Benjamin Constant de Rebecque, o pensador suíço-francês precursor do Liberalismo Doutrinário.
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Capa da obra de Ricardo Vélez Rodríguez sobre o Liberalismo Francês e a sua influência no Brasil (Edição digital do Instituto de Humanidades). |
Se houve um autor que influenciou no
surgimento das instituições brasileiras no início do século XIX, esse foi
Benjamin Constant. O seu pensamento foi o arquétipo que serviu de inspiração ao
nosso mais importante pensador político do período, Silvestre Pinheiro
Ferreira. Efetivamente, a doutrina liberal de Constant antecipou-se à discussão
dos grandes problemas com que se defrontou o Império do Brasil, na tentativa de
efetivar a consolidação do Estado nacional. Temas como a representação, o
controle moral ao poder, a limitação da soberania popular, a monarquia como
poder neutro, os direitos
inalienáveis de cidadão à vida, à liberdade e às posses, o sentido da moderna
democracia, foram objeto da análise do pensador francês. As suas teses, aliás,
ao mesmo tempo que inspiraram a Silvestre Pinheiro Ferreira e aos estadistas do
Império, continuam tendo rara atualidade, como frisa um dos seus mais
importantes estudiosos contemporâneos, Tzvetan Todorov.
Essa atualidade é paradoxal, pois emerge
justamente da impossibilidade de aplicar, de forma total, a concepção de
Constant ao mundo da política real. "Mas é precisamente pelo seu excesso e
a sua impossível adaptação ao mundo moderno, frisa Todorov [1997b: 17-18], que
o pensamento constantiniano permanece interessante e forte. Ele questiona um
processo no momento mesmo em que ele vai se impor definitivamente. Constant
levanta premonitoriamente o espantalho do Leviatã incontrolável. Certamente não
é possível colocar toda a sua teoria em prática. Mas ela pode servir como
instrumento para medir o que resta de liberdade nas nossas sociedades modernas.
Entre o Estado anoréxico e o Estado bulímico, qual preferimos? A partir de que
momento um governo ultrapassa as suas prerrogativas? O liberalismo
constantiniano oferece uma grade de análise ou um paradigma, mais do que uma
série de receitas. Aplicáveis? No sentido estrito dos seus princípios não o
são, embora menos hoje do que no início do século XIX. Mas esses princípios
deveriam ressoar na nossa consciência cívica, pois os mecanismos devoradores no
seio de todos os poderes permanecem, eles ao menos, sempre atuais".
Constant, junto com Madame de Staël, foi o
precursor dos liberais doutrinários
na França. A sua meditação trilhou o caminho de moderação e de construção das
instituições do governo representativo, que caracterizaria aos demais liberais
franceses ao longo do século XIX. Mas o ponto central da reflexão e da pregação
política do nosso autor foi a sua decisiva defesa da liberdade, num meio, como
o da França pós-revolucionária, que custava a fazer uma opção por esse ideal.
Acerca da marca deixada por ele no seio da cultura política francesa, eis o
que, em 1872, escrevia Édouard Laboulaye no prólogo à segunda edição do
Cours de Politique Constitutionnelle de Constant [Laboulaye, 1872: vol
I, I-II]:
"Em 1872, como em 1861, sob a República
provisória como sob o Império, a França busca as condições da verdadeira
liberdade. Ela quer fundar um governo que garanta a paz pública, dando uma
sólida garantia a todos os interesses, a todos os direitos. Acerca de todos
esses pontos encontrar-se-ão em Benjamin Constant soluções decisivas e
confirmadas por uma experiência de cinqüenta anos. Inimigo do arbítrio e da
violência sob todos os regimes, Benjamin Constant converteu-se no mestre da
ciência política para os amigos da liberdade. O seu Curso de Política Constitucional
é o manual mais completo, o guia mais seguro para o estudante, o publicista, o
legislador. Na escola de Benjamin Constant sempre se aprende. Ninguém pode se
afastar impunemente dela. O tempo consagrou o equilíbrio das suas idéias. Ele
cresceu e crescerá ainda mais na estima dos homens, porque sempre defendeu a
justiça, a moderação, a verdade. Nestes tempos sentimos grande necessidade das
suas lições e ouso dizer que jamais a publicação dos seus escritos chegou em
melhor momento. Tomara que possamos aproveitar os seus conselhos e atingir
enfim essa terra prometida que sempre nos escapa!".
Constant, como Madame de Staël, encarnou um
outro aspecto que seria caraterístico dos doutrinários:
ser testemunha da razão contra a opressão. O nosso autor apregoava a
utilização, na defesa da liberdade e das luzes, de todos os meios de que a
civilização poderia fazer uso para multiplicar o alcance da sua voz. No caso
concreto dos intelectuais do século XIX, tratava-se de utilizar sobretudo a
imprensa. Eis o que Constant escrevia acerca da missão esclarecedora que tinham
os intelectuais (chamados por ele de missionários),
na defesa da liberdade contra a opressão, na obra De l'esprit de conquête et de
l'usurpation: "Por mais ativa que seja a inquisição, quaisquer que
sejam as suas precauções, os homens esclarecidos conservam sempre mil meios
para se fazerem entender. O despotismo somente vinga quando a razão se estiola
na sua infância; então ele pode frear o progresso da espécie humana e mantê-la
refém de uma duradoura imbecilidade. Mas, quando a razão é posta em marcha, ela
se torna invencível. Somente há um momento para proscrevé-la com sucesso;
passado esse momento, todos os esforços são vãos. Uma vez iniciada a luta
intelectual, a opinião se separa do poder e a verdade clareia em todos os
espíritos. Missionários dessa verdade eterna, se o caminho for interceptado,
renovai os esforços, redobrai o zelo. Que a luz apareça em todas partes!
Apagada, que ela brilhe de novo! Afastada, que ela volte! Que ela se reproduza,
se multiplique, se transforme! Que ela seja tão infatigável quanto a
perseguição! Que uns marchem com
coragem! Que outros se introduzam com habilidade! Que a verdade se expanda, tanto apregoada
alto e bom som, quanto repetida em voz baixa! Que todas as razões se coadunem,
que todas as esperanças se reanimem, que todos trabalhem, que todos sirvam, que
todos vigiem. Não há prescrição para as idéias úteis, diz um homem ilustre
(Necker); não há pois prescrição para a liberdade" [Constant,
1986: 230-231].
Mas essa missão de ilustrar que os
intelectuais têm, deveria estar vinculada, segundo Constant, à inserção
corajosa e real deles na vida pública. O doutrinário
não poderia ser jamais um homem de gabinete, um philosophe trancafiado na sua torre de marfim. O intelectual que iria transformar as
instituições deveria se inserir na corrente do poder para, a partir dela,
civilizá-la. Emerge aqui um aspecto importante, que será retomado pela tradição
doutrinária e que chegará até os nossos dias na meditação de Aron: o ideal de intelectual engajado. Eis a forma em que
Todorov ilustra esse importante aspecto da meditação constantiniana:
"Constant, e aí reside uma das suas grandes originalidades, não quer
renunciar a nenhuma dessas duas vias (a teórica, inspirada em Rousseau e a
histórica, tributária de Montesquieu). A sua reflexão não é deduzida a partir
de postulados abstratos; melhor, tendo ele mesmo participado da vida política,
busca teorizar o real vivido. Não haverá pois lugar nele para essas ficções que
Rousseau considerava úteis, o estado de natureza ou o contrato social. A
história é aqui objeto de pensamento, não repertório de exemplos. Mas não se
trata, no entanto, de renunciar aqui aos princípios:
só num certo nível de abstração, pensa Constant, o debate será fecundo; e o seu
livro (Principes de Politique) não é um programa de ação política, mas
uma meditação que permite compreender e julgar o mundo. Não a teoria de um lado
e a prática de outro; mas uma prática teorizada, uma teoria submetida
constantemente ao teste do real. Constant não é daqueles que se deixam inebriar
pelas palavras. A história e os princípios intemporais devem pois permanecer
presentes, ambos, o que nem sempre é fácil. Mas algumas das idéias mais
fecundas de Constant, como aquela do seu
célebre confronto entre a liberdade dos Antigos e a dos Modernos, levam consigo
esse confronto" [Todorov, 1997b: 6].
Em que pese a atualidade do pensamento de
Constant, várias razões explicam o fato de a sua obra ter sido apenas
redescoberta, na França, em 1980. Tais motivos seriam, entre outros, os
seguintes: o caráter pouco sistemático dos seus escritos, a agitada vida que
levou o nosso autor e a particular evolução seguida pelas instituições
francesas ao longo do século XIX (cada vez menos inspiradas nos princípios
liberais e cada vez mais próximas do estatismo). Tzvetan Todorov [1997b: 9-19]
adiciona mais um motivo para o fato de a obra de Constant ter passado
despercebida do público leitor: o seu estilo não é grandiloqüente, ele é de uma
claridade que o torna quase um professor, ao mesmo tempo que um confidente do
homem de hoje. Para um século XIX acostumado aos arroubos dos heróis
românticos, e para um século XX polarizado pelas grandes marchas e
contramarchas das ideologias, convenhamos que o estilo do nosso autor é muito
pouco empolgante. Talvez o fato de, no final do século XX, ter a atenção dos editores
se voltado progressivamente para a história da vida privada, levou-os a
valorizar, no seu devido peso, uma obra escrita a partir das expectativas do
indivíduo. Constant fala para o homem do final do século XX, para o cidadão que
desconfia das grandes soluções ideológicas, para o pagador de impostos que se
preocupa com o tamanho do Estado e que viu de perto, nos totalitarismos, o
perigo do poder exercido sem freio moral.
Um libertário. A atualidade de Constant
justamente decorre dessa sua defesa incondicional da liberdade contra o
estatismo. A propósito deste aspecto, escreve Todorov [1997b: 16-17]: "A
teoria constantiniana da limitação do poder representa a última etapa antes do
anarquismo. O salário estatal se converte no mínimo possível antes da sua
extinção. Os únicos domínios que o autor reconhece à autoridade pública são a
segurança (exército), a ordem (polícia) e os recursos necessários para pagar
essas duas funções vitais (impostos). O exército e a polícia devem, por sua
vez, serem reduzidos, para evitar que se possam converter no instrumento do
abuso estatizante. Constant enxerga no Estado uma espécie de hidra cujas
cabeças, tão logo são cortadas, ressurgem com mais força ainda; o poder segue
por uma pendente natural em direção ao seu alargamento infinito e prejudicial.
A metáfora da torrente é recorrente, contra a qual os diques e os tapumes nunca
serão resistentes o bastante, segundo o autor. Que barreiras suficientemente
sólidas podem ser previstas contra o agigantamento da onda estatizante?
Constant responde: a opinião e as garantias constitucionais. Quanto mais
limitada for a parte do poder, mais fácil é o seu controle, mais eficaz também
o peso da opinião. Isso pode parecer ridículo, mas Constant tem, por assim
dizê-lo, fé na força das idéias e,
consequentemente, do escritor como eminência
parda do poder".
Desenvolverei cinco itens, a saber: I -
Perfil bio-bibliográfico de Benjamin Constant; II - Benjamin Constant, defensor
liberal da França pós-revolucionária; III - O conceito de soberania popular
limitada e a crítica de Constant ao democratismo rousseauniano; IV - O poder
monárquico, segundo Constant; V - A herança de Benjamin Constant na teoria da
representação de Silvestre Pinheiro Ferreira.
I - PERFIL BIO-BIBLIOGRÁFICO DE CONSTANT DE REBECQUE
O
grande publicista e orador nasceu em Lausanne (Suíça), em 25 de outubro
de 1767 e morreu em 10 de dezembro de 1830, poucos meses depois de ter tido
começo o reinado de Luís Filipe. Pertencia a uma família de protestantes
franceses originária da região de L'Artois, que tinha buscado refúgio na Suíça,
na região de Vaud, quando da revogação do Edito de Nantes. Os antepassados de
Constant de Rebecque converteram-se ao protestantismo no século XVI e
destacaram-se pelas suas dotes literárias e por terem se devotado ao serviço
público antecipando, assim, um traço marcante dos doutrinários franceses, que valorizavam sobremaneira a vida
intelectual posta a serviço da administração pública e da educação para a
cidadania.
O bisavô paterno de Benjamin, David Constant
de Rebecque (1628-1733) foi professor de teologia e pastor na localidade suíça
de Coppet, perto de Lausanne. Deixou escritas duas obras, L'Âme du monde ou Traité de la Providence (publicada
em Leyde, em 1679) e Abrégé de Politique (publicado em
Colônia, em 1686). Este último livro foi muito elogiado por Pierre Bayle. David
teve três filhos: Marc Rodolphe, que entrou desde jovem ao serviço do governo
da Holanda e chegou a desempenhar o cargo de secretário de gabinete do rei
Guilherme. O filho mais novo, Samuel, nascido por volta de 1676, conhecido como
Barão de Constant, foi ajudante de ordens de Lorde Albemarle e teve destacada
atuação na guerra da Espanha.
O filho mais novo de Samuel Constant e pai de
Benjamin, recebeu também o nome de Samuel. Nasceu em 1729 em Lausanne, tendo
falecido em 1800. Foi literato mas também abraçou, como o pai, a carreira das
armas, tendo desempenhado o cargo de coronel num regimento suíço a serviço dos
Estados Gerais da Holanda.. Conheceu Voltaire, de quem se tornou amigo e
escreveu obras de caráter diverso. Em 1792 participou como soldado da defesa de
Genebra, apesar da sua avançada idade. Algumas das suas obras são as seguintes:
Instructions
de morale à l'usage des enfants qui commencent à parler (Londres,
1785); Camille ou Lettres de deux filles de ce siècle (Paris, 1785); Laure
de Germosan ou Lettres de quelques personnes de Suisse (Paris, 1787): Recueil
de pièces dialoguées ou Guenilles dramatiques ramassées dans une petite ville
de Suisse (Paris, 1787).
