmonia com a impressão que pretendíamos produzir,
se viéssemos em seguida indicar o meio, e o meio fácil para introduzir na
França um tal Governo. Mas a natureza das coisas não se acomoda aos nossos
sistemas. São os sistemas, ao contrário, que devem se acomodar a ela. Houve
muitos momentos favoráveis, na França, para que fosse estabelecida uma
Monarquia temperada; mas eles passaram" [Necker, 1802: II, 325-326].
A impossibilidade de instauração da monarquia temperada na França posterior
à Revolução de 1789, prendia-se ao fato de que todos os segmentos sociais
passaram a desenvolver um movimento centrípeto de cooptação das instituições,
em função dos seus interesses corporativos. Nesse terrível contexto de perda do
sentido do que é bem comum, o desfecho napoleônico foi um mal inevitável. Eis o
clima de ausência de espírito público que terminou vingando na França após a
terrível saga revolucionária, no sentir de Necker: "Essa disposição (de
instaurar uma Monarquia temperada) se enfraqueceu. Ou, pelo menos, deixou de
ser universal, quando foi prometida a convocação dos Estados Gerais. As
diferentes ordens do Estado, os diversos corpos políticos somente cuidaram das
prerrogativas de que então careciam. E todos se jactavam de que, numa tão
grande assembléia e no meio ao descontentamento geral, a Corte precisaria do
apoio de todos eles; e que cada um, segundo o seu ponto de vista, melhoraria a
sua situação" [Necker, 1802: II,
327-328].
Em épocas de transformação histórica como as
que vivia a França logo após a Revolução de 1789, os intelectuais tinham um
dever adicional ao de simplesmente pensarem o seu país: era necessário que com
a sua ação buscassem aperfeiçoar as instituições. Mas para isso precisavam
estar atentos à realidade concreta e conhecê-la completamente. Essa realidade
estava composta pelo "movimento dos homens, o curso das suas opiniões, o
nascimento e o crescimento dos seus preconceitos" [Necker, 1802:
VI-VII]. O pai de Germaine propunha uma
ciência da sociedade, ao estilo da "Geografia Moral" de que falavam
os filósofos escoceses.
Necker analisou detalhadamente a Constituição
de 22 Frimário, ano VIII (1800), que
sagrou um modelo de República autoritária, presidida pelos três Cônsules, sendo
Bonaparte o que de fato exercia o poder [cf. Chevallier, 1977: 105-108]. O pai de Germaine considerava
que, não tendo sido estabelecida nessa Constituição uma verdadeira
representação dos interesses populares no Parlamento, a eleição não tinha
nenhum sentido e as instituições republicanas careciam de autenticidade. A
propósito, escrevia Necker: "A primeira circunstância que chama a atenção
ao examinar esta Constituição é que, num Governo denominado de Republicano,
nenhuma porção dos poderes políticos, nenhuma, realmente, foi confiada à Nação.
No entanto, não apenas nas Repúblicas mistas ou puramente democráticas, mas
também nas Monarquias moderadas, o povo concorre à nomeação do Corpo
Legislativo, à nomeação das autoridades que determinam os seus sacrifícios.
Vemos na Inglaterra os Membros da Câmara dos Comuns eleitos pela Nação. Vemos
na Suécia uma ordem de Burgueses, uma ordem dos Camponeses comporem o Poder
Legislativo; e sob a Monarquia Francesa o Terceiro Estado nomeava Deputados às
Assembléias Nacionais. Uma tal prerrogativa, a mais importante de todas, foi
substituída por uma ficção no novo código político da França. Concede-se ao
Povo um direito de indicação que não significa nada para ele e que aborrecerá
ao Governo se esse direito for respeitado" [Necker, 1802: I, 1-2].
Ora, nenhuma estabilidade institucional
poderia advir de um tal regime. Tratava-se de uma República de faz-de-conta,
modelo da que, no final do século XIX, os Castilhistas instaurariam no Rio
Grande do Sul. Tudo girava ao redor do único poder verdadeiramente forte: o
general Bonaparte. A feição dessa pseudo República foi resumida perfeitamente
por Jean-Jacques Chevallier, com as seguintes palavras: "Uma fachada de sufrágio universal (simples
direito de apresentação). Uma fachada
de assembléias: o Senado, o Tribunato, o Corpo Legislativo. No governo uma fachada
de três cônsules, sendo que o poder repousava realmente no Primeiro Cônsul. Na
tarde em que o texto constitucional foi solenemente promulgado nas ruas de
Paris, as pessoas perguntavam: O que há
na Constituição? E a resposta era a seguinte: Há Bonaparte. O referendum sobre um texto constitucional tinha fatalmente virado um plebiscito sobre um homem"
[Chevallier, 1977: 107]. A propósito
dessa enorme encenação, escreveu Necker: "Mostraremos agora que
toda essa organização é ao mesmo tempo motivo de irritação para a massa geral
dos Cidadãos, bem como um atentado aos seus direitos, um estorvo para o Governo
e um constrangimento prejudicial para o bem do Estado" [Necker, 1802: I,
4-5].
O modelo de representação previsto pela
Constituição bonapartista do ano VIII constituía uma caricatura da prática do
verdadeiro parlamentarismo. Os cidadãos habilitados para votar segundo as
normas oficiais (cinco milhões, calculava Necker, sobre uma população de mais
de vinte milhões de Franceses), nos seus
respectivos cantões indicariam as pessoas que, segundo o seu critério,
pudessem desempenhar cargos públicos. Daí sairia uma massa de cinco mil homens
aptos para receberem do Senado
Conservador, formado à revelia da Nação, a responsabilidade de administrar
a máquina do Estado. Seria uma representação às avessas, que personificaria os
interesses de Bonaparte e da sua burocracia, deixando de lado os reais
interesses dos cidadãos. "Essas listas de elegibilidade - frisava Necker
[1802: I, 10-11] - teriam pouca credibilidade, ao reduzir cinco milhões de homens
a cinco mil, sem nenhuma das precauções que garantem ao menos um sentimento de
interesse, um grau formal de atenção a essa grande ação política".
O resultado de tudo isso não poderia ser
outro: o crescente descontentamento popular, a instabilidade da República e a
porta aberta para novas revoluções. A própria mãe de Bonaparte, Laetitia, tinha
dito a respeito das novas instituições emergentes da Constituição do Ano VIII
(1800) que colocou o seu filho na cúpula do poder, fazendo dele um ditador: "Isso
não durará! Isso não pode durar" [apud Chevallier, 1977: 109]. Necker
previa a mesma catástrofe: "Nós veremos ainda o resultado, no momento em
que o espírito republicano se reanimar. A exclusão de tão grande número de
Cidadãos das listas de elegibilidade, essa exclusão duradoura e eficaz será
recebida como uma grande ofensa, como um justo motivo de irritação. As pessoas
sentir-se-ão postas de lado por um pequeno número de felizardos, tornados os
únicos elegíveis por escrutínios praticados com indiferença. E ninguém estará
disposto a aturar pacientemente uma barreira colocada diante de si, logo nos
primeiros passos da carreira política".
O próprio Estado tornar-se-ia ingovernável,
pois o centralismo desvairado, aliado à exclusão dos Cidadãos, impediria que os
governantes conseguissem nomear os mais aptos para os cargos públicos. Assim
enxergava Necker mais essa contradição da Carta do Ano VIII: "Consideremos
agora, de um novo ângulo, a disposição constitucional relativa aos elegíveis. Resultará daí, para o Governo,
para a República inteira, um entrave bizarro cuja experiência servirá de lição.
É a partir de um número de cinco mil
Cidadãos ativos que será necessário, de agora em diante, escolher os principais
Funcionários públicos, os Cônsules, os Tribunos, os Legisladores, os Ministros
e os Conselheiros de Estado, os Juizes de cassação, os Comissários de contas.
Ora, como todos esses cargos exigem qualidades diferentes, não é seguro que os
grandes Eleitores, o Governo e o Senado, encontrem uma quantidade suficiente de
homens para escolher, com segurança, a partir de um número de cinco mil
Cidadãos, indicados uns por amizade, outros por intriga e os melhores por uma
reputação genérica de honestidade" [Necker, 1802: I, 26-27]. Destacando a
impossibilidade de pôr em prática as disposições de tão maluca Constituição, o
pai de Germaine concluía com uma ponta de ironia: "Enfim e por cima de
todas as outras dificuldades, são os Cônsules também os que será necessário
escolher entre os elegíveis. Convenhamos que é muita modéstia de Bonaparte ter
considerado que o seu equivalente poderia ser encontrado entre cinco mil
pessoas" [Necker, 1800: I, 28].
A instituição do Senado Conservador constituía mais do que uma instância de
representação da Nação, uma roda solta do sistema, absolutamente ignorante das
necessidades da administração e que ainda por cima tinha a alta
responsabilidade de nomear o Chefe do Estado. A respeito, escrevia Necker:
"Um corpo político, absolutamente separado do movimento da Administração e
que não participa da confecção das leis, uma espécie de solitário na ordem
social, não poderia conservar o direito de nomear o Chefe do Estado, mesmo se
ele se equivocasse uma única vez. Seria necessário que vivendo nas sombras e no
silêncio, como os oráculos, tivesse a ciência e a infalibilidade
destes" [Necker, 1800: I, 32].
