No centro, Arsênio Eduardo Corrêa, rodeado, da esquerda para a direita, por Leonardo Prota, José Maurício de Carvalho e Antônio Paim (Foto: Ricardo Vélez Rodríguez, São João del Rei, 2008). |
Este é o título de importante livro do Dr. Arsênio Eduardo Corrêa, meu amigo, brilhante advogado paulista e membro do
Instituto de Humanidades. A obra, publicada em Londrina por Edições
Humanidades, em 2009, consta de 126 páginas. Constitui contribuição de peso para o melhor conhecimento da forma em que se deu o início da denominada
“política dos governadores” posta em execução por Campos Sales (1841-1913),
quando da sua passagem pela Presidência da República (entre 1898 e 1902).
Arsênio Corrêa dividiu a sua obra
em quatro partes: I – Campos Sales e a implantação do modelo político adotado
na República Velha. II – Na vazante da “maré cheia liberal” emergem correntes
autoritárias. III – O pensamento político de Campos Sales. IV – Epílogo.
O autor destaca que duas foram as marcas
registradas dos três primeiros governos republicanos (presididos sucessivamente
por Deodoro da Fonseca, Floriano Peixoto e Prudente de Morais): instabilidade
crescente e autoritarismo. Tal circunstância decorreu da ruptura ensejada com a
queda do Império e o abandono das instituições do governo representativo no
novo ciclo histórico. “A opção por uma república federativa, nos moldes
americanos, – frisa o autor – levou o governo a adotar a teoria da
descentralização. Portanto de uma prática organizacional de mais de meio século
(...), saltamos no escuro para uma nova organização política e administrativa”
[pg. 16].
Como ministro da Justiça do Governo
Provisório, Campos Sales tentou dar estabilidade à administração (presidida
pelo velho Marechal Deodoro, bastante doente), mediante a tese da
responsabilidade compartilhada do Chefe do Executivo e os seus ministros, nos
atos de governo. No mandato de Prudente de Morais, que seguiu ao bonapartista
governo de Floriano Peixoto, a instabilidade aumentou, na medida em que o
Presidente da República ficou refém do Partido Republicano Federal, sendo que o
chefe deste, nas palavras de José Maria Belo, tornou-se “uma espécie de
condestável da República” [pg. 28].
As instituições republicanas, no
Brasil, passaram a sofrer das mesmas contradições que enfrentou a Terceira
República francesa: acirrada disputa entre o Executivo e o Parlamento, como
destacava José Maria Belo: “O poder do Congresso e o poder do Presidente da
República harmonizavam-se apenas nos artigos constitucionais; na realidade, não
se entenderiam nunca” [História da República, 6ª edição,
São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1969, p. 151].
A “política dos governadores”,
posta em execução por Campos Sales ao longo do seu mandato presidencial
(1898-1902), foi a resposta dada pelo mandatário a essa crônica instabilidade.
Antônio Paim sintetizou assim a essência daquela: “A peça-chave dessa política
consistia em delegar à Mesa da Câmara, composta pela Chefia do Executivo, a
atribuição de reconhecer os diplomas dos parlamentares. Às eleições concretas
se substituía a ata da apuração, confeccionada na Capital da República a partir
do único critério de assegurar maioria sólida ao governo, sem maiores
compromissos com o evento real. Viu-se então representantes eleitos que perdiam
seus votos na confecção da ata e toda sorte de chicana. Tudo isto mediante
simples arranjo no Regimento da Câmara dos Deputados, intocada a Constituição”
[A
querela do estatismo, 1ª edição, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,
1978, p. 62].
Arsênio Corrêa caracterizou a
“política dos governadores” como um expediente pragmático do governo para
garantir a unidade política e a estabilidade, sem intervir direto nos Estados,
mas manipulando o mecanismo de legitimação das eleições, privilegiando os
interesses do Executivo e do Partido Republicano, ao seu serviço. Eis a
caracterização efetivada pelo autor: “A política dos governadores foi,
portanto, a unidade política estabelecida por Campos Sales, que pressupunha a
não intervenção nos Estados. Isso trouxe a perda de importância das eleições,
consolidando as situações estaduais, cuja legitimidade era equivalente à da
União. É forçoso reconhecer que assegurou estabilidade política. Naturalmente,
às custas da legitimidade da representação, vale dizer, do abandono do espírito
que presidiu à estruturação das instituições de tal governo, no Segundo
Reinado. Ali, o foco estava na determinação dos interesses que deveriam ser
representados. E, subseqüentemente, a avaliação sucessiva da capacidade
respectiva de assegurar-lhe legitimidade. Agora o foco mudava completamente de
direção: assegurar o livre exercício do poder, excluída a possibilidade de
negociação fora dos círculos que tivessem comprovado sua fidelidade ao sistema
republicano. Somente o Partido Republicano tinha autorização de funcionamento
e, portanto, de participar dos pleitos em que era admitida a disputa” [pg. 61].