Constant de Rebecque foi educado por
preceptores. Tendo perdido a mãe ao nascer, o nosso autor "viu-se privado,
frisa Larousse [1865: 1016], desses tenros afetos da infância que nada pode
substituir jamais, e que são necessários para domar o orgulho e o individualismo
da personalidade". De inteligência muito viva, fez rápidos progressos nos
seus estudos. Aos doze anos era considerado como uma criança prodígio, ao mesmo
tempo inteligente, cativante, indócil e auto-suficiente. Testemunho da sua
indocilidade e do seu brilho intelectual dá ele próprio, numa curiosa anedota
em que o nosso autor informava acerca do método pedagógico utilizado por um dos
seus mestres par instruí-lo, embora a isso se opusesse o irrequieto
adolescente: "Ele me propôs, frisa Constant, de inventarmos, nós dois, uma
língua que só nós conhecêssemos. Eu me apaixonei por essa idéia. Os dois
(pusemos) mãos à obra, criando sucessivamente um alfabeto, um dicionário, uma
gramática, etc. O trabalho avançava rapidamente e bem cedo essa língua desconhecida
encontrava-se completa, rica, harmoniosa e com uma grandiosidade que faria
palidecer todos os idiomas vulgares. Essa língua era o grego. (...) (Eu) a
tinha aprendido achando que a inventara!" [apud Larousse, 1865: 1016].
O nosso autor deu continuidade aos seus
estudos na Universidade de Oxford e depois em Erlangen, na Alemanha, onde
freqüentou a pequena corte do margrave de Baireuth. Por último, transladou-se a
Edimburgo, em cuja Universidade foi discípulo de Adam Smith. Em 1787 fixou
residência em Paris, onde dedicou-se à vida boêmia, tendo-se tornado conhecido
de importantes figuras da política e da cultura da época, como Suard (em cuja
casa se hospedou), Morellet, La Harpe, Marmontel, etc. Ressaltando as
caraterísticas marcantes da sua personalidade intelectual, visíveis já nesta
época da sua vida, escreveu Larousse [1865: 1016]: "Um pouco whig, um pouco idealista, mas sobretudo
filósofo da escola francesa, conservou ao longo da sua vida a marca de uma
educação fecundada por várias fontes e influenciada pelas suas primeiras
experiências. Dotado de um espírito engenhoso e vivo, ágil, cético, volúvel,
incerto, com uma singular mistura de egoísmo e sensibilidade, de menosprezo
pelos homens, de ternura e ironia, de melancolia precoce e de amor ao prazer: aparece
desse jeito já a partir dos seus primeiros passos na cena do mundo; assim se
retratará a si mesmo no seu romance Adolphe e melhor ainda na sua
correspondência. A sua superioridade, aliás, era evidente. Sentia-se de entrada
que essa personalidade indefinível era alguém,
que nela havia futuro e encerrava a semente de um grande renome".
O jovem Constant de Rebecque trabalhou
durante vários anos como funcionário da corte do duque de Brunswick. Casou com
uma jovem pertencente a essa nobre família, Minna von Cramm, tendo-se
divorciado dela em 1793. Trasladou-se a seguir a Lausanne onde conheceu, em
1794, Madame de Staël, com quem teve, nos anos seguintes, uma intensa relação
amorosa que em muito influenciou o seu pensamento político e da qual nasceu uma
filha, Albertine, em 1797. O nosso autor acompanhou Madame de Staël a Paris,
onde publicou o ensaio intitulado De la force du gouvernement actuel de la
France et de la nécessité de s'y rallier. Tratava-se de uma declaração
de apoio ao Diretório, motivo pelo qual o mencionado escrito foi inserido na
publicação oficial do governo francês, o Moniteur. Constant estabeleceu
contatos com políticos importantes como Riouffe, Chénier, Daunou e Louvet, não
tendo seguido, no entanto, a orientação deles. Pertencia ao círculo de Madame
de Staël, o denominado "Clube do Hotel de Salm", do qual formavam
parte também figuras como Talleyrand, o abade Sieyès e outros políticos que
professavam ideais moderados, favoráveis ao estabelecimento na França da
monarquia constitucional, inspirada no modelo inglês. Dessa época datam alguns
escritos combativos: Des reactions politiques e Des
effets de la Terreur. Estes opúsculos foram reunidos, posteriormente,
em 1829, numa única publicação que levou o título de Mélanges littéraires et politiques.
Secretário do "Clube de Salm", o
nosso autor converteu-se logo num dos mais importantes expoentes dessa
associação. Constant de Rebecque e os seus amigos aprovaram o golpe de estado
do 18 Fructidor, que deitou por terra a instituição monárquica. Naturalizou-se
francês em virtude da lei de 15 de dezembro de 1790, que reconhecia os direitos
civis aos protestantes expulsos da França por motivos religiosos. Após algumas
tentativas mal sucedidas, o nosso autor elegeu-se para o Corpo Legislativo,
tendo ingressado nele depois do golpe de estado de 18 Brumário, que guindou
Bonaparte ao poder como primeiro Cônsul. Indisposto com este em decorrência da
oposição que Constant lhe fazia dentro do governo, foi demitido em 1802 do
cargo de tribuno (ao qual tinha ascendido recentemente, em virtude da
influência de Madame de Staël sobre o novo regime). O "Clube de Salm"
converteu-se, a partir desse momento, no refúgio para os opositores ao
militarismo bonapartista em ascensão. Ali encontraram acolhida atores políticos
de diversas tendências contrárias ao stablishment,
como os antigos monarquistas constitucionais, Narbonne, de Broglie, Barante e
Jaucourt.
O "Clube de Salm" terminou sendo
fechado por ordem de Napoleão e Constant foi banido junto com Madame de Staël.
O nosso autor tinha publicado recentemente o ensaio intitulado Suites
de la contre-révolution de 1660 en Anglaterre. Constant de Rebecque
partiu com a sua amiga para a Alemanha e fixou residência na corte de Weimar,
onde teve tempo e tranqüilidade suficientes para se ocupar da tradução do Wallenstein
de Schiller, bem como da escrita da obra que o nosso pensador acalentava há
anos, De la réligion considérée dans sa source, ses formes et ses
développements. A relação amorosa de Constant com Madame de Staël
terminou quando ela decidiu voltar ao castelo de Coppet, na Suíça. Em 1808 o
nosso autor casou com uma parente do príncipe de Hardenberg, Charlotte, com a
qual viveu tranqüilamente em Gottingen. Do período do seu exílio, que se
estende até 1814 (quando regressou à França em companhia de Bernardotte, de
quem tinha se tornado amigo), datam as seguintes obras: o seu romance Adolphe,
duas autobiografias intituladas Journal Intime e Ma
Vie (denominada esta última de Le Cahier rouge), a
sátira que levou o título de Florestan ou le sage des soissons e
o ensaio intitulado De l'esprit de conquête et de l'usurpation dans leurs rapports avec la
civilisation européenne, de 1813, que constitui sem dúvida a sua mais
importante obra do período e que conheceu sucesso imediato ao mostrar, de forma
clara, o perigo de aplicar o regime militar para solucionar questões civis, bem
como a impossibilidade de dar alicerces sólidos a um governo fundado na
conquista. Tratava-se, sem dúvida, de uma crítica radical ao bonapartismo, que
tinha semeado a insegurança pela Europa afora, tendo mudado as fronteiras
políticas de praticamente todos os países por onde passaram as tropas
napoleônicas.
Constant de Rebecque tornou-se figura central
da política em Paris, após a saída de Bonaparte do poder. Em maio de 1814, o
nosso autor defendeu a indicação do amigo Bernardotte como regente e publicou
as suas Réflexions sur les Constitutions. Contrariamente às
expectativas de Constant e seus amigos, Luís XVIII assumiu a coroa na
denominada Restauração e outorgou a Carta Constitucional de 4 de junho de 1814,
na qual foram inseridas as reivindicações liberais mínimas veiculadas pela
burguesia. O prestigioso Journal des Débats abriu as suas
páginas ao nosso autor que, em rápida cambalhota política, passou a defender a
causa dos Bourbons, em artigos memoráveis. Na véspera do retorno de Napoleão à
capital francesa (em 19 de março de 1815), Constant publicou nesse jornal
violenta filípica contra o "usurpador", que era caracterizado como
"esse homem tingido de sangue, mais odioso do que Átila" e prometia
jamais se juntar a ele. No dia seguinte, o "usurpador" entrou nas
Tuilleries e rapidamente o nosso autor, que já tinha providenciado um
passaporte para América, mudou de idéia e aceitou o convite de Bonaparte para
se tornar conselheiro de Estado. O imperador buscava um ponto de apoio no
Partido Liberal, ao qual pertencia Constant. Fazendo gala de paradoxal
pragmatismo escreveu, a pedido de Bonaparte, o famoso Acte aditionnel aux Constitutions
de l'Empire, que constituiu a base da obra conhecida com o título de Principes
de Politique, publicada em 1º de junho de 1815. A respeito das idas e
vindas do nosso autor no conturbado cenário da
política francesa de então, escreveu Larousse [1865: 1017] com uma ponta
de ironia: "Essa foi uma das mil cenas da grande comédia que encenaram
perante o mundo a maior parte dos homens públicos e os dignitários da
época".
Em que pese as agitadas circunstâncias em que
foi escrito, o livro Principes de Politique foi considerado pela crítica posterior,
junto com De l'esprit de conquête et de l'usurpation, como uma das obras
principais de Constant. Eis o que escrevia, em 1872, Édouard Laboulaye:
"Os Princípios de Política, publicados em 1815, (...) têm um duplo
mérito: de um lado, é a exposição mais completa das idéias do autor; de outro,
é a prova mais clara da continuidade dessas idéias. O conselheiro de Estado
imperial fala da liberdade como o escritor independente de 1814 e de 1820. Uma
coleção dos panfletos de Benjamin Constant em que faltem esses dois ensaios,
não possui verdadeiramente nenhum valor" [Laboulaye, 1872: vol. I, V].
Chegada a segunda Restauração, Constant
escreveu a Talleyrand para fazer explícito o seu devotamento ao governo de Luís
XVIII, mas as suas provas de simpatia foram mal recebidas. Refugiu-se então na
Inglaterra, tendo regressado à França no ano seguinte para retomar com
estardalhaço o seu lugar na oposição constitucional, escrevendo primeiro no jornal Mercure, depois no
Minerve e em diversos outros jornais. Publicou por essa época o Traité
de la doctrine politique et des moyens de rallier les partis en France.
Eleito deputado pela região de Sarthe, em 1819, revelou, na Câmara, as suas
qualidades de orador. Constant escrevia os seus discursos mas, ao pronunciá-los
na tribuna dava-lhes vida, conseguindo cativar a atenção dos ouvintes. A
respeito da sua eloquência parlamentar, escreveu Larousse [1865: 1017]: "A
sua oratória era brilhante, incisiva, literária sem pompa; o seu discurso
distinguia-se por uma dialética penetrante, pelo vigor da argumentação, a
utilização de contrastes, enfim por uma destreza que lhe permitia desferir
sobre o governo os mais terríveis golpes, sem contudo se afastar da mais
estrita legalidade".
Esse brilho e essa contundência fizeram com
que o nosso autor fosse a figura mais odiada, tanto pelo governo quanto pelos
reacionários e os radicais de esquerda. Em decorrência da agitada vida e da
paixão pelo jogo e pelas aventuras boêmias, a sua saúde ficou seriamente
comprometida. Quando da Revolução Liberal de Julho de 1830, Constant estava
seriamente doente. Mesmo assim encontrou forças para atender ao convite de La
Fayette e participou das jornadas revolucionárias. Ele foi um dos 221 deputados
que entregaram a coroa a Luís Filipe. O novo monarca, em reconhecimento aos
serviços prestados, fez-lhe uma doação de 300 mil francos para que pagasse as
inúmeras dívidas. "A liberdade - respondeu Constant ao rei nessa
oportunidade - deve preceder à gratidão. E se o vosso governo cometer falhas,
eu serei o primeiro a me juntar à oposição". "É assim como eu entendo
as coisas" - teria respondido, habilidoso, o monarca. O velho parlamentar
teve pouco tempo para participar dessa nova quadra da vida política francesa,
pois veio a falecer logo depois, em dezembro de 1830.
Pouco antes da sua morte, o nosso autor
pronunciou o que talvez tenha sido o seu último discurso na Câmara, em 13 de
setembro desse ano. O tema, a liberdade de imprensa, resumia os seus ideais
liberais, acalentados ao longo da vida. Eis as suas palavras: "Senhores,
seria inútil destacar, perante homens tão esclarecidos quanto vós, a influência
salutar da imprensa. Ela tem sido, ao longo dos últimos dezesseis anos, a nossa
única garantia contra um governo opressor (quando podia sê-lo), ou hipócrita
(quando não ousava ser opressor). Quando numa Câmara, triste produto de
eleições fraudulentas, uma minoria insignificante defendia os direitos da
nação, a imprensa, deixada livre por não sei que fatuidade inconseqüente de um
ministro presunçoso, foi a nossa única salvaguarda. Ela transmitiu as sãs
doutrinas até o momento em que a França soube aproveitar uma imprudência
inexplicável para quebrar os grilhões por meio de eleições novas. Enfim, depois
do ultraje de 8 de agosto, a imprensa foi a única que livrou o combate à morte
contra um poder armado de fraude e maquinador do assassinato. E quando os dias
de perigo passaram, foi ainda a imprensa que nos precedeu no campo de batalha,
atraindo sobre ela, antes que sobre nós, a proscrição e a morte. Ao seu apelo,
o povo tem-se armado. Seguindo o povo nós viemos, e a imprensa, o povo e nós
temos, em virtude de um triunfo miraculoso, derrotado a tirania. Se nos dermos
conta do que é a imprensa, encontraremos este simples caminho: ela é a palavra
alargada, é o meio de comunicação no seio do grande número, assim como a
palavra é o meio de comunicação entre alguns. Ora, a palavra é o veículo da
inteligência e a inteligência é a soberana do mundo material. Tais vantagens
colocam-na por cima de quaisquer desvantagens. É necessário, sem dúvida,
diminuir os possíveis inconvenientes por meio de boas leis. Mas não se deve
jamais sacrificar a imprensa, sem a qual uma nação não é mais do que um
agregado de escravos. Com a imprensa, há desordem às vezes. Sem a imprensa,
sempre há escravidão. E nessa servidão também há desordem, pois o poder
ilimitado vira louco" [apud Larousse, 1865: 1017].