Quanto ao Poder Legislativo instaurado pela
Carta do Ano VIII, Necker considerava que se tratava de uma instância vazia,
pois a iniciativa de propor as leis corresponderia exclusivamente ao Governo,
sendo que as duas Assembléias Políticas
(Tribunado e Corpo Legislativo), somente poderiam votar os projetos de lei sem
discussão alguma. A propósito, escrevia: "Este Poder é atribuído, pela
Constituição, a duas assembléias políticas, uma designada com o nome de
Tribunado e a outra com o de Corpo Legislativo. A primeira é integrada por cem
pessoas, com idade mínima de vinte e cinco anos; a segunda por 300 pessoas com
idade mínima de trinta anos. O Governo deve propor todas as leis, o Tribunado
as examina, as aceita ou as rejeita. O Corpo Legislativo se pronuncia
unicamente por escrutínios, sem nenhuma discussão pública, nem secreta, sem
jamais pedir um esclarecimento, sem pronunciar palavra. Uma interdição tão
especial e da qual não há um modelo existente, manterá o desejo contínuo de se
ver atado por um vergonhoso laço. E a
Nação, que ama ouvir falar dos seus negócios e que tem direito a isso numa
República, apoiaria o voto dos Legisladores desde que as circunstâncias o
permitissem. O seu silêncio, o seu absoluto silêncio, mesmo que ordenado pela
Constituição, prenuncia, mais do que qualquer outro indício, a presença de um
dono do poder" [Necker, 1802: I, 50-51].
Essa absoluta passividade do Corpo
Legislativo, considerava Necker, era sobremaneira nociva especialmente no que
tange à tributação. A Carta do Ano VIII estabelecia, nessa matéria, uma
verdadeira orgia orçamentívora, toda vez que ninguém poderia objetar a
generosidade do gasto público. Em matéria tributária, frisava, "depois de um certo tempo, geralmente,
temos amiúde uma opinião diferente, bem por causa das lições da experiência,
bem por causa das mudanças que ocorrem nas necessidades do Estado"
[Necker, 1802: I, 56].
Inoperante a representação política, a Nação
ficou sem instrumentos para exigir dos membros do Governo a mínima
responsabilidade. Os Cônsules e os seus Ministros viraram espécies de
semideuses, irresponsáveis perante a sociedade e inatingíveis. A França
caminhava na contramão da história dos países onde houve um amadurecimento da representação,
como a Inglaterra. A respeito, Necker escrevia: "A responsabilidade dos
Ministros na Inglaterra é algo real e bem concreto. Mas tudo é diferente na
França. Hoje, tudo caminha em sentido contrário. Nada de Câmara dos Pares, que
se imponha pelo seu caráter hereditário. Nada de assembléia política
representativa da Nação. Nada de Parlamento, enfim, enraizado no espírito e no
coração do povo. E além do mais, nenhuma liberdade para escrever, para opinar
sem pautas e sem tutores. Como, com uma tal distribuição política, com uma
desproporção tão marcante entre a autoridade Executiva e todas as outras
autoridades, ousaria alguém acusar um Ministro! Essa seria uma empresa tão vã
quanto perigosa" [Necker, 1802: I, 84].
No meio dessa falta de controles sobre o
poder, a burocracia miúda tornou-se todo-poderosa, à sombra do Primeiro
Cônsul e dos seus Ministros. A respeito
frisava Necker [1802: I, 92]: "A autoridade no seu imenso círculo de
influência pode ter agentes ordinários e agentes extraordinários. A carta de um
Ministro, de um Prefeito de um Subtenente da Polícia é suficiente para
transformar alguém em agente. E se no exercício de suas funções estão todos
fora do alcance da Justiça, a menos que haja uma especial permissão do
Príncipe, o Governo terá na sua mão homens que tal privilégio tornará
suficientemente audaciosos como para não temer a desonra, graças ao seu
acoitamento pela autoridade suprema. Que instrumentos para optar pela
tirania!".
O efeito de tudo isso será a morte da
liberdade e o fortalecimento do absolutismo. Todos terão medo, menos o tirano.
Todos ficarão reféns do seu poder sem freio. Eis o sombrio quadro traçado por
Necker: "Que acontecerá com a liberdade no meio de todos esses
dispositivos políticos? O que o Cônsul quiser. O Tribunado poderá lhe dirigir a
palavra. Mas está previsto que não é obrigado nem a escutá-lo, nem a
responde-lhe. O Senado Conservador está investido do direito de anular os atos
inconstitucionais. Mas ousará tal coisa? (...) E todo mundo, em determinado
momento, terá medo, exceto o Cônsul" [Necker, 1802: I, 85].
Da crítica de Necker ao regime instaurado
pela Carta do Ano VIII depreende-se uma conclusão: a França estava longe de
constituir uma verdadeira República. Esta, à sombra da experiência americana, é
fundamentalmente o reino da liberdade da Nação, da representação de seus
interesses, da salvaguarda dos seus direitos fundamentais à vida, à liberdade,
às posses. O pai de Germaine preocupava-se por dar à palavra povo um sentido diferente do que
terminou sendo usado pelo democratismo revolucionário e pelo bonapartismo. Povo
deveria ser entendido como conjunto de Cidadãos que se distinguem da minoria
que exerce o poder.
Eis a forma em que o nosso autor entendia
essas noções, bem como o espírito de uma Constituição autenticamente
republicana: "Apuremos de entrada o sentido da palavra povo, com a qual se faz o que se quer na
língua francesa. Esse termo converte-se em algo terrível quando o utilizamos
para designar as últimas classes da sociedade, os homens despidos de educação e
entregues, sem limitações, à impetuosidade do seu caráter. A palavra retoma a
sua dignidade quando, sinônimo do termo Nação, serve para lembrar a
universalidade dos Cidadãos, e algumas vezes para distingui-los do pequeno
número de homens que compõem o Governo. O espírito de uma Constituição
republicana é indubitavelmente o de atribuir ao povo, assim definido, todos os
direitos políticos que pode exercer ordeiramente. E se for verdade que este não
existe dessa forma, se for verdade que na França a extensão do país ou o
caráter dos habitantes se opusessem a isso, a boa fé exigiria que se chegasse a
um acordo sobre o particular, exigiria
que deixássemos de dar o nome de República a uma forma de governo na qual o
povo não seria nada, nada mais do que uma ficção. Esse povo pode ser feliz sob
o abrigo exclusivo das leis civis. Pode sê-lo sem direito político. Pode sê-lo,
ainda, segundo os seus mestres, sob um Monarca absoluto, sob um Ditador, sob
uma aristocracia hereditária, sob uma aristocracia burguesa mais ou menos
dissimulada. Mas as honras do nome republicano não mais lhe pertenceriam"
[Necker, 1802: I, 8-9].
Está enunciado, aqui, um Leitmotiv que encontraremos em Constant de Rebecque, nos
doutrinários, em Tocqueville e em Aron: o povo francês, preso ao seu bem-estar
e trancafiado na sua vida privada, poderá em muitos momentos abrir mão da
liberdade e da luta na defesa da sua dignidade como Nação. Mas, nesses
instantes, estará se afastando do ideal republicano. O alerta vale, segundo
Tocqueville, inclusive para o povo americano, tão sensível à conquista do
bem-estar material. Uma tentação que se desenhará sempre no horizonte da
democracia americana é a de abrir mão da luta pela liberdade, em prol da
manutenção do conforto.
A República, como lembraria mais tarde
Tocqueville, é o reino tranqüilo do povo sobre si mesmo, o estreito laço que
existe entre a Nação e as instituições. Já Necker tinha se antecipado a essa
concepção, quando frisava que a vantagem da representação na vida republicana é
o estreitamento de laços entre os cidadãos ativos e os seus Governantes. A
propósito, o pai de Germaine escrevia: "Temo-lo já dito, a intervenção do
povo na escolha dos homens públicos não é essencialmente necessária à bondade
dessa escolha, nem é uma garantia disso. E pode ser possível que se chegasse ao
mesmo objetivo de forma igualmente segura, sem colocar em movimento cinco
milhões de Cidadãos ativos. A primeira utilidade da participação do povo na
nomeação dos seus Magistrados, dos seus Legisladores, consiste em estabelecer
uma ligação contínua, um vínculo mais ou menos estreito entre os Chefes do
Estado e a massa inteira dos Cidadãos. Destruamos essa ligação, seqüestremos ao
povo o único direito político que pode exercer, troquemos esse direito por algo
semelhante, adotando uma simples ficção, e não haverá mais República, ou ela só
existirá no papel" [Necker, 1802: I, 16-17].
Necker considerava que a Constituição do Ano
VIII pretendeu imitar a praxe inglesa de liberar de toda responsabilidade o
Chefe do Estado. Essa providência, que faria sentido numa Monarquia
Constitucional, seria de todas maneiras inconveniente numa República, onde o
Chefe do Estado foi eleito, como no caso da França. Ora, o Poder Supremo sendo
eleito e gozando de imunidade, os seus Ministros passarão a se sentir imunes
também. Como veremos no próximo capítulo, Constant de Rebecque aprendeu esta
lição de Necker, pois encontraremos arrazoado semelhante nos Principes
de Politique.
A propósito do equilíbrio de poderes
existente na Inglaterra, eis o que afirmava Necker, destacando - como Constant
fará também - o papel importantíssimo da
imprensa como veiculadora do quarto poder, o da opinião: "Há, na Inglaterra, um tal equilíbrio entre os três
poderes, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário, que eles se respeitam
mutuamente. E um quarto poder, não menos imponente, vigia sobre a sua união,
sobre os seus mútuos direitos. Quero falar do poder da opinião pública, poder
enraizado, estimulado, tornado quase imperativo pela liberdade de imprensa"
[Necker, 1802: I, 82]. Este é, como veremos, outro ponto em que Constant
recebeu influência definitiva de Necker.