O efeito produzido pelo arranjo
autoritário foi a desvalorização da representação e a instabilidade, que
conduziriam diretamente à adoção, mais adiante, do modelo de ditadura
republicana criado por Castilhos no Rio Grande do Sul. O autor ilustrou esses
aspectos negativos da seguinte forma: “Os efeitos das novas regras
estabelecidas no Regimento Interno da Câmara revelaram-se devastadores. A
primeira vez em que se deu sua aplicação, em 1900, sob Campos Sales, (com a
atuação da) Comissão instituída a partir da Mesa Cessante, deixaram de ser
reconhecidos 74 mandatos, cerca de 35% do total (o Parlamento se compunha de
212 representantes). O caso extremo
deu-se na Câmara eleita em 1912: 91 mandatos deixaram de ser reconhecidos, 43%
do total. Criou-se, assim, uma falsa estabilidade, na medida em que exigia
fosse desfigurada a representação. Ainda que a Constituição fosse mantida e
submetidos ao Parlamento os freqüentes estados de sítio, a providência
tornou-se a ante-sala do longo ciclo autoritário vivido pela República
brasileira” [p. 61].
A formulação da “política dos
governadores” por Campos Sales alicerçava-se no democratismo rousseauniano, de
que o mencionado homem público era tributário, como, aliás, a geração de jovens
bacharéis formados no Largo de São Francisco, na segunda metade do século XIX.
Segundo Arsênio Corrêa, Campos Sales deixou-se seduzir pelo ideal do
caudilhismo militar em que era muito rica a tradição política hispano-americana,
claramente professado por Quintino Bocaiúva, um dos mais atuantes
propagandistas das idéias republicanas e que integrou, junto com Campos Sales,
o primeiro gabinete republicano. Com essa geração de bacharéis que chegavam à
vida pública, salvo contadas exceções como o calejado liberal Rui Barbosa,
passou a prevalecer, como marco teórico que daria vida às instituições
republicanas, o democratismo rousseauniano, em substituição às idéias liberais
de Locke, Constant de Rebecque, Guizot e Tocqueville, em que tinham se
formatado as instituições imperiais. O abandono da questão da representação de
interesses dos cidadãos era apenas o corolário dessa opção teórica.
À luz do espírito de Rousseau foi aclimatada,
pela elite bacharelesca à cuja testa situou-se Campos Sales, a concepção que
tinha vingado no século XIX, na França, nos ciclos do republicanismo
bonapartista (1799-1804), do Primeiro Império (1804-1814), da Segunda República
(1848-1851) e do Segundo Império (1852-1870). Efetivamente, os dois Napoleões
(tio e sobrinho) forjaram nova teoria da representação, inspirada no ideal da
“vontade geral” do filósofo de Genebra, nos seguintes termos: 1) O governante
(presidente eleito, primeiro cônsul ou imperador) é o verdadeiro representante
da “vontade geral” da Nação. 2) Os corpos colegiados são legitimados, como
representantes secundários da “vontade geral”, pelo primeiro mandatário. 3) As
eleições são apenas mecanismos secundários para provisão dos corpos colegiados,
que passarão a desempenhar apenas funções técnicas (elaborar o orçamento, por
exemplo), sendo que toda a questão de legislar e governar cabe ao Executivo,
ajudado pelo Conselho de Estado, que é integrado, basicamente, por técnicos
escolhidos a dedo pelo primeiro mandatário. 4) Quando as eleições são
praticadas para eleger os mandatários nos ciclos republicanos (como quando Luís
Napoleão assumiu a Presidência da República, em 1848) legitimam um poder que
não pode ter limites e que é republicano pelo fato de ter sido eleito.
A fim de situar esse modelo no
contexto em que foi gerado, vale a pena analisar os seus aspectos fundamentais.
Jacques Necker (1732-1804), ministro das Finanças de Luís XVI e pai de Madame
de Staël (1766-1817), analisou detalhadamente a Constituição de 22 Frimário, ano VIII (1800), que sagrou um
modelo de República autoritária, presidida pelos três Cônsules, sendo Bonaparte
o que de fato exercia o poder [cf. Chevallier,
Histoire des Institutions et des Regimes Politiques de la France de
1789 à nos jours, 1977, p. 105-108]. O pai de Madame de Staël
considerava que, não tendo sido estabelecida, nessa Constituição, uma
verdadeira representação dos interesses populares no Parlamento, a eleição não
tinha nenhum sentido e as instituições republicanas careciam de autenticidade.