II - BENJAMIN CONSTANT, DEFENSOR LIBERAL DA FRANÇA
PÓS-REVOLUCIONÁRIA
O nosso autor sempre fez profissão de fé
liberal. Para ele, a defesa da liberdade constituía um princípio inegociável. A
propósito dessa sua convicção, escreveu em Princípios de Política: "Afirmei,
faz tempo, que na medida em que toda Constituição é a garantia da liberdade de
um povo, tudo quanto está dirigido à liberdade é constitucional, e não o é
quando a ignora; que estender uma Constituição a tudo é multiplicar os perigos
que a ameaçam rodeando-a de escolhos; que na Constituição existem certos
princípios fundamentais, que autoridade nacional nenhuma pode alterar (...).
Não será, pois, supérfluo examinar a nossa Constituição, tanto no seu conjunto
quanto nos seus detalhes, posto que, referendada pelo sufrágio nacional, é
passível de aperfeiçoamento. Neste livro encontrar-se-ão, com freqüência, não
só as mesmas idéias, mas também as mesmas palavras dos meus escritos
anteriores. Daqui a pouco fará vinte anos que me dedico aos temas políticos e
sempre tenho professado as mesmas opiniões e formulado os mesmos desejos. O que
então pedia era a liberdade individual, a liberdade de imprensa, o fim do
arbítrio, o respeito aos direitos de todos. Isso mesmo reclamo hoje com não
menor zelo e mais esperança" [Constant, 1970: 3-4].
O nosso autor fazia-se porta-voz das teses
básicas do liberalismo lockeano. Em primeiro lugar, Constant destacava que a
soberania radicava no povo ou na vontade geral. É evidente que este
reconhecimento implicava numa concepção limitada da soberania, que não se
poderia estender à interioridade das pessoas, ou de forma contrária aos
interesses dos indivíduos. No próximo item ilustrarei este aspecto do
pensamento de Constant. Em segundo lugar, o nosso pensador considerava, de
acordo às teses clássicas do liberalismo, que os indivíduos possuíam direitos
inalienáveis à vida, à liberdade e às posses, direitos esses anteriores ao seu
ingresso em sociedade. Justamente por isso ele achava que a soberania, como
expressão da vontade geral, deveria ser limitada, ou seja, em consonância com a
defesa desses direitos inalienáveis. Em terceiro lugar, o nosso autor pensava
que o interesse geral, expressão do
conjunto de interesses dos cidadãos, não era mais do que a resultante da
negociação entre os interesses individuais. Para ele, a representação política,
essencial para o funcionamento de um país moderno, era a instituição que
possibilitaria esse processo de negociação entre os interesses individuais.
No seguinte texto, tirado da sua obra Princípios
de Política, ficava claro o estreito entrelaçamento entre defesa dos
interesses individuais dos cidadãos e interesse
geral. Vale a pena citar completo o arrazoado do pensador francês, pois
constitui uma das peças clássicas da filosofia liberal na fundamentação do
governo representativo: "O que é o interesse geral senão a transação
efetivada entre os interesses particulares? O que é a representação geral senão
a representação de todos os interesses
parciais, que devem transigir naquilo que lhes é comum? O interesse geral é
diferente, sem dúvida, dos interesses particulares, mas não lhes é contrário.
Fala-se sempre como se um ganhasse o que os outros perdem. O geral, não é senão
o resultado desses interesses combinados. Difere deles como um corpo difere das
suas partes. Os interesses individuais são aqueles que tangem mais de perto os
indivíduos. Os interesses dos distritos são aqueles que tangem mais de perto
estes. Ora, são os indivíduos e os
distritos os que compõem o corpo político. São, consequentemente, os
interesses desses indivíduos e desses distritos os que devem ser protegidos. Ao
proteger todos eles, suprimir-se-á de cada um deles aquilo que prejudica aos
outros, disso resultando o verdadeiro interesse público, que coincide com os
interesses individuais, em virtude do fato de que lhes foi tirada a
possibilidade de se prejudicarem mutuamente. Cem deputados nomeados por cem
distritos de um Estado levam ao seio da assembléia os interesses particulares,
as preocupações locais de seus mandantes. Essa base é útil para eles. Forçados
a deliberarem juntos, logo tomam consciência dos sacrifícios respectivos que
são indispensáveis. Esforçam-se para diminuir a extensão destes, e nisso reside
uma das maiores vantagens da forma de
sua designação. A necessidade acaba sempre por uni-los numa transação comum, e
quanto mais fragmentadas tiverem sido as eleições, a representação adquire um
caráter mais geral. Se se invertesse a
gradação natural, se se colocasse o
corpo eleitoral no cume do edifício, os nomeados por ele deveriam se pronunciar
no seu nome acerca de um interesse público cujos elementos desconhecem,
pedir-se-lhes-ia conciliar interesses cujas necessidades foram ignoradas ou
desprezadas. Convém que o representante de um distrito atue como órgão do
mesmo, que não ceda nenhum dos seus direitos, reais ou imaginários, senão
depois de tê-los defendido. Que seja parcial na defesa dos interesses de que é
mandatário, porque se cada um é parcial nessa defesa, a parcialidade de cada
um, unida e conciliada, terá as vantagens da imparcialidade de todos"
[Constant, 1970: 46-47].
O pensador francês considerava que a única
forma de dar estabilidade política à França pós-revolucionária consistiria em
organizar a representação em duas Câmaras que espelhassem os interesses da
sociedade, uma Câmara alta, a dos Pares, representativa da nobreza e que
serviria de ponte com o trono, e uma Câmara baixa, a dos interesses populares.
De outro lado, o nosso autor cuidava de imaginar, em detalhes, a forma em que
deveria se proceder a organizar territorialmente os distritos eleitorais, a fim
de atrelar a representação a circunscrições em que os cidadãos se sentissem
representados. Boa parte da obra Princípios de Política é dedicada a
esse debate. Constant defendia o voto direto, porquanto somente a partir dele
poderiam surgir autoridades com peso moral, profundamente "enraizadas na
opinião" [Constant, 1970: 42].
A grande vantagem do sistema representativo,
considerava Constant, consistia em que
possibilitava a aproximação entre as diferentes classes sociais, impedindo o
surgimento de odiosas oligarquias. A respeito, o nosso autor frisava que uma
das grandes vantagens do governo representativo consistia em que estabelecia "relações freqüentes entre
as diversas classes da sociedade". Ora, essa vantagem somente poderia ser
conseguida mediante as eleições diretas. "Esse tipo de eleição, frisava
Constant, exige que as classes poderosas
se interessem constantemente pelas classes inferiores. Obriga à riqueza a
dissimular a sua arrogância e ao poder a moderar a sua ação, fazendo do
sufrágio do grupo menos opulento dos proprietários uma recompensa para a
justiça e para a bondade, um castigo para a opressão. Não se deve renunciar
gratuitamente a esse instrumento cotidiano de felicidade e de harmonia, nem
menosprezar tal causa de beneficência, que não sendo, no início, mais do que um
cálculo, logo se converte numa virtude habitual" [Constant, 1970: 48].
Em relação à França pós-revolucionária,
Constant registrava, com as seguintes palavras, a precária situação em que
ficou o país após o ciclo das conquistas napoleônicas: "Numerosos
exércitos levantam-se contra nós. Tanto os povos quanto os seus chefes parecem
cegos pelas suas lembranças. Os restos do espírito nacionalista que os animava
há dois anos, tinge ainda com certo aspecto nacional o esforço que deles se
exige" [Constant, 1970: 4]. Ora, arrazoava o nosso autor, a França só queria,
nesse momento, se organizar pacificamente ao redor do monarca por ela escolhido
e com o governo que ela queria se dar, como tinham feito as modernas nações
européias. "Hoje, - afirmava - já não é a sua própria pátria que esses povos
defendem; atacam uma nação fechada nas suas fronteiras e que não quer
ultrapassá-las, uma nação que só reclama a sua independência interior e o
direito a se dar o seu próprio governo, como a Alemanha o tem feito ao eleger
Rodolfo de Habsburgo, Inglaterra ao chamar a casa de Brunswick, Portugal ao dar
a coroa ao duque de Bragança, Suécia ao eleger Gustavo Vasa; numa palavra, da
mesma forma que todas as nações européias têm exercido (esse direito) numa
determinada época, geralmente a mais gloriosa da sua história" [Constant,
1970: 4].
A França, em que pese as aventuras
absolutistas sofridas no passado, estava animada por dois sentimentos: a
liberdade e o ódio à subserviência a um poder estrangeiro. A propósito, frisava
Constant: "Todos nós sabemos que a liberdade não nos pode vir do
estrangeiro. Todos nós sabemos que qualquer governo que se reorganize sob as
suas bandeiras, opor-se-á aos nossos interesses e aos nossos direitos".
Assim como nas modernas sociedades a vida política é constituída pelo confronto
entre interesses individuais, do qual deve surgir a negociação entre eles e a
identificação do bem público, de maneira semelhante, a vida entre as nações é
pautada pelo confronto entre os interesses delas, não apenas pelos princípios
que estão em jogo. Em relação a este ponto, escrevia o nosso autor: "Ontem
os nossos inimigos só faziam a guerra aos nossos princípios e hoje a fazem aos
nossos interesses, aos que o tempo, o hábito e inúmeras transações têm
identificado com os nossos princípios (...). Mas a experiência realizou-se, os
princípios são opostos, os interesses são contrários, os laços
romperam-se" [Constant, 1970: 5].
Parte da animosidade das nações européias
contra a França, no sentir de Constant, decorria da profunda alteração que a
Revolução de 1789 ensejou nos hábitos políticos, fazendo afundar o Ancien Régime, cujas sombras ainda
pairavam nos céus de algumas delas. A respeito desse aspecto, escrevia:
"Na verdade, os nossos inimigos têm pouca memória. A linguagem que de novo
utilizam derrubou os seus tronos há vinte e três anos. Então como agora,
atacavam-nos porque queríamos ter um governo nosso, porque tínhamos libertado
do dízimo o camponês, da intolerância o protestante, da censura o pensamento,
da prisão e do exílio arbitrários o cidadão, dos ultrajes dos privilegiados o
plebeu" [Constant, 1970: 5]. O
nosso pensador deixava clara a sua inspiração liberal, mas ao mesmo tempo
destacava-se como um patriota, defensor dos interesses de seu país no contexto
internacional. Patriotismo e liberalismo, duas notas que aparecem no ideário
deste precursor dos doutrinários, e que serão também leitmotivs de doutrinários como Guizot e dos liberais que
prolongaram essa tradição de reflexão-ação na cultura política francesa, como
Tocqueville e Aron.
III - O CONCEITO DE SOBERANIA POPULAR LIMITADA E A
CRÍTICA DE CONSTANT AO DEMOCRATISMO
ROUSSEAUNIANO
O nosso pensador considerava que só havia
dois poderes: a força (ilegítimo) e a vontade geral (legítimo). Era fundamental
conceber de forma correta a natureza desta última, a fim de determinar
claramente a abrangência da mesma. Se isso não fosse feito, a tentativa de
defesa da liberdade poderia simplesmente suprimi-la. A propósito, escrevia Constant: "O
reconhecimento abstrato da soberania do povo não aumenta em nada a soma de
liberdade dos indivíduos, e se lhe for atribuída uma abrangência indevida,
pode-se perder a liberdade apesar e contra esse mesmo princípio"
[Constant, 1970: 8].
A delimitação da soberania, pensava Constant,
não podia ficar nas mãos dos que exercem o poder, pois a tendência de todo
governo constituído é a sua auto-preservação. A soberania, portanto, deve ser
limitada desde fora do poder pela própria sociedade. Ora, a soberania jamais
pode ser entendida como ilimitada. Esse era, para o nosso pensador, o grande
defeito dos que a criticavam no Ancien
Régime, identificando-a com o absolutismo monárquico. Foram atacados os
reis, mas não a fonte do despotismo, que radicava na concepção inadequada de
soberania, como algo sem limites. Assim, o absolutismo de um ou de poucos foi
substituído pelo de muitos, sem que mudasse a forma de se entender a soberania.
O nosso autor deixou clara a forma limitada em que entendia a soberania, com as
seguintes palavras: "Numa sociedade fundada na soberania do povo, é
evidente que nenhum indivíduo, classe nenhuma, tem o direito a submeter o resto
à sua vontade particular; mas é falso que a sociedade, no seu conjunto, possua
sobre os membros uma soberania sem limites" [Constant, 1970: 9].
A soberania deve ser limitada em si mesma.
Ela abarca parcialmente o ser dos cidadãos, ficando do lado de fora da mesma o
que diga relação à independência e à existência do indivíduo. Ultrapassar esse
limite torna a soberania ilegítima. Nem interessa se esse abuso é cometido por
uma pessoa, um grupo, ou a maioria dos homens na sociedade. Será sempre algo
ilegítimo. A respeito, frisava Constant: "O assentimento da maioria não
basta em todos os casos para legitimar os seus atos; há atos que é impossível
sancionar. Quando uma autoridade pratica atos semelhantes, não importa a fonte
da que pretenda provir, não importa que se chame indivíduo ou nação.
Faltar-lhe-ia legitimidade, mesmo se tratando de toda a nação e havendo um
único cidadão oprimido" [Constant, 1970: 10].
O grosseiro erro de Rousseau consistiu,
frisava Constant, em ter imaginado uma Vontade
Geral como poder ilimitado, que terminava sacrificando, em nome da
democracia, a liberdade que pretendera defender. O filósofo de Genebra,
considerava o nosso pensador, ignorou esta simples verdade: "o
assentimento da maioria não basta (...) para legitimar os seus atos". Vale
a pena citar completa a crítica efetivada por Constant ao democratismo
rousseauniano, pois ela servirá de base para as que serão levantadas no seio do
liberalismo francês, no decorrer do século XIX (com Guizot, Tocqueville e outros) e ainda no século XX
(com Aron, Peyreffitte, Revel, etc.).