Mas voltemos às considerações que Necker
fazia em torno à monarquia temperada. Não há dúvida, como frisei
atrás, de que este era, em tese, o modelo preferido pelo pai de Germaine. A monarquia temperada e bicameral, à maneira inglesa, constituía
o regime mais apropriado para garantir a estabilidade política, sem cair no
risco do absolutismo. Se algum dia a opinião pública francesa decidisse
instaurar novamente a monarquia, considerava Necker, esse deveria ser o modelo
a ser realizado. O pai de Germaine deixava, pois, em aberto essa possibilidade
que, como veremos, Constant de Rebecke retomou em Princípios de Política. O
modelo sugerido por Necker seria o de uma monarquia bicameral em que se reforçasse o papel moderador do
monarca mediante a nomeação, por ele, para a Câmara Alta (ou dos Pares), de 50
representantes escolhidos entre pessoas de prol da Nação, não necessariamente
pertencentes à antiga aristocracia, mas expoentes dos valores morais que
garantiriam a unidade nacional, algo assim como os homens de mil, identificados por Oliveira Vianna como a base de
que se valeu dom Pedro II, no Império brasileiro, para a estruturação do Estado
[cf. Necker, 1802: II, 287-288; 291-292; 298-299].
A monarquia
temperada, assim constituída, garantiria, de um lado, a diferença e a
separação dos poderes públicos, preservando, mediante a autoridade do monarca
aliada à representação dos interesses permanentes da Nação na Câmara Alta, os
limites de cada um deles, bem como a harmonia no seu funcionamento. A propósito
dessa função moderadora da monarquia temperada, frisava Necker: "Creio,
pois, que a Monarquia temperada possui não somente todos os meios de
estabilidade, como também o Príncipe mesmo e as autoridades secundárias, os
corpos intermediários, não são tentados, por nenhum interesse, a saírem do
círculo que serve de limite ao seu poder" [Necker, 1802: II, 316]. Constant, neste ponto também fiel seguidor do
seu mestre Necker, ampliará a feição moderadora da monarquia constitucional,
elaborando a teoria do poder neutro.
Na sua ampla visão de mundo, Necker apostava
na possibilidade de uma República em que os ideais de igualdade e liberdade
ficassem equilibrados. O nosso autor ainda não tinha uma visão clara do que
seria a República americana. Esse quadro somente ficaria bem definido após o
primeiro volume de De la démocratie en Amérique de Tocqueville, publicado em 1835.
De outro lado, Necker parece valorizar o que poderia ser uma experiência
liberal da República na França, tentando auscultar no fundo dos corações dos
seus concidadãos um ancestral patriotismo aliado à paixão pela liberdade e à
ação benfazeja das luzes. Mas os acontecimentos revolucionários e o ciclo posterior
de terror e absolutismo deixavam tudo incerto. Seja como for, Necker não
excluía a idéia de uma República de inspiração liberal, cujos contornos
desenhava de forma entusiástica, tentando cativar os espíritos republicanos na
França, a fim de que mitigassem a busca da igualdade com a defesa da liberdade.
Esses ideais permaneceriam numa espécie de hibernação, e começariam a
frutificar já no ciclo da restauração, ao ensejo das reflexões de Madame de
Staël em relação á perfectibilidade humana numa ideal República das Letras.
Seriam retomados, no entanto, com força cada vez maior, quando da queda da
monarquia de Luís Filipe, após os acontecimentos revolucionários de 1848,
quando alguns espíritos liberais, como Tocqueville, passaram a acalentar a
idéia de uma República respeitadora dos ideais de liberdade e igualdade.
Eis o que a respeito da perspectiva
republicana escrevia Necker: "Emprestemos, contudo, aos Republicanos
idéias mais grandes e mais próprias para
contrapor aos arrazoados que temos empregado em favor da Monarquia
temperada. Eles não têm nenhuma vantagem sobre os partidários deste último
sistema político, quando se limitam a falar da liberdade. Eles possuem no
entanto uma vantagem, quando falam em igualdade, mas aí é a imaginação que
possui a maior força. Nós os escutamos com interesse, mesmo com uma sorte de
respeito, quando exaltam a idéia de uma vasta sociedade que marcha, com uma
vontade comum, em direção a um mesmo objetivo. Uma República que se movimenta
com ordem, não obstante a sua extensão e a sua numerosa população, animada
possivelmente por um sentimento antigo de patriotismo e de liberdade e que
recebe gradualmente, do progresso da ilustração, essa temperança que aperfeiçoa
todas as instituições políticas: esta perspectiva é bela! É um quadro capaz de seduzir os espíritos
elevados e as grandes personalidades. Mas essas são apenas especulações ainda
não referendadas com o selo da experiência e, enquanto isso não ocorrer, toda
confiança é incerta, toda experiência é confusa" [Necker, 1802: II, 323].
Terminemos este item destacando um aspecto
bastante original das idéias de Necker: a particular versão do seu liberalismo
econômico. O nosso autor traçou as linhas do que seria uma concepção de liberalismo social, da qual certamente
emergiria posteriormente a visão de Tocqueville, alicerçada no ideal de interesse bem compreendido. A síntese da
concepção econômica de Necker seria a seguinte:
do ponto de vista teórico, é perfeitamente válida a concepção de Adam
Smith em defesa da livre iniciativa e do mercado como formas de garantir a
produção das riquezas. Mas o funcionamento do sistema produtivo precisa de uma
base institucional não redutível ao mercado. Sem instituições políticas, se
tornariam impossíveis a empresa e a circulação das riquezas. Ora, esta parte
das instituições políticas e do seu funcionamento não é algo puramente teórico,
mas é fruto dos ideais e da tentativa de pô-los em funcionamento. Aí entra a
desempenhar um papel importante o intelectual
comprometido com o processo histórico. A simples idéia de mercado não torna
a realidade mais favorável à liberdade, se a empresa econômica não for
acompanhada de uma organização política que salvaguarde os direitos
individuais.
São vários os textos que poderiam ser
trazidos à colação aqui para ilustrar esses aspectos originais da concepção
econômico-política de Necker. Eis um deles, por exemplo, que põe de relevo as
duas variáveis, econômica e política, na experiência inglesa, uma irredutível à
outra e ambas precisando de mútua complementação: "Os Ingleses tiveram,
entre os seus compatriotas, um dos mais ilustres escritores em economia
política (Adam Smith). No entanto, o Legislador não obedeceu à sua doutrina
acerca dos impostos, os grãos, a balança comercial, etc. E creio que ele teve
razão. É bom ter, num país, homens que militam no campo da teoria, para fazer
surgir idéias novas e amiúde verdades úteis. Mas é necessário, também, que as
suas verdades compareçam perante o tribunal dos Filósofos práticos, que
enxergam as questões no seu conjunto. E este tribunal não pode deixar de ser
integrado por pessoas chamadas, pelo seu dever e as suas funções, a se ocuparem
dos negócios do Estado. Eles se atêm, cada dia, às dificuldades das coisas e
alguns princípios não lhes bastam. Eles precisam de uma dupla guia, das luzes
expandidas nos livros e dos fatos inscritos nos anais da experiência"
[Necker, 1802: II, 456-457].
Livre mercado entre as Nações e não ao
protecionismo? Sem dúvida que são belos ideais. Mas na marcha dos povos, na
luta encarniçada no terreno do comércio internacional, é necessário levar em
consideração outros fatores, além desse. E esses outros fatores dizem relação à
conveniência de um tal tipo de intercâmbio num determinado momento. Ser liberal
em comércio exterior quando todo mundo quer tirar proveito dos outros, é um
suicídio. Eis o que Necker escrevia a respeito do comércio internacional da sua
época: "A França, dotada de tantos favores e rica em produtos
privilegiados, rica em obras de arte, em produtos industrializados, deveria desejar
que fosse estabelecida entre as Nações a liberdade de comércio mais ilimitada,
ela lucraria com isso, sem dúvida. Mas, quando todos se negam a comprar dela e
gostariam de guardar o seu dinheiro; quando todos chegam a esse extremo ou
mediante regulamentos internos o através de convenções políticas, ou tratados
de balanço e compensação, seria ruim
para a França empreender outro caminho. E a mesma reserva lhe é imposta. Não há
dúvida quanto a tudo isso, não obstante as proposições gerais formuladas pela
teoria. Mas o modo de execução, a sabedoria dos meios, os cuidados necessários
para atender aos princípios liberais sem ser vítima da política de outras
Nações, eis o que exige habilidade de parte dos Governantes [Necker, 1802: II,
454-455].
Igual prudência deve pairar nas decisões
econômicas no interior do próprio país. O princípio do livre mercado é em si
bom. Mas há momentos em que os produtos de primeira necessidade não podem ser
considerados apenas como mercadorias submetidos à dinâmica da oferta e da
procura (diríamos hoje, há produtos que não podem ser considerados, em
determinadas circunstâncias, apenas como commodities).
Grandes turbulências aconteceriam se o trigo, por exemplo, fosse comercializado
livremente num momento de penúria e fome generalizadas. O livre comércio desse
produto faria a alegria dos especuladores, às custas da infelicidade coletiva.
(Foi o que aconteceu na França pouco antes de 1789, quando Necker deitou por
terra as políticas liberais de Turgot, que ameaçavam matar de fome grandes
setores da população, ao favorecer unilateralmente a exportação de grãos, sem
levar em consideração a fome que grassava no interior do país).