A propósito, escrevia Necker: "A primeira circunstância que chama a
atenção ao examinar esta Constituição é que, num Governo denominado de
Republicano, nenhuma porção dos poderes políticos, nenhuma, realmente, foi
confiada à Nação. No entanto, não apenas nas Repúblicas mistas ou puramente
democráticas, mas também nas Monarquias moderadas, o povo concorre à nomeação
do Corpo Legislativo, à nomeação das autoridades que determinam os seus
sacrifícios. Vemos na Inglaterra os Membros da Câmara dos Comuns eleitos pela
Nação. Vemos na Suécia uma ordem de Burgueses, uma ordem dos Camponeses
comporem o Poder Legislativo; e sob a Monarquia Francesa o Terceiro Estado
nomeava Deputados às Assembléias Nacionais. Uma tal prerrogativa, a mais
importante de todas, foi substituída por uma ficção no novo código político da
França. Concede-se ao Povo um direito de indicação que não significa nada para
ele e que aborrecerá ao Governo se esse direito for respeitado" [Necker, Dernières
vues de politique et de finance, offertes à la Nation Française par M. Necker, Paris:
Bibliothèque de France, 1802, vol. I, p. 1-2].
Ora, nenhuma estabilidade
institucional poderia advir de um tal regime. Tratava-se de uma República de
faz-de-conta, modelo da que, no final do século XIX, os Castilhistas
instaurariam no Rio Grande do Sul. Tudo girava ao redor do único poder
verdadeiramente forte: o general Bonaparte. A feição dessa pseudo República foi
resumida perfeitamente por Jean-Jacques Chevallier, com as seguintes palavras: "Uma
fachada de sufrágio universal
(simples direito de apresentação). Uma fachada
de assembléias: o Senado, o Tribunato, o Corpo Legislativo. No governo uma fachada
de três cônsules, sendo que o poder repousava realmente no Primeiro Cônsul. Na
tarde em que o texto constitucional foi solenemente promulgado nas ruas de
Paris, as pessoas perguntavam: O que há
na Constituição? E a resposta era a seguinte: Há Bonaparte. O referendum sobre um texto constitucional tinha fatalmente virado um plebiscito sobre um homem"
[Chevallier, ob. cit., p. 107]. A propósito dessa enorme encenação, escreveu
Necker: "Mostraremos agora que toda essa organização é ao mesmo tempo
motivo de irritação para a massa geral dos Cidadãos, bem como um atentado aos
seus direitos, um estorvo para o Governo e um constrangimento prejudicial para
o bem do Estado" [Necker, ob. cit., p. 4-5].
O modelo de representação previsto
pela Constituição bonapartista do ano VIII constituía uma caricatura da prática
do verdadeiro parlamentarismo. Os cidadãos habilitados para votar segundo as
normas oficiais (cinco milhões, calculava Necker, sobre uma população de mais
de vinte milhões de Franceses), nos seus respectivos cantões indicariam as
pessoas que, segundo o seu critério, pudessem desempenhar cargos públicos. Daí
sairia uma massa de cinco mil homens aptos para receberem do Senado Conservador, formado à revelia da
Nação, a responsabilidade de administrar a máquina do Estado. Seria uma
representação às avessas, que personificaria os interesses de Bonaparte e da
sua burocracia, deixando de lado os reais interesses dos cidadãos. "Essas
listas de elegibilidade - frisava Necker [ob. cit., p. 10-11] - teriam pouca
credibilidade, ao reduzir cinco milhões de homens a cinco mil, sem nenhuma das
precauções que garantem ao menos um sentimento de interesse, um grau formal de
atenção a essa grande ação política".
Este modelo de representação às
avessas foi posto em prática, com grande sucesso, por Napoleão III, ao longo da
Segunda República (1848-1851) e do Segundo Império (1852-1870), com uma
inovação: a prática corriqueira do plebiscito, a fim de dar um verniz de
legitimidade democrática às decisões tomadas pelo dono do poder. Sabemos de que forma Napoleão III abusou dessa modalidade
de governo, tipicamente ditatorial, fato que levou Victor Hugo a escrever:
“Não, esse homem não raciocina; tem necessidades, tem caprichos, tem de os
satisfazer. São vontades de ditador” [Napoleão – O pequeno. Tradução de
Márcia Aguiar, São Paulo: Ensaio, 1996, p. 108]. Quando a oposição questionava
a legitimidade do Presidente-ditador e, após 1852, do Imperador, este lembrava
que tinha sido eleito em 1848 como Presidente com 5,5 milhões de votos e que
dois plebiscitos com mais de 95% dos votos legitimaram a sua auto-nomeação,
primeiro como Cônsul (em dezembro de 1851) e logo como Imperador (em novembro
de 1852).
Que o modelo de
pseudo-representação rousseauniana posto em marcha por Napoleão Bonaparte e
pelo seu sobrinho Luís Napoleão ainda está vigente, o provam as circunstâncias
dos populismos latino-americanos, que fazem uso e abuso do mecanismo da
re-eleição e do plebiscito na Venezuela, na Bolívia, no Equador, na Argentina e
No Brasil lulopetralha. Isso para não falar na arquiditadura cubana, velha de meio
século. Vida longa para o despotismo republicano e para o modelo reacionário de
legitimação que foi posto em prática por Campos Sales no Brasil, na virada do
século XIX para o XX!
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