Eis o teor da crítica de Constant:
"Rousseau ignorou esta verdade, e o seu erro fez do seu Contrato
social, tão freqüentemente invocado em prol da liberdade, o instrumento
mais terrível de todos os gêneros de despotismo. Definiu o contrato celebrado
entre a sociedade e os seus membros como a alienação completa e sem reservas de
cada indivíduo com todos os seus direitos em mãos da comunidade. Para nos
tranqüilizar acerca das conseqüências do abandono tão absoluto de todas as
partes da nossa existência em benefício de um ser abstrato, diz-nos que o
soberano, ou seja, o corpo social, não pode prejudicar nem ao conjunto dos seus
membros, nem a cada um deles em particular; que ao se entregar cada um por
completo, a condição é igual para todos, e que ninguém tem interesse em
torná-la onerosa aos demais; que ao se dar cada um a todos, não se dá a
ninguém; que cada um adquire sobre todos os associados os mesmos direitos que ele
lhes entrega, e ganha o eqüivalente de tudo quanto perde, com mais poder para
conservar o que tem. Mas esquece que todos esses atributos preservadores que
confere ao ser abstrato que chama de soberano, resultam de que esse ser se
compõe de todos os indivíduos sem exceção. Ora, tão logo que o soberano tem de
fazer uso do poder que possui, ou seja, tão logo que deve proceder a uma
organização prática da autoridade, não podendo o soberano exercê-la por si
próprio, delega-a, e todos esses atributos desaparecem. Ao estar
necessariamente, pela sua própria vontade ou à força, a ação que se executa em
nome de todos à disposição de um só ou de alguns, resulta que ao se dar um a
todos, não é verdade que não se dê a ninguém; pelo contrário, dá-se aos que
agem em nome de todos. Daí que, ao se dar por completo, não se coloca numa
condição igual para todos, já que alguns se aproveitam exclusivamente do
sacrifício do resto. Não é verdade que ninguém tenha interesse em tornar
onerosa a condição aos demais, posto que há associados que estão por fora da
condição comum. Não é verdade que todos os associados adquirem os mesmos
direitos que cedem; não todos ganham o equivalente do que perdem e o resultado
daquilo que sacrificam é, ou pode ser, o estabelecimento de uma força que lhes
tira o que têm" [Constant, 1970: 10-11].
O próprio Rousseau, frisava Constant, ficou
tão impressionado com as conseqüências decorrentes do seu conceito de soberania
absoluta, que decidiu criar um mecanismo para tornar impossível o exercício da
mesma. Fez isso quando declarou que "a soberania não podia ser alienada,
nem delegada, nem representada" [Constant, 1970: 11], abrindo assim
caminho à ingovernabilidade que tem afetado sempre aos sistemas alicerçados na
ideologia rousseauniana.
A defesa do absolutismo por Thomas Hobbes, em
meados do século XVII, antecipou a tese rousseauniana da soberania absoluta.
Frisa a respeito Constant: "Hobbes, o homem que erigiu de modo mais
inteligente o despotismo como sistema, apressou-se em reconhecer o caráter ilimitado
da soberania, a fim de defender a legitimidade do governo absoluto de um só. A
soberania, diz Hobbes, é absoluta; essa verdade sempre foi reconhecida,
inclusive por aqueles que induziram à sedição ou provocaram guerras civis. A
sua intenção não era aniquilar a soberania, mas transferir o seu exercício para
outras mãos" [Constant, 1970: 11].
Os espíritos absolutistas, frisava Constant,
entendem os conceitos da política de forma a eles traduzirem o seu ódio à
liberdade e à limitação do poder. Para eles "a democracia é uma soberania
absoluta em mãos de todos; a aristocracia, uma soberania absoluta em mãos de
alguns; a monarquia, uma soberania absoluta em mãos de um só. O povo pôde se
desprender dessa soberania absoluta em favor de um monarca, que então se converteu
no seu legítimo possuidor" [Constant, 1970: 11-12]. O nosso autor resumiu
em dois pontos as conseqüências dos princípios por ele enunciados em relação à
soberania.
Em primeiro lugar, a soberania do povo não é
ilimitada. Ela está delimitada pelo marco da justiça e dos direitos dos
indivíduos. A vontade de um povo não pode fazer com que aquilo que é justo vire
injusto e vice-versa.
Em segundo lugar, pode-se afirmar que a
demonstração clara de certos princípios constitui a sua melhor garantia de
aceitação universal. Ora, se reconhecermos que a soberania tem limites,
ninguém, em sã consciência, ousará reivindicar o poder ilimitado. A história
prova que "os atentados mais monstruosos do despotismo de um só
deveram-se, com freqüência, à doutrina do poder ilimitado de todos"
[Constant, 1970: 17].
No que tange à natureza do poder numa
monarquia constitucional, Constant destacava que até sua época reconheciam-se
três poderes nas organizações políticas. Mas ele considerava que estes deveriam
ser cinco, a saber: o poder real, o executivo, o poder representativo da
continuidade, o poder representativo da opinião e o judiciário.
Onde residiriam esses poderes? Constant
explicava esse ponto da seguinte forma: "O poder representativo da
continuidade reside numa assembléia hereditária; o poder representativo da
opinião, numa assembléia eletiva; o poder executivo é confiado aos ministros; o
poder judiciário, aos tribunais. Os dois primeiros poderes fazem a lei; o
terceiro providencia a sua execução legal; o quarto, aplica-a aos casos
particulares. O poder real está no meio, mas acima dos outros quatro, sendo, ao
mesmo tempo, autoridade superior e intermediária, sem interesse em desfazer o
equilíbrio, mas, pelo contrário, com o máximo interesse em conservá-lo" [Constant, 1970: 19-20].
Poderiamos terminar a exposição deste item
destacando um aspecto dialético no pensamento de Constant sobre a soberania:
esta deve contemplar, ao mesmo tempo, os indivíduos e a coletividade, tentando
estabelecer um liame entre a defesa dos interesses individuais e o interesse
público. Difícil conciliação. Mas essa constitui a essência, para Constant, da
vida democrática. Em relação a este aspecto, escreve Todorov: "Constant,
da sua parte, endereça ao poder uma dupla exigência: ele deve ser legitimado
tanto pela sua instituição como pelo seu exercício. O povo permanecerá
soberano; qualquer outra alternativa levaria a se submeter simplesmente à
força; mas o seu poder será limitado: deve se deter nas fronteiras do indivíduo
que será, no seu foro íntimo, o único soberano. Uma parte da sua existência
submeter-se-á ao poder público; uma outra permanecerá livre. Não se pode pois
regulamentar a vida em sociedade em nome de um princípio único; o bem-estar da
coletividade não coincide forçosamente com o do indivíduo. O melhor regime não
se satisfaz somente nem com a democracia, nem com o princípio liberal que exige
a proteção do indivíduo. Ele deve reunir essas duas condições: essa é pois a
democracia liberal. O equilíbrio é difícil, e é por isso que o pensamento de
Constant permanece sempre atual: o Estado moderno mesmo é constantemente
tentado a usurpar a liberdade dos indivíduos" [Todorov, 1997b: 7].
IV - O PODER MONÁRQUICO SEGUNDO CONSTANT
Para Constant, era necessário que houvesse,
na estruturação do Estado, um poder
neutro. A razão para postular esse poder radicava na imperfeição humana. A
propósito, frisava: "Dado que os homens não obedecem sempre ao seu
interesse bem compreendido, é necessário ter a precaução de que o chefe do
Estado não possa substituir na sua ação os outros poderes. Nisso radica a
diferença entre a monarquia absoluta e a constitucional" [Constant, 1970:
20].
Ora, seguindo a lição do seu mestre Necker,
Constant considerava que essa função de caráter moderador deveria corresponder ao
monarca. "A monarquia constitucional tem esse poder neutral na pessoa do
chefe do Estado. O verdadeiro interesse de tal chefia não consiste, de maneira
nenhuma, em que um dos poderes destrua o outro, mas em que todos se apoiem, se
entendam e ajam de acordo" [Constant, 1970: 20]. Levando em consideração a
prática da monarquia constitucional na Inglaterra, Constant achava que a função
real era, nesse contexto, eminentemente moderadora. A respeito, escrevia:
"Na Inglaterra, não pode se fazer lei nenhuma sem o concurso da câmara
hereditária e da câmara eletiva. Não pode ser executado ato nenhum sem a
assinatura de um ministro, nem ser proferida sentença nenhuma sem o concurso
exclusivo de tribunais independentes. Mas uma vez que se tomou a precaução de
que falo, vejamos de que forma a Constituição inglesa faz uso do poder real
para pôr fim a toda luta perigosa e restabelecer a harmonia entre os demais
poderes. Se a ação do poder executivo resultar perigosa, o rei destitui os
ministros. Se a da câmara hereditária resultar funesta, o rei imprime-lhe uma
nova tendência mediante a instituição de novos pares. Se a da câmara eletiva se
apresentar ameaçadora, o rei faz uso de seu
veto, ou dissolve essa câmara. Enfim, se a própria atividade do poder
judiciário se mostrar acintosa, pelo fato de aplicar a atos individuais penas
gerais demasiadamente duras, o rei a modera mediante o exercício de seu direito
de graça" [Constant, 1970: 20].
O nosso autor considerava que o equilíbrio
dado pela moderação exercida a partir do monarca constitucional não se daria no
seio de uma República, pois não haveria, aqui, clara distinção entre as esferas
do poder supremo e daquele que exerce as funções executivas. "Um poder
republicano que se renova periodicamente, frisava Constant, não é um ser aparte, não impressiona em nada
a imaginação, não tem direito à indulgência para os seus erros, já que buscou o
posto que ocupa e não tem nada mais precioso que defender do que a sua
autoridade, comprometida quando é atacado o seu ministério, integrado por
homens como ele e dos que sempre é solidário" [Constant, 1970: 25].
Somente a monarquia constitucional garantiria a presença do poder neutro, que exerceria as funções
moderadoras.
Eis a forma em que o pensador completava o
quadro desse poder: "A monarquia constitucional oferece-nos, como já
frisei, esse poder neutro, tão necessário para o exercício normal da liberdade.
O rei, num país livre, é um ser aparte, superior à diversidade de opiniões, sem
outro interesse que a manutenção da ordem e da liberdade, sem poder jamais cair
na condição comum, inacessível, portanto, a todas as paixões que tal condição
faz nascer e a todas as que a perspectiva de a ela voltar alimenta no coração
dos agentes que estão investidos de uma potestade passageira. Essa augusta
prerrogativa da realeza deve infundir, no espírito do monarca, uma calma e, na
sua alma, um sentimento de tranqüilidade, que não podem ser patrimônio de
nenhum indivíduo situado numa posição inferior. O monarca flutua, por assim
dizer, por cima das agitações humanas e constitui um grande acerto da
organização política ter criado, no seio mesmo dos dissentimentos sem os quais
nenhuma liberdade é possível, uma esfera inviolável de segurança, de majestade,
de imparcialidade, que permite a eclosão desses dissentimentos sem nenhum
perigo, desde que não excedam certos limites, e que, quando aquela se anuncia, lhe ponha término
por meios legais, constitucionais e não arbitrários. Todo esse imenso benefício
perde-se se o poder do monarca for rebaixado ao nível do poder executivo, ou se
for elevado este ao nível do monarca" [Constant, 1970: 22].
Ficavam superadas na instituição da monarquia
como poder neutro, no sentir de Constant, as velhas lembranças do
rei-administrador de justiça, sentado debaixo de uma árvore e rodeado dos seus
súditos, que enxergavam nele uma espécie de enviado dos deuses. A instituição
régia, na prática da monarquia constitucional, se bem que delimitou os poderes
do soberano, deu-lhe, no entanto, um perfil de salvaguarda da estabilidade política.
A propósito, escrevia o nosso pensador: "Muitas coisas que admiramos e que
nos parecem impressionantes em outras épocas são agora inadmissíveis.
Representemos os reis da França fazendo justiça ao pé de um carvalho; esse
espetáculo nos emocionará e reverenciaremos esse exercício augusto e simples de
uma autoridade paternal. Mas, hoje, o que acharíamos de um julgamento efetivado
por um rei, sem o concurso dos tribunais? A violação de todos os princípios, a
confusão de todos os poderes, a destruição da independência judicial, tão
energicamente querida por todas as classes. Não se constrói uma monarquia
constitucional com lembranças e com poesia" [Constant, 1970: 30].
A prática da monarquia constitucional tirou
do soberano a pecha de ser um poder arbitrário e o revestiu, em compensação, de
uma auréola moral que se sobrepõe à luta rasteira pelo poder. Se os reis
perderam funções políticas, conservaram, no entanto, um acúmulo de funções que
les assegura o respeito da sociedade, ao torná-los a garantia viva da
estabilidade das instituições.
Eis a forma em que Constant elencava as
prerrogativas régias na sua concepção liberal moderada: "Numa Constituição
livre restam aos monarcas nobres, formosas, sublimes prerrogativas.
Pertence-lhes o direito de conceder graça, direito de uma natureza quase
divina, que repara os erros da justiça humana ou os seus rigores demasiadamente
inflexíveis, que também são erros; pertence-lhes o direito de investir os
cidadãos distintos de uma ilustração perdurável, guindando-os a essa
magistratura hereditária que reúne o brilho do passado e a solenidade das mais
altas funções políticas; pertence-lhes o direito de nomear os órgãos das leis e
de garantir à sociedade o gozo da ordem pública e a inocência da segurança;
pertence-lhes o direito de dissolver as assembléias representativas e
preservar, destarte, a nação dos desvios
dos seus mandatários, convocando novas eleições; pertence-lhes a nomeação dos
ministros, o que proporciona ao monarca a gratidão nacional quando os ministros
se ocuparem dignamente da missão que lhes foi confiada; pertence-lhes, enfim, a
distribuição de graças, favores, recompensas; a prerrogativa de pagar com um
olhar ou com uma palavra os serviços prestados ao Estado, prerrogativa que dá à
monarquia um tesouro inesgotável de opinião, que faz de cada amor próprio um
servidor e de cada ambição um tributário. Eis aí certamente uma ampla carreira,
atribuições imponentes, uma grande e nobre missão; seriam maus e pérfidos os
conselheiros que apresentassem perante um monarca constitucional, como objeto de desejo ou de nostalgia, essa
potestade despótica sem limites, ou melhor sem freio, equívoca porque
ilimitada, precária porque violenta e que pesaria de modo igualmente funesto
sobre o príncipe, a quem não pode menos de desviar, e sobre o povo, ao qual só
pode atormentar e corromper" [Constant, 1970: 30-31].