A respeito desse ponto, escrevia Necker:
"(O Governo) pode, nos dias de abundância, considerar os grãos como uma
simples mercadoria, semelhantes a todas aquelas cuja circulação é entregue sem
restrições às especulações dos cultivadores e dos comerciantes. Mas quando a
insuficiência das colheitas no interior e o excesso de demanda nos países
estrangeiros aumentam a inquietude; quando o Governo, pelas suas informações,
considera que o alarme tem fundamento, os grãos não são mais uma simples
mercadoria semelhante a todas as outras. A metamorfose é absoluta, pois eles
convertem-se então em objetos de vigilância, um objeto de polícia e o mais
delicado e o mais sério de todos" [Necker, 1802: II, 461].
O pai de Germaine defendia, portanto, a
intervenção do Estado na economia quando fosse necessário garantir a
distribuição de gêneros de primeira necessidade. Não se trataria de negar a
liberdade econômica, mas de torná-la compatível com o interesse público.
Somente se poderia entender esse tipo de arrazoado, levando em consideração não
apenas os ideais, mas também a realidade concreta. Poderíamos dizer que o
liberalismo de Necker supera o laissez-fairismo
e se abre a um intervencionismo moderado do Estado, com vistas a restabelecer o
equilíbrio no jogo econômico, algo que a doutrina liberal somente iria conhecer
com a contribuição de John Maynard Keynes, na primeira metade do século XX.
Talvez se encontre essa herança na tentativa de formular políticas econômicas
que visam a superar o problema da pobreza, mediante o estímulo à poupança dos
trabalhadores, na linha pretendida por Hebert de Tocqueville e os seus filhos
Hyppolite e Alexis (na conhecida experiência do Banco dos Pobres).
As censuras levantadas contra a política
proposta por Necker muitas vezes somente enxergavam os aspectos teóricos da
questão, frisava o nosso autor, não o conjunto da teoria e das necessidades
concretas. A propósito, escrevia: "Creio (...) que um pequeno número de
críticos tem acusado de inutilidade todas essas precauções. Eles dizem: o
Governo, não intervindo em nada, teria remediado mais facilmente a crise
extremada em que más colheitas teriam eliminado a maior parte da França. Ora, é
fácil se transportar em imaginação ao reino dos resultados hipotéticos da
liberdade perfeita, quando jamais se está disposto a ser desalojado, pela
experiência, dessa torre de marfim. Que Governo, pergunto, poderia se mostrar
indiferente ao clamor popular? Que governo estaria disposto a cochilar em face
da escassez, da penúria de um gênero de primeira necessidade e repassar a
batata quente às combinações do interesse pessoal, às possibilidades
desconhecidas da liberdade?" [Necker, 1802: II, 465-466].
O Governo tem uma importante responsabilidade
em face dos gêneros de primeira necessidade. Ele deve fazer estoques
reguladores a fim de impedir a ação dos especuladores. Deve formular políticas
que estabeleçam bases justas e seguras para a comercialização dos gêneros
alimentícios. A vigilância diuturna do Estado, no que tange ao abastecimento
dos gêneros de primeira necessidade, esse é um assunto estratégico, como a
vigilância das fronteiras, a prevenção da criminalidade, a ágil administração
de justiça e a manutenção das instituições do governo representativo. Necker
elevava as questões da política econômica ao nível de assuntos de Estado. Traço
verdadeiramente atual do estadista francês. A propósito da indelegável responsabilidade
do Estado no terreno da economia, escrevia: "Assim, quanto mais
refletimos, mais nos persuadimos de que, no seio da França, o olhar vigilante
do Governo é de uma necessidade absoluta em face do assunto delicado dos
gêneros de primeira necessidade e mais nos persuadimos de que Legislação
nenhuma pode substituir essa responsabilidade. O Governo possui as qualidades
que o tornam apto para desempenhar uma função tão importante. Somente ele
possui os meios para se guiar de acordo às circunstâncias. Ele permite, depois
de ter proibido; ele proíbe depois de ter permitido; ele pode fixar limites instantâneos e prescrever
limitações passageiras; somente ele pode, enfim, ser o regulador de uma coisa
móvel e variável" [Necker, 1802: II, 471-472].
III - A crítica de Madame de Staël ao absolutismo
napoleônico
A variável política, para Madame de Staël,
era suscetível de duas abordagens: intuitiva e racional. O ponto de partida
seria o primeiro. A nossa autora acreditava numa espécie de "lógica
emocional" que lhe possibilitaria pressentir o rumo dos acontecimentos.
Seria uma espécie de inteligência
sentiente, à maneira zubiriana. A nossa autora vinculava essa modalidade de
conhecimento ao senso comum da
filosofia escocesa. Eis o que afirmava em Dix années d'exil (obra escrita por
Madame de Staël entre 1803 e 1813), quando se aproximava a guinada napoleônica
rumo ao absolutismo imperial: "Eu estava na casa do meu pai em Coppet,
quando soube que o general Bonaparte tinha passado em Lyon regressando do
Egito, e que tinha sido acolhido com entusiasmo. Experimentei nessa notícia uma
impressão de dor que me faria crer nesse instinto do futuro, nessa segunda via
de que falam os Escoceses, e que não pode ser mais do que a luz do sentimento,
independente daquela do raciocínio" [Staël, 1996a: 67].
Esse sentimento, que crescia com o passar do
tempo, era o de uma tirania à espreita, que se aproximava passo a passo,
galgando progressivamente o poder e ameaçando a liberdade e a dignidade moral.
A respeito, escrevia a nossa autora: "Como jamais consegui pensar em
nenhum interesse político desvinculado do amor à liberdade, cada dia eu estava
mais aflita com a revolução de 18 Brumário, cada dia eu apreendia mais um traço
de arrogância ou de astúcia naquele que se apossava gradualmente do poder.
Pensava comigo mesma para tentar combater, na medida do possível, o sentimento
que me dominava, mas ele renascia sempre, apesar de mim. Eu via se aproximar a
tirania ora a passos de lobo, ora com a cabeça erguida, mas parecia-me que de
uma hora para outra estaríamos mais oprimidos e que bem cedo toda a vida moral
estaria encadeada" [Staël, 1996a:
75].
Incomodava particularmente a Madame de Staël
a retórica bonapartista, composta por um discurso populista alicerçado na
ameaça das armas. A Revolução de 1789 tinha nivelado a Nação francesa,
quebrando os elos entre as antigas ordens, e era mais fácil agora ao futuro amo
da Europa tomar posse daquela. Em relação a esse ponto, a nossa autora
escrevia: "A Revolução tinha feito tabula
rasa em face de Bonaparte e ele só tinha raciocínios para combater, espécie
de arma com a qual ele se sentia muito à vontade e à qual ele opunha, quando
lhe convinha, uma espécie de imbróglio veemente, que parecia muito lúcido com o
auxílio das baionetas, nas quais ele poderia se apoiar" [Staël, 1996a:
76].
Não deixava de destacar Madame de Staël a
responsabilidade dos teóricos liberais tradicionais, como o abade Sieyès, autor
do famoso panfleto que fez deslanchar o movimento revolucionário de 1789,
intitulado: Qu'est-ce que le Tiers État? (O que é o Terceiro Estado?)
[cf. Sieyès, 1973]. Ora, eles seriam os diretos responsáveis pela ascensão
napoleônica, tendo lhe servido pronto o arrazoado de que o general e futuro
Primeiro Cônsul necessitava para se firmar no poder absoluto. Em relação a este
ponto, escrevia a nossa autora: "O general Bonaparte tomou bem rápido do
sistema de Sieyès aquilo de que ele precisava, ou seja, a anulação da eleição
de deputados pela nação. Sieyès tinha imaginado listas de elegíveis, nas quais
o Senado poderia escolher os representantes do povo, sob o nome de tribunos e
legisladores. Sem dúvida, Sieyès não tinha pensado nessas instituições para
estabelecer a tirania na França. Ele tinha oposto contrapesos que poderiam
talvez fazê-la balançar, mas Bonaparte, sem se incomodar com os contrapesos,
apoderou-se da palavra decisiva: nada de eleição. A metafísica de Sieyès servia
de véu, ou melhor de cortina de fumaça para ocultar a força positiva que
Bonaparte queria adquirir. Sieyès tinha dito: nada de eleição. Não era pois o
militar, mas o filósofo mesmo que condenava esse direito, o único com ajuda do
qual podemos fazer entrar a opinião pública no governo. São as águas novas que
vivificam este, enquanto que os corpos permanentes se assemelham aos estanques
cujas águas estagnadas podem mais facilmente serem corrompidas. É preciso numa
monarquia e talvez numa república também, que haja magistrados hereditários,
sábios vitalícios, toda uma aristocracia conservadora, mas uma parte do
governo, aquela que aprova os impostos, deve emanar diretamente da nação"
[Staël, 1996a: 76-77].
Chateaubriand sintetizou as críticas que um
intelectual independente poderia endereçar ao regime de Napoleão: ele governava
para a sua glória, não para o seu povo. A sua administração só se preocupava
com números, não com pessoas. Bonaparte teria sido, talvez, a primeira
encarnação do tecnocrata frio, misturado ao guerreiro implacável. A propósito,
frisava Chateaubriand: "A administração de Bonaparte tem sido elogiada: se
a administração consiste em números, se para bem governar é suficiente saber
quanto trigo, quanto vinho, quanto azeite produz uma província, qual é o último
cêntimo que pode ser roubado, o último homem que pode ser preso, certamente
Bonaparte era um excelente administrador. É impossível organizar melhor o mal,
colocar mais ordem na desordem. Mas se a melhor administração é a que deixa o
povo em paz, que alimenta nele sentimentos de justiça e de compaixão, que é
zelosa em preservar o sangue dos homens, que respeita os direitos dos cidadãos,
as propriedades e as famílias, certamente o governo de Bonaparte era o pior de
todos os governos" [Chateaubriand,
1966: 76].
