Se o lulopetismo e sua pouco mais de
uma década de domínio apresentam especificidades destrutivas da moral e da
sanidade institucional do país, ele não seria possível, como realidade
histórica, não fossem os antecedentes que estabeleceram a nossa cultura
política e a nossa lógica de organização de Estado. Reunindo ensaios e artigos
publicados pelo Portal Defesa da Universidade Federal de Juiz de Fora, o novo
livro do professor Ricardo Vélez-Rodríguez é uma síntese dessa tragédia que é,
ao mesmo tempo, muito peculiar do nosso atual momento histórico, e consequência
de um legado secular de opções equivocadas.
A Grande Mentira: Lula e o
patrimonialismo petista traça
uma avaliação do ciclo de governos do PT, insere suas características no
contexto da revivescência do populismo na América Latina – sob a retórica
belicista do “socialismo do século XXI”, inspirado simbolicamente na ilha de
Cuba e na Venezuela chavista -, confere destaque ao aspecto das políticas
educacionais e sua relação com a atmosfera da cultura, compara o caso
brasileiro com o caso russo e posiciona nosso país no cenário do combate global
ao terrorismo dos extremistas islâmicos. Em resumo, Vélez traça um amplo
diagnóstico da crise que vivemos hoje, e nossos espíritos mais liberais tanto
anseiam por ver eliminada. Nesse encalço, ganhamos muito ao podermos lançar-lhe
um golpe de vista e sermos capazes de compreender sua natureza e formação; a
obra do professor é uma didática introdução a esse entendimento.
Aqueles que já conhecerem a produção
prévia do professor reconhecerão a centralidade que ele confere ao conceito de
patrimonialismo, já desenvolvido, por exemplo, no opúsculo publicado pelo Instituto Liberal,Patrimonialismo
e a realidade latino-americana,
baseado em autores como Max Weber (1846-1920) e Karl Wittfogel (1896-1988),
aqui também citados, a partir dos quais se pode definí-lo como “aquela forma de
dominação tradicional em que o soberano organiza o poder político de forma
análoga ao seu poder doméstico”. Essa confusão entre os interesses
particulares, as esferas domésticas da classe política, e a esfera estatal, que
se fortalece quanto mais se afrouxam além do razoável os limites desta última,
é um problema que nos acompanha desde o início de nossa história, como Vélez
volta a apontar neste livro.
Pelas páginas de A Grande
Mentira, Vélez também vai passear brevemente pela modernização
centralizadora e cientificista inspirada no pombalismo da época colonial, pelo
autoritarismo do Positivismo e do Castilhismo, pela ditadura burocrática do
varguismo, pela tecnocracia do regime militar e pela classe
nacional-desenvolvimentista da Constituinte de 1988. Esse substrato, que
apequena a dimensão da sociedade civil e dos indivíduos na mobilização de
vitalidade democrática e agiganta a figura do tutor, encastelado no Estado, foi
mantido sob diversas cores, diversas retóricas ideológicas, diversos nomes e
oligarquias. No entanto, surgindo como novidade, o Partido dos Trabalhadores,
cuja origem e mentiras Vélez identifica e desnuda, apareceu propondo a si mesmo
como a alternativa que demoliria o patrimonialismo e derrubaria os corruptos
poderosos. Diziam-se, Lula e seus consortes, proponentes de uma grande mudança,
que nos levaria a uma sociedade mais justa e funcional. Conforme a própria
orelha do livro destaca, “muita gente acreditava, há treze anos, em soluções
messiânicas. E Lula se ajustou perfeitamente a esta conjuntura, com a sua
pregação salvacionista e a índole doutrinário-redentora do PT, que apregoava,
aos quatro cantos, o reino da virtude”. A dolorosa realidade, travestida pelo
sucesso econômico inicial resultante da conjuntura internacional favorável e da
manutenção estratégica da orientação econômica dos governos tucanos, se fez
sentir, através do aparelhamento de Estado, do desprezo pela lei de
responsabilidade fiscal, dos gastos despudorados que Vélez destaca em seu
trabalho.
Com uma riqueza notável de
referências e indicações bibliográficas, o professor apresenta o PT empregando
o que Jarbas Vasconcelos definiu como “o maior programa de compra de votos do mundo”,
através da bolsa-família, uma adaptação piorada do bolsa-escola desfraldado por
Fernando Henrique, e do incremento avassalador que deu a tudo aquilo que dizia
combater. Aliando-se, por conchavos e acordos obscuros, às oligarquias que
prometeu enfrentar, o PT, como enfatiza trecho selecionado para a própria
contracapa do livro, “conseguiu potencializar as raízes da violência, que já
estavam presentes na formação patrimonialista do nosso Estado e que se
reforçaram com o narcotráfico, mediante a disseminação, ao longo dos últimos
treze anos, de uma perniciosa ideologia que já vinha inspirando a ação política
do Partido dos Trabalhadores, a ‘revolução cultural gramsciana’”.
O último conceito, o da revolução gramsciana, é o segundo grande mote da compilação de Vélez,
ao lado do patrimonialismo. Representa, através de sua proposta da ocupação de
esferas culturais, de universidades, de meios de comunicação, de cooptação de
artistas, em busca de uma hegemonia que forneça suporte simbólico aos seus
projetos de poder, um dos incrementos que a dimensão socialista do PT
acrescentou ao que já era ruim, investindo em segregação, compartimentação da
sociedade em grupos separados por abismos apenas em função da cor de pele ou
das condições financeiras, em um discurso de hostilização ao divergente.
No entanto, de par com seu sombrio
diagnóstico, o professor não deixa de vislumbrar uma porta de esperança no
trabalho de instituições como o nosso Instituto Liberal, o Instituto Mises
Brasil e o Instituto Millenium, citados nominalmente na obra, e no despertar de
um “progressivo movimento de grupos e de pessoas tendente à formulação de novas
propostas políticas que nos libertem da onda de desfaçatez e cinismo
totalitário da petralhada”, o que teve uma face visível nas enormes
manifestações de 2015. Uma foto de uma dessas manifestações, aliás, ilustra o
livro, e a capa também é uma alusão criativa aos
inesquecíveis e geniais “panelaços”.
O professor Vélez sabe que “a
democracia, certamente, não cai do céu. Precisamos construí-la. Diante do
desgoverno destes treze anos, devemos sacudir o pó e nos reerguer com coragem,
para enfrentarmos a tarefa de pensar o Brasil da próxima geração, a fim de
reconquistarmos a dignidade perdida fazendo o dever de casa”. Precisaremos,
acrescenta ele, de uma reforma política verdadeira, que nos conceda condições
mínimas de desenvolvimento, que resolva nossa crise de representatividade, que
dispa a casta burocrática de seus privilégios patrimoniais e incentive a autonomia
e a consciência cívica e participativa nos brasileiros.
Para isso, mãos à obra! E para pôr as
mãos à obra, antes, repetimos, é preciso compreender o cenário sobre o qual nos
lançaremos ao trabalho árduo. Se o leitor já conhece o trabalho do professor
Vélez e já entende o cenário de degradação produzido pelo PT, o novo livro é
mais uma forma de organizar as ideias com limpidez. Caso contrário, ou caso o
leitor conheça alguém que ainda se encontra perdido nesse mar tempestuoso, este
livro é uma boa forma de começar a entender o que está acontecendo.
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