V - A HERANÇA DE BENJAMIN
CONSTANT NA TEORIA DA REPRESENTAÇÃO DE SILVESTRE PINHEIRO FERREIRA
A doutrina política de
Constant de Rebecque foi a base sobre a qual o máximo expoente do liberalismo
de início do século XIX entre nós, Silvestre Pinheiro Ferreira, deitou os
alicerces da teoria da monarquia constitucional. Decorreu da concepção do
pensador francês a teoria ferreiriana do poder
conservador, que, posta em prática pela Constituição Imperial de 1824,
transformou-se na instituição do Poder Moderador.
Pretendo, em primeiro lugar,
mostrar de que forma Silvestre Pinheiro Ferreira (1769-1846) deitou os
alicerces teóricos da prática do governo representativo na nossa tradição
política. Em segundo lugar, é meu propósito ilustrar de que forma a
Constituição Imperial de 1824 constituiu a passagem segura da Monarquia
Absoluta para a Constitucional, preservando as instituições do Governo
Representativo, num contexto jurídico e político (decorrente do
patrimonialismo), em que se fazia necessário manter o centripetismo do Estado
ao redor do Poder Moderador, mitigado com a prática do parlamentarismo, a fim
de evitar os extremos do absolutismo e do democratismo. Este binômio, aliás,
fez implodir o mundo hispano-americano em múltiplas Repúblicas submetidas aos
azares do caudilhismo.
Serão desenvolvidos três
itens nesta quinta parte: A) Tradição libertária X tradição patrimonial na
cultura luso-brasileira; B) A contribuição de Silvestre Pinheiro Ferreira; C) A
Carta de 1824 e a prática do parlamentarismo. Destacarei, notadamente nos itens
B e C, a forma em que Pinheiro Ferreira e os estadistas do Império
inspiraram-se em Benjamin Constant de Rebecque, para pensarem e darem forma às
instituições do governo representativo no Império, no contexto da monarquia
constitucional adotada por eles.
A) Tradição libertária X
tradição patrimonial na cultura luso-brasileira
Ficou claro, a partir das
análises de Max Weber (1860-1920), que os Estados modernos não surgiram de
forma unívoca, mas que a sua estruturação decorreu de um duplo modelo:
contratualista e patrimonial.
O primeiro modelo
consolidou-se, de acordo com Weber, ali onde houve uma experiência feudal
completa: na Europa Ocidental e nas Ilhas Britânicas. O segundo constituiu o
arquétipo que pautou o surgimento e estruturação do Estado, ali onde a
experiência feudal foi incompleta, ou substituída por práticas diretoriais
oriundas do despotismo oriental. Este foi o caso específico dos países que se
situam nos confins da Ilha européia e que, por isso mesmo, sofreram, ao longo
da Idade Média, a influência das invasões provenientes do extremo e do médio
oriente. Os casos paradigmáticos desta versão
foram constituídos pela Rússia (que sofreu as invasões da Horda Dourada
de Gengis Khan) e pela Península Ibérica (que entre 710 e 1490 ficou submetida,
em boa extensão do seu território, à dominação muçulmana).
O modelo contratualista foi
caracterizado por Weber [Cf. 1944, I: 226-227; 235-236; 240-244; 267-272;
276-278. Weber, 1944, IV: 131-251] como aquele em que o Estado surge a partir
da negociação e do pacto entre as classes que lutam pela posse do poder. Esse
modelo vingou, como já foi anotado, na Europa Ocidental e nas Ilhas Britânicas,
tendo dado ensejo, no século XX, à prática do parlamentarismo e ao
aparecimento, na administração pública, de uma burocracia racional. Foram
influenciados por esse modelo os países que, embora não tendo experimentado o
feudalismo de vassalagem, sofreram no entanto a influência do liberalismo
anglo-saxão, como Estados Unidos, Canadá e outros pertencentes à Commonwealth.
Já o modelo patrimonial foi
caracterizado por Weber como aquele em que o Estado surge a partir da
hipertrofia de um poder patriarcal, que estende a sua dominação doméstica sobre
territórios, pessoas e coisas extra-patrimoniais, que são administrados como se
fossem propriedade familiar (patrimonial) do governante. Weber, e também Karl
Wittfogel (1896-1989) [cf. Wittfogel, 1977] estenderam, nos seus estudos, a
vigência do modelo de Estado patrimonial para além das fronteiras do mundo
moderno, arrolando sob esse conceito-tipo os antigos Estados hidráulicos (o
Egito dos Faraós, o Império chinês, notadamente sob a dinastia Liao, os
Califados árabes, os Impérios pré-colombianos inca e asteca, etc.).
A caraterística fundamental
das formações políticas patrimoniais é, segundo Wittfogel, o fato de
constituírem Estados mais fortes do que a sociedade. Nelas, o poder político
não é entendido como instância pública, como busca do bonum commune, como res publica, mas como res privata ou coisa nossa.
Há uma confusão radical entre público e privado. Weber e também Wittfogel
anotaram outras caraterísticas típicas dos Estados Patrimoniais: neles surge,
como instância auxiliar do soberano, um
estamento burocrático pré-racional, porquanto não pautado por regras
impessoais, mas alicerçado na fidelidade pessoal. De outro lado, a lei não
exprime uma ordenação que vale para toda a sociedade, mas apenas constitui
casuísmo a ser utilizado pela autoridade central a seu bel prazer. A sociedade,
outrossim, comporta-se de forma passiva e insolidária, sendo a única força a
autoridade do soberano absoluto, que é invocada para solucionar qualquer
pendência. A religião, que na Europa feudal constituiu instância de poder
espiritual irredutível ao imperium,
no contexto patrimonial passa a ser cooptada pelo poder temporal.
O Estado português, já desde
a Revolução de Avis (1385) [Cf. Faoro, 1958: I, 39-72] consolidou-se como
Estado patrimonial. Alexandre Herculano [1914: I] destacou a ausência de
feudalismo em Portugal e a forma em que os príncipes cristãos, que venceram os
sarracenos, passaram a administrar o Reino como propriedade particular, tendo
sido nesse ponto contaminados pela cultura política muçulmana. Lúcio de Azevedo
(1855-1933), na sua obra Épocas de Portugal econômico
[Azevedo, 1978], identificou o Reino de Portugal como empresa do Rei, que
presidia inicialmente uma monarquia agrária, para se tornar depois
"Mercador de mercadores". O mercantilismo da empresa ultramarina
esteve indissociavelmente ligado à caraterística centrípeta e privatizante do
exercício do poder monárquico. Raymundo Faoro, no seu clássico estudo de 1958,
intitulado Os donos do poder,
analisou detalhadamente a forma em que se consolidou o estamento burocrático da
monarquia portuguesa, alicerçado esse processo na fidelidade pessoal ao
monarca, na progressiva substituição da nobreza de sangue pela de funcionários
públicos, na submissão da burguesia à empresa do Rei, bem como na incorporação
do direito romano, a partir da ação decisiva do Mestre de Avis. Oliveira
Vianna, no magistral estudo intitulado Introdução à história social da economia
pré-capitalista no Brasil [Vianna, 1958], mostrou claramente que o comportamento da nobreza decadente
portuguesa pautou-se, a partir dos "fumos da India", pelos critérios
da improdutividade e do consumo suntuário, ensejando assim a forte tendência
orçamentívora que a caracterizou.
O Brasil herdou de Portugal
a estrutura patrimonial do Estado. Esse fato tem sido estudado, além de
Raymundo Faoro (que foi o pioneiro, no meio brasileiro, nesse tipo de análise),
por Simon Schwartzman [1982], Antônio Paim [1978], Fernando Uricoechea [1978],
Wanderley Guilherme dos Santos [1978] e José Osvaldo de Meira Penna [1988].
Mas se o Brasil herdou de
Portugal a estrutura e a tradição patrimonial do Estado, herdou também a luta
que se travou, ao longo de séculos, no seio das sociedades ibéricas, entre o
estatismo centrípeto e a tradição consuetudinária e libertária do antigo
direito visigótico. Weber, aliás, já
tinha chamado a atenção para o fato de que sociedades presididas por Estados
patrimoniais pudessem abarcar, no seu seio, tradições contratualistas, que
entrariam em atrito com o caráter centrípeto das instituições políticas e que,
dinamizadas em virtude de processos endógenos e exógenos, poderiam faze-las
progredir até formas de tipo contratualista. A evolução de Espanha e
Portugal nas últimas três décadas do
século XX corresponderia a um processo desse tipo.
Convém destacar que Weber
reconhece também a possibilidade de involução de sociedades de caráter
contratualista para sociedades de tipo patrimonial, em virtude do predomínio da
tendência autocrática e do esfacelamento da solidariedade social. Esse seria o
caso ocorrido na Rússia, a partir da adoção dos processos diretoriais, de
origem mongólica, pelo Principado de Moscou (no século XIII) [cf. Thambs, 1979:
8] .
Essas duas tradições, a
patrimonial-tuteladora e a libertária, são bem antigas. A primeira, a
patrimonial [cf. Vélez, 1984: 81-136], deita raízes, como já foi explicado, no
duradouro e profundo influxo que exerceu, na Península Ibérica, a cultura
muçulmana, com a sua tendência centrípeta e paternalista em política. A dominação
dos Califados árabes, entre 710 e 1490, certamente foi responsável pela
incorporação às práticas administrativas dessa carga de nepotismo, de
clientelismo, de indiferenciação entre público e privado, que vieram a
florescer na América Latina no conhecido fenômeno do caudilhismo. Trata-se,
evidentemente, de uma tradição cultural paradoxal, que de um lado renovou a intelligentsia ibérica com o legado das
Universidades de Córdova e Toledo, nos brumosos confins do final da Idade
Média, mas que, no terreno político, revelou-se claramente despótica, até o
ponto de pretender cooptar a variável religiosa como raison d'État do absolutismo. É o que aconteceu na Espanha e em
Portugal sob a dominação dos Austrias, ao ensejo da tutela exercida sobre o
catolicismo, considerado pelos soberanos espanhóis como religião de cruzada,
destinada a reforçar o Império no contexto da contra-reforma, fato que levou o
pensador português Fidelino de Figueiredo a caracterizar as políticas
estatizantes de Carlos V e Filipe II como instauradoras de uma "alfândega
cultural" [cf. Figueiredo, 1959].
A tradição libertária é,
contudo, mais antiga e se filia ao
direito consuetudinário de origem visigótica, que veio a florescer nas
"cartas de foral" e na vida municipal, tão fortemente enraizada nas
práticas políticas ibéricas. Essa é a tradição que permitiu o renascimento das
instituições do governo representativo e a prática da democracia parlamentar na
Espanha e em Portugal, no final do século passado, de forma a se integrarem
esses países plenamente à Comunidade Européia. Testemunho bastante antigo dessa
tradição libertária é dado pelos Foros Aragoneses, na fórmula recitada pelo
justiça-mor no ato de coroação do Rei: "Nós, que valemos cada um quanto
vós e que juntos valemos mais do que vós, vos fazemos nosso Rei e Senhor, com a
condição de que conserveis nossos foros e liberdades, ou se não, não!" [Jaramillo Uribe, 1974: 104, nota].
Foi essa tradição libertária
a que inspirou os príncipes cristãos, no início do século VIII, na luta da reconquista, que se estendeu até o final do século XV.
Apesar de que os cristãos tivessem se deixado contaminar pela cultura política
muçulmana, conforme foi referido acima, no entanto preservaram-se, nas práticas
políticas ibéricas, elementos fundamentais da tradição libertária. Esse núcleo
poderia ser identificado com a valorização das Câmaras Municipais, cuja origem
remonta, segundo Martínez Marina, às Cortes medievais. "O autenticamente
tradicional em Castela -- escreve Ots
Capdequí [1968: 10] sintetizando o pensamento liberal de Martínez Marina
-- tinha sido a existência de um regime
político que descansava igualmente na autoridade dos monarcas e na pujança
autônoma das cidades, representadas nas altas esferas do governo pelos seus
procuradores, que tiveram parte ativa e destacada nas reuniões das Cortes. O
contrário dessas boas tradições democráticas foram os ideais absolutistas,
exaltadores sem freio do poder pessoal dos Reis, que introduzimos na Espanha,
como em outros povos da Europa Ocidental, com a adoção do Direito Romano
justiniano, e que chegaram a culminar no governo político da nação, com a
entronização infeliz das dinastias estrangeiras". A tradição municipalista
foi portadora do ideal libertário e contribuiu eficientemente, ao longo dos
séculos, para mitigar a tradição patrimonialista.
Tão forte foi a presença da
tradição liberal municipalista na mentalidade política ibérica, que chegou a
inspirar um dos mais importantes teóricos da Segunda Escolástica, o jesuíta
Francisco Suárez que, na sua obra De legibus ac de Deo legislatore,
publicada em 1613, defendia a idéia da soberania popular [cf. Gallegos
Rocafull, 1946: 37-56]. Com razão escreve o historiador colombiano Jaime
Jaramillo Uribe, se referindo à repercussão dessas idéias no meio ibero-americano:
"Não era (...) absolutamente necessário o contato com as correntes do
pensamento francês e inglês do século XVIII, para que fossem divulgadas, nas
últimas gerações neo-granadinas da época colonial, as idéias de soberania
popular, de poder limitado por normas jurídicas e de livre eleição dos
governantes pelo povo, porque essas idéias eram patrimônio comum do pensamento
escolástico espanhol e da escola do direito natural, ambos estudados nas
Universidades coloniais desde o século XVII. De tal espírito estava impregnada
a geração dos precursores da Independência
-- inclusive a educação de Nariño, o tradutor dos Direitos do Homem -- e ainda na primeira geração republicana"
[Jaramillo Uribe, 1974: 103-104].