De forma semelhante a Chateaubriand, Madame
de Staël reconhecia um único ponto positivo na administração napoleônica:
aumentou as riquezas da França. Mas a finalidade é que era ruim: para melhor se
apossar do que era de todos! A respeito, escrevia a nossa autora: "O que
havia de evidente era, de longe, a melhora das finanças e a ordem restabelecida
em muitas áreas da administração. Napoleão era obrigado a passar pelo
bem da nação para chegar à desgraça dela. Era preciso que ele juntasse as
forças da nação a fim de melhor se servir delas para a sua ambição
pessoal" [Staël, 1996a: 101]. De
positivo o déspota só tinha a aparência. Se buscava acrescer a riqueza da
França era para melhor roubar os cidadãos mediante o confisco e os impostos
esmagadores. A sua norma de comportamento era a negação da moral e se pautava
unicamente pela vontade de poder esmagando a dignidade das pessoas. "O seu
grande talento consiste em amedrontar os fracos e tirar proveito dos homens
imorais. Quando ele encontra a honestidade em algum lugar, poder-se-ia dizer
que os seus artifícios sofrem um grande desconcerto, como quando o diabo é derrotado
nas suas maquinações mediante o signo da cruz" [Staël, 1996a: 99].
A estratégia bonapartista para a conquista
total do poder seguiu esse imperativo de utilizar a fraqueza ou a falta de
caráter dos outros. Isso se manifestou na forma em que Bonaparte dominou,
durante o Consulado, os dois colegas que junto com ele exerciam o poder, os
Cônsules Cambacérès e Lebrun. A propósito da forma em que cooptou o primeiro,
escrevia Madame de Staël, salientando outrossim a engenhosidade do déspota, que
conseguia pôr a seu serviço a inteligência alheia: "Ele escolheu com
sagacidade notável os dois cônsules que lhe tinham sido dados de presente para
mascarar a sua unidade despótica. Um, Cambacérès, tinha aprendido a se submeter
durante a Convenção. Jurisconsulto de notável erudição, tinha redigido os
decretos arbitrários dos facciosos de forma tão metódica, como se ele tivesse a
pretensão de consolidar a código mais justo e amadurecido. Ele me disse um dia,
conversando comigo: Quando foi proposto
na Convenção e estabelecimento do Tribunal revolucionário, vi em seguida os
males que daí decorreriam e no entanto o decreto foi aprovado por unanimidade.
Ele era então membro da Convenção e contribuiu com o seu sufrágio para essa
mesma unanimidade (...). Bonaparte o identificou em seguida como o seu colega
de trapaças e como o seu instrumento apropriado. Tudo quanto ele buscava e não
cessou de buscar nos homens, é o talento e a ausência de caráter" [Staël,
1996a: 77-78].
Uma vez submetidos os mais diretos
colaboradores na cúpula do poder, só restava ao déspota escravizar o resto da
Nação. Como? De forma semelhante a como Max Weber considerava que se reforça o
poder do governante nos Estados patrimoniais: destruindo sistematicamente todo
sentimento de dignidade presente na sociedade. A respeito, escrevia Madame de
Staël: "O exército político de Bonaparte compunha-se de trânsfugas dos
dois partidos. Uns lhe sacrificavam as suas obrigações para com a família dos
Bourbons e os outros o seu amor à liberdade. Em todos os casos, não deveria
estar presente em seu reinado uma forma independente de pensar, pois ele podia
ser o rei dos interesses, mas jamais o das opiniões e, pela sua situação assim
como pelo seu caráter, ele sufocava ao mesmo tempo tudo que houvesse de nobre
na realeza e na república, pois aviltava ao mesmo tempo nobres e cidadãos.
Quando todo o seu estabelecimento constitucional foi completado, um grande
homem pronunciou acerca dessa ordem de coisas uma dessas palavras que ecoam
pelos séculos afora: É uma monarquia - frisou M. Pitt - à qual só faltam a legitimidade e os limites.
Ele poderia adicionar que não havia monarquia verdadeiramente legítima senão
aquela que tem limites" [Staël, 1996a: 78-79].
Madame de Staël considerava que Napoleão
desenvolveu uma estratégia verdadeiramente moderna - forma mais agressiva de
maquiavelismo - tendo dado ensejo a um processo que contava com cinco
variáveis: 1) cênica ou estetizante (em que o despotismo montava o seu próprio palco, que realçava as figuras
que aceitassem aparecer como atores a serviço do tirano), 2) cultural (que
tinha como finalidade o controle sobre a opinião pública, mediante o
amordaçamento da imprensa e a censura sobre as publicações), 3) política
(mediante o terror policial que esmagava qualquer resistência civil), 4) religiosa
(mediante a submissão da estrutura da Igreja aos seus anseios absolutistas) e
5) imperial (através da submissão imposta às nações estrangeiras, mediante as
guerras de conquista). Essas cinco variáveis foram estudadas por Madame de
Staël na sua obra Dix années d'exil. A nossa autora ergue-se assim, como
precursora da obra de Alexis de Tocqueville, na parte que corresponde à análise
crítica do absolutismo (que o autor de De la démocratie en Amérique desenvolveu
na sua última obra L'Ancien Régime et la Révolution). Destaquemos apenas alguns
exemplos de cada uma das variáveis apontadas.
1)
Variável cênica ou
estetizante.-
A nossa autora considerava que o despotismo napoleônico inseriu-se no complexo
cultural estetizante que já existia no imaginário francês, tornando os atores
políticos comediantes que desempenhavam uma função no palco. O segredo da
teatralidade bonapartista consistiu em democratizar
as expectativas de ter intimidade com o poder, no sentido de que cada cidadão
poder-se-ia considerar apto a ser confidente do déspota. A respeito dessa
manobra culturológica, escrevia Madame de Staël: “Eram distribuídos folhetos
nos quais se dizia que Bonaparte não queria ser nem Monk, nem Cromwell, nem
sequer César, porque esses eram, afirmava-se, papéis já representados, como se
os acontecimentos deste mundo pudessem ser considerados assuntos de tragédia
que não é preciso imitar dos antepassados. Mas o que interessava não era
persuadir realmente, mas sugerir àqueles que queriam ser enganados uma frase
que pudessem repetir a qualquer um. A doutrina de Maquiavel fez tais progressos
na França depois de um certo tempo, que toda a vaidade francesa se transporta
ao terreno da habilidade política. Pode-se colocar a nação toda inteira, por
assim dizer, no segredo da comédia: ela sentir-se-á orgulhosa de se sentir
confidente. Um cabeleireiro dizia, quando Bonaparte tratava com o Papa: Eu não acredito em nada, mas é necessária a
religião para o povo. Cada indivíduo goza ao se considerar parte do embuste
que é feito a todos” [Staël, 1996a: 80].
2)
Variável cultural.- Bonaparte pôs em execução
uma sistemática política de censura à imprensa e às obras literárias. O peso da
repressão desabava, impiedoso, sobre todo aquele que ousasse transgredir, ou
seja, esboçar uma crítica ao déspota e aos seus representantes. Madame de Staël
sofreu em carne própria essa repressão, ao publicar o seu livro De
L’Allemagne. O ditador sabia que a obra da nossa autora não se limitava
ao estudo especulativo do pensamento alemão. O significado desta era muito mais
profundo. Se a alma das nações é a sua cultura, uma obra acerca da cultura
alemã significava que o déspota, ao invadir os principados ao norte do Reno,
não tinha conseguido submeter o espírito altivo desse povo. Daí a sanha com que
a polícia do Imperador destruiu, em
1810, a mencionada obra de Madame de Staël. Em relação à censura imposta
à imprensa, escrevia a nossa autora: “O grande número de jornais que existia na
França foi reduzido, de um momento a outro, a quatorze por uma simples portaria
do Conselho de Estado e, a partir de então, estabeleceu-se esse poder terrível
das folhas periódicas que repetiam todas a mesma coisa cada dia e que não
sofriam a mais mínima sombra de crítica de nenhum gênero. A descoberta da
imprensa passava como a salvaguarda da liberdade, posto que até então jamais
tinha sido vista a serviço da autoridade de um déspota. Mas, assim como as
tropas regulares têm sido bem menos favoráveis que as milícias à independência
européia, seria necessário lamentar a descoberta da imprensa, se daí se
seguissem a subserviência dos jornais e a vigência do princípio de que os
jornalistas deveriam ser empregados e pagos pelo governo” [Staël, 1996a:
82]. O Imperador antecipou-se, aliás, aos grandes comunicadores do século XX,
ao encarar a nação como massa que poderia ser formatada de acordo com as
informações (certas ou erradas, pouco importava), que lhe fossem repetidas dia
e noite. Certamente Bonaparte ficaria ao lado de Goebbels nessa empresa, como o
precursor deste. A respeito deste ponto escreveu a nossa autora: “O sistema de
Bonaparte era avançar mês a mês, passo a passo, na carreira do poder. Ele fazia
espalhar com estardalhaço decisões que gostaria de tomar, a fim de sondar e ir
preparando desse modo a opinião. De ordinário, preferia que se carregasse as
tintas nas decisões que pretendia tomar, a fim de que, quando estas se
tornassem concretas, aparecessem como mais brandas ao público do que se temia”
[Staël, 1996a: 100].
3)
Variável política.- O terror policial foi a
grande arma de que Bonaparte fez uso para quebrar os laços de solidariedade na
França e assim governar absolutamente, sem nenhuma oposição. A nobreza recebeu
um recado quando o Imperador mandou fuzilar, sem prévio aviso, o duque de
Enghien, um dos mais tradicionais representantes da aristocracia. O longo
exílio a que foi submetida nossa autora foi, de outro lado, uma advertência aos
intelectuais provenientes da burguesia. Se a filha de um ministro que foi
adorado pelo povo podia ser banida, ninguém no meio intelectual estaria seguro!