Em relação à presença, no
meio colonial brasileiro, da tradição municipalista ibérica, escreveu a
historiadora Mury Lydia [1973: 46]: "Entre as instituições dignas de
menção, encontram-se as câmaras
municipais. Herdeiras das vereanças ibéricas e dos parlamentos municipais e
comunas europeus, vieram manter aqui a noção viva da representação popular e da
ascendência da deliberação no processo político
-- bem como a da decisão pluripessoal no jurídico (...). Já se observou,
com razão, que as atribuições oficias daquelas câmaras superavam, mesmo, às das
municipalidades contemporâneas, pois inclusive enfeixavam competências hoje
correspondentes às do Ministério Público. Realmente, certas experiências, então
trazidas e mantidas, como a da eleição de juizes -- indireta e oligárquica, embora --, foram
muito interessantes e a situação era suficiente para poder-se dizer, hoje, que
o município colonial foi embrião de nossas estruturas políticas e sociais
posteriores".
A Constituição Política do
Império do Brasil, de 25 de março de 1824, ao definir no Título I, artigo 3º
que "O (...) governo é monárquico hereditário, constitucional e
representativo" [Brasil, 1948: 35], afastou-se da feição patrimonial do
Estado e se aproximou da tradição libertária, tendo dado ensejo à prática do
parlamentarismo. Os fundamentos filosóficos dessa mudança estão na obra de
Silvestre Pinheiro Ferreira.
B) A contribuição de Silvestre Pinheiro Ferreira
A grande contribuição de
Pinheiro Ferreira consistiu em ter deitado as bases que possibilitaram o
trânsito pacífico, no Brasil, da monarquia absoluta para a constitucional, o
que correspondeu à mitigação da tradição patrimonial-tuteladora pela
libertária-contratualista. Antônio Paim sintetizou da seguinte forma a atuação
do pensador português: "Com a Revolução Constitucionalista do Porto e sua
repercussão no Brasil, decide o Monarca entregar a chefia de seu governo a
Silvestre Pinheiro Ferreira, em fevereiro de 1821, que nele acumula as pastas
de Exterior e de Guerra. Nessa condição regressa com o Monarca a Portugal,
afastando-se do governo em 1823, em vista dos propósitos absolutistas que logo
se configurariam. Coube portanto ao ilustre pensador a espinhosa missão de
efetuar o trânsito da monarquia absoluta para a constitucional, e em meio a
clima de todo desfavorável, lutando contra os que apenas ganhavam tempo e
somente desejavam a volta da situação antiga e, simultaneamente, cuidando de
isolar o radicalismo" [Paim, 1983: 55].
Analisarei a concepção
política de Silvestre Pinheiro Ferreira, me detendo no que tange à sua teoria
da representação. Antes, contudo, convém salientar com Vicente Barretto que a
sua obra "constituiu marco fundamental na história do pensamento político
português e brasileiro. O estadista e pensador português desenvolveu de forma
sistemática, pela primeira vez em língua portuguesa, a teoria do Estado liberal
constitucional. Encontramos nos seus diversos livros a preocupação de construir
uma teoria política que, antes da Independência do Brasil em 1822, servisse de
fonte inspiradora para a reforma das instituições da monarquia luso-brasileira
e, depois da separação do Brasil de Portugal, constituísse o modelo para a
organização política de ambos os países" [Barretto, 1976: 11].
Em dez itens poderíamos
resumir a concepção liberal moderada de Silvestre Pinheiro Ferreira, que
buscava garantir o exercício da liberdade, num contexto jurídico que permitisse
a organização constitucional do Estado [cf. Paim, 1979: 11-17; Barretto, 1976:
11-18]:
Base moral do pacto
político.-
Pinheiro Ferreira retomou a tese, defendida por John Locke no seu Segundo
Tratado sobre o governo civil (1689) [cf. Locke, 1965], da antecedência
dos direitos naturais individuais aos direitos da sociedade. Esta surgiu,
precisamente, para garantir os direitos naturais à vida, à liberdade e às
posses. O ponto de partida do pensador
português era, portanto, nitidamente liberal e haveria de informar toda a sua
restante concepção política.
Finalidade imediata da sua
teoria política: reestruturar a monarquia para salvá-la e fortalecé-la.- Pinheiro Ferreira, em face dos extremos do democratismo jacobino
(que conduziu à Revolução e ao Terror, na França), e do absolutismo monárquico
(que tanto sangue fez verter na Península Ibérica), optou decididamente pela
hegemonia do Estado entre os demais grupos sociais e pela sua reformulação no
contexto da Monarquia Constitucional, conforme tinha sido pensada pelos
publicistas franceses do período da Restauração, notadamente por Benjamin
Constant de Rebecque.
Iniciativa da reforma
política a partir da Coroa.- Esta idéia
de Pinheiro Ferreira orientava-se a impedir que se fizessem as reformas pela
via revolucionária. Os desmandos acontecidos na Revolução Francesa decorriam,
no sentir do pensador português, do fato de se ter perdido o controle sobre os
acontecimentos. Pinheiro Ferreira defendia ardentemente a luta contra o
imobilismo e contra qualquer forma de regresso às instituições absolutistas.
Mas o caminho que assinalava era, basicamente, o das reformas promovidas a
partir do Estado.
Criação do governo pela
Constituição.- Este ponto constituía a pedra
angular das reformas políticas propostas por Pinheiro Ferreira. O pensador
português seguiu, nesse aspecto, o pensamento liberal de Thomas Paine [1961:
420], para quem "uma Constituição não é um ato de governo mas de um povo
constituindo um governo; e o governo sem Constituição é poder sem
direito". O constitucionalismo representou, na verdade, no contexto da
evolução histórica do liberalismo, a tentativa de institucionalização jurídica
da teoria política lockeana [Cf. Macedo, 1987: 33-44].
Existência de cinco poderes:
o eleitoral, o legislativo, o judicial, o executivo e o conservador.- Pinheiro Ferreira
inspirou-se, sem dúvida, nos cinco poderes propostos por Benjamin Constant de
Rebecque, nos seus Princípios de Política (1815) [Cf. Constant, 1970: 18-31]. O
"Poder Neutro" de Constant seria denominado pelo filósofo português de "Poder
Conservador" e inspiraria o "Poder Moderador" da Constituição do
Império do Brasil de 1824. A sua finalidade consistiria em restabelecer o
equilíbrio, no momento do choque dos demais poderes.
Problema principal da
reforma política: a representação.- Pinheiro Ferreira retomou aqui a tradição liberal
lockeana. O pensamento constitucional do estadista português tinha quatro
grandes preocupações: definição dos direitos individuais, fixação dos limites
ao poder estatal, estruturação equilibrada dos poderes governamentais e,
fundamentalmente, a representação política. A função desta consistiria, no
sentir de Vicente Barretto, em "através do voto ou da representação
virtual (do Imperador), fazer com que os problemas sociais e políticos fossem
debatidos por uma elite" [cf. Barretto, 1976: 17].
Não há dúvida de que é
liberal (à la John Locke e à la Benjamin Constant) a inspiração
política de Silvestre Pinheiro Ferreira. Detenhamo-nos um pouco na sua teoria
da representação. O pensador português não duvidava de que os males que
afetavam ao Reino de Portugal nas duas primeiras décadas do século XIX,
decorriam do seu afastamento da verdadeira tradição liberal-contratualista no
terreno constitucional. Não foram os franceses os que fizeram afundar a
Península Ibérica quando da invasão napoleônica, mas a rapacidade dos ineptos
Ministros de Espanha e Portugal, que administravam corruptamente o Estado mergulhando-o
na bancarrota.
Eis as palavras que o
estadista dirigia a dom João VI, em carta escrita no Brasil, em 1814: "Não
foram os franceses os que precipitaram a Península no abismo, em que se acha:
eles nada mais fizeram do que apoderar-se sem honras e sem glória de uma fácil
presa, que os ministros de V. A. R. e os de seu augusto sogro [Fernando VII da
Espanha], parte por perfídia, parte por inépcia, apresentaram sem defesa à sua
rapacidade. Eu não remontarei a épocas mais antigas do que o ano de 1790. Não
foram estes ministros os que de vinte anos a esta parte não cessaram de esgotar
o real erário com o pagamento das dívidas de tantos dissipadores? Não foram
eles os que a título de melhor administração sobrecarregaram com inúteis
juntas, mesas e inspeções a real fazenda que, à sombra destes corpos imorais,
imunes por sua natureza, se viu mais dilapidada do que antes? Não foram eles os
que, com escárnio dos estrangeiros e insensato desperdício das rendas públicas,
desfiguraram a marinha e o exército com uma tão numerosa quanto imperita
oficialidade? Não foram eles os que a peso de ouro, ajustaram um ou outro
general estrangeiro para organizar os exércitos de V. A. R. e em nada mais
cuidaram para impedir a decadência, em que todo o mundo os via precipitarem-se
com a monarquia?" [Pinheiro Ferreira, 1976: 28].
Mas se a inépcia e a
corrupção do absolutismo eram as culpadas pela negativa situação dos países
ibéricos, era também causa responsável o vício do democratismo revolucionário, em que eles tinham descambado, à
sombra da Constituição espanhola, inspiradora da Revolução Constitucionalista
do Porto (1820). A respeito, escreve Pinheiro Ferreira: "Se governos tais
como o de Espanha e provavelmente o de Portugal não fossem condenados pelo
democratismo das suas constituições a serem o ludíbrio de partidos incapazes de
razão e de sistema, mui fácil seria à Península, não digo já resistir, mas até
fazer passar à Santa Aliança toda a vontade de se intrometer nos seus negócios
internos" [Pinheiro Ferreira, 1976: 74].
Qual seria o caminho para
sair dos males presentes? Somente um: institucionalizar o sistema representativo. A adoção deste correspondia, para Silvestre
Pinheiro Ferreira, não a uma quebra das tradições portuguesas, mas à retomada
da mais sadia de todas elas: a
tradição contratualista, que fazia do Rei mandatário da Nação, única
depositária da soberania. Em detalhada exposição histórica no seu Manual
do Cidadão em um Governo Representativo, Pinheiro Ferreira destaca que
a tradição mais antiga, a que acompanha Portugal desde a sua consolidação como
Nação independente, é a da soberania popular que delega o poder no Rei, mas que
não duvida em tirá-lo dele nos momentos em que o Monarca esquecer a busca do
bem comum.
Concluindo a sua exposição,
escreve o pensador português: "Não há povo algum na Europa, exceto o
espanhol, onde a origem da monarquia seja mais popular, e os limites da realeza
mais bem estabelecidos do que no português. (...) Fica pois provado além de
outros muitos documentos da história portuguesa pela Ata das Cortes de 1641, no reinado de dom João IV, e pela Exposição remetida ou autorizada por dom
Pedro II, não só a verdadeira origem, mas as condições essenciais do poder
monárquico em Portugal; e que neste reino o princípio da soberania do povo tem
prevalecido sobre a doutrina do chamado direito
divino, doutrina falsa e subversiva enquanto considerada como imediata
origem do poder civil. Por esta ocasião
é de notar que o princípio da soberania do povo foi expressamente
reconhecido e adotado pelos dois primeiros reis da casa de Bragança; que foi
depois renegado por outros monarcas da mesma dinastia tornando-se absolutos; e
ultimamente foi restabelecido por dom Pedro I, outro príncipe da mesma dinastia
e imperador do Brasil, no artigo 12 da constituição daquele império onde se
diz: Todos os poderes políticos no
Império do Brasil são delegações da Nação" [Pinheiro Ferreira, 1976:
154-156, nota].
Pinheiro Ferreira
considerava que somente a adoção do sistema
representativo permitiria ao Brasil superar os males que afetavam Portugal,
vítima, sucessivamente, do absolutismo e do democratismo. Eis as palavras com
que o nosso autor inicia o seu Manual do Cidadão em um Governo
Representativo: "O Projeto de código constitutivo que hoje
publicamos é a pura expressão das opiniões políticas que de quarenta anos a
esta parte havemos constantemente professado. Consultados em 1814 pelo monarca,
a quem naquela época estavam confiados os destinos da nação, sobre o meio de
atalhar os males de que o reino estava ameaçado, dissemos sem rebuço que a
adoção do sistema representativo era o que unicamente podia obstar à iminente
catástrofe da monarquia" [Pinheiro Ferreira, 1976: 107].
Feita a defesa incondicional
da soberania popular e do sistema
representativo, os restantes pontos da teoria da representação revelam
também a mais ortodoxa inspiração no liberalismo lockeano e na interpretação
elaborada por Benjamin Constant, a que já fizemos referência na parte inicial
deste capítulo. A representação é, fundamentalmente, de interesses [cf.
Pinheiro Ferreira, 1976: 121]. Para que a representação seja autêntica, é
necessário a sua vinculação a uma base territorial definida, bem como a sua
institucionalização permitindo a representação das várias ordens de interesses
presentes na sociedade; o nosso autor defendia a divisão do território em
cantões (proposta que deu ensejo aos distritos eleitorais do Império). A
respeito dessas exigências da representação, escreve: "O que importa pois determinar é a
extensão do território que, em regra geral, é de presumir que os conhecimentos
do deputado possam abranger na sua especialidade. Ora nós entendemos que todo o
homem é capaz de representar e conhecer, mesmo em todos os pormenores, não a
província, mas decerto o cantão onde é domiciliado. De onde se segue que cada
cantão deve mandar ao congresso um deputado por cada um dos três estados,
comércio, indústria e serviço público" [Pinheiro Ferreira, 1976: 133].
No que tange às várias
ordens de interesses a serem representados, Pinheiro Ferreira frisa: "O
que porém distingue essencialmente o nosso método do que vulgarmente está
recebido, é que nós exigimos em cada deputado a especialidade de conhecimentos
requerida para bem representar cada uma das três sortes de interesses relativos
às três seções de que se deve compor o congresso legislativo; enquanto nos
métodos vulgares cada eleitor escolhe sem saber que condições deve reunir o
candidato. Por isso vemos que os interesses dos diferentes estados são mui
imperfeitamente representados nos congressos de quantas nações se presumem
viver debaixo do regime constitucional; pela simples razão que a lei não
dirigiu a atenção do eleitor afim de que ele se concentrasse no círculo de seus
conhecimentos, e procurasse entre as pessoas do seu mesmo estado as mais
capazes de representar os respectivos interesses [Pinheiro Ferreira, 1976:
133-134].
O Congresso deve representar
todos os interesses presentes na sociedade. A respeito, Pinheiro Ferreira
escreve: "O Congresso deve ser dividido em três seções (...). Destas
seções duas são destinadas a representar os interesses especiais do comércio e
da indústria, e a terceira os interesses gerais de todas as classes, à qual por
isso daremos o nome de estadística.
Para cada uma das três mencionadas seções deve ser eleito um deputado por
cantão, sendo eleitores os cidadãos aí estabelecidos, e que em razão de seus
empregos ou profissões pertençam àquela das sobreditas ordens de interesses,
que o deputado tem de representar, quer ele pertença à seção do comércio, quer
à da indústria. Quanto à seção da estadística
não se faz diferença de profissão ou emprego" [Pinheiro Ferreira, 1976:
136].
O pensador português
considerava que a principal vantagem do sistema representativo surgido das
eleições, consistia na conquista da verdadeira estabilidade política.
Contrariamente ao preconceito dos espíritos absolutistas, que criticavam a
democracia representativa pelo fato de ensejar a instabilidade política
decorrente dos contínuos pleitos eleitorais, Pinheiro Ferreira achava que a história
prova exatamente o contrário: ali onde se concretizou a institucionalização da
representação a partir das eleições, conquistou-se a verdadeira estabilidade
política e a paz social, como nos Estados Unidos. A respeito, escreve o nosso
autor: "Bastaria citar o exemplo dos Estados Unidos da América
setentrional para mostrar quanto é falsa a asserção dos perigos inerentes ao
sistema eletivo" [Pinheiro Ferreira, 1976: 165].
O pensador português deixa
claro, evidentemente, que pode haver pleitos eleitorais viciados. Daí a grande
importância que confere à elaboração de uma apropriada legislação eleitoral,
que impeça as fraudes, ou que o processo democrático termine sendo manipulado
por uma minoria, como no caso extremo do democratismo. Refletindo acerca das
medidas que devem ser tomadas para salvaguardar os pleitos eleitorais, escreve:
"Uma observação, que não podemos passar em silêncio vem a ser: que as
comoções populares de que as eleições têm sido algumas vezes acompanhadas,
tiveram origem nos defeitos em que elaboravam os métodos para esse efeito
adotados. Mas desde que estes forem fundados nos princípios que havemos
desenvolvido na conferência em que tratamos da teoria das eleições, os erros que se introduzirem (porque o erro é
inevitável em toda a instituição humana) serão tão fáceis de reconhecer como de
reparar. Quando as eleições não forem o monopólio de alguns, mas sim o direito
de todos; quando nenhum cidadão capaz de emitir voto com conhecimento de causa
puder ser excluído, nem dispensado de o fazer; quando todo o cidadão que reunir
as condições de elegibilidade requeridas for necessariamente objeto de votação,
e esta se fizer por via de uma simples remessa de listas, com a maior
independência e publicidade, sem tumulto, confusão, nem surpresa, todo o acesso
à intriga será impossível, pois é evidente que não se pode intrigar à face de
toda a gente" [Pinheiro Ferreira, 1976: 165-166].
Uma vantagem adicional para
a institucionalização de regimes representativos a partir do sufrágio popular,
é a garantia que daí decorre, no que tange ao zelo dos administradores da coisa
pública. À pergunta: "Por que se fazem as eleições anualmente?" o
nosso autor responde: "Há para isso duas razões: 1ª porque a experiência
tem provado que mesmo as eleições feitas com o maior escrúpulo nem sempre
correspondem à expectação; 2ª porque a dependência em que ficam os
administradores dos votos dos seus (eleitores) em uma determinada época, é a
única verdadeira garantia de zelo com que hão de cumprir as suas
obrigações" [Pinheiro Ferreira, 1976: 138].
Construção dos canais de
comunicação entre a sociedade e o poder.- Isso se conseguiria mediante a
representação, que faria com que as instituições políticas correspondessem às
relações sociais. Esse era o caminho que Silvestre Pinheiro Ferreira enxergava
para vencer o perigo da guerra civil. A respeito, escrevia em 1834 o nosso
pensador: "Sobre o meio de atalhar os males de que o Reino estava
ameaçado, dissemos sem rebuço que a adoção do sistema representativo era o que
unicamente podia obstar à iminente catástrofe da monarquia" [Pinheiro
Ferreira, 1976: 107].
Teoria da dupla
representação.- Constant de Rebecque tinha formulado a existência de uma dupla
representação: da continuidade (desempenhada pela assembléia hereditária) e da opinião
(desempenhada pela assembléia eletiva). O Rei, outrossim, para o publicista
francês, era independente do Poder Executivo [cf. Constant, 1970: 19-24]. Em
Pinheiro Ferreira, em que pese a influência recebida de Constant, encontramos
uma reformulação desses princípios: de um lado, a dupla representação consistia
em representação virtual, exercida pelo Monarca e que não dependia de eleições,
e representação dos interesses dos estados sociais (comércio, indústria e
serviço público), proveniente das eleições. A representação virtual espelhava
os interesses permanentes da Nação (ou seja, salvaguardava aquelas exigências
sem as quais -- como no caso da defesa
da soberania -- desapareceria o corpo
político), ao passo que a representação dos estados sociais espelhava os
interesses mudáveis da sociedade. De outro lado, Pinheiro Ferreira [cf. 1976:
144-145] conferia ao Monarca o privilégio de ser o chefe supremo do Poder
Executivo. Mas, de acordo com os princípios que tinham sido desenvolvidos por
Constant, o pensador português preservava o rei de ser objeto da luta política
ou das invejas da sociedade, em virtude do caráter de
"inimputabilidade" de que a pessoa do monarca estava revestida.
Caráter nacional e não
individual da dupla representação.- Para Pinheiro
Ferreira, tanto a representação virtual do Monarca, quanto a relativa aos
estados sociais, não era individual mas nacional, o que significava que o
representante não defendia os interesses de cada eleitor individualmente. A
respeito, escreve Vicente Barretto: "Tanto no Brasil, como em Portugal, o
Estado continuava a ser o centro da vida política nacional e as reformas
propostas, ainda que com justificativas liberais, terminavam sempre no
aperfeiçoamento das instituições estatais. O patronato político brasileiro
subsistiria em função do Estado, não se encontrando caraterísticas
individualistas em suas manifestações liberais" [Barretto, 1976: 18].
A idéia da relação entre
civilização e dependência.- No terreno das relações internacionais, Pinheiro
Ferreira elaborou interessante teoria acerca da interdependência das Nações. O
cerne dessa teoria foi expressado assim pelo estadista português: "E
portanto pode-se dizer, que o máximo de civilização é inseparável do máximo de
dependência: tanto em extensão de artigos de que se precisa, como pelo grande
número de homens e países, cujo concurso se torna necessário" [Pinheiro
Ferreira, 1970: 281].
O pensador português
considerava, no entanto, que havia uma diferença na dependência das nações
ricas e das nações pobres. A das primeiras era positiva e consistia no pleno
funcionamento da economia de mercado livre, que evitava o monopólio ao aceitar
a pluralidade de fontes produtoras. Os três princípios de economia
internacional obedecidos pelas nações ricas, eram os seguintes: "a) Não
depender de outra Nação para bens que interessem essencialmente à própria
existência; b) não depender de outra Nação de modo que não se possa por outro
meio conseguir os bens por ela fornecidos; c) dar preferência no mercado à
Nação melhor compradora dos produtos primários ou industriais" [Pinheiro
Ferreira, 1970: 281].
Como fundamento desta teoria
da interdependência, o pensador português desenvolveu uma espécie de eudemonismo moral, válido tanto para os
indivíduos quanto para as Nações. Vicente Barretto sintetizou da seguinte forma
esse aspecto do pensamento de Pinheiro Ferreira: "Para o autor das Preleções
filosóficas a felicidade era entendida como a predominância de gostos
sobre as dores encontradas na vida humana. Tanto nos indivíduos, como nas
Nações, a felicidade, que se busca, pode ser avaliada levando-se em conta a
suficiência de meios, que protegem os indivíduos e as Nações; e em meios que
possibilitam o aumento do número e
variedade dos prazeres. A riqueza e opulência, individual ou nacional, é
atingida quando se combinam as duas condições referidas, ficando assim o
indivíduo ou a sociedade aptos a superar a adversidade e desenvolver,
plenamente, as suas potencialidades" [Barretto, 1976: 12-13].
José Esteves Pereira, o mais
importante estudioso contemporâneo da obra de Pinheiro Ferreira, caracterizou
da seguinte forma a singular concepção moral deste autor, que oscila entre o
espiritualismo (de inspiração leibniziana) decorrente da moral cristã e o mais
puro benthamismo: "No autor se recupera uma matriz que sublinha o primado
da personalidade e adivinha o enfrentamento com a transcendência. Quanto a este
último aspecto, segundo o autor, das ciências que têm por objecto as faculdades
do espírito acedemos àquelas que nos permitem entender um sistema geral do
mundo. Deparamos, neste caso, com a nítida inspiração leibniziana (O presente
está prenhe de futuro) que também o motiva para uma mathesis universal
(Pasigrafia), constituindo a meditação sobre o mundo o enfrentamento com a
criação e a necessidade de uma Teologia Natural que coroará o relacionamento
entre a realidade física e espiritual do homem abrindo-se ao mistério e à
revelação. Mas, esta abertura à transcendência que passa pela aceitação de uma
moral fundada no decálogo, nem por isso deixa de admitir, também, o princípio
utilitarista, como em Bentham, do maior bem para o maior número através de uma
consideração dos móbeis da acção e dos resultados experienciais de prazer e de
dor. É certo, porém, que o teor empirista do utilitarismo de Silvestre Pinheiro
Ferreira tem um alcance espiritual inegável. Tratava-se de promover uma
pedagogia intencionada a, em época de definição teórica do liberalismo,
reconduzir a palavra a uma precisão sintáctica e pragmática para o
aperfeiçoamento espiritual, social e político, mediando o entendimento da
perenidade e da transcendência dos valores com as possibilidades de uma
sociedade que se procurava para lá do puro formalismo dos direitos individuais
e do amor próprio excessivo ou egoísta. Neste sentido, talvez se perceba a admissão, não
incontestavelmente conflitual, entre a esfera moral de matriz transcendente e
uma ética de acção liberal de base solidarista, que as suas reflexões sociais
indiciam aproximando-o do krausismo (embora o seu empirismo e sensualismo de
base pareçam dificultar tal aproximação" [Pereira, 1995: 40]
C) A Carta de 1824 e a prática do parlamentarismo
A Constituição Política do
Império do Brasil de 25 de março de 1824, no seu Título V, Capítulos I e II,
estabeleceu o Poder Moderador nos moldes cogitados por Silvestre Pinheiro
Ferreira. Lembremos os aspectos fundamentais: "O Poder Moderador é a chave
de toda a organização política, e é delegado privativamente ao Imperador, como
chefe supremo da nação e seu primeiro representante, para que, incessantemente
vele sobre a manutenção da independência, equilíbrio e harmonia dos mais
poderes políticos. (...) A pessoa do Imperador é inviolável e sagrada: ele não
está sujeito a responsabilidade alguma" [Brasil, 1948: 42]. O Imperador
exerce o Poder Moderador nomeando os senadores vitalícios, a partir das listas
tríplices surgidas das eleições provinciais, convocando a assembléia geral
extraordinária, sancionando os decretos e resoluções da assembléia geral,
aprovando e suspendendo interinamente as resoluções dos conselhos provinciais,
prorrogando ou adiando a assembléia geral, dissolvendo a Câmara dos Deputados,
nos casos em que o exigir a salvação do Estado, nomeando e demitindo os
Ministros de Estado, suspendendo os Magistrados, etc. O Imperador é, outrossim,
o chefe do Poder Executivo e o exercita
pelos seus Ministros de Estado [Brasil, 1948: 42].
O conjunto de leis
denominado de "Regresso", em 1841, corrigiu os excessos de
desconcentração do poder e de exagerada autonomia provincial do período
regencial, consubstanciados no Ato Adicional de 1832 [cf. Brasil, 1948: 50] e
deu ensejo ao período de maior estabilidade política da história brasileira. O
princípio formulado por Bernardo Pereira de Vasconcelos, de que "é preciso
deter o carro da revolução", lembra muito bem a convicção dos
constituintes de Filadélfia, que reagiram, pela boca de Jefferson, contra a
"retórica utópico-democrática" que ameaçou deitar por água abaixo a
unidade das 13 ex-colônias americanas, após o excessivo federalismo dos
"Artigos da Confederação". Lá como no Brasil, o equilíbrio entre o
princípio hobbesiano da unidade e da centralização do poder e o princípio
lockeano da defesa da liberdade mediante a representação, seria a fórmula
salvadora.