A respeito do despotismo sem limites que se abateu sobre os franceses no
período napoleônico, escreveu Madame de Staël: “Os mais pobres como os mais
ricos, os mais desconhecidos como os mais célebres, as mulheres, as crianças,
os velhos, os sacerdotes, os conscritos tinham alguma coisa a pedir ao novo
governo e essa alguma coisa era a vida, pois não se tratava de dizer: Eu renunciarei em favor de um déspota.
Mas era necessário se resolver a jamais rever a pátria, a não achar a menor
parte das suas posses, se alguém caísse na desgraça do governo, que tinha se
reservado o direito de traçar a sorte de cada um, ou de quase todos os
habitantes da França. Essa situação escusa muito a nação, parece-me, mas ela
coloca a nu o torpe comportamento desses magistrados que, para conservar o seu
cargo, entregaram o destino de todos os seus concidadãos ao Primeiro Cônsul”
[Staël, 1996a: 81].
4)
Variável religiosa.- Neste terreno, como aliás no
concernente à vida política, a estratégia napoleônica consistiu em ir lentamente
colocando a religião na órbita do poder temporal. Ao ensejo da negociação da
Concordata que se seguiu à Constituição de 1800, o Primeiro Cônsul simplesmente
iniciou um processo de cooptação da religião católica, que passou a girar ao
redor dele como mais um sustentáculo do seu poder absoluto. Se dizendo
católico, fez no entanto com que a religião passasse a lhe servir. Já no ato de
coroação do Primeiro Cônsul como Imperador dos Franceses em 1804 ficou clara
essa dimensão de cooptação do elemento religioso, quando na basílica, na
cerimônia religiosa que o sagraria, tirou a coroa das mãos do Papa e a colocou
na própria testa. A propósito dessa cooptação, escreveu a nossa autora: “A
religião tinha ficado na França numa grande anarquia depois da Revolução. O
partido revolucionário a considerava como destruída. O partido aristocrático a
adotava como bandeira e, o que era mais importante, um grande número de pessoas
esclarecidas e golpeadas pelas desgraças da Revolução buscavam reacender os
raios da fé nos seus corações.. O Primeiro Cônsul, que jamais deixou de
considerar nenhuma coisa deste mundo senão em relação a ele, examinou a
religião do ponto de vista da autoridade que ela poderia lhe dar e sobretudo do
obstáculo que ela poderia oferecer, se ele não se impusesse para sufocar
qualquer entusiasmo que ela pudesse fazer nascer. Ele começou pois a negociação
dessa Concordata que deveria socavar lentamente toda religião sincera entre os
homens. Ele percorria neste terreno o mesmo caminho que seguiu em relação aos
reinos que ele quis arruinar. Não os destruiu como poderia fazê-lo, mas deixou
cravado o machado na árvore, a fim de fazê-los morrer com o passar do tempo.
Exatamente isso aconteceu com a religião da forma como ela foi restabelecida
pela Concordata. Era lembrada a ordem nas práticas religiosas como se se
tratasse de um negócio mal administrado. Mas o princípio da religião, ou seja a
sua independência em face do poder temporal, era atacado radicalmente” [Staël,
1996a: 334-335].
5)
Variável imperial.- O projeto napoleônico foi o
de unificar toda a Europa ao seu redor, exercendo sobre os vários países
submetidos uma autoridade de ferro que impedia a expressão das liberdades ou a
manifestação das culturas nacionais. Daí a agressividade do Primeiro Cônsul e
logo do Imperador, em relação a uma mulher escritora que ousava desafiá-lo no
seu poder tirânico, escarafunchando nas fontes da cultura elementos que
poderiam fazer pensar na vitalidade das várias tradições européias, a partir
das quais poder-se-ia acender o fogo do Volkgeist,
do espírito dos povos. O imperador mudou realmente a geografia da Europa, ao
ponto de que, como confessava Madame de Staël, para escapar da sua polícia, era
necessário ir até os confins do Continente, nos limites da Ásia. Eis o
testemunho que dava a nossa autora, em relação à viagem que se viu obrigada a
empreender para fugir da perseguição napoleônica, indo até os confins da
Rússia: “A geografia da Europa napoleônica só se aprende de forma adequada na
desgraça. As voltas que era necessário dar para evitar o seu poder eram já de
quase duas mil léguas e agora, passando pela mesma Viena, era necessário ganhar
o território asiático para escapar por ali” [Staël, 1996a: 242-243].
Em relação aos países dominados, frisava a nossa escritora: “Napoleão possui a
arte de tornar a situação dos países que se consideram a si próprios em paz de
tal forma infeliz, que toda mudança lhes é agradável e que, uma vez forçados a
dar homens e dinheiro à França, não sentem quase o inconveniente de serem
reunidos ao redor dela. Eles se dão mal, no entanto, pois nada há pior do que
perder o nome de nação e, como os males da Europa são causados por um só homem,
é necessário conservar com cuidado aquilo que pode renascer quando ele já não
mais exista” [Staël, 1996: 236]. A nossa autora era consciente do preço que os
seus concidadãos tiveram de pagar para erguer o monumento ao despotismo
napoleônico. A propósito, contava a seguinte anedota: “Alguém me falou certa
vez: Eis tudo restabelecido como antes da
Revolução. – Sim, respondi-lhe, tudo
exceto dois milhões de homens que morreram pela liberdade. Essas palavras
impressionaram um general que as repetiu como se fossem dele. O Primeiro Cônsul
me reconheceu nessa expressão e em algumas outras que foram repetidas pelo
mesmo general, que conversava freqüentemente comigo. Deixando escapar
expressões as mais violentas, ele disse com a sua delicadeza ordinária para com
as mulheres, que ele me faria cortar os cabelos e me trancaria num convento”
[Staël, 1996a: 335-336].
IV - A perfectibilidade humana segundo Madame de
Staël
Seguindo a moda introduzida por d'Alembert,
Madame de Staël utilizou o subtítulo de Discours
Préliminaire na parte inicial da sua obra De la Littérature, para
ressaltar o plano da mesma e as circunstâncias que deram ensejo à sua escrita.
Destaquemos, inicialmente, estas últimas. A nossa autora considerava que a obra
em apreço constituiu para ela um reencontro com o prazer de conversar no seu
salão. O diálogo mundano com os grandes da França, essa seria uma espécie de Sitz im Leben que serviu como pano de
fundo para este escrito. A respeito,
frisava em Dix années d'exil: "Por volta da primavera de 1800
publiquei a minha obra acerca da literatura e o seu sucesso me colocou
totalmente em sintonia com a sociedade; o meu salão voltou a ficar cheio e
reencontrei esse prazer de conversar, e de conversar em Paris que, creio, tem
sido para mim o prazer mais estimulante de todos. No meu livro não havia uma só
palavra sobre Bonaparte e os sentimentos mais liberais estavam ali expressos,
creio eu, com força" [apud Staël, 1998: 14].
Em relação ao plano da obra, Madame de Staël
escrevia no mencionado Discours
Préliminaire: "Tenho me proposto examinar qual é a influência da
religião, dos costumes e das leis sobre a literatura, e qual é a influência da
literatura sobre a religião, os costumes e as leis. Existem, na língua
francesa, sobre a arte de escrever e sobre os princípios do gosto, tratados que
não deixam nada a desejar. Mas, parece-me que não se tem analisado
suficientemente as causas morais e políticas que modificam o espírito da
literatura. Parece-me que não se tem considerado ainda, como as faculdades
humanas se têm desenvolvido gradualmente, graças às obras ilustres de todos os
gêneros, que têm sido escritas desde Homero até os nossos dias" [Staël,
1998: 15].
A nossa autora explicitava, a seguir, o
objetivo da sua obra, colocando-a em relação com o contexto histórico da França
que acabava de sair do ciclo revolucionário de 1789: "Tenho tentado dar
conta da marcha lenta, mas contínua, do espírito humano na filosofia, e dos
seus progressos rápidos, mas interrompidos, nas artes. As obras antigas e
modernas que tratam dos temas da moral, da política ou da ciência, provam
evidentemente os progressos sucessivos do pensamento, depois que a sua história
se torna por nós conhecida. Não acontece a mesma coisa com as belezas poéticas,
que pertencem unicamente à imaginação. Ao observar as diferenças
características que se encontram entre os escritos dos Italianos, dos Ingleses,
dos Alemães e dos Franceses, creio poder demonstrar que as instituições
políticas e religiosas eram responsáveis, em grande parte, por essas
diversidades constantes. Enfim, ao contemplar não só as ruínas, mas também as
esperanças que a revolução francesa, por assim dizer, fundiu no seu bojo, tenho
pensado que importa conhecer qual era o poder que essa revolução exerceu sobre
as luzes e quais os efeitos que um dia poderiam resultar, se fossem sabia e
politicamente combinadas a ordem e a liberdade, a moral e a independência
republicana" [Staël, 1998: 15-16].
O grupo que se formou ao redor de Madame de
Staël em Coppet tentou desenvolver o entusiasmo
liberal, que valorizava as culturas nacionais como a alma a partir da qual
poderiam tomar vida as novas sociedades emergentes das lutas em prol da sua
libertação. Apelo contra o imperialismo napoleônico, certamente, mas também
formulação da tese romântica do Volkgeist.
Paul Petitier sintetizou assim essa feição do grupo chefiado pela nossa autora:
"Estes românticos estão impregnados da filosofia das Luzes e de um
espírito cosmopolita que apregoa a descoberta e a utilização das diversidades
culturais nacionais. Como os historiadores liberais da mesma época, o seu
pensamento está organizado ao redor da idéia de nação e buscam uma literatura
que exprima a nação, a sua história, o estado de sociedade no qual ela se
encontra. A sua reflexão orienta-se ao teatro, gênero literário que, pelo seu
modo de representação, é o que mais diretamente se inscreve nas relações
sociais. Stendhal pensa que ele corresponde aos anseios do público: A nação tem sede da sua tragédia histórica
(Racine e Shakespeare). Benjamin Constant interessou-se suficientemente por
ele como para traduzir o Wallenstein de Schiller e publicar
as Réflexions
sur la tragédie (1829), nas quais sugere que as molas da ordem social
contemporânea podem substituir nas peças modernas a fatalidade dos antigos. O
romantismo liberal se exprime no Le Globe, on no Le Mercure du XIXe. siècle,
que gostaria de insuflar na literatura nova o entusiasmo liberal, essa energia renovada nascida da
Revolução" [Petitier, 1996: 54].
Para Madame de Staël, "os contemporâneos
de uma revolução perdem amiúde todo interesse pela busca da verdade". Não
de outra forma aconteceu na França, com aqueles que viveram as sanguinolentas
jornadas de 1789 e da década do terror jacobino. As revoluções alimentam-se das
baixas paixões humanas. A respeito, frisa nossa autora: "Tantos
acontecimentos decididos pela força, tantos crimes absolvidos pelo sucesso, tantas
virtudes acintosamente desdenhadas pelo cinismo, tantas desgraças injuriadas
pelo poder, tantos sentimentos generosos convertidos em motivo de burla; tantos
vis cálculos hipocritamente tramados; tudo tira a esperança aos homens mais
fiéis ao culto da razão" [Staël, 1998: 17]. Mas eis que, iluminista
incorrigível, a nossa autora conclama todos os espíritos elevados para que
descubram, mesmo nas ruínas da mais sangrenta revolução, os traços subtis que
marcam a marcha ascensional do espírito humano: "Ah, se eu pudesse lembrar
a todos os espíritos esclarecidos o gozo das meditações filosóficas (...). Eles
devem, apesar de tudo, se reanimar ao observar, na história do espírito humano,
que jamais existiu nem um pensamento útil, nem uma verdade profunda que não
tenha encontrado o seu século e os seus admiradores!" [Staël, 1998: 17].
Esse esforço iluminista age, também, como
bálsamo que sara as nossas feridas intelectuais. Fala aqui a mulher desiludida
com um casamento de fachada e que encontra na vida do espírito o motivo para
viver, mesmo renunciando às alegrias domésticas. Há no seguinte texto de Madame
de Staël um tom um tanto estóico: "Enfim, levantemo-nos sobre o peso da
existência, não concedamos aos nossos injustos inimigos, aos nossos amigos
ingratos, o triunfo de terem conseguido abater as nossas faculdades
intelectuais. Aqueles que se contentam com as afecções, renunciam a buscar a
glória: ora, pois, devemos conquistá-la. As tentativas ambiciosas não levarão
remédio à penas da alma, mas enchem a vida de honra. Consagrar a própria
existência à esperança sempre frustrada da felicidade, é torná-la ainda mais
infeliz. Vale mais reunirmos todos os nossos esforços para descer, com alguma
nobreza, com alguma reputação, pelo caminho que conduz da juventude à morte"
[Staël, 1998: 17-18].
Projeto platônico de descoberta de uma
dimensão transcendente à própria finitude da cotidianeidade, a partir do qual
se deitam as bases para uma perspectiva eterna, no universo da cultura,
identificado pela nossa autora como a
glória. Dimensão metafísica que
constitui a mais radical paixão que pode movimentar ao ser humano, como frisava
ela em De l'influence des passions [Madame de Staël apud Kristeva, 2002: 175]: "De todas as paixões às quais é
suscetível o coração humano, nenhuma tem caráter tão dominante quanto o amor da
glória: pode-se encontrar o rastro de seus movimentos na natureza primitiva do
homem, mas é somente no meio da sociedade que esse sentimento adquire sua
verdadeira força. Para merecer o nome de paixão, é preciso que ele absorva
todas as outras afeições da alma, e tanto seus prazeres como suas penas
pertencem ao completo desenvolvimento de sua potência". Essa paixão
pela eternidade produz no ser humano, segundo Madame de Staël, o sentimento
de um "prazer inebriante", que consiste em "preencher o universo
com seu nome, de existir a tal ponto além de si, de ser possível iludir-se
tanto sobre o espaço quanto sobre a duração da vida, e de se crer possuidor de
alguns dos atributos metafísicos do infinito".
Não pode haver glória legítima, no sentir da
nossa autora, que não seja legitimada pela moral. A propósito, frisava: "A
moral fornece os fundamentos sobre os quais a glória pode se levantar e a
literatura, independentemente da sua aliança com a moral, contribui ainda, de
maneira mais direta, à existência dessa glória, nobre estímulo de todas as
virtudes públicas" [Staël, 1998: 25]. Encontramos aqui a essência da
posição romântica: o valor da literatura consiste no seu poder de elevar a
moral de um país.
Diríamos que Madame de Staël propunha o
caminho da virtude (da glória) como a mais elevada forma para atingirmos a
verdadeira felicidade. A finalidade da obra de arte literária consiste em
mostrar esse caminho à sociedade. A propósito, escreveu: "A crítica
literária é amiúde um tratado de moral. Os escritores importantes, ao se
entregarem exclusivamente ao impulso de seu talento, descobrirão o que há de
mais heróico no devotamento, de mais tocante no sacrifício. Estudar a arte de
emocionar os homens, é aprofundar nos segredos da virtude. As obras-chave da
literatura, independentemente dos exemplos que apresentem, produzem um tipo de
sacudida moral e física, uma perturbadora admiração que nos dispõe às ações
generosas (...). A virtude converte-se, então, em um impulso involuntário, um
movimento que percorre o sangue e que nos encadeia irresistivelmente, como as
paixões mais imperiosas" [Staël, 1998: 19]. Eis aí definido o marco conceitual da crítica
literária romântica, que valoriza a arte (à
la Platão) como paideia moralizadora.
A nossa autora arrematava a sua idéia afirmando: "No estado atual da
Europa, os progressos da literatura devem servir ao desenvolvimento de todas as
idéias generosas" [Staël, 1998: 23].
No prefácio à segunda edição de De la
Littérature, a autora deixou claro que não pretendia escrever uma obra
de crítica literária ou de poética. Outros já o teriam feito no seio da
tradição francesa, como Voltaire, Marmontel ou La Harpe. Madame de Staël
destacava da seguinte forma o objeto da obra: "Eu queria mostrar a relação
que existia entre a literatura e as instituições sociais de cada século e de
cada país; e esse trabalho ainda não tinha sido feito em nenhum livro
existente" [Staël, 1998: 2]. A autora explicitava logo qual seria o
caminho a seguir, na busca do seu objetivo: "Eu queria provar, também, que
a razão e a filosofia têm sempre adquirido novas forças através das desgraças
sem número da espécie humana". É como se ela definisse o objeto material da sua pesquisa (sendo
tal objeto a matéria sobre a qual versa o seu estudo), como a análise das
relações entre a literatura e as instituições sociais de cada século e de cada
país, e definisse o objeto formal da mesma pesquisa (o aspecto específico sob o
qual ela vai estudar o seu objeto formal), como a perfectibilidade da razão e da filosofia, na superação das
desgraças sem número da espécie humana.
Em face dos objetos material e formal
propostos, o critério do gosto na
análise das obras literárias ficava curto: "O meu gosto em poesia é pouca
coisa ao lado desses grandes resultados". Poderia acontecer, inclusive,
frisava Madame de Staël, que alguém discordasse em matéria de gosto, mas, ao
mesmo tempo, colocado no contexto dos objetivos traçados, concordasse com ela.
A respeito, escrevia a autora: "Mas essa forma de ser afetada [o critério
do gosto], não possui mais do que relações muito indiretas diante do plano da
minha obra; e aquele que tivesse opiniões totalmente contrárias às minhas
acerca dos prazeres da imaginação, poderia ainda estar inteiramente de acordo
comigo no que tange às aproximações que tenho feito entre o estado político dos
povos e a sua literatura; poderia estar inteiramente de acordo comigo acerca
das observações filosóficas e o encadeamento das idéias que nos têm servido,
para traçar a história dos progressos do pensamento desde Homero até os nossos
dias" [Staël, 1998: 2-3].
Madame de Staël tratava de realizar algo
semelhante ao que tenta, hodiernamente, V. S. Naipaul, nas suas obras Entre
os fiéis, Além da fé e The Loss of El Dorado [cf. Naipaul,
1999, 2001a, 2001b], ao estudar as sociedades islâmicas do ponto de vista das
relações entre instituições religiosas e políticas. (Para flagrar, neste caso,
as idéias de intolerância em face dos infiéis e de manutenção de uma sociedade
de corte patriarcal, quando se trata de organizar as estruturas sociais. O
elemento inspirador seria, aqui, a tradição corânica).