Enxergadas as instituições
imperiais à luz do hodierno parlamentarismo, é evidente que impressiona o
acúmulo de poderes de que gozava o Imperador. Esses poderes centravam-se,
fundamentalmente, no exercício do Poder Moderador e no fato de o Imperador ser
o chefe do Executivo. O exercício da função moderadora permitia ao soberano
prorrogar ou adiar a assembléia geral (integrada pelo Senado e pela Câmara dos
Deputados), dissolver a Câmara e convocar imediatamente outra que a
substituísse. Moderando o exercício do Poder Legislativo, controlando, de outro
lado, a Polícia e a Magistratura, acúmulo enorme de poderes descansava nas mãos
do Imperador. A Guarda Nacional, a maior organização pré-burocrática de homens
livres do Hemisfério Ocidental [Cf. Uricoechea, 1978], que em 1851 arregimentava
250 mil pessoas livres, cooptadas pelo Imperador, era o instrumento básico,
típico instituto do Poder Patrimonial, para ganhar qualquer eleição. Daí o
famoso sorites do senador Nabuco de Araújo: "O Poder Moderador pode chamar
a quem quiser para organizar ministérios: esta pessoa faz a eleição, porque há
de fazê-la e esta eleição faz a maioria" [cit. por Torres, 1968: 18].
A centralização, pelo
Imperador, dos poderes de polícia e de controle sobre a magistratura, decorreu
da reforma do Código de Processo (1841). "Graças a essas medidas -- frisa João Camillo de Oliveira Torres
-- foi possível ao Governo Imperial
implantar a sua autoridade sobre todo o território nacional" [Torres,
1968: 59].
Tratava-se, sem dúvida, de
uma prática de democracia induzida, como se o Imperador chamasse a ganhar as
eleições aqueles que garantissem o funcionamento das Instituições. Heitor Lyra,
o biógrafo de dom Pedro II, pretendia desmontar assim o sorites de Nabuco,
destacando, no entanto, o caráter induzido já apontado: "Este raciocínio
era, sem dúvida, exato, quer dizer, todas as suas proposições de fato se
verificavam. Mas, convinha indagar: era por culpa do Imperador? Por culpa da
Constituição? Ou por culpa da escassa cultura das massas eleitorais? Se as
proposições que formavam o 'sorites de Nabuco' se verificavam de fato, uma
delas, pelo menos, de direito, era
falsa e tirava, assim, ao sorites, todo
o fundamento legal. Os presidentes de Província, dizia Nabuco, faziam as
eleições. De fato, assim era: os presidentes de Província faziam bem as
eleições, a mando e sob o controle dos Gabinetes, que fabricavam eles mesmos as
Câmaras, as quais, teoricamente, os deviam sustentar. Mas onde estava o
fundamento legal da atribuição que se arrogavam os presidentes de Província, de
fazerem as eleições?" [cit. por Torres, 1968:
18].
A razão que justificava este
modelo de exercício programado e vertical das eleições era, portanto, a
fragilidade do tecido social num meio eivado de práticas familísticas.
Oliveira Torres identificou com clareza
essa razão: "O drama do Império, que pouca gente sentia na época e que
muitos até hoje não compreenderam, residia, exatamente, no fato de quererem que
as práticas da democracia representativa à inglesa (nascida num país
industrializado e de forte concentração demográfica) vigorassem num país cuja
população era escassa e rala, quase toda espalhada pelos campos, vivendo em
função da autoridade semi-feudal dos senhores de terras" [Torres, 1968:
31].
Em que pese o fato do poder
concedido ao Imperador, é válida, contudo, esta afirmação: o Segundo Reinado
(1842-1889) deitou as bases para a prática da representação política, uma
representação dos interesses de proprietários, comerciantes e funcionários
públicos, é bem verdade, alicerçada no voto censitário (como, aliás, tinha
acontecido na Inglaterra e no resto da Europa Ocidental, ao longo dos séculos
XVII a XIX), mas que se encaminhava à ampliação da base social a ser
representada. Convém enumerar aqui os aspectos em que a Constituição Imperial
de 1824 e a legislação subseqüente (até 1889), contribuíram à valorização e ao
alargamento da representação e dos direitos dos cidadãos. Esses aspectos são os
seguintes:
1) Reconhecimento do Poder
Legislativo como "delegado (pela Nação) à assembléia geral", integrada
pela câmara dos deputados e a câmara dos senadores. As funções da assembléia
geral eram claramente definidas no Título IV, Capítulo I da Constituição de
1824 e entre elas figuravam: tomar juramento ao Imperador, ao Príncipe
Imperial, ao Regente ou Regência; eleger a Regência ou Regente e marcar os
limites de sua autoridade; reconhecer o Príncipe Imperial como sucessor ao
trono; resolver as dúvidas sobre a sucessão da Coroa; instituir exame da
administração anterior, quando da morte do Imperador ou quando da vacância do
trono, "e reformar os abusos nela introduzidos"; escolher nova
dinastia, em caso de extinção da imperante; fazer leis, interpretá-las,
suspendé-las e revogá-las; velar pela guarda da Constituição, e promover o bem
geral da Nação; fixar anualmente as despesas públicas, e repartir a
contribuição direta; fixar anualmente as forças de mar e terra; conceder ou
negar permissão para a entrada de forças estrangeiras dentro do Império ou dos
portos dele; autorizar o governo para tomar empréstimos; regular a
administração dos bens nacionais e decretar a sua alienação; criar ou suprimir
empregos públicos, etc.
2) Reconhecimento da
inviolabilidade dos membros de cada uma das Câmaras pelas opiniões que
proferissem no exercício de suas funções, bem como da sua imunidade durante a
respectiva deputação.
3) Institucionalização do
Conselho de Estado "composto de conselheiros vitalícios, nomeados pelo
Imperador" (Título V, Capítulo VII, art. 137). Os conselheiros deveriam
ser ouvidos sempre que o Imperador fosse exercer o Poder Moderador. Eles seriam
responsáveis pelos conselhos que dessem opostos aos interesses do Estado.
Acerca da forma como funcionou o Conselho de Estado, escreve Oliveira Torres:
"O Conselho de Estado não seria, como pensaram os alarmados liberais
mineiros de 1842, a concentração da oligarquia conservadora, mas um tribunal
político admirável, no qual tinham assento gregos e troianos, que diziam ao
Imperador o que ele devia ouvir, nem sempre, talvez, o que gostasse de ouvir. E
com isto tivemos a única experiência que o mundo conheceu de participar a
oposição, conservada a sua condição oposicionista, na direção da coisa pública
[Torres, 1968: 60]. Tão significativa foi a atuação do Conselho de Estado na
tarefa de moldar a opinião do Imperador, que chegou a ser chamado de "o
quinto poder" [cf. Rodrigues, 1978].
4) Funcionamento das câmaras
eletivas "em todas as cidades e vilas ora existentes, e nas mais que para
o futuro se criarem (...), às quais compete o governo econômico e municipal das
cidades e vilas" (Tit. VII, cap. II, art. 167-168).
Essa disposição
vinha equilibrar o centralismo contido no poder do Imperador de nomear os
presidentes das Províncias (Tit. VII, cap. I, art. 165).
5) Reconhecimento da
"Inviolabilidade dos direitos civis e políticos dos cidadãos brasileiros,
que tem por base a liberdade, a segurança individual e a propriedade"
(Tit. VII, art. 179).
6) Abolição de "todos
os privilégios que não forem essencial e inteiramente ligados aos cargos para
utilidade pública" (Tit. VII, art. 179, par. 16).
7) Aperfeiçoamento da
representação e alargamento do voto, mediante as reformas eleitorais: a de 1846
(que organizava o eleitorado permanente); a de 1855 (que organizava os
distritos eleitorais) e a de 1881, a famosa Lei Saraiva (que adotava o sistema
da eleição direta). Expressão do cuidado com que o Imperador tratava a questão
do voto e da representação, é o seguinte trecho da Fala do Trono de 1º de fevereiro de 1877: "Na execução da nova
lei que regulou o processo eleitoral, a expressão do voto popular tivera plena
liberdade e, no decurso da eleição, não fora perturbada a ordem pública.
Conviria, entretanto, examinar se as disposições da mesma lei asseguravam
suficientemente a desejada e possível pureza da eleição, base fundamental do
sistema representativo" [cit. por Barretto, 1982: 75]. A Lei Saraiva, de
1881, viria culminar esse processo de aperfeiçoamento da representação, pois
como escreve Vicente Barretto, "viria consagrar o estabelecimento final
das instituições liberais no Império. Passava o regime a ser fundado na eleição direta e censitária, onde todos
os participantes do processo político, os
cidadãos ativos, encontravam-se em igualdade de condições jurídicas para
escolher os governantes, desde que satisfeitas as exigências econômicas para
participar do processo político" [Barretto, 1982: 77-78].
8) O equilibrado revezamento
de liberais e conservadores no poder, graças à ponderada atuação do Poder
Moderador. Ao longo do reinado de dom Pedro II, entre 1840 e 1889, somaram ao
todo 36 gabinetes, sendo que os conservadores permaneceram no poder 26 anos e
os liberais 18. Calógeras escreveu a respeito desse fato, no seu livro Da
Regência à queda de Rosas: "Ritmicamente, alternavam-se em prazos
de cinco a seis anos, com um máximo, para os conservadores, de 10 anos no
período de 1868 a 1878" [cit. por Tapajós,
1963: 374].
9) A presença atuante de uma
elite de homens públicos, formados ao redor de dom Pedro II e que constituíram
a elite de homens de 1000, que
permitiram fazer surgir, num contexto de cultura patrimonialista e
privatizante, o ideal do bem público e que, a partir daí, construíram o
sentimento de Nação, num amplo processo de paideia
política [cf. Barros, 1973]. Esses homens
de 1000 -- frisa Oliveira Vianna
-- caracterizavam-se pela sua
"inata vocação ao bem comum da Nação" e eram "homens que
aborrecem a avareza (...) como os da vocação mosaica. Conselheiros, senadores,
ministros, altos dignatários da Coroa, eles passaram pela administração (di-lo
a história do Império) nutridos do sentimento do seu dever público, impregnados
do desejo de bem servir ao país, colocando os interesses da Nação e o
cumprimento das suas obrigações cívicas acima dos seus interesses pessoais e de
família, e mesmo de partido. Todos eles timbravam -- como os cavalheiros do antigo regime
-- em morrer pobres e de mãos limpas.
Todos eles eram trabalhados pelo fogo dessas preocupações, dessas absorventes
preocupações do patriotismo e do serviço público" [Vianna, 1982: 582].
Essa elite ensejou importante
reflexão de cunho filosófico-jurídico, que contribuiu decisivamente para firmar
e desenvolver as Instituições imperiais. Eis algumas das mais representativas
contribuições teóricas: Pimenta Bueno (Direito público brasileiro, 1857);
Domingos José Gonçalves de Magalhães, visconde de Araguaia (Fatos
do espírito humano, 1858; A
alma e o cérebro, 1876; Comentários e pensamentos, 1880); Paulino José Soares de Sousa,
visconde de Uruguai (Ensaio sobre o direito administrativo, 1862); Affonso d'Albuquerque Mello (A
liberdade no Brasil, 1864);
Brás Florentino Henriques de Souza (Do poder moderador, 1864; Dos responsáveis nos crimes de
liberdade de exprimir os pensamentos, 1866); José Soriano de Souza (Compêndio
de filosofia, 1867; Lições
de filosofia elementar racional e moral, 1871; Estudos de filosofia do direito, 1880); Américo Brasiliense (Os
programas dos partidos e o II Império, 1878); M. Sá e Benevides (Elementos de filosofia do direito, 1884); Tavares Bastos (Cartas
do solitário, 1862); etc.
Weber previu que era
possível evoluir de sociedades marcadas pela tradição patrimonial, até
sociedades de tipo contratualista. No caso ibérico, isso se tornou possível
graças a causas exógenas (a influência da tradição liberal anglo-saxônica, por
exemplo), ou endógenas (a retomada de tradições de inspiração libertária e
contratualista na Península Ibérica, ao longo do século XX). A evolução do
mundo ibérico e ibero-americano ao longo dos últimos trinta anos (o
amadurecimento da democracia representativa e a modernização da economia na
Espanha, em Portugal, no México, na Argentina, no Brasil, no Chile, etc.)
parece sugerir que esse processo de abertura pode ser dinamizado a partir da
sociedade, tendo por base um novo pacto político e sob a inspiração de uma nova
Constituição ou de reformas constitucionais significativas.
O que ocorreu no Brasil no
século XIX insere-se neste contexto. O Império do Brasil e as instituições do
governo representativo que lhe eram inerentes constituíram-se a partir de nova
concepção do Estado, no terreno do direito constitucional, sob a inspiração de
Constant de Rebecque e dos doutrinários como Guizot. Essa concepção, no
entanto, como destacou Silvestre Pinheiro Ferreira, não era alheia à cultura
luso-brasileira, porquanto retomou a tradição de defesa da liberdade presente
no antigo direito visigótico, sem contudo esbarrar no extremo do democratismo.
Essa tradição, reforçada pelo conceito de soberania elaborado pelos filósofos
do século XVII (entre os quais sobressai a figura do padre Francisco Suárez),
veio ser vivificada pela abertura de Pinheiro Ferreira à filosofia liberal, nas
versões moderadas de Locke e de Constant.
O efeito dessa magna obra
criativa foi o Império do Brasil, uma nação organizada nos moldes do que Simon
Schwartzman [1982] e Antônio Paim [1978] convencionaram em chamar de patrimonialismo modernizador ou neopatrimonialismo, em que a variável da
democracia representativa constituía elemento essencial do processo, apesar do
evidente centripetismo do Estado.
A marcha modernizadora do
Estado patrimonial brasileiro no período republicano, em decorrência do primado
exercido pela filosofia positivista, abandonou as preocupações com a democracia
representativa e acirrou o centripetismo do executivo hipertrofiado, no modelo
de ditadura científica implantado por Júlio de Castilhos e seus seguidores, no
Rio Grande do Sul (entre 1891 e 1930) [cf. Vélez, 2000]. Esse modelo seria
aplicado a nível nacional por Getúlio Vargas, a partir de 1930. As atuais
ambigüidades da política brasileira, ainda às voltas com a síndrome arcaizante
do estatismo que teima em se manter, explicam-se em boa medida pelo abandono da
tradição liberal que o Império soube preservar, graças à têmpera de teóricos da
talha de Silvestre Pinheiro Ferreira e de estadistas como dom Pedro II ou o
visconde de Uruguai.
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