A nossa autora considerava que forma parte da
perfectibilidade do espírito humano a criação de novos estilos literários. Mas
condicionava a validade destes a dois fatores: em primeiro lugar, que não
caíssem na vulgaridade (caracterizada como pouca elegância nas imagens e falta
de delicadeza na expressão); em segundo lugar, que respeitassem o talento (que
é definido como "saber preservar os verdadeiros mandamentos do
gosto"). Para que se realizassem essas condições, deveria ser introduzido
na literatura nacional "tudo que há de belo, de sublime, de tocante na
natureza sombria que os escritores do Norte têm sabido pintar" [Staël,
1998: 6]. Ora, Madame de Staël achava que somente poderia criar um novo estilo
aquele que conhecesse "perfeitamente as obras clássicas do século de Luís
XIV". Não se trataria, contudo, de matar a criatividade, erguendo esse
século como paradigma a ser imitado. "Renunciaríamos a possuir doravante
na França grandes homens na carreira da literatura, se desprezássemos de
entrada tudo quanto pode conduzir a um novo gênero, a abrir uma rota nova ao
espírito humano, a oferecer enfim um futuro ao pensamento. Este perderia de
entrada toda emulação se lhe apresentássemos sempre o século de Luís XIV como
um modelo de perfeição, além do qual escritor eloqüente nenhum ou pensador
nenhum se pudesse levantar" [Staël, 1998: 6].
A perfectibilidade
do espírito humano, no entanto, parece que se manifesta clara, segundo
Madame de Staël, na evolução do pensamento filosófico. Esse aperfeiçoamento,
porém, não seria apreciável nas artes da imaginação. Ao passo que os gregos nos
legaram "a maior parte das invenções poéticas", isso contudo não aconteceu
no terreno do pensamento. A respeito dessa manifestação filosófica da perfectibilidade humana, frisa Madame de
Staël: "O sistema da perfectibilidade
da espécie humana tem sido o de todos os filósofos esclarecidos nos últimos
cinqüenta anos; eles o têm defendido sob todas as formas de governo possível.
Os professores escoceses, Fergusson em particular, têm desenvolvido esse
sistema sob a monarquia livre da Grã Bretanha. Kant o defende sob o regime
ainda feudal da Alemanha. Turgot o tem professado sob o governo arbitrário, mas
moderado, do último reinado; e Condorcet, na proscrição em que tinha sido
jogado pela sanguinária tirania que o deveria fazer desesperar da república,
Condorcet, no cúmulo do infortúnio, escreveu ainda em favor da perfectibilidade da espécie humana.
Tanto os espíritos pensantes têm dado (tal) importância a este sistema, que
promete aos homens neste mundo alguns dos benefícios de uma vida imortal, um
porvir sem sombras, uma continuidade sem interrupção!" [Staël, 1998: 8-9].
O sistema da perfectibilidade do espírito humano abarca o progresso das
ciências, da razão humana, da moral e da política das nações. "Ao
descobrir a bússola, frisava nossa autora, foi descoberto o Novo Mundo e a
Europa moral e política tem, depois disso, experimentado mudanças notáveis. A
imprensa é uma descoberta das ciências. Se dominássemos algum dia a navegação
aérea, como seriam diferentes as relações da sociedade!" [Staël, 1998:
10-11]
A idéia de progresso, segundo Madame de
Staël, deve abarcar todo o âmbito das
realidades humanas: no terreno científico, no moral e no político. E o grande
inimigo da Humanidade é a superstição. Ela é, a longo prazo,
"irreconciliável com os progressos das ciências positivas. Os erros de
todo tipo se retificam sucessivamente pelo espírito de cálculo. enfim, como se
pode imaginar que coloquemos as ciências de tal forma fora do pensamento, que a
razão humana não sinta os efeitos dos imensos progressos que se conseguem cada
dia, na arte de observar e de dirigir a natureza física? As luzes da experiência
e da observação não existem também na ordem moral e não dão elas também útil
ajuda aos desenvolvimentos sucessivos de todos os gêneros de reflexões? Diria
mais: que os progressos das ciências tornam necessários os progressos da moral.
Pois, aumentando o poder do homem, é preciso fortalecer o freio que lhe impede
de abusar daquele. Os progressos das ciências tornam necessários os progressos
da política. Precisamos de um governo mais esclarecido, que respeite
previamente a opinião pública, no meio das nações onde as luzes se estendem
cada dia . E embora possamos sempre opor os desastres de alguns anos aos
arrazoados que se alicerçam nos séculos, não é menos verdadeiro que país nenhum
da Europa suportaria, hoje, a longa sucessão de tiranias baixas e ferozes que
têm castigado aos Romanos. É necessário, além do mais, distinguir entre a perfectibilidade da espécie humana e a
do espírito humano. Uma se manifesta mais claramente do que a outra. Toda vez
que uma nação nova, como a América, a Rússia, etc., faz progressos em direção à civilização, a
espécie humana se aperfeiçoa; cada vez que uma classe inferior sai da
escravidão ou do aviltamento, a espécie humana ainda se aperfeiçoa. As luzes
ganham evidentemente em extensão, mesmo quando se trata ainda de questionar que
elas cresçam em elevação e profundidade" [Staël, 1998: 11-12].
A fim de ver garantido num determinado país,
como a França, o triunfo do progresso, a nossa autora considerava ser
necessário que os espíritos ilustrados se unissem, de forma semelhante a como
os maus elementos da sociedade se apoiam mutuamente nos seus negócios escusos.
Se viva fosse nos dias atuais, a ensaista francesa conclamaria a sociedade
civil a se associar contra o crime organizado. Madame de Staël pensava, sem
dúvida, na experiência suscitada e dirigida por ela no castelo de Coppet, onde
ocorreu o primeiro grande encontro intercultural da Europa, que possibilitou a
explicitação do conceito de nação como unidade espiritual, sobre um pano de
fundo de intercâmbio cultural e de tolerância religiosa, alheio ao projeto
absolutista de unificação unidimensional dos espíritos sob a batuta
napoleônica. Como frisa com propriedade Michel Delon, na introdução da
coletânea organizada por ele e por Françoise Mélonio acerca dos colóquios de agregação na Universidade de Paris-Sorbonne
sobre a nossa autora, "Madame de Staël e os seus amigos liberais buscam
lutar, com os seus meios limitados, contra uma unificação cultural do
continente e contra a negação autoritária da herança parlamentar da
Revolução" [Delon, 2000: 6].
A propósito dessa empresa de cultura que
constituía uma República das Letras,
frisava a nossa autora: "Por que os espíritos distinguidos, qualquer que
seja a carreira que sigam, não juntam os seus esforços para defenderem todas as
idéias que, neles, possuem grandeza e elevação? Não vêm eles, por acaso, que
por todos os lados os sentimentos mais vis, a avidez mais rastejante se
apoderam cada dia de mais um caráter, e degradam cada dia alguns homens sobre
os quais eles tinham feito repousar a sua estima? Que restará ainda aos que se
preocupam pelos progressos do pensamento? (...). A filosofia é atacada; bem
cedo sentirão falta dela; bem cedo reconhecerão que, degradando o espírito,
afrouxam a mola da alma que faz amar a poesia, que faz partilhar o seu generoso
entusiasmo. Se todos os vícios se coadunam, todos os talentos dever-se-iam
aproximar. Se estes se reunissem, fariam triunfar o mérito pessoal. Pelo
contrário, se eles se atacam entre si, os arrivistas, felizes, ocuparão os primeiros
lugares e tornarão piada todos os sentimentos desinteressados, o amor à
verdade, a ambição da glória, a sadia emulação que inspira a esperança de ser
útil aos homens e de aperfeiçoar a sua razão" [Staël, 1998: 12-13].
O amor à pátria, sendo uma questão social,
precisa ser construído e a literatura, bem como a imprensa, seriam, no sentir
da nossa autora, os instrumentos ideais para conseguir esse resultado. a
respeito, frisava Madame de Staël: "O amor da pátria é uma afeção
puramente social. O homem, criado pela natureza para as relações domésticas,
não leva a sua ambição além desse limite, senão graças à irresistível atração
da estima geral; e é sobre essa estima, formada pela opinião, que o talento de
escrever tem a maior influência. Em Atenas, em Roma, nas cidades dominadoras do
mundo civilizado, falando na praça pública, podia se dispor das vontades de um
povo e da sorte de todos; nos nossos dias, é pela leitura que os acontecimentos
se preparam e os juízos se esclarecem" [Staël, 1998: 24-25].
Julia Kristeva enxerga nessa idéia da nossa
autora um traço marcante de contemporaneidade. A propósito, escreve:
"Lembremos que nossa democrata não conhece o totalitarismo nem a força da
mídia. Estamos ainda longe de Hannah Arendt, e no entanto já está lançado sobre
os séculos um elo entre as duas filósofas. Paralelamente ao Terror, Madame de
Staël observa aquilo que de fato deve ser chamado de novas mídias da época: ela é sensível, após a invenção da arte
tipográfica, à liberdade de imprensa
e à multiplicidade dos jornais.
Fontes de liberdade e de informação necessária e indispensável, esses fenômenos
que a cada dia tornam público o
pensamento da véspera também fazem com que seja quase impossível existir num tal país o que se chama de glória. Não
mais mestres do pensar, já
então!" [Kristeva, 2002: 177].
Estão lançadas, aqui, as bases do liberalismo
doutrinário, que une, numa síntese indissociável, meditação diuturna sobre o
homem e a sociedade, criação literária e compromisso moral com a defesa da
liberdade e da democracia, mediante a divulgação das verdades hauridas no
universo da cultura através da imprensa e da tribuna parlamentar. Síntese que
aparece no pensamento de outro precursor do liberalismo doutrinário, Benjamin
Constant, diretamente influenciado aliás por Madame de Staël. Síntese de que
serão portadores homens como Guizot, e
de que se tornarão herdeiros, para além do limite dos doutrinários propriamente tais, Tocqueville e Aron.
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